Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/08.8TAAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: PEDIDO CÍVEL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
EXCEPÇÕES
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 71º,72º DO CPP
Sumário: A existência de título executivo fiscal não retira o interesse em agir na dedução do pedido de indemnização civil em processo penal por parte do Instituto de Segurança Social com fundamento na prática de crime fiscal.
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 73/08.8TAAGN.C1
RELATÓRIO

Em processo comum singular do Tribunal Judicial de Arganil, foi, no que para a apreciação do presente recurso importa, decidido:
a) Condenar a arguida M, como auAssim que a existência de título executivo, ou título com igual valor (a lei tributária atribui força executiva aos títulos de cobrança das contribuições e impostos), não impede que se demande em acção declarativa, que o é o enxerto cível.”.
Daí que, considerando não se encontrar a presente situação enquadrada nas excepções ao princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ao processo penal respectivo (Cfr. artºs 71º e 72º CPP) e que o demandante tem o direito de lançar mão de todos os mecanismos processuais que a lei lhe permite com vista à cobrança do seu crédito, como é o de deduzir no respectivo processo crime o pedido cível, conclui-se que este tem claramente interesse em agir e, como tal, deveria o tribunal recorrido ter procedido à sua apreciação no segmento ora impugntora material de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, n.º 1, e 107º, este por remissão para o artº. 105, da Lei nº. 15/2001, de 5/06, e artº. 30, nº. 2, do Código Penal, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 euros, o que perfaz o montante global de € 1.100,00 euros
b) Condenar a arguida, “P.., Ldª.”, como autora material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. actualmente pelos artºs. 7, nº. 1, 105, nº. 1, e 107, da Lei nº. 15/2001, de 5/6, e ainda artº. 30, nº. 2, do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 euros.
c) Declarar parcialmente extinta a instância quanto ao pedido cível por inutilidade superveniente da lide, uma vez que a arguida efectuou já o pagamento do capital e juros devidos concernentes aos meses de Março, Setembro, Outubro e Novembro de 2000 (cfr. artº 287, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artº 4 do Código de Processo Penal).
d) Julgar improcedente a restante parte do pedido de indemnização civil deduzido contra as arguidas, em virtude da falta de interesse processual da Demandante no que concerne a essa solicitação efectuada, absolvendo do pedido as mesmas.

e) Declarar parcialmente extinta a instância quanto ao pedido cível por inutilidade superveniente da lide, uma vez que a arguida efectuou já o pagamento do capital e juros devidos concernentes aos meses de Março, Setembro, Outubro e Novembro de 2000 (cfr. artº 287, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artº 4 do Código de
f) Julgar improcedente a restante parte do pedido de indemnização civil deduzido contra as arguidas, em virtude da falta de interesse processual da Demandante no que concerne a essa solicitação efectuada, absolvendo do pedido as mesmas.
Inconformado, o ISS interpôs recurso da sentença, concluindo na sua motivação:
“ 1. Considera o Tribunal Judicial de Arganil que:
No caso em apreço, a Segurança Social não tem interesse processual para intentar uma acção de condenação, como é o presente pedido cível, se lhe é e foi possível propor desde logo uma acção executiva".
2. Em nosso entender, a existência de título executivo fiscal não obsta ã possibilidade de o credor/ofendido ser ressarcido pelos prejuízos causados enquanto lesado pela prática de um crime pois, a lei processual penal não limita ou restringe, o exercício daquele direito: neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9/12/2003 in www.dgsi.pt
3.Tanto mais que a sentença condenou as arguidas na prática do crime de Abuso de confiança contra a Segurança Social
4. Atendendo à factualidade provada, pela qual as arguidas foram condenadas, é notório que a conduta ilícita das demandadas - não entrega das cotizacões descontadas das remunerações pagas aos trabalhadores e gerentes - é causa directa e necessária dos danos causados ao demandante ISS/CDC pois, tal conduta preenche os requisitos que constituem as arguidas na obrigação de indemnizar, nos termos previstos nos artigos 532, 563/1, 564/1 e 2 e 566 do Código Civil
5. Sendo o montante daquela indemnização, face aos pagamentos efectuados na pendência da acção, contribuições e juros com referência ao mês 5/2010, de 55.561 .95€.
6. Tal montante traduz um elevado prejuízo patrimonial para a Segurança Social e para todos os cidadãos em geral, incumbindo às Instituições de Segurança Social tomar todas as medidas legais ao seu alcance para se ressarcir do seu crédito e minimizar os danos decorrentes desta situação de evasão fiscal.
7. O pedido de indemnização cível é um mecanismo legal que qualquer lesado pode utilizar no âmbito de um processo-crime, sendo este um meio eficaz para o recorrente lesado ser ressarcido do seu crédito.
8. Por isso, não se diga que por existirem execuções fiscais onde se também se reclama o crédito o aqui peticionado e onde, simultaneamente, são reclamados outros créditos, em particular a parte das contribuições propriamente ditas, não existe interesse em agir por parte do Centro Distrital de Coimbra: a causa de pedir e o pedido são distintos num e noutro caso e se o credor tivesse sido ressarcido na execução, não vinha peticionar o pagamento no processo-crime.
9. Assim, tomando em consideração todo o exposto, face ao nexo de causalidade entre os danos patrimoniais sofridos e a prática do crime cometido, deverá ser admitido o pedido de indemnização civil formulado pelo ora recorrente nos autos, com todas as demais consequências, dando-se assim provimento ao presente recurso.”.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto dada como provada foi a seguinte:
1. A primeira arguida é uma sociedade por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Góis sob a matrícula nº. 501…., com o objecto social de panificação e padaria.
2. A segunda arguida é gerente e única responsável pela gestão da referida sociedade, sendo remunerada por essa actividade.
3. Nos períodos de Fevereiro de 1999, Março e Abril de 2000, Agosto de 2000 a Abril de 2001, Novembro de 2002, Janeiro a Maio de 2003, Julho de 2003 a Setembro de 2007, na prossecução do respectivo objecto social e sob as ordens e direcção daquela sua gerente, a arguida sociedade comercial teve ao seu serviço vários trabalhadores, conforme demonstrado pelas declarações de remuneração de fls. 81 a 274.
4. Durante esse período, a primeira arguida, em conformidade com dever legalmente estabelecido para as entidades empregadoras, procedeu a desconto de contribuições nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores e, no período de Março a Setembro de 2007, à gerente daquela sociedade comercial, na oportunidade e nos montantes no mapa de valores constantes de fls. 12 a 14.
5. Tais montantes correspondiam ao valor de contribuições dos trabalhadores, estimadas por aplicação da taxa legal de 11% sobre a respectiva remuneração base de incidência, num total parcial de € 34.865,28, e ao valor de contribuições dos gerentes, calculadas de acordo com a aplicação da taxa legal de 10% sobre as remunerações base de incidência, num total parcial de € 619,07, tudo perfazendo o quantitativo global de € 35.484,35 (trinta e cinco mil, quatrocentos e oitenta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos).
6. Essas contribuições sociais, ainda por imposição legal e por dever que recaia e recaí sobre as entidades patronais, deveriam ser entregues ao seu legítimo destinatário: ­o Instituto de Segurança Social, I.P. - Centro Distrital de Coimbra, em qualquer dos seus Serviços desconcentrados e, nomeadamente, nos Serviços Locais de Arganil ­acompanhadas e mencionadas em impresso oficial, até ao dia 15 do mês imediatamente seguinte àquele a que respectivamente respeitavam.
7. Porém, embora sempre tivesse mensalmente realizado essa operação de desconto, a primeira arguida, procedendo segundo determinações da segunda arguida, omitiu deliberadamente esse dever, nunca, nem no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes, nem após as notificações efectuadas para o efeito, efectuou a entrega à Segurança Social, do correspondente quantitativo descontado aos beneficiários deste organismo, acrescido dos juros respectivos e do valor da coima, apropriando-se mensal e sucessivamente daquele primeiro mencionado montante, gastando-o como lhe aprouve em proveito da sociedade comercial arguida.
8. A segunda arguida, que actuou de livre e consciente vontade, procedeu, conforme descrito, sempre enquanto gerente da primeira arguida, em nome desta e segundo uma estratégia que havia delineado, enquanto gerente dessa pessoa colectiva, para atingir o que definiu ser de maior interesse patrimonial para a mesma sociedade comercial.
9. Sabia a segunda arguida das obrigações legais que recaíam sobre a primeira arguida, enquanto entidade empregadora e contribuinte fiscal e de Segurança Social, no que respeitava às contribuições sociais dos trabalhadores e dos gerentes dessa sociedade. Como sabia, a segunda arguida, que procedendo enquanto gerente da arguida à retenção do montante dessas contribuições e não o entregando às instituições da Segurança Social, para o destinar, como fez, em proveito da sociedade, agia de modo contrário ao direito e merecedor de censura penal.
10. Não obstante, conformando-se com as consequências penais que da respectiva conduta lhe pudesse advir, a segunda arguida, por si, e a primeira arguida, na pessoa daquela, não se coibiu da apropriação total daquelas contribuições sociais, reiterando, mês após mês, durante anos, esse propósito ilícito, favorecidas, entretanto, pela aparente inércia da entidade lesada, querendo e logrando obter, por esse meio, um proveito patrimonial indevido que, conforme apontado, totalizou € 35.484,35 em correspondência com o prejuízo assim causado à Segurança Social e que, até ao momento, ainda não foi, sequer, parcialmente reparado.
11. Com o intuito de reparar a entidade lesada, a arguida M, entretanto, procedeu ao pagamento dos montantes em dívida concernentes aos meses de Março, Setembro, Outubro e Novembro de 2000 (cfr. resulta do documento que antecede).
12. Correm seus termos no órgão executivo da Segurança Social vários processos executivos contra as aqui duas arguidas relativas ao período em causa nos presentes autos, ou seja, de Fevereiro de 1999, Abril e Agosto de 2000, Dezembro de 2000, Janeiro a Abril de 2001, Novembro de 2002, Janeiro e Fevereiro de 2003, Setembro a Dezembro de 2003, Janeiro e Fevereiro de 2004, Abril a Junho de 2004, Março a Maio, Julho e Agosto de 2003, Março de 2004, Junho a Setembro de 2007, Julho a Dezembro de 2004, Janeiro a Dezembro de 2005, Janeiro a Dezembro de 2006 e Janeiro a Maio de 2007 (v. certidões de fls. 534 a 553).
13. A arguida M confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe eram imputados.
14. É casada e mantém-se como gerente da firma arguida, auferindo cerca de € 500,00 euros mensais; reside em casa própria e recebe grande auxílio da sogra.
15. Desde, pelo menos, o ano de 2000 que a sociedade arguida atravessa uma situação financeira difícil, presentemente mais controlada e organizada.
16. A arguida M não tem antecedentes criminais.”.

*
Face às conclusões apresentadas, a única questão que importa apreciar é a de saber se a Segurança Social tinha ou não interesse processual para formular o pedido cível de condenação das arguidas no pagamento das quantias em dívida e juros vencidos e vincendos até integral pagamento, com base nos danos patrimoniais sofridos em virtude da ilícita conduta destas.
Vejamos então.
Estabelece o artº 71º CPP que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
É o chamado princípio da adesão obrigatória da acção civil ao processo penal que apenas sofre as excepções previstas na lei.
Da letra da lei resulta pois claro que o pedido de indemnização civil tem de ser fundado na prática de um crime.
Assim a acção civil que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização de perdas e danos emergentes do crime (artº 129º CP).
Como se refere no AcSTJ 96.11.09 CJSTJ 3/96, 187. “ ... se o pedido não é de indemnização de perdas e danos ocasionados pelo crime, se não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que com a prática do crime, causou, então o pedido é ilegalmente inadmissível no processo penal”.
Ora conforme se alcança da análise dos autos, os pedidos de indemnização formulados estribam-se no acto ilícito praticado pelas arguidas e que fundamentou a própria acusação, sendo os prejuízos sofridos aqueles que decorreram directamente da conduta ilícita dessas mesmas arguidas, constituindo esta a causa de pedir.
Como se escreveu no AcSTJ 93.03.31 BMJ 425, pág. 540., citando Guasp, em Derecho Procesal Civil, 1956, pág. 243, “ temos que a pretensão processual tem que se apresentar com um fundamento, que é a causa de pedir.
A causa de pedir não se refere às razões ou argumentos “ mas aos acontecimentos da vida em que se apoia”.
Funciona “ para delimitar de um modo exacto o troço concreto da realidade a que a pretensão se refere”.
Tomando como referência o silogismo judiciário, corresponde à premissa menor – caso concreto, sem referência à premissa maior.
Não basta, desde logo, que se proporcionem os dados que serviram para individualizar a pretensão dentro das categorias gerais jurídicas: teoria da individualização ou do facto jurídico; antes é preciso que se tragam todos aqueles elementos fácticos, históricos, que, efectivamente, jogam tal papel delimitador: teoria da substanciação ou do facto natural”.
Ora acontece que esses factos são exactamente os constantes da acusação, pelo que os prejuízos sofridos não poderão deixar de ser aqueles que decorrem directamente da conduta ilícita das arguidas, constituindo esta a verdadeira causa de pedir.
Daí que, considerando não se encontrar a presente situação enquadrada nas excepções ao princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ao processo penal respectivo (Cfr. artºs 71º e 72º CPP), se conclua que o tribunal comum é o competente para conhecer desse pedido, pois as arguidas praticaram o crime e foram por ele condenadas.
É certo que a demandante tem título executivo contra ambas, conforme resulta da matéria de facto provada, porém nunca tal facto lhe retiraria a possibilidade de poder instaurar acção declarativa, pois que a única penalização que a lei prevê para esses casos é a do artº 449º nº 2 c) CPC, isto é a do pagamento das custas.
É que como se escreveu no Ac. desta Relação de 07.06.13, Pº 11773/04.1TDLSB.C1, e onde foi relator o Exmº Juiz Desembargador Adjunto neste processo, Dr. Jorge Dias, “Conforme ensinava o Prof. Castro Mendes, in Direito Processual Civil, vol. II, pág. 187, edição da AAFDL 1978/79, o interesse processual ou interesse em agir não é no nosso direito pressuposto processual “a acção inútil pode ser considerada procedente, mas as custas e encargos desta acção serão pagas pelo autor”…..Em princípio, o autor além de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido, tem de invocar ainda achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela.
Mas não tem de ser necessariamente assim.
Assim que a existência de título executivo, ou título com igual valor (a lei tributária atribui força executiva aos títulos de cobrança das contribuições e impostos), não impede que se demande em acção declarativa, que o é o enxerto cível.”.
Daí que, considerando não se encontrar a presente situação enquadrada nas excepções ao princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ao processo penal respectivo (Cfr. artºs 71º e 72º CPP) e que o demandante tem o direito de lançar mão de todos os mecanismos processuais que a lei lhe permite com vista à cobrança do seu crédito, como é o de deduzir no respectivo processo crime o pedido cível, conclui-se que este tem claramente interesse em agir e, como tal, deveria o tribunal recorrido ter procedido à sua apreciação no segmento ora impugnado.


DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pela demandante, revogando-se a sentença recorrida quanto à matéria cível na parte em que foi impugnada, que deve ser substituída por outra que conheça do mérito do pedido de indemnização civil formulado pelo recorrente.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Coimbra, 29 de Setembro de 2010.

Esteves Marques (Relator)
Jorge Dias