Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | CHANDRA GRACIAS | ||
| Descritores: | ACOMPANHAMENTO DE MAIOR NOMEAÇÃO DE ACOMPANHANTE RECURSO DE APELAÇÃO NECESSIDADE DAS MEDIDAS | ||
| Data do Acordão: | 09/16/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 140.º, N.º 1, 143.º E 145.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL | ||
| Sumário: | I – O instituto do Acompanhamento impõe-se como forma actualista, humanista e positiva de acompanhar globalmente a evolução da situação (médica, pessoal, profissional e financeira) do respectivo beneficiário.
II – O recurso de apelação é admissível quando a discordância quanto à sentença respeitar apenas ao segmento relativo à nomeação da pessoa do Acompanhante – Ac. do TC n.º 186/2025, de 25-02-2025. III – O regime legal do Acompanhamento parte do princípio do pleno exercício dos direitos quanto a todos, extraindo-se que o legislador assumiu a «presunção de capacidade», devendo o acompanhamento limitar-se ao estritamente necessário – cf. arts. 140.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, ambos do Código Civil. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação
Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Viseu/Juízo Local Cível de Lamego Recorrente: AA Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I. Em 24 de Agosto de 2022, AA instaurou acção especial visando a instituição de Acompanhamento de Maior, com suprimento da autorização da respectiva beneficiária e aplicação de medida de acompanhamento cautelar, traduzida na nomeação de acompanhante provisório, em benefício da mãe, BB, ambos ali melhor identificados. A final, pretendeu que a acção fosse «… julgada procedente, por provada, e em consequência: a) Ser decretado o acompanhamento de BB, por razões de comportamento, com aplicação da medida de representação especial e administração total de bens e intervenções de outro tipo, com intervenção do acompanhante na categoria de actos indicados no artº 103º desta petição inicial, e dispensa de constituição do conselho de família, a ser revista com uma periodicidade de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 155º do Código Civil; b) Ser decretado o impedimento ou limitação da Beneficiária para o exercício de direitos pessoais, nos termos do disposto no artº 147º do Código Civil; c) Ser decretada, de imediato, antes da citação da Beneficiária, como medida de acompanhamento cautelar, a nomeação do acompanhante provisório, com poderes de representação da Beneficiária na prática de todos os actos referidos no artº 103º desta petição inicial, ao abrigo do disposto no artº 891º, nº2 do C.P.C.,; d) Ser suprida, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 141º do Código Civil, a autorização da Beneficiária para a presente acção de acompanhamento; Tudo com as legais consequências. Requer, ainda a V.Exa. i) seja dada publicidade ao início, decurso do processo e à decisão final, por meio de publicação de anúncios em sítio oficial, nos termos do disposto no artigo 893º, nº 2 do Código de Processo Civil; ii) se digne ordenar a comunicação, após trânsito, da decisão que decrete o acompanhamento à repartição do registo civil, nos termos do disposto nos artigos 153º, n.º 2, 1920º-B e 1920º-C do Código Civil, 902º, n.º 2 do Código de Processo Civil e 1º, nº1, h), 69.º, n.º 1, g), do Código do Registo Civil, com a redacção introduzida pela Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto.». Para desempenhar a função de Acompanhante, indicou-se a si próprio ou, subsidiariamente, a sobrinha, CC. A Requerida, citada pessoalmente, pugnou pela improcedência da acção, mas no caso de ser decretada alguma medida de acompanhamento, referiu dever ser nomeado Acompanhante, DD, seu filho. Prosseguindo os trâmites processuais, foi ouvida a Requerida, produzida prova e efectuado exame pericial, após o que os intervenientes processuais alegaram por escrito.
Subsequentemente, por despacho de 2 de Abril p.p., determinou-se: «Requerimento de 20 de março de 2025 (referência n.º 7129628) Por se afigurar desnecessário e inútil para a boa decisão dos presentes autos – cf. artigos 891.º, e 986.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil –, não se admite o requerimento melhor aludido supra, e respetivo anexo, passando-se de imediato à prolação da decisão final.».
Por Sentença que remonta a 2 de Abril p.p., foi decidido, inter alia: «1. Decretar o acompanhamento de BB, nascida em ../../1931, filha de EE e de FF, viúva, residente na ..., Rua ..., ... ...; 2. Nomear como Acompanhante de BB, DD, nascido em ../../1963, casado, residente na ..., Rua ..., ... ...; 6. Designar para Conselho de Família, nos termos do disposto nos artigos 145.º, n.º 4, a contrario, e 1921.º e seguintes e 1951.º e seguintes, todos do Código Civil, e nomear como Protutora GG, filha da Acompanhada, nascida em ../../1957, divorciada, residente na Rua ..., ... ..., e como vogais AA, filho da Acompanhada, nascido em ../../1959, casado, residente na Rua ..., Habitação ...6, ... ..., e HH, nascido em ../../1958, divorciado, residente na Rua ..., ..., ... ...; 9. Fixar em 2022 a data a data a partir da qual a medida decretada se tornou conveniente;».
II. Dissentindo, o A. interpôs Recurso de Apelação, com as suas alegações a serem rematadas com estas «CONCLUSÕES (…)».
III. A Requerida contra-alegou, colhendo-se as seguintes «CONCLUSÕES (…)».
IV. Respiga-se da resposta apresentada pela digna magistrada do Ministério Público que «(…)».
V. Questões decidendas Sem embargo da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil): - Despacho: . Da nulidade, por falta de fundamentação, do indeferimento do pedido de junção de documento. - Sentença: . Da impugnação da matéria de facto provada. . Das questões atinentes ao patrocínio judiciário (incapacidade da beneficiária prestar consentimento para o processo e dedução de contestação) e representação (designadamente pelo Ministério Público). . Da fixação do início da incapacidade. . Da designação e idoneidade do Acompanhante.
VI. Dos Factos Vêm provados os seguintes factos (transcrição, sublinhando-se o concretamente impugnado): 1. A Requerida nasceu em ../../1931. 2. É filha de EE e de FF. 3. É viúva de II e, desse casamento, nasceram os seus 4 filhos, a saber, GG, nascida a ../../1957, HH, nascido a ../../1958, AA, nascido a ../../1959, e DD, nascido a ../../1963. 4. Desde 19 de agosto de 2022 até à presente data, a Requerida vive na ..., Rua ..., ... ..., com o seu filho DD, a esposa deste e uma funcionária daqueles. 5. Desde 2022, a Requerida sofre de síndrome demencial. 6. Tal síndrome é de evolução lenta, gradual, incurável, permanente e irreversível. 7. Não há tratamento específico para tal síndrome demencial, beneficiando a Requerida de terapêutica diária e vigilância médica regular. 8. As funções cognitivas apresentadas pela Requerida revelam uma deterioração global marcada, contudo sem prejuízo importante na capacidade de linguagem. 9. A Requerida sabe o seu nome completo, mas não a sua idade, ou data de nascimento. 10. Não consegue identificar o nome dos seus filhos e não mostrou saber que o seu marido já faleceu. 11. Não consegue localizar-se no tempo e no espaço. 12. Não sabe indicar onde e com quem reside. 13. Desconhece os problemas de saúde de que padece ou eventual toma diária de terapêutica médica prescrita. 14. Não é capaz de se movimentar sozinha na rua. 15. Não nomeia o seu património. 16. Apresenta um discurso pouco espontâneo, confuso desorganizado e pobre em conteúdo. 17. A Requerida não é capaz de manifestar de forma livre e esclarecida as suas vontades. 18. Sabe escrever e ler, mas não consegue interpretar aquilo que lê. 19. Não consegue realizar simples cálculos aritméticos. 20. Consegue alimentar-se pelos próprios meios, mas não cozinha ou prepara os seus alimentos e é necessário, por vezes, separar os alimentos. 21. Necessita do auxílio de terceiros para realizar os tratamentos médicos de que necessita, para o controlo e toma da medicação prescrita e para a marcação e comparência a consultas médicas que lhe sejam agendadas. 22. Sabe identificar moedas (já não notas), contudo não conhece o valor real do dinheiro. 23. Não reconhece um cartão de multibanco e para o que serve. 24. Não tem capacidade para sozinha comprar ou efetuar o pagamento de bens e/ou de serviços, essenciais, designadamente, de alimentos, roupa, água, luz, gás e telefone. 25. Necessita de auxílio de terceiros para todas as atividades da sua vida diária, designadamente ao nível da sua higiene pessoal e vestuário, da sua alimentação, da sua segurança, do seu conforto e, bem assim, da administração da sua medicação e património. 26. Tais atividades e tarefas são asseguradas pelo seu filho DD, a esposa deste e os funcionários que contratam para o efeito. 27. Por vezes, DD solicita apoio domiciliário à Santa Casa da Misericórdia .... 28. Os quatro filhos da Requerida consideram que o melhor para o seu bem-estar é a manutenção da sua residência na ..., Rua ..., ... .... 29. A Requerida não celebrou testamento vital.
Por consulta à plataforma informática, adita-se também que: 30. Por Acórdão da 3.ª Secção deste Tribunal, datado de 27 de Maio p.p. (Apenso A), foi julgado improcedente o recurso referente ao indeferimento, em 11 de Fevereiro de 2025, do pedido de junção de documentos formulado pelo ora Recorrente, em 19 de Outubro de 2024[2].
VII. Do Direito A presente instância recursiva abrange a prolação, tanto do despacho que não admitiu a junção de um documento, como da decisão final – ambos datados de 2 de Abril p.p. –, que, neste último caso, por expressa opção do Recorrente, ficou limitada à nomeação de Acompanhante e à data do início da incapacidade, atento o teor do art. 635.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Principiando logicamente pelo despacho. Constata-se que o mesmo indeferiu a junção da decisão instrutória exarada no Proc. n.º 808/22...., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Instrução Criminal de Viseu (J1), de 14 de Março p.p., mediante a qual o Recorrente pretendia demonstrar factos relacionados com o comportamento da pessoa designada como acompanhante que revelam que não é idónea para o exercício desse cargo. Assaca ao despacho o vício da nulidade, por não conter fundamentação fáctica e jurídica, aludindo ao art. 615.º, n.º 1, al. b), ex vi art. 613.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil. Uma das dimensões estruturantes do processo equitativo[3] reside no dever de fundamentação, de facto e de direito, de uma decisão judicial que verse sob questão litigiosa e que não seja de mero expediente. A isto respeita o art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, afirmando-se que a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara, coerente e suficiente[4]/[5]. Na esteira da lei fundamental este princípio foi inscrito na lei civil adjectiva, no seu art. 154.º. A nulidade por falta de fundamentação, a que se reporta o art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, abrange tanto a fundamentação de facto, como a fundamentação de direito[6]. Já não se integram nesta alínea os casos em que existe fundamentação, mas a mesma enferma de erro ou é insuficiente, caso em que, se for admissível, pode originar um recurso. Como se extrai da sua inserção sistemática, este fundamento está directamente vocacionado para a Sentença, devendo sofrer ajustes quando em presença de um despacho. Numa opção de política legislativa, a acção aqui em apreço tem natureza urgente, e a despeito de não se integrar nos processos de jurisdição voluntária, com assento nos arts. 986.º ss. do Código de Processo Civil, aplicam-se-lhe «…com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento …», de acordo com o art. 891.º, n.º 1, in fine. Apartando-se de alguma rigidez que ainda caracteriza a jurisdição contenciosa, em linha com esta disposição legal, os arts. 897.º e 900.º acentuam os poderes instrutórios do Juiz, mencionando expressamente que este ordena as diligências que repute convenientes (n.º 1), e reunidos os elementos que entenda necessários, profere decisão (n.º 1), respectivamente. O que, no fundo, reproduz as traves mestras orientadoras da jurisdição voluntária, na qual o Tribunal goza de ampla liberdade investigatória e probatória, e respeitados os trâmites legais, norteia-se por parâmetros de conveniência, oportunidade e necessidade, desde que densificados e objectivados, e não por critérios de legalidade estrita (no dizer do art. 986.º, n.º 2, «… investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.»). Volvendo ao despacho sindicado, o mesmo indica, ainda que sucintamente, a razão do indeferimento da junção – desnecessidade e inutilidade para a boa decisão do pleito –, alicerçando-se na previsão normativa dos arts. 891.º, e 986.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil. Tal qual vinca a decisão recorrida, o objecto do processo é a eventual instituição de Acompanhamento e não os diferendos sobre a partilha do património familiar ou a qualidade do relacionamento interpessoal (naquilo que não diga respeito à beneficiária), como amiúde traz à colação o Recorrente. Por conseguinte, os factores que aqui devem ser ponderados repercutem-se na beneficiária da acção, na dimensão da sua idade, condição física, estado geral de saúde mental e emocional, vontade que expressa, e apoio que demonstre carecer. Mediatamente, a sua relação com a pessoa que se perfile ser nomeada para Acompanhante. Ora, o documento cuja junção foi solicitada não se insere nestes cânones. Ademais não se trata de uma decisão final transitada em julgado, e os factos que ali se retratam não foram praticados sobre a pessoa da aqui beneficiária. Tanto basta para que tenha sido desconsiderado pelo Tribunal a quo, no uso dos poderes conferidos pela natureza da acção, juízo que aqui se confirma. A discordância do Recorrente com o teor da decisão e/ou com os seus fundamentos é uma categoria distinta e não confundível com o vício de nulidade consagrado no art. 615.º, e que, repete-se, não ocorre na situação vertente. Como assim, improcede este fundamento recursivo.
Avançando para a Sentença. Previamente à dilucidação da matéria factual, impõe-se uma breve nota às questões processuais suscitadas pelo Recorrente, na dimensão do patrocínio judiciário (v.g., incapacidade da beneficiária prestar consentimento para o processo e contestação desconforme à vontade desta) e da representação da beneficiária [v.g., pelo Ministério Público) – cf. Conclusões P) a W)]. O Recorrente esteve presente e/ou foi notificado dos actos processuais directamente conexionados com estes pressupostos processuais, mais afirmando expressis verbis «…Sem pôr em causa a citação…». Ora, aceitando-a e tendo tido conhecimento dos trâmites processuais e, por via disso, a oportunidade processual de sobre os mesmos emitir pronúncia, tal significa que se encontra largamente ultrapassada a discussão sobre os pontos agora invocados, no sentido em que aquele atempadamente não sindicou a matéria por via de recurso – princípio da preclusão[7] –; não se descortina a existência de nulidade insanável; a ter havido alguma irregularidade, encontra-se sanada – cf. arts. 186.º ss. do Código de Processo Civil –; e neste momento processual voluntariamente declarou cingir o recurso à parte relativa à designação do acompanhante e à fixação da data do início da incapacidade (não se questionando a necessidade de aplicação da medida de acompanhamento, nem a medida concretamente decretada). Destarte, improcede tal fundamento.
(…).
Sendo incontroverso para o Tribunal e para os sujeitos processuais envolvidos a necessidade de Acompanhamento, deve indagar-se a fixação do momento temporal inicial da incapacidade e quem deve desempenhar a função de Acompanhante – o aqui Recorrente (ou a sua irmã ou sobrinha), conforme discorre o mesmo, ou DD, irmão daquele, como secundou o Ministério Público, e ficou decidido. Expende-se no segmento pertinente da decisão em crise: 1. A propósito da data do início da incapacidade «Primeiramente, para assentar a factualidade dada como provada sob os pontos 5. a 25. – mormente, a data a partir da qual a Requerida padece de síndrome demencial e as respetivas consequências na saúde e autonomia daquela – foi vital o relatório pericial junto aos autos eletrónica a 4 de abril de 2024 (referência n.º 6498108) e os posteriores esclarecimentos prestados (cf. relatório junto aos autos eletrónicos a 21 de outubro de 2024, referência n.º 96438980). A este propósito, aluda-se que segue-se de perto o vertido em tal perícia não só porque espelha, em grande medida, as limitações presenciadas pelo Tribunal na pessoa da Requerida, aquando da sua audição, como também vão no sentido do relato prestado por DD, filho com a qual aquela reside, e que prestou um discurso sério e escorreito, não obstante a conflituosidade latente nestes autos.». O Recorrente concorda com o ano em que foi fixada a incapacidade (2022), mas discorda da indefinição temporal. Na sua óptica, a incapacidade teve o seu início, ou no dia 9 de Julho ou no dia 24 de Agosto (ambos de 2022), correspondendo, o primeiro ao dia em que o próprio e a irmã se aperceberam do estado de confusão mental da respectiva mãe, e o último, a data da propositura da acção. Porém, ao mesmo tempo, também detalha que «Nos esclarecimentos prestados pela perita médica em 11/10/2024, a mesma a afirma que a data provável de início da afectação de que padece a examinada poderá situar-se no ano de 2022, mas tendo em conta que a síndrome demencial teve uma evolução “insidiosa”, “não é possível datar num dia e/ou mês preciso o seu início.”» (p. 62 do corpo das alegações). Antes de mais, frisa-se que esta concreta questão já fôra aventada em sede de Audiência, motivando o despacho na Acta de 18 de Setembro p.p., com o seguinte teor: «Tendo por apreço o vertido no relatório pericial de 15 de março de 2024, concretamente o seguinte excerto «admite-se que a examinada padeça de uma síndrome demencial pelo menos desde 2022». Urge esclarecer, na medida do possível, o concreto dia e/ou mês que tal síndrome demencial teve início, atento aquilo que efetivamente se encontra em discussão nestes autos. Por tal, com nota de máxima urgência, oficie ao INML para, no prazo de 5 (cinco) dias, esclarecer em que dia e/ou mês teve início tal síndrome demencial e ,bem assim, quais implicações cognitivas e fisiológicas que, tal marco temporal, teve na pessoa da Requerida. Notifique.». A data da fixação inicial da incapacidade foi esteada nos contributos e conclusões médicos, fruto de informações clínicas, entrevista e exame presencial directo[8], datado de 12 de Outubro de 2023[9]. Posteriormente ao despacho exarado em Acta e a que se aludiu supra, foram remetidos esclarecimentos periciais, em 16 de Outubro de 2023, reafirmando-se o que já havia sido transmitido. Em sede destas acções deve salientar-se que o exame pericial assume uma importância capital não só para se apurar se, efectivamente, o seu beneficiário deve ficar abrangido pelo instituto do Acompanhamento (e quais as medidas concretas que se têm por imperativas para assegurar o seu bem-estar), como ainda para delimitar a data do início da incapacidade que o afecte, se isso for exequível. Excepto em casos muito específicos em que a incapacidade resulta de um evento temporalmente balizado – v.g., um acidente –, normalmente a data é situada abstractamente num ano ou até por referência a um intervalo temporal superior. Sobretudo nas situações, como a presente, em que a doença atinge uma pessoa de idade avançada, sendo neurológica, degenerativa e irreversível (factos n.ºs 1, e 5 a 8), habitualmente despercebida no seu estádio inicial até pelas pessoas mais próximas que a rodeiam, e de progressão incerta e distinta para cada pessoa, o juízo médico-psiquiátrico não pode afiançar uma data exacta, com certeza e segurança científicas, sendo consentâneo com o que foi aqui feito. Concomitantemente, não há qualquer elemento probatório robusto capaz de infirmar o juízo pericial acolhido na decisão, não tendo os fundamentos oferecidos pelo Recorrente para as duas datas aventadas, essa virtualidade. Mantém-se, desta feita, a data indicada na decisão.
2. No tocante à escolha do Acompanhante «Já no que concerne à figura do Acompanhante, dispõe o artigo 143.º, do Código Civil, que «1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente. 2 - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente: a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto; b) Ao unido de facto; c) A qualquer dos pais; d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado; e) Aos filhos maiores; f) A qualquer dos avós; g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado; h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação; i) A outra pessoa idónea. 3 - Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores.». Ora, tendo por apreço o desenho legal e, bem assim, (i) a proveta idade da Requerida (hoje já conta com 94 anos); (ii) a circunstância de, desde 19 de agosto de 2022, residir na ..., Rua ..., ... ...; (iii) o circunstancialismo de ser entendimento deste Tribunal que a manutenção da residência da Requerida na ... é o melhor para o seu bem-estar e saúde; (iv) a data início do seu quadro demencial; e (v) a circunstância desde então se encontrar aos cuidados do seu filho DD, é entendimento deste Tribunal que deve ser nomeado para Acompanhante DD, pois, não obstante não ser o filho mais velho, é este quem tem vindo a diligenciar por todos os aspetos da vida pessoal e quotidiana da Requerida e é este que reúne (e reuniu) todas as valências para acautelar por todos os cuidados a esta devidos. Frise-se que nada se demonstrou que ponha em causa os cuidados adotados por este filho e devidos à Requerida. Diga, por seu turno, que as questões laterais tentadas levantar nestes autos (e que, frise-se, não foram e não serão apreciadas por este Tribunal por serem estranhas ao objeto do presente processo especial), não alterariam a presente posição, pois que seria de uma atroz violência para a Requerida uma alteração do estado de coisa, não só em face da sua proveta idade, como também do estado confusional em que se encontra. Por tudo acima respigado, sem necessidade de mais delongas, deverá ser a Requerida acompanhada por DD, seu filho, que se designará como Acompanhante – cf. artigos 142.º, 143.º e 146.º, do Código Civil –, a quem caberá tomar todas as medidas ….».
Para aquilatar os pressupostos em que se baseou a escolha da pessoa do Acompanhante[10], importa contextualizar o regime jurídico do Acompanhamento. De acordo com a Lei Fundamental, no âmbito dos direitos fundamentais, a todos é reconhecido o direito à capacidade civil (art. 26.º), direito este indissociável da personalidade e da dignidade da pessoa humana. Toda e qualquer pessoa goza, desde o seu nascimento completo e com vida, de personalidade jurídica (art. 66.º, n.º 1, do Código Civil), e à personalidade jurídica é inerente a capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos, que corresponde, no normal das situações, uma capacidade de exercício de direitos (art. 67.º do Código Civil). Assente sobre a capacidade jurídica está a capacidade para o exercício de direitos (arts. 123.º, 130.º e 133.º, todos do Código Civil), salientando-se destas normas que tal capacidade compreende o poder de praticar autonomamente, pessoalmente ou através de representantes voluntários, os actos jurídicos relativos aos seus interesses pessoais e patrimoniais. Nos anteriores institutos da interdição e da inabilitação a questão da capacidade judiciária encontrava-se posta em crise, razão pela qual há muito que estes institutos eram encarados como desactualizados, em particular, em face da rigidez e inflexibilidade do primeiro, sem adaptação às concretas e precisas limitações de cada indivíduo encarado na sua individualidade. Além disso, as soluções fornecidas pelo Código Civil de 1966 foram-se tornando progressivamente desajustadas, também em face da evolução sócio-económica e demográfica do país. Neste contexto, surgiu a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, com a finalidade de promover uma maior inclusão das pessoas com deficiência ou incapacidade, sendo certo que essa inclusão «deve ter como elemento fundamental o reconhecimento de que as diferentes situações de incapacidade, com graus diferenciados de dependência, carecem de respostas e de apoios distintos, devendo essa diversidade deve ser tida em conta no desenho das medidas e das respostas dadas a cada caso»[11]. A opção do legislador veio, então, aproximar-se do plasmado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[12], de 30 de Março de 2007, cujo propósito reside em «promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente», segundo defui do seu art. 1.º, n.º 1. Esta Convenção, por sua vez[13], «veio alterar o paradigma do direito das pessoas com deficiência, evoluindo de um modelo clínico para um modelo social de deficiência (...)». Das normas introduzidas no sistema pela referida Lei n.º 49/2018 resultou uma alteração de paradigma: a rigidez do anterior sistema, assente em duas figuras (interdito e inabilitado) que limitavam a capacidade de exercício do requerido de formas estanques e pré-definidas na lei, deu lugar a uma figura maleável (maior acompanhado) com plasticidade e conteúdo a preencher casuisticamente pelo Tribunal em função da real situação, capacidades e possibilidades da concreta pessoa do requerido, e onde antes a regra era a da incapacidade de exercício, agora surge a da capacidade. Foi também objectivo da reforma o respeito pelos instrumentos internacionais vinculativos para o Estado Português, sobretudo a citada Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cujos princípios são, inter alia, o respeito pela dignidade, a autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, a independência das pessoas e a não discriminação, e de onde resulta, para além da ideia de necessidade, que as medidas de acompanhamento se regem também por uma ideia de subsidiariedade (art. 140.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil)[14]. Revertendo à situação dos autos é inequívoco para este agregado familiar que a beneficiária não está capaz de tomar decisões sobre a sua pessoa e bens e de subsistir autonomamente, devendo dispor de acompanhamento, quer no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres, quer na administração do seu património[15]. Volvendo ao art. 4.º da mencionada Convenção, os Estados que a subscreveram ou que a ela aderiram – como Portugal – comprometeram-se, designadamente a «assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência sem qualquer discriminação com base na deficiência». Para que dúvidas não subsistam, com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, abandonou-se a dicotomia interdição/inabilitação, que obstava à maximização dos espaços de capacidade de que a pessoa ainda fosse portadora, para se introduzir um modelo monista, dotado de maior flexibilidade e de amplitude suficiente para abarcar todas as dinâmicas de vida possíveis. No caso em apreço, o deferimento do acompanhamento impõe-se como forma actualista, humanista e positiva de acompanhar globalmente a evolução da situação (médica, pessoal e financeira) da Acompanhada, espelhada nos autos. Este regime parte do princípio do pleno exercício dos direitos quanto a todos, extraindo-se do corpo legal que o legislador assumiu a «presunção de capacidade», devendo o acompanhamento limitar-se ao estritamente necessário – cf. arts. 140.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, ambos do Código Civil. Percorrida a matéria de facto apurada, de onde avulta que o Acompanhante é um dos filhos da Acompanhada, com quem esta reside, sendo entendimento de todos que deve permanecer nesse local, e que aquele satisfaz de modo proficiente as necessidades integrais da sua mãe (factos provados n.ºs 3, 4, 25, 26 e 28), e nada se tendo provado em seu desabono, conjugada com a norma do art. 143.º do Código Civil, conclui-se não merecer censura a designação feita. A decisão enveredou por uma das opções que se perfilavam (Recorrente ou o irmão/outro filho, indicado pela própria Acompanhada na sua contestação), e justificou-a em termos que não concitam dúvidas. De harmonia, improcede o recurso.
Pelo decaimento integral, o Apelante satisfaz o pagamento das custas processuais (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
VIII. Decisão: Segundo vertido, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida. O pagamento das custas processuais compete ao Apelante. Registe e notifique. (assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)
[4] Jorge Miranda e Rui Medeiros in, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. III, 2.ª edição, Universidade Católica Portuguesa, 2020, pp. 61/62. [5] Vieira de Andrade in, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 2003 (reimpressão), p. 234, adianta que uma declaração incongruente não é uma fundamentação, porque não pode ser um discurso justificativo, faltando-lhe a racionalidade que é uma condição necessária de toda a decisão pública de autoridade num Estado de Direito. [6] Rui Pinto in, Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), Julgar Online, Maio de 2020, pp. 11/12, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/20200525-JULGAR-Os-meios-reclamat%C3%B3rios-comuns-da-decis%C3%A3o-civil-Rui-Pinto-v2.pdf), acrescentando, «… é bom de ver que uma ausência de análise crítica das provas ou uma fundamentação da decisão da matéria de facto que seja genérica, sem especificação da prova que foi decisiva é, funcionalmente, uma falta de fundamentação da parte dispositiva. É certo que é uma falta de fundamentação indireta, porquanto normalmente é acompanhada do(s) julgamento(s) de provado / não provado, mas está no espírito da nulidade em presença cominar qualquer falta efetiva e funcional de fundamentação.» (p. 15), «Em conclusão: a nulidade por falta de fundamentação diz respeito tanto ao(s) julgamento(s) de provado / não provado (cf. artigo 607.º, n.ºs 3, primeira parte, e 4, primeira parte), como à motivação ou convicção (cf. artigo 607.º, n.º 4, segunda parte) que os sustenta. Ocorre também falta de fundamentação se, em termos funcionais e efetivos, faltar a motivação da prova, apesar de estar presente o julgamento de provado / não provado.» (p. 16), e «A falta de fundamentação a que se refere a al. b) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre, seja quando não há nenhuma fundamentação (de direito ou de facto) da parte dispositiva, seja quando falta, em termos funcionais e efetivos, algum segmento da fundamentação exigida pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º. Trata-se, em ambos os casos, de um vício grosseiro, grave e manifesto, como é próprio dos vícios arrolados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º. Um entendimento conforme ao artigo 205.º, n.º 1, da Constituição impõe esta interpretação….» (p. 17). [7] A valência do princípio da preclusão traduz-se directamente na imposição de uma actuação leal de todas as partes envolvidas, exigindo-se-lhes uma conduta transparente desde o início, que habilite cada uma delas a agir e a reagir de boa-fé, auto-responsabilizando-as pelo desenvolvimento e pelo desfecho dos autos; em síntese, visa-se a completude na actuação processual. Paralelamente, e não de somenos importância, acolhem-se interesses de celeridade processual ao prevenir o arrastamento dos processos, com a progressiva definição das situações jurídicas. No ordenamento jurídico nacional, o princípio da preclusão significa que na lei processual civil há ciclos processuais, por vezes rígidos, para a prática de determinados actos e que não sendo praticados no momento temporal previamente definido, inviabilizam a sua prática em momento ulterior – cf. art. 139.º, n.º 3, do Código de Processo Civil –, mas não descurando a justa composição do litígio e a verdade substancial mediante v.g., o princípio do inquisitório, o instituto do justo impedimento ou o atendimento de circunstâncias supervenientes. É o denominado princípio da preclusão mitigado. [8] Estatui o art. 388.º, epigrafado Objecto, que: «A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.». [10] O Acórdão n.º 186/2025, Proc. n.º 736/23, de 25-02-2025, acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250186.html, debruando-se sobre o aspecto particular da designação da pessoa do Acompanhante, decidiu: [11] Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 110/XII, disponível em www.parlamento.pt. [13] Diana Mota Fernandes in, A interdição e inabilitação no Ordenamento Jurídico Português: Notas de enquadramento de direito material e breve reflexão face ao direito supranacional, Interdição e Inabilitação (E-book), p. 263, disponível em www.cej.mj.pt. |