Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | CRISTINA PÊGO BRANCO | ||
| Descritores: | LEGITIMIDADE PARA A CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE CONCEITO DE OFENDIDO CRIME DE FRAUDE SOBRE MERCADORIAS CRIME CONTRA A GENUINIDADE QUALIDADE OU COMPOSIÇÃO DE GÉNEROS ALIMENTÍCIOS E ADITIVOS ALIMENTARES EX-COLABORADOR DA EMPRESA ARGUIDA CLIENTE DA EMPRESA ARGUIDA | ||
| Data do Acordão: | 12/10/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 1 | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGO 68.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGOS 23.º, N.º 1, ALÍNEA B), 24.º, N.º 1, ALÍNEA B), E 43.º DO DL N.º 28/84, DE 20 DE JANEIRO | ||
| Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA 1/2003 | ||
| Sumário: | I - É ofendido para efeitos de constituição de assistente somente o titular do interesse que a lei penal teve especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção em causa, e que esta ofendeu ou pôs em perigo.
II - A legitimidade para a constituição de assistente tem de ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, analisando qual o bem, ou bens, jurídico que constitui o objecto imediato da incriminação. III - O bem jurídico protegido pelo crime de fraude sobre mercadorias é a confiança dos operadores económicos na genuinidade e autenticidade dos produtos e, reflexamente, o interesse patrimonial do adquirente ou do consumidor. IV - O crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares é, também, um crime contra a economia, não contra a saúde pública, em que o bem jurídico que lhe subjaz aponta para a confiança da colectividade na lisura do tráfico jurídico, concretamente na autenticidade e genuinidade dos produtos. V - Não tem legitimidade para se constituir assistente uma ex-colaboradora da empresa arguida que, devido aos factos por si participados que deram origem ao processo, denunciou o seu contrato de trabalho. VI - A tutela das relações laborais é absolutamente alheia à esfera de protecção das normas cuja violação é imputada aos arguidos. VII - A circunstância de esta ex-colaboradora alegar ser, também, lesada por ter adquirido produtos adulterados à arguida não lhe confere legitimidade para ser constituída assistente. | ||
| Decisão Texto Integral: | Relator: Cristina Pêgo Branco Adjuntos: Alexandra Guiné Sara Reis Marques
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. Nos autos com o n.º 1073/22.0T9LRA, findo o inquérito, …, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, por entender não se terem recolhido indícios suficientes da verificação de crime. 2. A denunciante…, requereu a sua constituição como assistente nos autos e a subsequente abertura da instrução, … 3. Por despacho com a Ref. Citius 107448419, o Senhor Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 1 não admitiu a requerida constituição como assistente e rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução. 4. Inconformada com essa decisão, interpôs a denunciante o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): 5. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta … 6. Também os arguidos responderam ao recurso, … 7. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer (… 8. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta. 9. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso … In casu, de acordo com essas conclusões, e apesar da imprecisão com que a recorrente inicia a sua peça recursória e de não indicar concretamente qual a norma jurídica violada[1], é evidente qual o despacho recorrido e que a única questão suscitada é a de saber se a recorrente tem legitimidade para se constituir assistente nos autos, e, consequentemente, para requerer a abertura da instrução. * 2. Da decisão recorrida É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição): * 3. Da análise dos fundamentos do recurso Conforme acima referimos, a única questão que nos autos se coloca é a de saber se a ora recorrente tem legitimidade para se constituir assistente nos autos, já que foi com fundamento na resposta negativa a essa questão, e no mesmo despacho, que o Tribunal decidiu ser de rejeitar a abertura da instrução por aquela requerida, por inadmissibilidade legal. …
Estabelece o art. 68.º, n.º 1, do CPP: «1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos; b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento; c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime; d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime; e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.»
Sendo evidente que a recorrente não se enquadra em nenhuma das citadas als. b) a e), importa apenas verificar se pode considerar-se abrangida pela previsão do al. a) do preceito. Estando em causa, de acordo com a qualificação jurídico-penal dos factos que a ora recorrente avançava no seu requerimento para abertura da instrução (doravante, RAI), ilícitos previstos em legislação especial, concretamente um crime de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo art. 23.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 28/84, de 20-01, e um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo art. 24.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma, haverá ainda que ter em conta o preceituado no seu art. 43.º, segundo o qual «Qualquer pessoa singular ou colectiva, pode intervir como assistente em processos instaurados por crimes previstos neste diploma, desde que tenha sido lesada pelo facto.»
Relativamente à extensão do conceito de “ofendido” ínsito na previsão legal da al. a) do n.º 1 do art. 68.º do CPP, a jurisprudência tem adoptado uma visão restritiva, segundo a qual não é ofendido para este efeito qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime, entendimento que se mostra expresso no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 1/2003, de 16-01[2], no qual se lê que «(…) deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, da alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do CPP, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.» Como explica o Senhor Conselheiro Henriques Gaspar[3], «Perante vários possíveis interesses legítimos que sejam postos em causa pela prática de uma infracção criminal, a lei reserva o conceito de «ofendido» para o titular dos interesses «especialmente» protegidos, com o sentido de interesses directa, imediata ou particularmente protegidos pelo tipo legal incriminador, ou seja, dos direitos ou interesses que constituem a razão directa e imediata, situada em primeira linha, que fundamenta a infracção criminal. O interesse que permite assumir a qualidade de ofendido tem de ser um (ou um dos) interesses «especialmente» protegidos com a incriminação. A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime concreto que estiver em causa, e a delimitação do conceito relevante de «ofendido» encontrar-se-á pela interpretação do tipo de crime, que permitirá determinar caso a caso se existe uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a verificação da natureza pública ou não pública do crime.»
São, pois, apenas os ofendidos que sejam os titulares dos interesses que a lei penal teve especialmente por fim proteger, quando previu e puniu a infracção, e que esta ofendeu ou pôs em perigo, que têm legitimidade substantiva para se constituírem como assistentes. E essa legitimidade terá de ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, analisando qual o bem jurídico (ou bens jurídicos, no caso dos crimes pluriofensivos) que constitui o objecto imediato da incriminação.
No caso do crime de fraude sobre mercadorias (art. 23.º do DL n.º 28/84, de 20-01), o bem jurídico protegido é a confiança dos operadores económicos na genuinidade e autenticidade dos produtos, e reflexamente, o interesse patrimonial do adquirente ou do consumidor[4]. Trata-se de um crime de perigo abstracto, que se consuma independentemente de qualquer resultado lesivo do bem jurídico. O crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares (art. 24.º do mencionado diploma) é também um crime contra a economia e não contra a saúde pública, em que o bem jurídico que lhe subjaz aponta para a confiança da colectividade na lisura do tráfico jurídico, concretamente na autenticidade e genuinidade dos produtos.
Ora, nem no requerimento de constituição de assistente, que encabeçava o seu RAI, nem no articulado deste último, a ora recorrente alegava ser titular do interesse que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, sequer de forma mediata ou reflexa, limitando-se a invocar que a descoberta dos factos denunciados e a atitude que perante eles optou por assumir, contribuíram para a sua decisão de denunciar o seu contrato de trabalho. Sendo certo que a tutela das relações laborais é absolutamente alheia à esfera de protecção das normas cuja violação pretende que seja imputada aos arguidos, não vemos como possa afirmar-se que, naquela invocada dimensão, a denunciante deve considerar-se lesada pela descrita conduta daqueles. Por outro lado, a consulta integral do processo permite verificar que a alegação “adicional” de que a recorrente tem a qualidade de lesada por ser ela própria consumidora dos ovos em causa («ao adquirir produtos adulterados da empresa Arguida») nunca antes fora trazida aos autos em qualquer das peças processuais apresentadas pela ora recorrente, surgindo ex novo na motivação de recurso. É, pois, correcta a conclusão vertida no despacho recorrido, de que, perante a concreta conformação dos autos, a denunciante «não é lesada. E não é lesada porque não há a mínima alegação que corresponda ao tipo social inerente às normas incriminadoras referidas: v.g. consumidora».
E se assim é, não tendo a denunciante a qualidade de ofendida, nos termos do art. 68.º n.º 1, al. a), do CPP, nem a de lesada, da previsão especial do art. 43.º do DL n.º 28/84, de 20-01, carece de legitimidade para se constituir assistente nos autos, e, consequentemente para, ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, neles requerer a abertura da instrução, tal como foi decidido. Improcede, pois, o recurso interposto, sendo de manter a decisão recorrida. * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela denunciante, …, confirmando a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC. * * Coimbra, 10 de Dezembro de 2025
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