Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1418/06.0TBCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1341, 1342, 1353 CPC.
Sumário: Com a partilha do património comum do casal não há transmissão de bens para cada um dos ex-cônjuges, mas apenas modificação do objecto do direito destes, pelo que a dívida resultante do empréstimo bancário contraído para aquisição de um dos bens não se vence em consequência de uma cláusula a prever o vencimento da dívida no caso de transmissão desse bem.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              Neste inventário partilha-se o património de um casal entretanto divorciado.

              Nele foi relacionado como bem comum um apartamento onerado por uma hipoteca a favor de um banco para garantia de um mútuo por este concedido ao casal para compra do apartamento.

              A 11/02/2009, o banco veio requerer a actualização do valor em dívida do apartamento e declarar não aceitar que no âmbito da partilha a responsabilidade pelo cumprimento das dívidas comuns do casal fique adstrita a um só dos cônjuges.

              Depois, convocado para a conferência de interessados, o banco fez, a 10/03/2009, exactamente a mesma declaração e requereu, nos termos do disposto no art. 1357º/1 do CPC, o pagamento imediato, por parte dos inte-ressados, das dívidas ao mesmo, determinando, se necessário fôr e para esse efeito, a venda judicial do bem imóvel e dos bens móveis relacionados.

              Depois de três suspensões e de um adiamento da conferência de interessados, a pedido destes, a conferência iniciou-se a 20/05/2010 e nela o interessado licitou o apartamento (verba 14) e depois ambos disseram, quanto ao passivo (verba 15), que fica aprovado, devendo no entanto ser solicitado ao banco o seu valor actualizado.

              Mais à frente, a interessada requereu que o banco fosse notificado para nos termos do disposto no nº. 1 do art. 1357º do CPC, informar se pretende exigir o pagamento imediato da divida hipotecária.

              Este requerimento teve a oposição do interessado.

              O Sr. juiz proferiu o seguinte despacho quanto a isto:
         Não se ordena a notificação nos termos do disposto no nº. 1 do art. 1357º do CPC, já que o banco foi devidamente citado para os presentes autos e devidamente notificado para a diligência de hoje, só não tendo comparecido por razões só a si imputáveis.

              Determinou-se, no entanto, que o banco fosse notificado para infor-mar os autos acerca do montante actual da dívida.

              Depois disso, numa outra sessão da conferência, o interessado de-clarou:
         não aprovar a dívida ao banco já que não aceita o valor dos juros e o valor dos encargos reclamado. Por outro lado e de acordo com as disposições legais em vigor bem como com as cláusulas constantes do contrato de empréstimo, não aceitou a posição do banco no tocante ao pagamento imediato do crédito, posição esta que é infundada e injustificada já que a divida não se encontra vencida; por fim, que, no tocante ao pedido em apreço, considera o mesmo intempestivo na medida em que devia o mesmo ser realiza-do até início da conferência de interessados, o que não aconteceu, e não durante a sua realização e sobretudo após o imóvel ter sido licitado pelo interessado, licitação esta que, de acordo com os mais elementares princípios que devem presidir o processo de inventá-rio, desvirtua, com a agravante de o interessado em data anterior ter solicitado junto do banco no sentido de ser autorizada a adjudi-cação do imóvel a seu favor, o que não foi deferido por razões ligadas aos fiadores conforme resulta dos contactos junto da agên-cia do banco [transcreve-se, com algumas alterações, para tornar com-preensível o sentido].

              A interessada subscreveu o requerimento apresentado pelo banco, salientando que a dívida se considera vencida nos termos do contrato de mútuo, logo que haja transmissão não autorizada do bem.

              O Sr. juiz determinou que os autos lhe fossem conclusos a fim de decidir das questões suscitadas.

              A 09/07/2010, o Sr. juiz proferiu o seguinte despacho:         

         Requerimento do banco:

         Antes do encerramento da conferência de interessados vem o banco requerer o pagamento imediato da dívida, requerendo, ainda, se necessário, a venda judicial do bem imóvel hipotecado e dos bens móveis relacionados.

         O interessado insurgiu-se, alegando inexistir incumprimento contratual e, portanto, não haver vencimento da dívida.

         Apreciando.

         Como bem ressalta Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. II, pg. 170, "Não estando vencidas, o credor não pode exigir o seu pagamento imediato (...)".

         Ora, analisado o requerimento apresentado não se descortina se a dívida de que é credor o banco está ou não vencida, pois do mesmo não consta a constatação/demonstração de qualquer incumprimento contratual.

         A fim de habilitar o tribunal a decidir acerca do requerido pelo banco, deverá este demonstrar nos autos o incumprimento contratual e o vencimento da dívida.

         Assim, notifique o banco para proceder em conformidade ou dizer o que tiver por oportuno.
         Notifique os interessados do presente despacho.

              A 22/10/2010, sem que nada tivesse sido junto ao processo (quer em papel quer electrónico), foi então proferido o seguinte despacho:
         O banco não deu a sua anuência à transmissão do imóvel antes, ao abrigo do disposto no art. 1357 do CPC, veio requerer a sua venda.
         Da acta de conferência de interessados resulta que o bem foi transmitido, pelo que face à clausula 12ª do contrato de mútuo, a dívida se considera vencida (transmissão não autorizada do bem).
         Face ao exposto, assiste razão ao banco, pelo que, atento o disposto no art. 1357/1 do CPC ordena-se o pagamento, em 10 dias, das quantias em dívida ao credor banco.
         No caso de o pagamento não ser possível ou as partes não acordarem forma de pagamento proceder-se-á de acordo com o disposto no art. 1357º/2 do CPC o que se decide.

              O interessado recorre deste despacho, a fim de ser substituído por outro que indefira o pedido de pagamento, considerando-se não vencida a dívida do banco, por entender que:
         O banco só solicitou o pagamento imediato da dívida antes da última sessão da conferência de interessados; o pedido realizado pelo banco à luz do disposto nos arts 1341º/2, 1342º/1 e 1353, do CPC, é extemporâneo, já que deveria o mesmo ser formulado no início da conferência de interessados, e não, como sucedeu, durante a sua realização, sob pena de se desvirtuar as regras e as normas que devem presidir o relacionamento processual das partes. A pretensão do pagamento antecipado, obrigava os interessados a tomar as providências adequadas, nomeadamente em termos de licitações. Ora, no caso em apreço e até à data em que o imóvel foi licitado pelo interessado, jamais o banco indicou sua pretensão no pagamento antecipado. O banco só após tomar conhecimento da licitação do imóvel pelo interessado e na sequência - diga-se de forma curiosa, da posição assumida pela agravada - veio indicar essa sua e isto sem que o contrato de empréstimo tivesse alguma prestação em mora…! Se o interessado soubesse da posição do banco, certamente não teria licitado… para quê licitar?
         O pedido é inadmissível, sendo assim ilegal, à luz das disposições insertas no art. 1357º/2 bem como nas cláusulas estabelecidas no contrato de mútuo. Pois que, o crédito do banco teria de estar vencido e teria de ter sido aprovado pelos interessados (ac. do STJ de 20/02/1970, publicado no BMJ 194, pág.177, e Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, volume II, pág. 170 quando refere que “não estando vencidos, o credor não pode exigir o seu pagamento imediato…”). Ora, nem o crédito foi aprovado por todos os interessados nem estava vencido. Não se vislumbra, conforme é referido no despacho recorrido, que a adjudicação do imóvel a favor do agravante constitua alguma das circunstâncias plasmadas na cláusula 12ª.

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                 *

              Questões que importa solucionar:

                                                                 *

              A 1ª série de argumentos do recurso é improcedente, logo a nível dos factos, por partir de pressupostos que não correspondem à realidade.

              Como resulta do relatório deste acórdão, o banco desde cedo pediu o pagamento imediato da dívida, isso mesmo antes da conferência para que foi convocado.

              Não tem pois razão o recorrente quando diz o contrário.

              Desconhecerá ele tal facto?

              Mesmo que assim fosse, não estaria já em tempo de arguir a nulidade decorrente da ausência da notificação de tal pretensão do banco, porque, depois da mesma ter sido deduzida, o recorrente já por diversas vezes esteve em juízo com possibilidade de consultar o processo em papel (e o requerimento do banco, de 11/02/2009, também consta do processo em papel – fls. 176). E o processo electrónico é de consulta possível a qualquer momento (sendo que os requerimentos do banco constam todos do processo electrónico).

                                                                 *

              Já quanto à segunda série de argumentos o recurso é procedente.

              Não pela parte que se refere à não aprovação da dívida, já que, de novo ao contrário do que diz o recorrente, ele aprovou a dívida, como resulta do relatório feito neste acórdão (veja-se a referência na sessão da conferência de 20/05/2010).

              Mas procede na parte em que diz que a dívida não estava vencida.

              O despacho judicial diz o contrário baseado no seguinte: a cláusula 12ª do contrato de mútuo prevê o vencimento da dívida caso se verifique a transmissão não autorizada do apartamento; o apartamento foi transmitido sem anuência do banco; logo, a dívida venceu-se.

              Mas a verdade é que não houve qualquer transmissão da dívida.

              Como lembra Esperança Pereira Mealha (Acordos conjugais para partilha dos bens comuns, Almedina, 2004, págs. 63/64):
         “É controversa a natureza do acto de partilha, entre declarati-va ou atributiva, mas a maioria dos autores opta por soluções que negam o carácter atributivo da partilha, considerando-a como acto modificativo.
         As duas posições a seguir enunciadas, elucidam bem o pensamento dominante sobre a matéria:
         Pereira Coelho entende tratar-se de um negócio certificativo, na medida em que se destina a tornar certa uma situação anterior, pois “o direito a bens determinados que existe depois da partilha é o mesmo direito a bens indeterminados que existia antes da partilha, apenas modificado no seu objecto”.
         Oliveira Ascensão, chamando a atenção para a ficção de considerar a partilha meramente declarativa, atribui-lhe carácter modificativo, porquanto transforma o direito não exclusivo sobre a totalidade da herança num direito exclusivo sobre elementos determinados, dando assim lugar a uma alteração do objecto e do conteúdo dos direitos preexistentes.”

              A autora em nota (150 a 152) cita apoiantes de um e de outro destes autores e não cita nenhuma doutrina no sentido de dar à partilha um carácter atributivo. Com a partilha não existe pois qualquer transmissão de direitos. Há apenas uma modificação no objecto do direito.

              No mesmo sentido, já ia há muito Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, Almedina, 1990,  págs. 522 a 528, de cujas citações resulta que, em Portugal, apenas dois autores, com estudos anteriores a 1982, defendiam o carácter atributivo//translativo/transmissivo da partilha. Note-se que, no caso de partilha de heranças, de que trata Lopes Cardoso naquelas páginas, há algo mais: há a transmissão de bens do de cujus para os herdeiros. Aquilo que interessa para o caso destes autos é, no entanto, só a natureza da partilha dos bens subsequente a essa transmissão. A partilha dos bens entre os herdeiros. No caso, entre os ex-cônjuges.

              Assim, como o apartamento não foi transmitido, não se punha a questão da necessidade da autorização do banco, nem a do preenchimento da previsão da clª 12ª do contrato de empréstimo. Pelo que a dívida não estava vencida. Logo, o banco não podia exigir o pagamento da mesma.

                                                                 *
              Atendendo à substância das coisas, aos interesses subjacentes, a conclusão a que se chegou prejudica, de algum modo, o banco? É evidente que não.

                   E isso porque o banco é um terceiro em relação à partilha. Como se diz no ac. do TRL de 01/06/2010 (2104/09.5TBVFX-A.L1-7 da base de dados do ITIJ) “estas normas [arts. 1689 e 1697 do CC] regulam simplesmente as relações patrimoniais entre os cônjuges, em nada prejudicando as relações dos cônjuges perante terceiros, mantendo estes, apesar do divórcio, da partilha ou das compensações a que houver lugar, os mesmos direitos que antes detinham, podendo, de acordo com o regime das dívidas, responsabilizar ambos ou apenas algum deles, nos termos dos arts. 1691º e segs. do CC.”

              Assim, no que ao banco respeita, a sua posição com a partilha não se altera: continua a ser parte numa relação na qual existem, na outra parte, os mesmos dois devedores que lá estavam antes da partilha. Para que passasse a existir apenas um devedor teria, aí sim, de haver anuência do banco (art. 595 do Código Civil). Daí a declaração que o mesmo fez – para evitar isso, e essa sim pertence à normalidade das coisas - de que não aceitava que a responsabilidade pelo cumprimento das dívidas comuns do casal ficasse adstrita a um só dos cônjuges.

                                                                 *

              Sumário:

              Com a partilha do património comum do casal não há transmissão de bens para cada um dos ex-cônjuges, mas apenas modificação do objecto do direito destes, pelo que a dívida resultante do empréstimo bancário contraído para aquisição de um dos bens não se vence em consequência de uma cláusula a prever o vencimento da dívida no caso de transmissão desse bem.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, porque a dívida não está vencida, substitui-se a sentença recorrida por esta outra que indefere o pedido do Banco ..., SA, de pagamento imediato da mesma.

              Custas pelo banco.

             


Pedro Martins ( Relator )
Virgílio Mateus
António Carvalho Martins