Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
387/08.7GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: EXAME SANGUÍNEO
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 156º, N.º 2, DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: Em momento algum a lei impõe ou exige que se formule um pedido expresso de consentimento do interveniente em acidente de trânsito, para que se proceda à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, previsto no art.º 156º, n.º 2, do Código da Estrada.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 387/08.7GTLRA que corre termos no Tribunal Judicial de Pombal, 3.º Juízo, foi proferida Sentença, em 16/5/2011, cujo DISPOSITIVO tem o seguinte teor:
IV – DECISÃO
Pelo exposto:
a) Condeno o arguido A... como autor material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alíneas a) e b) e nº 3, 294º, nº 3 e 285º, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
b) Condeno o mesmo arguido como autor material de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal, nas penas de 6 (seis) meses de prisão por cada um deles;
c) Fazendo o cúmulo jurídico de tais penas, condeno o arguido na pena única de 15 (quinze) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período;
d) Condeno o arguido na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 9 (nove) meses;
e) Absolvo o arguido pela prática das contra-ordenações pelas quais vinha acusado;
f) Mais condeno o arguido nas custas do processo, fixando em 3 UC o valor da taxa de justiça devida (cfr. Artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e 74º, 82º, nº 1 e 85º, do Código das Custas Judiciais), acrescida de 1 %, por força do disposto no artigo 13º n.º 3, do DL n.º 423/91, de 30 de Outubro e fixando-se ½ da taxa de justiça devida a título de procuradoria
*
Deverá o arguido, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado desta decisão, entregar a carta/licença de condução de que seja titular na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de ser ordenada a sua apreensão e incorrer em responsabilidade criminal;
*
Deposite (artigo 372º, nº 5, do C.P.P.).
Após trânsito remeta boletim ao registo criminal e comunique à Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária.
Notifique.”
****
B) Inconformada com a decisão recorrida, dela recorreu, em 21/6/2011, o arguido A..., pedindo a sua substituição por outra que a absolva, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1. O documento hospitalar revela que a recolha de sangue teve fins clínicos e terapêuticos e revela que o arguido não foi informado que o sangue recolhido seria utilizado na determinação da taxa de álcool no sangue.
2. O depoimento da testemunha B... é contraditório, por alterar progressiva e sucessivamente as respostas, revelando que tenta justificar a falta de cumprimento do seu dever de informar e a falta de prestação de consentimento por parte do arguido.
3. Atendendo à falta de informação e consequente impossibilidade de recusa do arguido, a recolha do sangue, efectuada ao abrigo do disposto nos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005 é nula por violação do disposto na al. c) do n.º 1 do artigo 165.º, da CRP.
4. Ao tentar contornar a questão da nulidade da prova (recolha de sangue), decidindo que não ficou provado que o arguido não autorizou a recolha, a sentença inverteu não só o princípio da presunção de inocência do arguido e consequente ónus da prova como inverteu o princípio do acusatório, impondo ao arguido a prova de um facto negativo e a prova da sua inocência (prova diabólica), violando o disposto no artigo 32.º, n.ºs 2 e 4, da CRP.
5. O referido depoimento da testemunha B... e a falta de documento assinado pelo arguido não podem levar à conclusão de que o arguido conduzia com uma taxa de alcoolemia de 0,83 gramas/litro.
6. Pelo que existe erro notório na apreciação da prova, tanto documental como oral – artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.
7. As referidas provas testemunhal e documental apenas podem levar à conclusão de que o arguido não autorizou a recolha de sangue.
8. Assim, deve ser alterada a resposta aos pontos 2, 3, 17, 18 e 19 dos factos considerados provados, no sentido de ser extirpada toda e qualquer referência à taxa de alcoolemia e à condução do arguido sob o efeito do álcool e a consciência e conhecimento de tais factos.
9. Consequentemente, deve a sentença recorrida ser revogada e o arguido absolvido do crime pelo qual foi condenado (condução perigosa) bem como da pena acessória de inibição de condução.
****
C) O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, em 15/7/2011, defendendo a sua improcedência, e apresentando as seguintes conclusões:
1. Invoca, além do mais, o recorrente que não foi informado dos fins a que se destinava a colheita de sangue a que foi sujeito, não lhe tendo sido dada a possibilidade de se recusar, motivo pelo qual defende que a prova assim obtida é nula, por violação do disposto na al. c) do n.º 1 do artigo 165.º, da CRP, conforme foi defendido no Acórdão da relação do Porto, datado de 9/12/2009.
2. Ora, de acordo com a Jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional (plasmada, nomeadamente, no Acórdão n.º 130/2001), a nova redacção do n.º 8 do artigo 153.º, do Código da Estrada (designadamente, quando suprimiu a expressão “à recusa” do examinando) em nada alterou as consequências inerentes à recusa por parte do condutor em ser submetido à mencionada recolha de sangue.
3. Assim, e ainda que o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, não se encontrasse credenciado para legislar sobre esta matéria no Parlamento, a verdade é que tal diploma se limitou a manter a tipificação de tal comportamento, constante da legislação que o antecedeu, a qual dispunha da necessária autorização legislativa, pelo que tal norma não reveste um cariz inovador, não necessitando, por isso, de estar coberta por nova autorização parlamentar.
4. Pelo exposto, e na esteira do entendimento sufragado pelo TC na sua jurisprudência mais recente, concluímos que o meio de prova com base no qual se definiu a taxa de álcool no sangue de que o recorrente era portador aquando do acidente de viação é perfeitamente válido e eficaz, carecendo, por isso, de sentido as críticas apresentadas pelo recorrente.
5. Mais alega o recorrente que resulta da prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que nunca foi informado das finalidades da colheita de sangue a que foi sujeito, motivo pelo qual não lhe foi dada a possibilidade de se recusar a realizar tal exame.
6. Ora, a sujeição ao exame de pesquisa de álcool nos casos expressamente previstos na lei não se traduz numa mera faculdade para o examinando e, por essa razão, não há que obter previamente o seu consentimento.
7. Na verdade, estamos antes perante um dever legal, sendo que a recusa por parte do examinando implicará a sua punição pela prática de um crime de desobediência, conforme expressamente previsto pelo artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada.
8. Todavia, uma vez que não é admitida a realização coerciva do referido exame, o condutor poderá sempre recusar-se, sujeitando-se, porém, à punição nos termos referidos em 7.
9. No entanto, a questão da recusa apenas se poderá colocar quando o examinando estiver consciente e capaz de exprimir de forma livre e esclarecida a sua vontade.
10.Ora, no caso sub judice, resultou das declarações de B..., guarda da GNR que se deslocou ao Hospital Distrital de Pombal, onde o arguido, ora recorrente, estava a receber tratamento médico, que este foi informado das finalidades da colheita de sangue e que não manifestou qualquer oposição à sua realização, até porque o mesmo não apresentava um discurso lógico e coerente – registado no Sistema Habilus Media Studio, das 00:02:11-00:03:45 e 00:20:00-00.20.30.
11. Pelo exposto, concluímos que a douta sentença, ora recorrida, não padece do vício que lhe é apontado pelo recorrente, não merecendo, por isso, qualquer censura o julgamento da matéria de facto efectuado.
****
O recurso foi, em 19/9/2011, admitido.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 6/10/2011, emitiu douto parecer em que defendeu a improcedência total do recurso, acompanhando a posição anteriormente seguida nos autos pelo Ministério Público.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo sido, em 21/10/2011, exercido o direito de resposta, no qual foi mantido o alegado anteriormente.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
****
II. Decisão Recorrida:
“(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO
A – DE FACTO
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 21 de Dezembro de 2008, cerca das 04h30m, A... conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula …, na Estrada Nacional nº 1, na localidade de Covinhas/Meirinhas, no sentido Pombal/Leiria;
2. O arguido conduzia o referido veículo automóvel com uma taxa de álcool no sangue de 0,83 gramas/litro;
3. Ao km 139,952, mercê da taxa de álcool, o arguido invadiu a via mais à esquerda da hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava no sentido Leiria/Pombal;
4. Nessas circunstâncias, o arguido colidiu, com a parte frontal esquerda do veículo que conduzia, na parte frontal esquerda do veículo ligeiro de passageiros …, conduzido por C... e onde eram transportados D..., no banco da frente do lado direito, e E..., no banco traseiro do lado direito;
5. A colisão entre os dois veículos ocorreu na via mais à esquerda da hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que circula no sentido Leiria/Pombal, a 1,30 metros da linha contínua que delimita os sentidos de marcha;
6. Em resultado da condução efectuada pelo arguido e da consequente colisão, resultou para C... a secção completa da aorta, fractura bilateral de costelas, hemotórax bilateral, contusão pulmonar, hérnia diafragmática traumática esquerda, contusão do mediatismo posterior, hemoperitoneu, laceração do fígado, fissura do baço, laceração do mesentério e do mesocónon sigmóide, bem como fractura do fémur esquerdo;
7. As lesões descritas causaram directa e necessariamente a morte a C...;
8. Em resultado da condução do arguido e da consequente colisão, resultaram para E... escoriações no couro cabeludo, traumatismo na grelha costal esquerda e na coluna cervico-dorsal, que lhe determinaram um período de doença de 100 (cem) dias, com afectação da capacidade de trabalho geral e com afectação para o trabalho profissional, tendo tido alta clínica no dia 31 de Março de 2009;
9. Ainda em resultado da condução do arguido e da consequente colisão, resultaram para D... traumatismo da grelha costal, do esterno e da anca esquerda, que lhe determinaram um período de incapacidade para o trabalho profissional até Março de 2009, e ainda um estado depressivo, com síndrome de stress pós-traumático, que se mantém actualmente;
10. Em virtude de tais lesões, E... e D... foram assistidos no Hospital Santo André, em Leiria, não carecendo de internamento hospitalar;
11. Na altura da colisão, C..., E... e D... faziam uso do cinto de segurança;
12. Aquando da colisão, o veículo … circulava com as luzes ligadas, a uma velocidade não superior a 80 km/h;
13. A faixa de rodagem onde ocorreu a colisão apresenta uma largura total de 12,40 metros, possui traçado recto, dispõe de dois sentidos de trânsito, delimitados por dupla linha longitudinal contínua, apresentando uma inclinação descendente no sentido Pombal/Leiria, contendo uma via de trânsito neste sentido e duas no sentido inverso;
14. A velocidade máxima permitida no local da colisão é de 80 km/h, em ambos os sentidos de trânsito;
15. À data da colisão não havia quaisquer obstáculos na faixa de rodagem que impedissem a visibilidade dos condutores e não circulavam quaisquer veículos à frente ou atrás do veículo … ;
16. O tempo estava bom, o piso encontrava-se em bom estado de conservação e seco;
17. O arguido conhecia as características da via em que conduzia, sabia que a condução de veículos não é permitida a quem apresentar uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,50 g/l e não ignorava a possibilidade de estar nessa condição e, não obstante, não se absteve da sua conduta, querendo praticar os factos que ora lhe são imputados;
18. Sabia que ao conduzir sob influência do álcool e de forma desatenta não tinha condições nem reflexos para respeitar os sinais e regras de trânsito e que, ao assim actuar, não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que deveria ter adoptado para impedir a verificação da colisão com o veículo que circulava em sentido oposto, que podia e devia prever, mas que não previu, dando causa às lesões acima descritas em C..., que lhe causaram necessária e consequentemente a morte, bem como em E... e D...;
19. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que tal comportamento era proibido e punido pela lei penal;
20. No local do acidente a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava no sentido Leiria/Pombal estava dividido por uma linha branca descontínua marcada no pavimento;
21. Existiam duas vias de trânsito no sentido Leiria/Pombal;
22. O condutor do veículo …, C..., circulava com uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,70g/l;
23. O referido C... tinha estado a ingerir bebidas alcoólicas;
24. O identificado C... era diabético;
25. Devido à ingestão de álcool o identificado C... tinha as suas capacidades físicas e mentais reduzidas, nomeadamente os reflexos e o raciocínio;
26. O arguido é cimenteiro;
27. Trabalha e reside em França;
28. É solteiro,
29. De escolaridade tem o 6º ano;
30. O arguido foi condenado, por sentença de 26.03.2010, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos praticados em 11.03.2010, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de €5,00.

*
Não se provou que:
1. O arguido conduzia o veículo identificado nos factos provados em estado de sonolência, atento o cansaço;
2. O veículo com a matrícula … circulava a velocidade superior a 100 km/h e com as luzes ligadas em máximos;
3. C... não estava habituado a ingerir bebidas alcoólicas;
4. A ingestão de álcool foi o motivo pelo qual o referido C... invadiu a via mais à esquerda da hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava no sentido Leiria/Pombal, tendo colidido com o veículo do arguido;
5. O arguido não se recorda da forma e do local exacto onde ocorreu o embate;
6. Recorda-se de circular na via de trânsito destinada ao sentido Pombal/Leiria e de ver os faróis da viatura … a aproximar-se a grande velocidade, o que encadeou, o fez perder a visibilidade e o orientou;
7. Depois, o arguido nada mais se recorda sobre o acidente;
8. Qualquer eventual manobra de invasão da parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito do sentido Leiria/Pombal foi originada pelo encadeamento resultante das luzes da viatura … .
*
Motivação da matéria de facto

A convicção do Tribunal no que respeita à factualidade provada formou-se com base nos documentos de fls. 7 a 9 do inquérito realizado pela GNR, apenso aos presentes autos, fls. 12 e 13 do inquérito realizado pela GNR e apenso aos presentes autos (relatório de exame toxicológico de pesquisa de álcool no sangue), fls. 32 a 39 (Relatório de autópsia), fls. 68 a 81 (documentação clínica), fls. 86 a 94 (perícia de avaliação do dano corporal em direito Penal), relatório fotográfico de fls. 67 a 79 do inquérito realizado pela GNR, apenso aos presentes autos, conjugados com a análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento.
Em primeiro lugar foi considerado o depoimento espontâneo e credível da testemunha D... que, pelo facto de seguir ao lado do condutor do veículo … demonstrou ter conhecimento dos factos em causa nos autos. Efectivamente referiu que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados, C..., que era o seu chefe de trabalho, conduzia o veículo ligeiro de passageiros identificado nos factos provados, sendo que o depoente seguia no banco da frente, ao lado do condutor e a testemunha E... s seguia atrás de si.
Esclareceu que o identificado C...bebeu uma cerveja ao jantar. Todavia, apesar disso, fazia uma condução regular e conduzia na faixa de rodagem da esquerda atento o sentido Leiria/Pombal, onde existem duas faixas neste sentido, a cerca de 80 km/h. De repente, a testemunha teve a sensação de que um pinheiro lhes caiu em cima, acrescentando que não viu nada do acidente, designadamente faróis do veículo conduzido pelo arguido nem mesmo a aproximação de nenhum veículo.
Confirmou as lesões por ele sofridas, bem como a necessidade de receber tratamento hospitalar.
Por outro lado, foi considerado o depoimento claro e objectivo da testemunha E... que, pelo facto de seguir no veículo conduzido pela vítima, demonstrou ter conhecimento directo dos factos em causa nos autos.
Na verdade, confirmou que seguia no banco de trás do veículo … conduzido pelo seu sobrinho, seguiam na Estrada Nacional nº 1, no sentido Leiria/Pombal, num local onde havia duas vias de trânsito e uma via no sentido contrário, sendo que o veículo onde seguiam circulava na via mais à esquerda pelo facto de a via da direita se apresentar irregular.
Quanto à dinâmica do acidente explicou que não se apercebeu de nada, não viu luzes, não viu o veículo conduzido pelo arguido, só sentindo o embate.
Confirmou as lesões por ele sofridas em consequência do acidente, tendo sido socorrido no Hospital, sendo que em consequência do acidente esteve 3 meses sem trabalhar, esclarecendo que ainda hoje toma medicamentos por causa do acidente de que também foi vítima.
Por último, o tribunal atendeu ao depoimento da testemunha B..., agente da GNR que pelo facto de ter ido ao local para tomar conta da ocorrência revelou ter conhecimento directo de alguns factos em causa nos autos.
Com efeito, confirmou o teor da participação de acidente por ele elaborada e subscrita, descreveu as características do local, o modo como foi calculado o ponto provável do embate, esclarecendo que havia vestígios do embate no local e que os veículos apresentavam muitos danos.
Acrescentou que informou o arguido da finalidade da recolha de sangue, esclarecendo que o arguido não assinou nenhum documento de autorização devido ao estado em que se encontrava.
Todos estes documentos e depoimentos conjugados entre si levam-nos a crer que tudo se passou conforme referido nos factos provados.
Quanto à situação económica e familiar do arguido considerou-se o depoimento da testemunha F..., irmão do arguido que, como tal, revelou ter conhecimento de tal situação.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido considerou-se o certificado de registo criminal junto aos autos.
No que diz respeito aos factos não provados assim se consideraram por não ter sido feita prova acerca dos mesmos.
*
B – DE DIREITO
Sendo esta a matéria de facto provada, cumpre fazer o seu enquadramento jurídico-penal.
Em primeiro lugar, o arguido vem acusado da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelos artigos 291º, nº1, alínea a) e nº 3, 294º, nº 3, 285º e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
Dispõe o artigo 291º do Código Penal que:
“1. Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada: a) não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob a influência do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b)Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Acrescenta o nº 3 da referida disposição legal que “Se o perigo referido no nº 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Por sua vez, determina o nº 3 do artigo 294º que “Aos casos previstos nos artigos 287º a 291º aplica-se o disposto nos artigos 285º e 286º, ainda que com as agravações previstas nos números anteriores”.
Nos termos do disposto no artigo 285º do Código Penal “Se dos crimes previstos nos artigos 272º, 273º, 277º, 280º, ou 282º a 284º, resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.
No que diz respeito ao artigo 291º, as condutas susceptíveis de colocar em perigo os bens jurídicos protegidos consistem por um lado na falta de condições para a condução e, por outro, na violação grosseira das regras de circulação rodoviária (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 1080).
Trata-se de um crime de perigo concreto, já que o próprio perigo é elemento do tipo legal de crime, isto é, exige-se que a conduta do agente tenha em concreto posto em perigo determinados bens jurídicos como a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado.
Quanto ao bem jurídico protegido o legislador visou, fundamentalmente, punir todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a circulação rodoviária e que simultaneamente ponham em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado.
Daí que o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço seja não só a segurança rodoviária, mas também os bens jurídicos individuais referidos pelo legislador: a vida, a integridade física e o património (neste sentido, Germano Marques da Silva, in Crimes Rodoviários, 1996, página 17).
Estamos perante um delito de mão própria, uma vez que o sujeito activo do crime tem que ser, manifestamente, o condutor de um veículo.
Na alínea a) estão descritas todas aquelas situações em que se verifica uma diminuição das capacidades do condutor e que, por isso mesmo, configuram situações em que não existem condições para conduzir com a segurança necessária.
Na alínea b) visa-se sobretudo abarcar todas aquelas situações em que há uma violação de elementares deveres de condução no âmbito da circulação rodoviária, como seja a violação de todas aquelas normas que estão previstas no Código da Estrada e que estabelecem precisamente as regras elementares da condução.
Para finalizar os contornos gerais do crime em análise, cumpre referir que o mesmo assenta em três pilares, constituindo, cada um deles, uma diferente forma de preenchimento do tipo legal do crime de condução perigosa.
O primeiro, previsto no nº 1 do artigo 291º, traduz-se numa acção dolosa e criação dolosa de perigo, isto é, o agente quer agir de determinada forma e assim criar perigo.
O segundo, previsto no nº 3 do artigo 291º, consiste numa acção dolosa e na criação negligente do perigo. O agente querendo actuar de determinada forma não pretende o perigo, verificando-se este pela consumação de uma conduta negligente.
O terceiro, previsto no nº 3 do artigo 291º, traduz-se numa acção negligente, isto é, o agente não tem intenção de provocar o evento e assim criar condições de perigo para terceiros, omitindo, porém, culposamente, o dever de diligência adequada a evitar o resultado.
O artigo 285º é uma norma genérica de agravação pelo resultado, sendo que o resultado agravante tem que ser ou a morte ou a ofensa à integridade física grave. Isto significa que da prática dos crimes descritos, designadamente, do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, tem que resultar ou a morte ou uma ofensa à integridade física grave (neste sentido Damião da Cunha, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 1028).
Acrescenta o mesmo autor que tratando-se de uma agravação pelo resultado, há que atender ao disposto no artigo 18º, o que significa que a agravação pelo resultado tem que estar condicionada pela possibilidade da sua imputação ao agente pelo menos a título de negligência.
Deste modo, para que haja verificação da agravação pelo resultado, é necessário:
a) O preenchimento do crime fundamental;
b) A verificação do resultado: morte ou ofensa à integridade física de uma pessoa posta em perigo;
c) A imputação desse resultado ao perigo grave e concreto inerente à conduta perigosa;
d) A imputação a título de negligência do resultado àquele perigo criado pelo agente.
Da matéria provada resultou que o arguido conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,83 g/l e que agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que não podia conduzir veículos automóveis na via pública após ingestão de bebidas alcoólicas e que, fazendo-o, punha em perigo todos aqueles que ali transitavam.
Por outro lado, resulta dos factos provados que o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …, na EN 1, na localidade de Covinhas, Meirinhas, no sentido Pombal/Leiria e que, ao km 139,952 invadiu a via mais à esquerda da hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava no sentido Leiria/Pombal, indo colidir no veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …, conduzido por C....
Ficou também provado que, em consequência da colisão, C... sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia que foram causa directa e adequada da sua morte.
Da matéria provada resulta, pois, que com a condução descrita o arguido pôs em perigo a vida de outras pessoas que circulavam na estrada, donde veio a resultar morte para o condutor do veículo …, C..., sendo que ao actuar da forma descrita, isto é, ao circular na EN nº 1, na localidade de Covinhas/Meirinhas, no sentido Pombal/Leiria, com uma taxa de alcoolemia de 0,83 g/l, o arguido não previu como possível a colisão com outros veículos em circulação na faixa de rodagem, e a produção de lesões na vida dos seus ocupantes, apesar de lhe ser exigível naquelas circunstâncias concretas tal previsão.
Acresce que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente ao ingerir bebidas alcoólicas e ao posteriormente tripular o veículo automóvel da forma descrita, bem sabendo que era portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l, que lhe havia sido determinada pela ingestão de tais bebidas, conhecendo o carácter proibido da sua conduta.
Considerando que o arguido dolosamente ingeriu bebidas alcoólicas e violou a regra da circulação na faixa da direita, houve uma acção dolosa com uma criação de perigo negligente, já que o arguido não se conformou com a possibilidade de pôr em perigo a vida e integridade física de terceiras pessoas.
Assim sendo, cometeu o arguido um crime previsto e punido pelo artigo 291º, nº 1, alíneas a) e b) e nº 3 do Código Penal, agravado pelo resultado, nos termos do disposto no artigo 294º, nº 3 e 285º do mesmo Diploma.
O artigo 69º, nº1, do mesmo Diploma diz que “É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crime previsto nos artigos 291º ou 292º”.
Trata-se de uma pena acessória - pena que só pode ser aplicada na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal – e que, nos termos do disposto no nº 2, do Código Penal, a lei faz corresponder à prática de certos factos ilícitos típicos, sendo pressuposto formal da sua aplicação a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução ou com utilização de veículo e pressuposto material que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável – Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 165.
Ora, no caso em presença, os factos provados permitem formular ao arguido um juízo de censura, justificando a aplicação da sanção acessória.
Nestes termos, à pena prevista no artigo 291º, nº 1, do Código Penal acrescerá a sanção acessória, prevista no artigo 69º, nº1, do mesmo diploma, de proibição de conduzir veículos motorizados por um período que, em abstracto, vai de 3 meses a 3 anos.
Aqui chegados importa saber se a recolha de sangue feita ao arguido para efectuar a pesquisa de álcool é um meio (i)legal de prova, uma vez que tal questão foi suscitada no julgamento.
Para isso há que fazer apelo, desde logo, às normas do Código da Estrada.
Segundo o artigo 153º, nº 1, daquele Diploma, o álcool é pesquisado em ar expirado pelo condutor utilizando aparelho aprovado.
Se o condutor se recusar a efectuar tal exame comete o crime de desobediência, de acordo com o disposto no nº 3 do artigo 152º do Código da Estrada, lavrando-se o auto da ocorrência e ficando o processo de pesquisa por aqui.
No entanto, no caso de o condutor ser interveniente num acidente de viação, que é o que no presente caso nos interessa, e o seu estado de saúde o permitir realiza-se o exame através do ar expirado, com o respectivo aparelho, tal como dispõe o artigo 153º, nº 1, do referido Código da Estrada.
Mas, se em consequência do acidente não for possível realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado através de aparelho – alcoolímetro – entramos na previsão do artigo 156º, nº 2, do Código da Estrada.
Neste caso, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que o interveniente no acidente seja conduzido deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
Ora, é precisamente a situação prevista no nº 2 do artigo 156º do Código da Estrada que suscita algumas questões pertinentes.
Seguindo de perto o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.12.2009 (disponível em www.dgsi.pt), digamos que a intenção primeira do legislador é submeter o condutor à realização de exame de pesquisa de álcool no sangue, ciente dos riscos que representa a condução sob o seu efeito, razão pela qual tornou esse exame obrigatório nos casos de o condutor ser interveniente num acidente de viação.
No entanto, o legislador reconhece ao condutor o direito de recusar a realização do exame sem prejuízo de, ao fazê-lo, aquele estar a cometer um crime de desobediência.
Esta recusa de realização do exame pelo condutor não sofre qualquer limitação em caso de acidente de viação. Mas, ocorrendo a recusa pratica o condutor um crime de desobediência.
Refere aquele Acórdão que “Esta posição, de recusa e consequente prática do crime de desobediência, não suscita quaisquer dúvidas quer para o exame de recolha de álcool no ar expirado realizado por aparelho, quer para o exame médico para diagnosticar o estado de influenciada pelo álcool, a que se referem os artigos 153º, nº 8 e 156º, nº 3, ambos do C. Estrada, quer o condutor seja quer não seja interveniente em acidente de viação”.
Questão controversa é a que suscitou o arguido na audiência de julgamento.
Sem prejuízo de uma análise mais geral e abstracta da questão devemos ter em conta a concreta situação dos autos e que é esta:
Recolha de amostra de sangue para análise, a condutor sinistrado, transportado a um estabelecimento de saúde.
Para uma melhor compreensão da questão que o arguido levantou em sede de julgamento afigura-se útil dar nota, ainda que breve, do que foi a evolução legislativa sobre esta matéria.
E, para este efeito, importa desde já referenciar o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 275/2009, de 27 de Maio, publicado no DR, 2ª série, nº 129, de 7 de Julho de 2009.
Neste acórdão é feita uma síntese sobre a referida evolução legislativa que, porque sintética e esclarecedora, aqui a deixamos transcrita:
“i) O crime específico de recusa de submissão a exames para controlo do álcool no sangue (artigo 12º) encontra-se previsto no ordenamento jurídico português, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, adoptado ao abrigo de autorização legislativa;
ii) A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro, adoptado ao abrigo de autorização legislativa, passou a prever-se no ordenamento jurídico português o crime de desobediência simples, salvo quando fosse necessário o consentimento do examinando, por exemplo nos casos de contraprova (artigo 158º, nº 3, do Código da Estrada então vigente);
iii) Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 265-A/2001, de 28 de Setembro, adoptada sem prévia autorização legislativa, reconhece-se ao examinando o direito a recusar colheita de sangue, sem necessidade de fundamentação, nos casos em que seja impossível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado;
iv) Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, adoptado sem prévia autorização legislativa, retira-se ao examinando o direito a recusar colheita de sangue, independentemente do motivo, nos casos em que seja impossível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado, apenas sendo realizado exame médico no caso da colheita de sangue não ser possível por razões médicas”.
Desta síntese evolutiva da legislação resulta que existe uma alteração de regime sem que tenha havido também a necessária autorização legislativa quanto a esta mudança.
Sobre esta matéria, o citado acórdão do Tribunal Constitucional nº 275/2009 explicita, conforme jurisprudência já antiga e que se mantém:
“Certo é, portanto, que a norma ora colocada em crise não beneficia de qualquer autorização legislativa concedida pela Assembleia da República ao Governo. Porém, por si só, esta não será razão suficiente para optar pela inconstitucionalidade orgânica da norma. Com efeito, a análise da jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional aponta no sentido de que a falta de lei de autorização legislativa, em matéria de competência legislativa relativamente reservada da Assembleia da República, não obsta a que o Governo possa legislar, desde que a normação adoptada não se revista de conteúdo inovatório face à anteriormente vigente. A título de exemplo, cite-se o Acórdão nº 114/08 da 3ª Secção do Tribunal Constitucional (disponível em www.tribunalconstitucional.pt): “Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da assembleia da república não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Forçoso é que se demonstrem que as normas postas sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente (cfr. os acórdãos nºs 502/97, 589/99, 377/02, 414/02, 450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da República, 2ª série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 24 de Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão nº 123/04 (Plenário) publicado no Diário da república, 1ª série-A, de 30 de Março de 2004.
Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva relativa de competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa concluir pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo também de ponderar-se os demais elementos da interpretação da lei, pois o mesmo texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo. Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da Assembleia da república ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no ordenamento jurídico, apesar da recompilação no novo acto legislativo do Governo”.
Retomando esta linha de raciocínio, há que proceder a uma comparação entre a norma existente antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro – “in casu”, o nº 7 do artigo 159º do Código da Estrada – e a que resulta da posterior vigência do referido diploma legal – a norma extraída a partir da conjugação do artigo 348º, nº 1, alínea a), do Código Penal, e a dos artigos 152º, nº 3 e 153º, nº 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a redacção fixada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro – com o intuito de averiguar se existe ou não inovação normativa, sendo que apenas no primeiro caso se poderá concluir no sentido da inconstitucionalidade orgânica”.
Afirma-se, ainda, no citado Acórdão do Tribunal Constitucional que a alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei nº44/2005 representa um passo à frente face à dimensão normativa decorrente da conjugação entre o nº 3 do artigo 158º e o nº 7 do artigo 159º do Código da Estrada (na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001).
Da mera comparação literal entre o nº 8 do actual artigo 153º do Código da Estrada e as anteriores normas – seja ela a extraída do nº 3 do artigo 158º (segundo o Decreto-Lei nº 2/98 ou a extraída da conjugação entre o nº 3 do artigo 158º e o nº 7 do artigo 159º (segundo o Decreto-Lei nº 265-A/2001) – resulta evidente que o legislador governamental substituiu o elemento negativo do tipo de crime de desobediência a realização de exame “se recusar”, substituindo-o por “se esta não for possível por razões médicas”.
Com efeito, o legislador governamental pretendeu retirar aos condutores sujeitos aos exames para comprovação do teor de influência sob álcool o direito à recusa de colheita de sangue, mesmo nos casos em que a impossibilidade de realização de exame por método de ar expirado é apenas imputável ao Estado.
Quando antes qualquer condutor podia recusar a sujeição a exame mediante colheita de sangue, sem necessidade de fundamentação em razões médicas, passa agora a exigir-se que a não realização da colheita de sangue apenas possa ser justificada pela impossibilidade técnica de tal operação médica.
É evidente que os condutores continuarão a praticar o crime de desobediência sempre que recusem a realização através do método de ar expirado ou, quando este não for possível, quando recusem o exame médico alternativo à colheita de sangue.
Ora, a nova redacção do nº 8 do artigo 153º do Código da Estrada vem, de modo manifesto, agravar a responsabilidade criminal dos condutores que pretendam, muitas vezes, admite-se, por razões plenamente justificadas e até protegidas pela Lei Fundamental (direito à integridade física e moral, direito à intimidade privada, direito à objecção de consciência), na medida em que passa a punir como crime de desobediência a recusa a sujeição a colheita de sangue nos casos em que seja tecnicamente possível fazê-lo.
Verificado este conteúdo inovatório é forçoso concluir que o legislador governamental necessitava da autorização legislativa, na medida em que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, por força da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
Conclui-se, assim, no Acórdão, pela inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 153º, nº 8, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Inconstitucionalidade orgânica que existe igualmente para o regime de colheita de amostra de sangue com vista à realização da análise em situação de acidente de viação, o mesmo é dizer do actual regime do artigo 156º do Código da Estrada.”
Sendo esta, em termos gerais e abstractos a nossa posição, passemos agora à subsunção dos factos provados na sentença.
Resulta da conjugação dos elementos de prova, designadamente do relatório de exame toxicológico de pesquisa de álcool no sangue de fls. 12 e 13 que após o acidente o arguido foi conduzido ao Hospital de Leiria, onde lhe foi feita recolha de sangue para análise de quantificação da taxa de álcool no sangue.
Todavia, não resulta dos factos provados que o arguido não foi informado que o sangue recolhido se destinava a análise para determinação da taxa de alcoolemia no sangue nem que não teve a faculdade de recusar a sujeição a tal exame.
Ora, nas conclusões supra referidas o que se deixou consignado é que a retirada do direito de o arguido poder recusar a recolha de sangue padece de inconstitucionalidade orgânica.
No entanto, não é este o caso dos autos.
Do factualismo provado não se retira que o arguido não foi previamente informado do destino ou fim da colheita de sangue.
Por todo o exposto, verifica-se que no caso concreto dos autos não estamos perante nenhuma prova inválida, ilegal ou nula como defendeu o arguido.
Em segundo lugar vem o arguido acusado pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal.
Prescreve este artigo que “Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias”.
Com tal incriminação pretende tutelar-se a integridade física da pessoa humana, bem jurídico dotado de dignidade constitucional (artigo 25º da C.R.P.).
Delimitando o bem jurídico protegido, Simas Santos e Leal Henriques (in Código Penal Anotado, 2ª edição, Rei dos Livros, Volume II, pág. 136), entendem que o crime de ofensas à integridade física se consubstancia numa ofensa à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatómico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico. A ofensa tem que se produzir na saúde considerada em sentido lato, como estado de completo bem estar físico, mental e social conforme o conceito usado pela Organização Mundial de Saúde.
Analisando o tipo objectivo de ilícito, verifica-se a distinção entre ofensas no corpo e ofensas na saúde.
Por ofensa no corpo poder-se-á entender todo o mau trato através do qual o agente é perturbado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante (Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1999, pág. 205).
Como lesão da saúde deve considerar-se toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a (obra citada, pág. 207).
O tipo objectivo encontra-se preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho (obra citada, pág. 205).
Comete um crime na forma negligente, para os efeitos do disposto no artigo 15º do Código Penal, quem produz certo resultado típico por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz.
São, assim, elementos do tipo de ilícito do artigo 148º do Código Penal: a violação de um dever concreto objectivo de cuidado; a produção de um resultado típico e a imputação objectiva do resultado à conduta do agente.
A imputação objectiva nos crimes negligentes envolve um duplo nexo de imputabilidade – entre a acção do agente e o resultado produzido e, por outro lado, entre a violação do dever objectivo de cuidado e aquele resultado.
A questão é sempre aferir se a violação do dever de cuidado foi a causa do resultado verificado. É necessário que se possa imputar o resultado à própria violação do dever de cuidado, de tal forma que, quando o resultado se verificasse ainda que o agente tivesse adoptado a conduta ilícita (o que o dever de cuidado lhe impunha), não haverá imputação.
O tipo de ilícito do facto negligente considera-se preenchido por um comportamento sempre que este é discrepante em relação àquele que era objectivamente devido.
Para além da causação de um resultado, torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e, consequentemente que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e círculo da vida do agente (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 353 e 354).
Para que a conduta do arguido seja punível será necessário demonstrar, por um lado, que violou um dever objectivo de cuidado e, por outro, que tal violação causou um resultado que ele poderia ter previsto.
No que toca ao elemento subjectivo do tipo – a negligência – é necessário que o agente omita o dever de diligência a que, segundo as circunstâncias do caso e os seus conhecimentos e capacidades pessoais era obrigado e que, consequentemente não previu, como devia e podia, a produção do evento típico (negligência inconsciente) ou, tendo previsto o resultado, confiou que o mesmo não se produziria (negligência consciente).
Resulta dos factos provados que as lesões de que foram vítimas E... e D... foram devidas ao embate do veículo conduzido pelo arguido.
Apurou-se que o arguido ao conduzir sob a influência do álcool não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que deveria ter adoptado para impedir a verificação da colisão com o veículo que circulava em sentido oposto.
É pois manifesto que o arguido não cumpriu os mais elementares deveres de cuidado que a condução automóvel aconselha e o Código da Estrada impõe – nomeadamente o artigo 13º, nº 1, do Código da Estrada que impõe ao condutor o dever de circular pelo lado direito da faixa de rodagem.
O embate e as suas consequências advieram, pois, da desrespeitosa condução do arguido às disposições estradais, sabendo o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Cometeu o arguido dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, pois que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em questão, inexistindo causas de exclusão da ilicitude e da culpa.

*

DA ESCOLHA E MEDIDA DAS PENAS

Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida das sanções a aplicar.
O crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado pelo qual o arguido vem acusado é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 320 dias, uma vez que a pena que ao caso caberia é agravada de 1/3 no seu limite mínimo e máximo (artigo 285º, nº 1 e 294º, nºs 1 e 3 do Código Penal).
O artigo 70º do Código Penal determina que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tais finalidades são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, como estipula o artigo 40º, nº1, do mesmo diploma legal.
A pena de prisão apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas face às necessidades de reprovação e prevenção. Necessidade, adequação e proporcionalidade são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.
É necessário proceder à determinação da pena que, em concreto, cabe ao arguido, em função de critérios de culpa e de prevenção (geral e especial) – artigo 71º, nº 1, do Código Penal, tendo em atenção, nomeadamente, as circunstâncias a que alude o nº 2 do mesmo preceito.
No caso concreto há que considerar que o arguido conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,83 g/l, invadiu a faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, transpondo uma linha longitudinal contínua, sendo que a sua conduta ocasionou um embate com outra viatura, do qual resultou a morte de uma pessoa.
Quanto à conduta do arguido em conduzir com álcool o dolo é intenso (dolo directo).
A agravar as exigências de prevenção geral temos a elevada incidência deste tipo de crime na nossa sociedade e a sinistralidade rodoviária que lhe está associada.
A favor do arguido temos que considerar o facto de o mesmo se encontrar profissional e familiarmente inserido.
No caso dos autos é considerável a gravidade da ilicitude da conduta perpetrada pelo arguido, sendo que a gravidade das suas consequências assumiu particular relevância, pelo facto de a conduta do arguido ter provocado um acidente do qual resultou a morte de uma pessoa.
Quanto às necessidades de prevenção geral de integração, cumpre salientar que as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas infringidas são especialmente altas, dados os elevados índices de sinistralidade estradal e a possibilidade de descrédito da norma violada, a qual carece de reafirmação na sua imperatividade.
Assim sendo, consideramos que só a aplicação de uma pena de prisão é adequada a satisfazer as exigências que se fazem sentir no presente caso.
Tudo ponderado, afigura-se-nos adequado aplicar ao arguido a pena de 1 (um) ano de prisão pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravada pelo resultado.
Relativamente aos crimes de ofensa à integridade física por negligência os mesmos são punidos com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.
Todavia, tendo em conta a conduta do arguido já exposta, bem como os resultados da sua conduta, designadamente o tipo e a extensão das lesões provocadas nos ofendidos consideramos igualmente que só a pena de prisão é suficiente para acautelar as necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.
Deste modo, julgamos adequado fixar em seis meses de prisão a pena por cada um dos crimes de ofensa à integridade física por negligência.
Atendendo a todas as circunstâncias acima enumeradas, o tribunal julga ajustado aplicar:
- a pena de 1 (um) ano de prisão pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravada pelo resultado;
- a pena de 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes de ofensa à integridade física por negligência.
Nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal, “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Acrescenta o nº 2 da mesma disposição legal que “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
No cúmulo a fazer não se têm em conta as substituições de penas.
Por outro lado, para se proceder ao cúmulo jurídico de penas é necessário que estas, além de estarem em concurso, sejam da mesma espécie.
Deste modo, verifica-se que, in casu, as penas aplicadas ao arguido neste processo são todas da mesma espécie, termos em que se procederá ao cúmulo das penas, ou seja, ao cúmulo jurídico das penas de prisão.
Assim sendo, a moldura abstracta do concurso das penas aplicadas ao arguido oscilará entre o 1 (ano) de prisão e 2 (dois) anos de prisão.
Na determinação concreta da pena atender-se-á aos factos e à personalidade do agente, nos termos do disposto no artigo 77º, nº 1, do Código Penal.
Relativamente aos factos há que ter em conta que os mesmos ocorreram no contexto de uma condução efectuada pelo arguido que circulava com álcool no sangue e que invadiu a faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, indo embater no veículo conduzido pela vítima.
Deste modo, atendendo aos factos e à personalidade do arguido inseridas no contexto em causa nos autos, reputa-se adequada e proporcional à gravidade dos factos a imposição ao arguido de uma pena única de 15 (quinze) meses de prisão. Segundo o disposto no artigo 50º, nº1, do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão reside no afastamento do agente, no futuro, da prática de novos crimes. Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 12.05.1999 (in www.trc.pt) para que se possa suspender a execução da pena de prisão, necessário se torna que os fins das penas não exijam o seu cumprimento e que as circunstâncias referentes à personalidade e condições de vida do arguido o aconselhem. No caso dos autos, considero legítimo fazer um juízo de prognose favorável no sentido de que a ameaça da pena bastará para afastar o arguido de novas infracções, satisfazendo-se, ao mesmo tempo, as demais finalidades da pena, dado o facto de o arguido estar familiar e profissionalmente inserido. Assim, afigura-se-nos que a execução da dita pena deverá ser suspensa por um período de 15 (quinze) meses. Pena Acessória de Proibição de Conduzir Veículos Motorizados - artigo 69º n.º 1 alínea a) do Código Penal Nos termos do artigo 69°, n.º 1, alínea a), do Código Penal, "É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crime previsto nos artigos 291º ou 292º". Trata-se aqui de uma pena acessória – pena que só pode ser aplicada na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal – e que, nos termos do disposto no artigo 65° n.º 2, do Código Penal, a lei faz corresponder à prática de certos factos ilícitos típicos, sendo pressuposto formal da sua aplicação a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução ou com utilização de veículo e pressuposto material que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável – Figueiredo Dias, Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág.165. No caso em apreciação, a gravidade do facto praticado justifica a aplicação da pena acessória, uma vez que esta tem uma "função preventiva adjuvante da pena principal (...) que se não esgota na intimidação da generalidade mas se dirige (…) à perigosidade do delinquente" – Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 96. Considerando que a pena acessória visa prevenir a perigosidade mas constitui também uma censura adicional pelo facto praticado pelo arguido - cfr., Figueiredo Dias, Acta n.º 8 da Comissão de Revisão do Código Penal, in Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal, Editora Rei dos Livros, pág. 75 -, verifica-se que, não obstante a pena acessória ter, face à pena principal, uma função mais restrita - função preventiva - a determinação da sua medida é ainda feita por recurso aos critérios gerais constantes do artigo 71° do Código Penal - cfr. neste sentido Ac. da R.C. de 18/12/96, in CJ, Ano XXI, t. V, p. 62 e ss. ; Ac. da R.P. de 20/9/95, in CJ, Ano XX, t. IV, p. 229 e ss. Vertendo tais considerações na determinação da medida da pena acessória e, considerando o período de 3 meses a 3 anos, fixa-se a proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 (nove) meses. III – DA RESPONSABILIDADE CONTRA-ORDENACIONAL O arguido vem também acusado pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 81º, nºs 1, 2 e 5, alínea b) e 146º, alínea j), do Código da Estrada. O artigo 81º, nº 1, do Código da Estrada dispõe que “É proibido conduzir sob influência de álcool ou substâncias psicotrópicas”. Acrescenta o nº 2 da referida disposição legal que “Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico”. Por sua vez, o nº 5 da mesma disposição legal determina que “Quem infringir o disposto no nº 1 é sancionado com coima de: b) € 500 a € 2500, se a taxa for igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l ou, sendo impossível a quantificação daquela taxa, o condutor for considerado influenciado pelo álcool em relatório médico ou ainda se conduzir sob influência de substâncias psicotrópicas”. Por sua vez, nos termos do disposto no artigo 146º, alínea j) do Código da Estrada a contra-ordenação em causa é muito grave. Como resulta dos factos provados, o arguido conduzia o veículo automóvel com uma taxa de álcool no sangue de 0,83 g/l. Todavia, afigura-se-nos que o arguido não pode ser condenado pela prática desta contra-ordenação em concurso real com a punição pela prática do crime previsto no artigo 291º, nº 1, al. a) do Código Penal. Existe, a nosso ver, um concurso legal ou aparente, pelo que o arguido não pode ser condenado pela prática desta contra-ordenação, sob pena de violação do princípio “ne bis in idem”. Assim sendo, é certo que o comportamento do arguido realizou por mais do que uma forma o tipo legal do artigo 291º, preenchendo a sua conduta a alínea a) e a alínea b) do número 1, dando origem a uma só situação de perigo dado que esta ocorreu nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, perigo unitário esse que obsta a que consideremos separadamente as referidas formas de realização típica. Em segundo lugar, vem o arguido acusado da prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 13º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada. Dispõe o artigo 13º, nº 1, do Código da Estrada que “O trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes”. Determina o nº 4 da referida disposição legal que “Quem circular em sentido oposto ao estabelecido é sancionado com coima de € 250 a € 1250”. Por último, o arguido vem acusados pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 60º, nº 1 e 65º, alínea a), do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro. Dispõe o artigo 60º, nº 1 do referido Diploma que “As marcas longitudinais referidas no presente artigo são linhas apostas na faixa de rodagem, separando sentidos ou vias de trânsito e com os significados seguintes: M1 – linha contínua: significa para o condutor proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita, quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito”. Como resulta dos factos provados, o arguido circulava na E. Nº 1, no sentido Pombal/Leiria e, ao km 139,952 invadiu a via mais à esquerda da hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava no sentido Leiria/Pombal, sendo que para o efeito o arguido transpôs a linha longitudinal contínua que delimita os sentidos de marcha. Todavia, tal como acontece com a contra-ordenação acabada de referir afigura-se-nos que o arguido não pode ser condenado pela prática destas contra-ordenações em concurso real com a punição pela prática do crime previsto no artigo 291º, nº 1, al. b) do Código Penal. Existe, a nosso ver, um concurso legal ou aparente, pelo que o arguido não pode ser condenado pela prática destas contra-ordenações, sob pena de violação do princípio “ne bis in idem”. Assim sendo, é certo que o comportamento do arguido realizou por mais do que uma forma o tipo legal do artigo 291º, preenchendo a sua conduta a alínea a) e a alínea b) do número 1, dando origem a uma só situação de perigo dado que esta ocorreu nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, perigo unitário esse que obsta a que consideremos separadamente as referidas formas de realização típica. Tendo em conta o disposto nos artigos 134º, nº1, do Código da Estrada e 20º do Decreto-Lei nº 433/22, de 27/10, não há lugar à punição do arguido pelas contra-ordenações imputadas na acusação e por ele praticadas, cujos factos constituem elemento do crime praticado pelo arguido pelo que se verifica a consumpção das mesmas pelo crime.”
****
III. Apreciação dos Recursos:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A questão a conhecer é a seguinte:
- Saber se há erro notório na apreciação da prova.
****
Pois bem, impõe-se deixar claro, para que fique clarificada a abordagem à questão suscitada no recurso, qual o tipo de impugnação trazido aos autos. O recorrente pretende, ao fim e ao cabo, invocar um dos vícios oficiosos do artigo 410º, do CPP, assim impugnando a matéria de facto dada como provada, ou pretende reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP? Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. **** Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, justamente aquele que é invocado no recurso, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
O erro de julgamento, por seu turno, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova produzida em 1ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.: «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
****
Ora, no caso em apreço, o recorrente, ao empregar o conceito amplo de erro na apreciação da prova, o qual poderia, num primeiro momento, levar a pensar que a impugnação da matéria de facto se situasse no âmbito do previsto na al. c), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, está claramente no âmbito do disposto no artigo 412.º, do CPP.
Tanto assim é que, nas conclusões, afirma que as provas (testemunhal e documental) apenas podem levar a uma conclusão, defendendo que deve ser alterada a matéria dada por assente nos pontos 2, 3, 17, 18 e 19 dos factos considerados provados, ou seja confronta-se este tribunal de recurso com elementos extrínsecos ao teor da própria decisão recorrida.
****
Donde que a questão a decidir, a fixar-se unicamente em função das conclusões do recorrente, consista em verificarmos se foram incorrectamente julgados os citados pontos de facto.
Antes de avançarmos para o caso concreto, é bom ter presente que o procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas está actualmente estabelecido no Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, e pelo Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, estabelecido na Lei nº 18/2007, de 17 de Maio. Daqueles diplomas decorre que a fiscalização é obrigatória para i) os condutores, ii) os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, iii) as pessoas que se propuserem iniciar a condução. A obrigatoriedade para os cidadãos referidos se submeterem às provas estabelecidas na lei para a detecção de álcool implica que a recusa a tal sujeição seja punida com o crime de desobediência. O art.º 156º do Código da Estrada ao regular a fiscalização da condução sob a influência de álcool prevê a realização de exames para a sua detecção, começando pelo uso dos alcoolímetros regularmente aprovados, passando à análise sanguínea e rematando com o exame médico. Também no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool aprovado pela Lei n.º 18/2007 de 17/5 se prevê que “A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo” (art.º 1º/3). Trata-se de prova pericial cuja utilização seriada a lei estabelece com minúcia, pelo que não é de utilização indiscriminada ou arbitrária. Daí que a lei estabeleça que “se não for possível a realização de prova de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou se esta não for possível por razões médicas, em estabelecimento oficial de saúde” - (cf. artigos 153º nº 8 do CE). Insere-se nestas situações o caso especifico dos exames efectuados a condutores ou peões que intervenham em acidentes de viação cujo estado de saúde não permita que sejam submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado (cf. 156.º n.º 2, do CE). Ou seja, o exame de pesquisa de álcool no sangue destina-se no caso à recolha duma prova rapidamente perecível e por isso de carácter urgente. Noutra perspectiva, a impedir que um condutor influenciado pelo álcool persista numa condução perigosa, além do mais, para a vida e a integridade física quer do condutor quer dos restantes utentes da estrada. Assim, a sua imediata sujeição a exame pericial mostra-se adequada à salvaguarda desses bens fundamentais e ao fim da descoberta da verdade visada no processo penal. Embora a regra seja a liberdade e a restrição a excepção, esta também está constitucionalmente consagrada em obediência ao princípio da proporcionalidade na limitação recíproca dos direitos de cada um. Aliás, a intrusão na liberdade e na integridade física é permitida dentro de certos limites, conforme é bem expresso no recente Acórdão do TRP, de 19/10/2011, Processo n.º 294/10.3PTPRT.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Moisés Silva, in www.dgsi.pt.
****
Aqui chegados, abordemos, em primeiro lugar, a crítica que é feita quanto à prova testemunhal.
O recorrente, nesta matéria, escreve, na sua Motivação, o seguinte:
Quanto às declarações da testemunha B..., as mesmas são contraditórias: começa por dizer que informou o arguido de que iria ser sujeito à recolha de sangue para detecção de álcool, que ele autorizou, que ele esteve sempre consciente, continuou dizendo que não se recordava se o arguido assinou o documento de autorização, para terminar, dizendo que o arguido «não dizia coisa com coisa», devido aos ferimentos.
Ou seja, esta testemunha andou a fugir às questões que lhe eram colocadas, alterando progressiva e sucessivamente as respostas, para tentar justificar a falta de cumprimento do seu dever de informar e a falta de prestação de consentimento por parte do arguido.”
Estamos perante uma apreciação subjectiva da prova (a do recorrente), perfeitamente legítima, mas inócua, em termos de impor uma alteração da matéria de facto.
Na verdade, para o tribunal recorrido, o depoimento da testemunha B... Batista mereceu credibilidade, como consta da motivação de facto acima transcrita, nomeadamente quanto à informação da finalidade da recolha do sangue e à falta de assinatura em documento de autorização “devido ao estado em que se encontrava”.
Convém ter presente que a questão deve ser vista ao nível da livre apreciação da prova (artigo 127.º, do CPP).
Intimamente ligados ao princípio da livre apreciação da prova estão os princípios da continuidade da audiência, ou da concentração, oralidade e imediação da prova.
Quanto aos dois últimos, constituem a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e “conditio sine qua non” para a respectiva admissibilidade. Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento. Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.
Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum, o que não acontece no caso presente.
O recorrente entende que há contradições no depoimento da testemunha.
Salvo o devido respeito, não as descortinamos.
B... Batista começou por dizer que o arguido foi informado de que ia ser recolhido sangue, sendo certo que sempre esteve consciente, mesmo no hospital, adiantando que “não dizia coisa com coisa e estava bastante queixoso e dorido” e esclarecendo que pensava não ter sido feita uma assinatura de autorização (respostas dadas ao Ministério Público).
Mais tarde, disse que o arguido não tinha condições para “assoprar” e repetiu que foi pedida autorização ao arguido para a recolha de sangue, ao que ele acedeu (“se ele não autoriza, com certeza ninguém lho vai tirar”), adiantando que “derivado ao facto dos ferimentos e do estado em que ele se encontrava, não sei se assinou” (respostas dadas ao Exmo. Senhor Advogado).
Acresce que, quando confrontado com as perguntas do ilustre mandatário do ora recorrente, o Exmo. Senhor Advogado, explicou o que queria dizer com a expressão “ele não dizia coisa com coisa”, afirmando «o que eu quero dizer quando dizia “coisa com coisa” é derivado ao acidente que tinha causado uma vítima mortal, derivado aos ferimentos que tinha, às dores que tinha e uma pessoa perguntava…não dizia coisa com coisa, uma pessoa que acaba de ter um acidente, aquela vítima mortal e que ele diz que não se lembra de onde é que veio e que não sabe o que faz e que não quer».
Ouvindo a respectiva gravação, deparamos com um depoimento espontâneo e de onde não transparece qualquer vontade de fugir às perguntas, próprio de quem é confrontado, em 12/4/2011, com algo que teve lugar em 21/12/2008.
Estamos, com efeito, face a um discurso que apresenta, na sua globalidade, consistência e que pode ser resumido no seguinte: não obstante estar consciente, o arguido apresentava um estado algo confuso, normal de quem se vê envolvido num acidente de viação grave, sendo certo que foi informado da necessidade de haver recolha do seu sangue, não tendo sido manifestada oposição, tendo o depoente a ideia de que aquele nada havia assinado, por causa do estado em que se encontrava (queixoso e dorido).
Perante esta situação, há que fazer uma pergunta.
Existe alguma prova nos autos que abale o depoimento desta testemunha (a única que prestou depoimento sobre a forma como foi recolhido sangue), nomeadamente no sentido do arguido não ter sido informado da finalidade da recolha e de não ter autorizado a recolha de sangue?
Nenhuma.
Assim sendo, como é evidente, não dispõe o tribunal de elementos que permitam sequer duvidar que as coisas não ocorreram conforme descrito pela testemunha B..., nada havendo de objectivo que possa colocar em causa a sua credibilidade (a análise feita pelo recorrente reveste-se de natureza subjectiva).
E não se diga que o tribunal recorrido inverteu o princípio da presunção de inocência do arguido e o princípio do acusatório, impondo-lhe a prova de um facto negativo e a prova da sua inocência.
Nada disso.
O tribunal a quo limitou-se, como era seu dever, a apreciar a prova trazida aos autos pela acusação e pela defesa. Existindo prova no sentido coincidente com a acusação, evidentemente que cabia à defesa alegar factos (não, necessariamente, provar) que suscitassem uma dúvida razoável que levaria à aplicação do princípio in dubio pro reo.
Isso não aconteceu, limitando-se o arguido, no presente recurso, a colocar em causa o depoimento do militar da GNR, ainda que sem fundamento consistente, como já vimos.
****
Passemos, em segundo lugar, a analisar a crítica que é feita à prova documental.
Aqui, refere o recorrente, na sua Motivação, o seguinte:
Consta ainda dos autos um documento hospitalar referente à recolha de sangue.
Quanto ao documento, o mesmo apenas se refere à recolha de sangue para fins clínicos e terapêuticos, tendentes ao tratamento do arguido.
Ou seja, verifica-se a ausência de qualquer documento referente à informação ao arguido de que o sangue seria utilizado para fins de detecção de álcool e ao consequente consentimento.
Salienta o arguido, apoiando-se em Acórdão do TRP, de 9/12/2009, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Teixeira, in www.dgsi.pt, que a recolha de sangue a que foi submetido para prova do grau de alcoolemia se traduz em prova proibida, como tal inválida, na medida em que o documento hospitalar junto aos autos àquela referente apenas contempla fins clínicos e terapêuticos, nada existindo escrito nos autos relacionado com a informação ao arguido de que o sangue seria utilizado para fins de detecção de álcool e consequente necessário consentimento. O recorrente questiona, por isso, a validade dessa prova, ao nível da violação do disposto na al. c), do n.º 1, do artigo 165, da CRP.
Não há dúvidas de que, efectivamente, se verifica a ausência de qualquer documento referente à informação ao arguido de que o sangue seria utilizado para fins de detecção de álcool e ao consequente consentimento, sem prejuízo do que acima (depoimento da testemunha) ficou expresso. O arguido/recorrente, em síntese, está a alegar não ter sido devidamente elucidado quanto à finalidade da recolha de sangue que lhe foi feita no Hospital, desconhecendo, nomeadamente, o destino que ia ser dado àquele seu material biológico e que a recolha de amostra de sangue para análise, de condutor sinistrado, transportado a um estabelecimento de saúde, efectuada sem o mesmo ter conhecimento exacto do fim da colheita padece de inconstitucionalidade orgânica.
Já vimos que não resulta do depoimento da testemunha B... ter existido tal falta de informação quanto ao fim da colheita. E também não está demonstrado que o arguido estivesse impossibilitado de compreender, de modo absoluto, o que se passava à sua volta.
Por isso, o arguido não podia desconhecer o regime legal da proibição de condução sob o efeito de álcool nem o regime normativo que leva à recolha de sangue, quando não é possível proceder à recolha pelo método de aspiração (estamos a falar de um cidadão nascido em 6/02/1985, no pleno exercício dos seus direitos).
O regime de sujeição a exame de alcoolemia (por aparelho qualitativo, quantitativo ou por análise de sangue) está estabelecido no Código da Estrada e na Lei nº 18/2007 e é de conhecimento público suposto – legalmente suposto – pelo comum dos cidadãos, com acréscimo de exigência nesse conhecimento pelos cidadãos que se confrontam com a condução, quer sejam condutores, quer sejam peões (que sejam intervenientes em acidentes de viação), quer sejam pessoas que se proponham iniciar a condução. Pelo que a simples afirmação de que o cidadão não sabia que iria ser sujeito a uma recolha de sangue para efeitos analíticos não tem cobertura legal, nem é suposto ser aceitável.
Em momento algum a lei impõe ou exige que se formule um pedido expresso de consentimento de quem tem que sujeitar-se ao exame de recolha de sangue, em caso de acidente de trânsito. Até porque o exame de sangue é a via excepcional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, apenas admissível em casos expressamente tipificados, nomeadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível (vejam-se os artigo 153.º, nº 8, e 156.º, nº 2, do Código da Estrada). A exclusão liminar da admissibilidade de exames coercivos está, assim, assegurada pela simples oposição – recusa – do titular do interessado em sujeitar-se ao exame. Não se foi, nesta matéria, para a exigência de um consentimento expresso para a recolha de exames.
Acontece que, mesmo que se considerasse tal falta de informação e impossibilidade de recusa como existentes (a expressão “ele não dizia coisa com coisa” pode, concede-se, inculcar a ideia de que o arguido estaria impedido de perceber o que o rodeava), não estaria o recorrente a levar em consideração, de qualquer das maneiras, a mais recente jurisprudência do TC nesta matéria, ou seja, a de que não se verifica qualquer inconstitucionalidade orgânica, nos termos alegados.
Com efeito, o Tribunal Constitucional na Decisão Sumária nº 132/2011, de 22/02/2011, decidiu que a norma prevista no artigo 156º, nº 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº 44/05, de 23/02, interpretada no sentido de que, se não tiver sido possível a realização de exame referido no nº 1 do mencionado artigo, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, quando o condutor se mostra impossibilitado de prestar o seu consentimento ou manifestar a vontade de recusa, não padece de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 165º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
Tal posição, para a qual remetemos por a ela aderirmos, foi seguida já por este TRC – ver Acórdão de 4/5/2011, Processo n.º 332/10.0GCPBL.C1, em que foi Relator o Exmo. Desembargador Brízida Martins, in www.dgsi.pt.
****
Face a todo o exposto, concluímos que a recolha de sangue efectuada ao arguido não sofre de qualquer patologia processual, sendo válida, e, nessa medida, a prova produzida decorrente desse exame que demonstra que o arguido apresentava uma TAS de 0,83 g/l de álcool no sangue é uma prova válida.
****
IV – DECISÃO:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC.
****

****
José Eduardo Martins (Relator)
Maria José Nogueira