Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
145/08.9TBFZZ-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO GERAL
HIPOTECA
CUSTAS
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 749º, Nº 1, E 751º DO C. CIV..
Sumário: I No confronto entre um privilégio imobiliário geral, como o é o da Segurança Social, e a garantia hipotecária, esta prevalece sobre aquele, independentemente da data do registo (desde que constituída anteriormente à data da penhora dos bens sobre que incidem um e outra), porquanto tem aplicação o disposto no artº 749º, nº 1, do C.Civ. e não o que dispõe o artº 751º do mesmo diploma, e porque a violação do princípio da confiança se liga à natureza oculta do privilégio e não à temporalidade do registo da garantia.

II – Revogada a isenção prevista no artº 2º, nº 1, al. g), do CCJ, o reclamado/recorrido é responsável pelo pagamento das custas do recurso procedente, tenha ou não contra-alegado.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

1.1 O processo na 1.ª instância

Por apenso aos autos em que é exequente Banco A..., SA e executada B... e outros, nos termos do artigo 871.º do CPC, veio o reclamante, Banco A..., SA reclamar a quantia exequenda da execução sustada, peticionada na Execução Comum n.º 146/08.7TBFZZ, que corre termos no Tribunal da Comarca de Ferreira do Zêzere contra B..., C... e D... com fundamento no facto de ser dono e legítimo portador de uma livrança na quantia de € 5.797,60, vencida em 23 de Maio de 2008. Porque, no âmbito dessa execução, registou penhora sobre os imóveis que identifica e é credor da importância titulada e dos juros moratórios à taxa legal desde a data do vencimento até à data da entrada em juízo (calculados com referência a 18.02.2010, ascendem a €404,08) e ainda dos juros moratórios vincendos e, ainda do Imposto de Selo de 4% (que totaliza, mesma data, €16,16) o seu crédito totaliza € 6.217,85 e, uma vez recebida a reclamação, deve ser graduado no lugar que lhe competir.

Nos mesmos autos, O Instituto da Segurança Social, IP reclama o pagamento dos seus créditos sobre os executados D... e B..., porquanto:

O executado D..., por não ter cumprido o disposto nos artigos 29.º e seguintes do D.L. n.º 328/93 de 25/09 (com a última redacção introduzida pelo D.L. n.º 159/2001, de 18/05, que estabelece o regime de Segurança Social dos Trabalhadores Independentes), deve as contribuições referentes aos meses de Julho/2003 a Janeiro/2004, Dezembro/2008, Janeiro/2009 a Setembro/2009, no valor de €2.386,97, como Trabalhador Independente; a executada B..., pela mesma razão, deve as contribuições referentes aos meses de Fevereiro/2004 a Setembro/2005, no valor de €1.873,40, como Trabalhadora Independente. Como às contribuições referidas acrescem juros de mora até cumprimento (a calcular de acordo com o determinado no D.L. n.º 103/80 de 9/05, com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 275/82, de 15/07, no D.L. n.º 411/91, de 17/10 e no D.L. n.º 73/99, de 16/03) estão vencidos até Fevereiro/2010 no montante (relativos ao primeiro dos créditos) de €757,58 e, quanto à executada, no de €1.169,55, acrescendo-lhes os juros vincendos.

O reclamante Banco A..., SA, mais à frente, reclamou outro crédito, agora da quantia total €36.139,00 (discriminada da forma seguinte: a) €35.786,63 de capital; b) €338,82 de juros; c) €13,55 de Imposto de Selo), com referência à data da apresentação da reclamação, ou seja, 12 de Abril de 2010. Esclarece a pretensão dizendo que:

- Por escritura pública de hipoteca outorgada em 15 de Outubro de 2007 os executados D... e B...constituíram a favor do reclamante hipoteca voluntária genérica (registada a 19.10.2007) sobre o seguinte imóvel que identifica, garantia até ao limite de €39.000,00 de capital e juro anual de 6,058% acrescido de 4% em caso de mora a título de cláusula penal, e despesas no valor de €1.560,00, sendo o montante máximo, em termos de capital e acessórios do crédito, de €52.327,86.

- Em 15 de Outubro de 2007, o reclamante concedeu aos executados/reclamados uma facilidade de crédito sob a forma de empréstimo com garantia hipotecária, no montante de €39.000,00, destinado a apoio de tesouraria; os executados aceitaram o empréstimo e confessaram-se devedores da quantia, tendo sido o prazo de 264 meses para empréstimo a contar de 15.11.2007, amortizado em prestações mensais de capital e juros;

- Acontece que os reclamados não pagaram a prestação do empréstimo que se venceu em 15 de Fevereiro de 2010 e, na data do incumprimento o empréstimo vencia juros remuneratórios à taxa de 2,171% ao ano, pelo que tem direito a haver juros moratórios vincendos, calculados àquela taxa acrescida da sobretaxa de 4,00%.

Não tendo havido qualquer impugnação prosseguiu o processo e veio a ser proferida sentença que decidiu: Julgo verificados os créditos reclamados e nos termos das disposições conjugadas dos arts. 733º, 736º, nº 1 e 747º, nº 1, alínea a), todos do Código Civil, e graduo-os créditos da seguinte forma:

- Em primeiro lugar, o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social/Centro Distrital de ..., por falta de pagamento de contribuições à Segurança Social, no que respeita às contribuições relativas aos meses de Julho de 2003 a Janeiro de 2004, e às contribuições de Fevereiro de 2004 a Setembro de 2005, acrescidos dos respectivos juros desde 31/01/2008;

- Em segundo lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por hipoteca;

- Em terceiro lugar, o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social/Centro Distrital de ..., no que respeita às restantes contribuições (a saber, Dezembro de 2008 a Setembro de 2009), acrescidas dos respectivos juros desde 31/01/2008;

- Em quarto lugar, o crédito exequendo;

- Em quinto lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por penhora registada em 12/01/2010.

1.2 Do recurso

O reclamante Banco A... não se conformou com o decidido e apelou para esta Relação. Nas conclusões escreveu o seguinte:

[…]

Recebido o recurso na 1.ª instância, subiram os autos a esta Relação, onde, em despacho liminar nada se viu que obstasse ao seu conhecimento. Foram dispensados os vistos, ponderando a simplicidade da questão a resolver e após acordo dos Exmos. Adjuntos. Como então, nada vemos que obste ao conhecimento da apelação.

1.3 Objecto do recurso

Delimitado pelas conclusões do apelante, a questão a resolver é unicamente a de saber se o crédito reclamado, garantido por hipoteca, deve ser graduado antes do crédito da segurança social, privilegiado, mesmo quando este último se constituiu (venceu) anteriormente à data do registo da garantia.

 

2. Fundamentação

2.1 Fundamentação de facto:

Não estando minimamente em causa a matéria de facto que foi ponderada na 1.ª instância e porque a mesma resulta inequívoca do relatório, para aí expressamente se remete, sintetizando-se apenas o seguinte, para melhor compreensão da decisão:

- A Segurança Social reclamou créditos devidos por falta de pagamento pelos executados de contribuições para Segurança Social, enquanto trabalhadores independentes;

- As contribuições em falta referem-se, quanto ao executado D..., aos meses de Julho de 2003 a Janeiro de 2004; Dezembro de 2008 e Janeiro a Dezembro de 2009;

- Quanto à executada B..., são relativas aos meses de Fevereiro de 2004 a Setembro de 2005;

- O Banco, ora recorrente, reclamou créditos, no que ora importa, garantidos por hipoteca.

- A hipoteca foi registada em 19.10.2007.

2.2 Aplicação do direito 

Como decorre do relatório e demais considerações precedentes, a única questão que motiva o inconformismo do recorrente e que, por isso, constitui objecto da apelação, respeita à graduação do crédito garantido por hipoteca, colocado de modo a ser pago depois do crédito reclamado pela Segurança Social.

A sentença sob censura, a propósito do ponto em discordância, antecipa o entendimento que se transcreve, e onde se deixa a sublinhado a razão que motiva o decidido: “ (…) Um dos créditos reclamados pelo Banco mostra-se garantido por hipoteca incidente sobre o imóvel urbano, registada em 19/10/2007. Por outro lado, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (…) No caso dos autos, goza de privilégio creditório o crédito reclamado pela Segurança Social. Conforme resulta do disposto nos artigos 10.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, este encontra-se garantido por privilégio mobiliário geral e imobiliário, devendo os seus créditos ser graduados logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil.

Não obstante tratar-se de um privilégio imobiliário, atenta a letra da lei, entendeu durante bastante tempo parte da doutrina e da jurisprudência que, com tal normativo, o legislador pretendeu dar alguma preferência aos créditos da Segurança Social, determinando que estes se graduassem logo a seguir aos do Estado e autarquias locais referidos no artigo 748.º do Código Civil. Pretendia-se, com tal posição, que o referido privilégio fosse graduado com preferência sobre os créditos garantidos por hipoteca, mesmo quando esta já existia e se mostrava registada anteriormente. Face a tal entendimento, o Tribunal Constitucional proferiu acórdão através do qual declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80 de 9 de Maio e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76 de 3 de Julho, por violação do princípio da confiança (…)

Atendendo a que, no caso em apreço, sobre o imóvel penhorado existia já uma hipoteca registada a favor do Exequente, cumpre distinguir entre os créditos da Segurança Social anteriores à data da hipoteca e os créditos daquela Instituição posteriores à referida data. Os primeiros créditos identificados serão graduados com preferência sobre a hipoteca, uma vez que são anteriores ao registo daquela e dado que a questão colocada em crise no Acórdão supra identificado é a violação do princípio da confiança; os restantes créditos serão graduados imediatamente a seguir ao crédito reclamado pelo exequente, atenta a jurisprudência com força obrigatória geral supra enunciada”.

Como decorre, a 1.ª instância considerou necessário distinguir os créditos da Segurança Social anteriores e posteriores ao registo da hipoteca, porquanto entendeu que, relativamente aos primeiros, não seria de aplicar a doutrina decorrente da declaração de inconstitucionalidade; considerou, por isso, que a estes créditos não era oponível uma hipoteca (posterior), ou seja, quanto a eles não haveria violação do princípio da confiança.

O Banco recorrente, por sua vez, chama a atenção para o facto de o Acórdão 363/2002 não fazer qualquer diferenciação entre créditos da Segurança Social anteriores ao registo da hipoteca e créditos da Segurança Social posteriores e acrescenta que da sua leitura até se depreende que o princípio da confiança é atingido ainda que os créditos da Segurança Social sejam anteriores aos da hipoteca, tanto mais que o registo predial “tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis”.

Apreciemos.

Como vem definido no artigo 733.º do Código Civil (CC)[1] o privilégio creditório é a faculdade que a lei, atendendo à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros. Retiram-se da noção legal algumas das características gerais que melhor permitem a compreensão desta figura (Miguel Lucas Pires, Dos Privilégios Creditórios – Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, Almedina, 2004, págs. 31 e ss.): - garantia legal, atribuída, na perspectiva da lei a créditos que se mostram particularmente dignos de protecção; - acessório do crédito que se destina a garantir; - natureza indivisível; – carácter oculto.

Os privilégios creditórios serão (quanto à abrangência) gerais ou especiais e (quanto à natureza dos bens sobre que incidem) mobiliários ou imobiliários. Destas hipóteses, entre si combinadas, resulta a possibilidade de existirem privilégios mobiliários gerais e especiais e privilégios imobiliários gerais e especiais. No entanto, na sua versão originária, o artigo 735.º, n.º 3 do CC excluía a existência de privilégios imobiliários gerais e, na versão decorrente do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, continua a fazê-lo, mas apenas para os previstos no Código. Assim, na versão absoluta inicial ou na versão restritiva e clarificadora da alteração legislativa os privilégios imobiliários gerais só existem em leis avulsas, não no Código Civil, com as inerentes dificuldades e inconvenientes dessa legislação se desenquadrar do pressuposto inicial (inexistência do privilégio imobiliário geral) e levantar questões problemáticas, aquando do confronto (e graduação) com outros direitos que incidam sobre os mesmos bens[2].

Por sua vez, a hipoteca é um direito real de garantia (Maria Isabel Helbling Menéres Campos, Da Hipoteca – constituição, caracterização e efeitos, Almedina, 2003, pág. 34), conferindo ao credor a possibilidade de assegurar o cumprimento da obrigação pela realização do valor dos bens imóveis (ou equipados) sobre os quais aquela incide; como diz o artigo 686.º, n.º 1 do CC, que a define, “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo”[3]. A sua eficácia[4], efectivamente, só opera (mesmo que se tratasse de hipoteca de título geral) em relação aos bens sobre os quais foi registada e a especificação deve igualmente abranger os elementos relativos ao crédito, incluindo o montante máximo que pode atingir.

No caso presente e no que aqui importa, estamos perante um concurso entre privilégio geral (imobiliário) e um direito real de garantia, com as dificuldades, supra apontadas que essencialmente nasceram da criação, mais ou menos indiscriminada, de privilégios imobiliários gerais fora do Código Civil. No fundo, mas sem nos querermos repetir, devemos acentuar que as leis posteriores ao Código, ao consagrarem os privilégios imobiliários gerais, igualmente criaram as dificuldades e hesitações, quer na doutrina quer na jurisprudência, que decorrem de essa legislação avulsa ser omissa quanto ao regime que lhes é aplicável, designadamente no confronto com outros direitos que incidem sobre os mesmos bens. Na medida em que o Código Civil não previu (nem prevê) a existência dos privilégios imobiliários gerais, não terá respondido directamente à questão de saber se os mesmos valem ou não perante terceiros, embora, por outro lado, quer a epígrafe quer o conteúdo do artigo 749.º (privilégio geral) pareçam justificar a extensão da sua razão de ser a todos os privilégios gerais (leia-se, imobiliários) entretanto criados fora do Código Civil.

Esta ideia de aplicar o princípio contido no artigo 749.º do CC aos privilégios imobiliários gerais e de, consequentemente, recusar a sua oponibilidade a terceiros detentores de direitos reais, ou seja, a não aplicação do disposto no artigo 751.º do CC, acabou por vir a ser consensual, especialmente depois das pronúncias do Tribunal Constitucional que pressupõem tal entendimento. Com efeito, depois de vários acórdãos, proferidos em sede de fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional declarou com força obrigatória geral (Acórdão n.º 363/02), justamente a propósito do artigo 11.º do DL 103/80, a inconstitucionalidade da aplicação do regime do artigo 751.º do CC a esse privilégio imobiliário geral.

As razões da declarações de inconstitucionalidade fundamentam-se, essencialmente, na violação do princípio da confiança (artigo 2.º da CRP) com claro prejuízo dos demais credores – nomeadamente do hipotecário (ainda que a hipoteca fosse anterior à constituição do crédito privilegiado) – que veriam a sua garantia neutralizada pela existência de uma garantia oculta – um verdadeiro ónus real oculto – da qual não poderiam ter tido conhecimento, defraudando as legítimas expectativas de terceiros titulares de direitos reais sobre os bens onerados, por mais diligentes que fossem em indagar, através da consulta do registo, acerca da existência daqueles privilégios. Por outro lado, igualmente se ponderou que tal privilégio imobiliário geral não se encontra sujeito a qualquer limite temporal e, justamente por ser geral, prescinde de qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto gerador da dívida privilegiada.

No fundo, o que decorre da conclusão de inconstitucionalidade é que se deve aplicar ao privilégio imobiliário geral o regime consagrado no artigo 749.º do CC, desde logo, o princípio contido no seu n.º 1[5], e não o artigo 751.º[6] do mesmo diploma. E, nesta asserção parece-nos que, como defende o recorrente, não releva se o crédito privilegiado foi constituído antes ou depois do registo da hipoteca: o que está em causa é sempre a violação do princípio da confiança que resulta, não da temporalidade do registo, mas da prevalência de um privilégio não registado.

Em sentido semelhante (ou seja, que o privilégio imobiliário geral da Segurança Social não prefere à hipoteca e que se aplica o artigo 749.º e não o artigo 751.º) se tem pronunciado a jurisprudência: RL, 25.09.2007, 27.10.2009 4.02.2010 (dgsi) e RC, 9.11.2010 (dgsi… decisão sumária), esta última com a resenha de várias decisões concordantes dos tribunais superiores, e igualmente a doutrina (Miguel Lucas Pires, Dos Privilégios…, cit., págs. 117 e ss. e nota 302, a pág. 124/125, onde cita diversa jurisprudência). Também Salvador da Costa (citado, a propósito dos juros, na sentença sob censura) segue o entendimento que nos parece ser o adequado: a respeito do artigo 751.º do CC e da alteração que lhe foi introduzida pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, diz-nos o seguinte[7]: “Embora se trate de intervenção legislativa meramente interpretativa do regime anterior, tem a virtualidade de reforçar o entendimento no sentido da não aplicação do regime deste artigo aos privilégios imobiliários gerais, porque o regime que, face à sua característica de generalidade, se lhe adapta, é o que consta do n.º 1 do artigo 749.º deste Código”.

Em suma, entende-se que no confronto entre um privilégio imobiliário geral, como o é o da Segurança Social, aqui invocado, e a garantia hipotecária, esta prevalece sobre aquele, independentemente da data do registo (desde que constituída anteriormente à data da penhora dos bens sobre que incidem um e outra), porquanto tem aplicação o disposto no artigo 749.º, n.º 1 do CC e não o que dispõe o artigo 751.º do mesmo diploma, e porque a violação do princípio da confiança se liga à natureza oculta do privilégio e não à temporalidade do registo da garantia. Acresce que, como bem refere o recorrente, o credor privilegiado, a Segurança Social, tem a possibilidade de constituir hipoteca legal em garantia do seu crédito, desocultando perante terceiros o que, sem essa constituição, seria uma violação da confiança, se prevalecente sobre os direitos registados desses terceiros.

Pelas razões ditas, procede totalmente a presente apelação e, como consequência, importa regraduar os créditos reconhecidos. No caso concreto, o crédito reclamado pelo recorrente (e garantido por hipoteca) passa a ser o primeiramente graduado e o crédito da Segurança Social passa a ser o segundo, sem necessidade de distinção com o seu restante crédito (antes graduado em terceiro lugar).

Melhor concretizando o que acaba de se escrever, a parte decisória da sentença, tendo dito:

- Em primeiro lugar, o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social/Centro Distrital de ..., por falta de pagamento de contribuições à Segurança Social, no que respeita às contribuições relativas aos meses de Julho de 2003 a Janeiro de 2004, e às contribuições de Fevereiro de 2004 a Setembro de 2005, acrescidos dos respectivos juros desde 31/01/2008;

- Em segundo lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por hipoteca;

- Em terceiro lugar, o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social/Centro Distrital de ..., no que respeita às restantes contribuições (a saber, Dezembro de 2008 a Setembro de 2009), acrescidas dos respectivos juros desde 31/01/2008;

- Em quarto lugar, o crédito exequendo;

- Em quinto lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por penhora registada em 12/01/2010”.

Deve substituir-se pelo seguinte decisório:

- Em primeiro lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por hipoteca;

- Em segundo lugar, o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social/Centro Distrital de ..., por falta de pagamento de contribuições à Segurança Social, acrescido dos respectivos juros desde 31/01/2008;

- Em terceiro lugar, o crédito exequendo;

- Em quarto lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por penhora registada em 12/01/2010”.

Em sede de custas, a presente decisão não tem reflexos na anterior condenação em 1.ª instância, onde, devidas pelos reclamados, devem sair precípuas do produto da venda. No entanto, as custas do recurso devem igualmente ficar a cargo dos reclamados, mesmo que estes não tenham contra-alegado. Poderá parecer estranho que assim seja, isto é, que alguém que não deu causa ao recurso nem sustentou a posição revogada seja tributariamente responsável; no entanto, tendo desaparecido a isenção que constava do artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do CCJ, e não sendo o recurso isento, é o que decorre do artigo 446.º, n.º 2 do CPC, tanto mais que o artigo 7.º, n.º 2 do RCP se refere a realidade diferente, concretamente – e apenas – à taxa de justiça[8].

Assim, em ambas as instâncias, as custas são devidas pelos reclamados, saindo precípuas do produto da venda.

Em conclusão, atendendo a tudo quanto se deixou dito, entendemos que a presente apelação é totalmente procedente.

3. Sumário[9]:

I – No confronto entre um privilégio imobiliário geral, como o é o da Segurança Social, invocado nestes autos, e a garantia hipotecária, esta prevalece sobre aquele, independentemente da data do registo (desde que constituída anteriormente à data da penhora dos bens sobre que incidem um e outra), porquanto tem aplicação o disposto no artigo 749.º, n.º 1 do CC e não o que dispõe o artigo 751.º do mesmo diploma, e porque a violação do princípio da confiança se liga à natureza oculta do privilégio e não à temporalidade do registo da garantia.

 II – Revogada a isenção prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do CCJ, o reclamado (recorrido) é responsável pelo pagamento das custas do recurso procedente, tenha ou não contra-alegado.

4. Decisão:

Pelas razões ditas, acorda-se neste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pelo recorrente/reclamante Banco A..., S.A e em que são recorridos o reclamante Instituto de Segurança Social, I.P. e os reclamados B..., C... e D... e, em conformidade, revogar, na parte em crise, a decisão da 1.ª instância, graduando o crédito do recorrente garantido por hipoteca, nos termos e com as consequências seguintes:

- Em primeiro lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por hipoteca;

- Em segundo lugar, o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social/Centro Distrital de ..., por falta de pagamento de contribuições à Segurança Social, acrescido dos respectivos juros desde 31/01/2008;

- Em terceiro lugar, o crédito exequendo;

- Em quarto lugar, o crédito reclamado pelo Banco A..., garantido por penhora registada em 12/01/2010

Custas pelos reclamados, e com a garantia prevista no artigo 455.º do CPC.


José Eusébio Almeida (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias


[1] E em moldes semelhantes à noção que se previa no artigo 878.º do Código Civil de 1867.
[2] Como chama a atenção Miguel Lucas Pires (Dos Privilégios…, cit., págs. 105/106) outro inconveniente habitualmente associado ao privilégio imobiliário geral (e que terá levado os ordenamentos francês e italiano a não o preverem) “prende-se com a incerteza que, em função do seu objecto ilimitado e desmesurado e da ausência de publicidade, representam para a segurança de terceiros”.
[3] De modo semelhante era já definida no artigo 888.º do Código de Seabra: “O direito, concedido a certos credores, de serem pagos pelo valor de certos bens imobiliários, e com preferência a outros credores, achando-se os seus créditos devidamente registados”.
[4] Artigo 687.º do CC, sendo certo que, para muitos autores, o registo é mesmo condição de validade e existência, não apenas condição necessária à produção de efeitos.
[5] O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.
[6] Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que anteriores
[7] O Concurso de Credores, 3.ª edição, Almedina, 2005, pág. 190.
[8] No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 30.11.2010, num caso em que os recorridos não contra-alegaram e a revista procedeu, fixa as custas a cargo destes.
[9] Da responsabilidade do relator e nos termos do artigo 713.º, n.º7 do CPC.