Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/14.8TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: PERDA DE CHANCE
RESPONSABILIDADE
MANDATÁRIO JUDICIAL
DANO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 483º C. CIVIL.
Sumário: I – A existência do dano, conquanto requisito essencial à constituição da obrigação de indemnizar no âmbito do instituto da responsabilidade civil, há-se traduzir-se em factos dos quais se conclua pela sua verificação, o que não equivale à afirmação pura e simples da sua existência.

II - A responsabilidade pela denominada perda de chance ou oportunidade não tem obtido reconhecimento generalizado por banda da doutrina, não faltando quem defenda que “no plano de jure condito, não parece que exista já entre nós base jurídico-positiva para apoiar a indemnização da perda de chances (…), sendo claro que o legislador do Código Civil não fornece qualquer apoio nesse sentido e, pelo contrário, parte da prova da existência de um dano certo (só admitindo a fixação pela equidade do seu valor exacto)”.

III - E isto porque, incontornavelmente, “no caso da perda de chance existe sempre e permanece uma incerteza sobre o nexo de causalidade entre o evento e a produção do dano e, portanto, sobre este último”.

IV - Não obstante a grande dose de cepticismo com que a doutrina tem encarado a figura, as decisões do STJ, no que se refere especificamente à perda de chance processual por violação, por parte de mandatário, dos deveres no exercício do mandato forense, têm evoluído no sentido de uma maior abertura à indemnização, não deixando, todavia, de fazer depender a correspondente indemnização por danos patrimoniais de estarmos perante uma chance credível, correspondendo-lhe uma possibilidade real de êxito no processo.

V - E o apuramento da consistência da oportunidade perdida vincula à realização, pelo tribunal que julga a indemnização, de um “julgamento dentro do julgamento”, segundo a perspectiva que teria sido adoptada pelo tribunal a quem caberia apreciar a ação ou recurso inviabilizado.

Decisão Texto Integral:





I. Relatório

A…, Ldª,  com sede em …, instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Companhia de Seguros T…, SA, com sede em …, pedindo a final a condenação da demandada no pagamento da quantia de €52.833,55 a título de indemnização pro danos sofridos, acrescida de juros de mora.

Em fundamento da sua pretensão alegou, em síntese, ter contratado os serviços forenses do Dr. …, cuja responsabilidade profissional se mostrava transferida para a ré mediante contrato de seguro de responsabilidade civil. Em cumprimento do mandato forense que lhe foi concedido pela ré, o Dr. … instaurou acção judicial, deduzindo, após decisão da mesma, incidente de liquidação.

Sucede que interposto recurso da sentença proferida no âmbito de tal incidente, parcialmente desfavorável à autora, não foi o mesmo admitido, por extemporâneo. A não apresentação tempestiva do recurso implicou que não fossem apreciados e reconhecidos os seus direitos, impedindo-a de obter decisão que liquidasse a indemnização em € 55.612,58, como requerera, ao invés da quantia de € 2.779,03 que lhe veio a ser arbitrada.

Regularmente citada, a ré apresentou contestação, na qual confirmou a celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional invocado, relativamente ao qual alegou ter sido convencionada uma franquia de € 5.000,00, e deduziu incidente de intervenção principal provocada do segurado, Dr. …, com fundamento em invocado direito de regresso, de acordo com as condições gerais da apólice.

Em via de excepção alegou a contestante que o segurado não lhe comunicou o sinistro, o que constitui uma causa de exclusão da cobertura expressamente prevista nas condições especiais do contrato. Considerou ainda a ré que caso o segurado, por si ou através de sociedade de advogados, fosse titular de outra apólice de responsabilidade civil (obrigatória para as sociedades de advogados que optem pelo regime de responsabilidade limitada), a apólice celebrada com a contestante, subjacente à instauração da presente acção, apenas poderá ser accionada na falta ou insuficiência da primeira.

Finalmente, considerando não se encontrarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil profissional susceptíveis de fundamentar a pretensão indemnizatória deduzida nos autos, inexistindo fundamento para o pedido de condenação em juros moratórios, concluiu pela sua absolvição do pedido.

Admitida a intervenção principal provocada do Dr. …, e após ter sido citado, apresentou também contestação, na qual confirmou terem sido contratados os seus serviços forenses pela autora, bem como a celebração do contrato de seguro invocado, por força do qual considerou que a ré dispunha de legitimidade passiva exclusiva para a presente acção.

Alegou ainda o interveniente que, em cumprimento do mandato forense que lhe foi conferido, instaurou acção judicial, no âmbito da qual veio a ser proferida sentença que condenou os ali réus no pagamento de uma quantia a liquidar em execução de sentença. Deduziu posteriormente o competente incidente de liquidação, no âmbito do qual foi proferida decisão, da qual o interveniente interpôs recurso que veio a ser julgado extemporâneo e que, consequentemente, não foi admitido. Por fim, considerou o interveniente que a ré não dispõe de qualquer direito de regresso sobre si, por não estar em causa uma conduta dolosa da sua parte, considerando ainda que não se verifica qualquer causa de exclusão da cobertura.

Teve lugar audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, prosseguindo os autos com fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação das partes.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, vindo a ser proferida sentença que, na improcedência da acção, decretou a absolvição da ré do pedido.

Inconformada, apelou a autora e, tendo desenvolvido nas alegações as razões da sua discordância com o decidido, veio a reproduzi-las nas conclusões, assim desrespeitando o comando ínsito no n.º 1 do art.º 639.º, razão pela qual se extraem, por relevantes, as seguintes:

Com os apontados fundamentos, e indicando como violada a disposição contida no art.º 483.º do Código Civil, requer a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que, procedendo à alteração da matéria de facto nos termos requeridos, conclua pela absoluta procedência do pedido formulado, condenando a ré nos precisos termos.

A ré contra alegou, pugnando naturalmente pela manutenção da decisão proferida e deduzindo subsidiária ampliação do objecto do recurso tendo em vista a apreciação das excepções por si invocadas, devendo manter-se, em todo o caso, a sua absolvição do pedido.

Há muito assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões sujeitas à apreciação deste Tribunal:
i. Indagar da imputada existência de erro de julgamento na decisão proferida sobre a matéria de facto, devendo ser dada como assente a factualidade alegada nos art.ºs 24.º e 28.º da petição inicial e 1.º, 2.º e 21.º da contestação;
ii. Decidir se à autora deve ser arbitrada indemnização nos termos requeridos ao abrigo da denominada teoria da “perda de chance”.

i. da impugnação da matéria de facto.

Porque as questões de facto precedem logicamente as de direito, cumpre, antes de mais, sindicar a decisão proferida, em ordem a determinar se deveria ter sido dada como assete a factualidade indicada pela recorrente.

A recorrente acusa a existência de erro de julgamento, por não terem sido dados como assentes os factos alegados em 1º e 2º da contestação da ré. Sucede, porém, que a indicação de tais artigos nos factos não provados radica em lapso manifesto, uma vez que a matéria aí alegada consta expressamente do elenco dos factos assentes, encontrando-se transcrita (com referência até à sua proveniência) nos pontos 4.2. e 4.3 da sentença. Nestes termos, porque inexiste o invocado erro, não há que apreciar a impugnação a este respeito deduzida.

Feita tal precisão, está em causa a matéria alegada nos seguintes artigos:

Parte final do art.º 24.º da petição inicial, na qual a autora alegou que “A execução negligente pelo advogado da prestação contratualmente assumida (..) causou danos à sua cliente, aqui autora”;

Parte do art.º 28.º da petição inicial, no qual a autora alegou “Existe assim incumprimento do advogado, da sua falta de diligência na execução da prestação a que estava obrigado, e também dano sofrido…”;

Art.º 18.º da contestação, no qual a ré alegou “O Ex. mº Sr. Dr. ... nunca comunicou, como se lhe impunha, à ré, os factos e as circunstâncias em causa, bem como a responsabilidade dos mesmos poderem dar origem a uma reclamação decorrente do exercício da sua profissão, nos termos em que estava obrigado pelo contrato de seguro em questão”;

Art.º 21.º da contestação, no qual a ré alegou “Constata-se da procuração que a Autora emitiu a favor do Ex.mº Sr. Dr. ... (…)”.

Apreciando:

No que respeita aos transcritos artigos 24.º e 28.º da petição inicial, no segmento impugnado, impõe-se referir que não contendo a descrição de qualquer facto, assumindo o carácter de um enunciado jurídico conclusivo, não teriam que ingressar no elenco dos factos provados nem dos não provados. A existência do dano, conquanto requisito essencial à constituição da obrigação de indemnizar no âmbito do instituto da responsabilidade civil, há-se traduzir-se em factos dos quais se conclua pela sua verificação, o que não equivale à afirmação pura e simples da sua existência. Daí que nada haja a alterar no sentido pretendido pela recorrente, afigurando-se mesmo que não deveria ter sido feita alusão à alegação em causa na enunciação dos factos não provados.

No que respeita ao facto alegado no art.º 18.º da contestação - matéria de excepção, cujo ónus da prova recaía sobre a ré, nos termos do critério geral de repartição consagrado no art.º 342.º do CC -, tratando-se portanto de facto desfavorável à recorrente, que, salvo melhor opinião, nenhum interesse teria na modificação da decisão a propósito proferida, a verdade é que não foi indicado qualquer elemento probatório capaz de sustentar a pretendida inversão, pelo que se mantém.

Finalmente, e no que se refere ao facto referido em 21.º, para além de perfeitamente irrelevante, dada a solução que na sentença foi dada à questão, não questionada em sede de recurso, dando como constituído o mandato entre a autora e o Il. Advogado interveniente, não há como negar quanto consta da procuração junta aos autos apensos (cf. fls. 7 do vol. I) e que ditou a restrição que, assim, se mantém.

Atento o exposto, julga-se totalmente improcedente a impugnação dirigida à matéria de facto, mantendo-se a decisão proferida nos seus precisos termos.

II. Fundamentação

de facto

Imodificada a decisão, são os seguintes os factos a considerar, tal como constam da sentença impugnada:

...

De direito

Conforme correctamente enunciado na sentença recorrida está em causa nos autos eventual indemnização pela “perda de chance processual por responsabilidade de mandatário forense”.

A autora, imputando responsabilidade civil (profissional) ao interveniente, considerando que este actuou de forma negligente ao não interpor atempadamente recurso da decisão de liquidação mencionada nos factos provados, impediu-a de obter a modificação da decisão pelo tribunal superior, com a consequente fixação do montante a liquidar na quantia de € 55.612,87 por si peticionada, ao invés da quantia de € 2.779,00 que lhe veio a ser atribuída, responsabilizando-o pela diferença.

A responsabilidade pela denominada perda de chance ou oportunidade não tem obtido reconhecimento generalizado por banda da doutrina, não faltando quem defenda que “no plano de jure condito, não parece que exista já entre nós base jurídico-positiva para apoiar a indemnização da perda de chances (…), sendo claro que o legislador do Código Civil não fornece qualquer apoio nesse sentido e, pelo contrário, parte da prova da existência de um dano certo (só admitindo a fixação pela equidade do seu valor exacto)”[1]. E isto porque, incontornavelmente, “no caso da perda de chance existe sempre e permanece uma incerteza sobre o nexo de causalidade entre o evento e a produção do dano e, portanto, sobre este último”[2].

Não obstante a grande dose de cepticismo com que a doutrina tem encarado a figura, as decisões do STJ, no que se refere especificamente à perda de chance processual por violação, por parte de mandatário, dos deveres no exercício do mandato forense, têm evoluído no sentido de uma maior abertura à indemnização, não deixando, todavia, de fazer depender a correspondente indemnização por danos patrimoniais de estarmos perante uma chance credível, correspondendo-lhe uma possibilidade real de êxito no processo[3]. E o apuramento da consistência da oportunidade perdida vincula à realização, pelo tribunal que julga a indemnização, de um “julgamento dentro do julgamento”, segundo a perspectiva que teria sido adoptada pelo tribunal a quem caberia apreciar a acção ou recurso inviabilizado (cf. Acs. do STJ de 5/2/2013, processo n.º 488/09.4 TBESP.P1.S1; de 14 de Março de 2013, processo n.º 78/09.1 TVLSB.L1.S1; de 30/4/2015, processo n.º 388/11.1 TBCVL.C1)15/ proferidos nos processos.

E foi seguindo este entendimento mais favorável à pretensão da recorrente que a Mm.ª juíza, depois de ter concluído, a nosso ver correctamente, que a actuação do Il. Mandatário naquela acção, o interveniente Dr. ..., não se adequou às regras estatutárias e deontológicas da sua profissão, uma vez que considerou a ponderação de regime legal inaplicável, assim dando por verificada a prática de um acto ilícito e culposo, passou a indagar se essa conduta “gerou danos na esfera jurídica da autora”, procedendo ao citado “julgamento dentro do julgamento”.

Ora, reconhecendo como certo que ao não interpor tempestivamente o recurso o Il. Mandatário ora interveniente eliminou qualquer possibilidade da decisão proferida, na parte desfavorável à sua constituinte, ser alterada, é necessária a demonstração de que existia uma possibilidade séria e consistente de que tal recurso teria êxito. E assim ocorre porque mesmo quem defende a autonomização do dano da perda de oportunidade não deixa de referenciar o cálculo da indemnização à probabilidade de sucesso da chance frustrada, aplicando-a ao valor do resultado final que se pretendia obter.

Ora, foi a tal necessária prova da probabilidade séria e consistente da procedência do recurso não recebido que, no entender da Mm.ª juíza, não foi feita, juízo que, desde já se antecipa, merece a nossa inteira concordância.

Com efeito, e conforme aí se fez notar, na sentença proferida procedeu-se à liquidação do valor de reconstrução de determinado muro, matéria que assumia inequívoco cariz técnico. E por assim ser, a decisão proferia sustentou-se essencialmente no teor do relatório pericial, subscrito por unanimidade, que se encontrava junto aos autos.

Pretende agora a recorrente que a inversão do decidido em sede de recurso era uma certeza, uma vez que o perito por si nomeado votou “de vencido”, e das suas declarações resulta que não foram considerados na peritagem factores que determinaram o agravamento dos custos de construção. Ademais, haverá que reconhecer ao seu depoimento um valor acrescido, tanto mais que foi autor do orçamento junto com a petição inicial, no qual se baseou o pedido formulado. Acrescenta que foi tempestivamente arguida a nulidade da perícia realizada, encontrando-se pendente recurso de agravo do despacho que desatendeu tal arguição, o qual não chegou a ser conhecido em razão do trânsito em julgado da decisão final que entretanto sobreveio, pelo que, também por esta via, era certa a inversão da decisão proferida.

Pois bem, começando por esta última questão, e vistos os fundamentos invocados no despacho que desatendeu a arguição da nulidade da perícia, assente também na intempestividade da arguição, corresponde a entendimento jurisprudencial constante, até porque a letra da lei - art.ºs 201.º e 205.º do CPC em vigor ao tempo - não deixava espaço para grandes dúvidas. O mais provável e quase certo seria, portanto, a confirmação em sede do agravo que não chegou a ser conhecido, desta decisão, com o consequente aproveitamento da perícia realizada.

Mantida a perícia, e pese embora tratar-se de meio de prova probatório sujeito à livre apreciação do jugador (cf. art.º 389.º do CC), dado o carácter eminentemente técnico da matéria em causa, afigura-se igualmente muitíssimo provável que também em sede de recurso fosse tido como determinante, tanto mais que o seu valor probatório surgia muito naturalmente reforçado por se tratar de perícia colegial na qual fora atingida a unanimidade. Com efeito, e contrariamente ao que a autora, sem qualquer rigor, alega, o perito por si nomeado subscreveu o relatório sem qualquer restrição, nele apondo apenas uma anotação quanto ao que deve ser entendido por “betão armado”.

Por outro lado, não se vê que a força probatória da perícia pudesse ser abalada pelo orçamento, elaborado pelo mesmo J... que a autora viria a indicar como perito, pois, conforme este esclareceu no testemunho prestado, o orçamento foi elaborado à vista do projecto que lhe foi apresentado, não se sabendo se e em que termos exactos foi executado. Deste modo, e tratando-se, para além do mais, como a Mm.ª juíza também observou, de elemento probatório pré-constituído e, portanto, sem prévia sujeição a contraditório, mais uma vez o mais provável e quase certo é que fosse desconsiderado no confronto com a perícia.

E sendo os apontados os elementos disponíveis para responder à questão nuclear do custo de reconstrução do muro, não se vê que o recurso não admitido tivesse uma probabilidade séria de êxito, antes se prefigurando como muito mais provável a confirmação da decisão. E é quanto baste para afastar qualquer pretensão indemnizatória com fundamento na chance ou oportunidade perdida. Com o que improcedem as conclusões recursivas, confirmando-se integralmente a douta sentença recorrida.

III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a douta sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Relator: Maria Domingas Simões

Adjuntos: 1º - Jaime Ferreira 2º - Jorge Arcanjo


***


[1] Prof. Paulo Mota Pinto, “Perda de chance processual”, RLJ ano 145, n.º 3997, pág. 184, reafirmando a conclusão já antes defendida em “Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo”, vol. II, pp. 1104-6.
[2] Idem, pág. 178.
[3] Em sentido idêntico, o acórdão desta Relação de Coimbra de 20/1/2015, processo n.º 810/13.9 TBCBR.C1, subscrito pelos também aqui adjuntos, acessível em www.dgsi.pt