Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
387/10.7PBAMD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CRIME DOLOSO
CRIME NEGLIGENTE
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º. JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14.º, 15.º, DO CP; ARTIGOS 358.º E 379.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CPP
Sumário: I - A transposição, na sentença, de um crime doloso para um crime negligente importará sempre alteração factual (não mera redução), porque não são coincidentes os factos que traduzem o elemento subjectivo da infracção penal casuisticamente aplicável.

II - A questão primeira é, pois, a de alteração dos factos que conduz, por sua vez, à modificação da qualificação jurídica.

III - Consequentemente, a falta de comunicação da alteração, quer dos factos quer da qualificação jurídica, nos termos do artigo 358.º do CPP, determina a nulidade da sentença, conforme prevê o artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do mesmo compêndio legislativo.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum singular nº 387/10.7PBAMD do 2º Juízo do Tribunal Judicial do Fundão o arguido A…, identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado da prática de um crime de receptação p. e p. pelo artigo 231º, nº 1 do Código Penal.

Realizado o julgamento, em 6 de Janeiro de 2012 foi proferia sentença com o seguinte dispositivo:

Assim, em face do exposto, de facto e de direito, decide-se julgar a acusação do Ministério Público procedente por provada e, em consequência:

- Condena-se o arguido A…  pela prática de um crime de receptação, previsto e punido pelo art.º 231º nº 2 do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), o que perfaz a multa de €300 (trezentos euros).

Custas:

Vai ainda o arguido condenado nas custas do processo, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça (cfr. art.º 513º do Código de Processo Penal e art.º 8º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais e tabela anexa ao mesmo), bem como nas demais custas do processo, nos termos do disposto no art.º 514º do Código de Processo Penal.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:

­1ª A douta sentença recorrida padece de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, atenta a insuficiência da matéria de facto para fundar a condenação pelo crime previsto e punido pelo artigo 231°, nº 2 do Código Penal;

2ª A acção típica do crime negligente (231°. nº2, Código Penal) preenche-se pela aquisição a qualquer título da coisa que pela sua qualidade ou pela condição de quem oferece ou pelo montante preço proposto faz razoavelmente supor que provem de facto ilícito;

3ª Tais elementos típicos são taxativamente descritos na lei e outros factores que não estão não preenchem o tipo;

4ª O carácter suspeito da coisa resulta da conjugação dos três apontados elementos: qualidade da coisa/condição de quem oferece; qualidade da coisa/preço proposto; condição de quem oferece/montante de preço proposto;

5ª A única circunstância dada como provada na douta sentença é a de que o arguido sabia que o valor da coisa era muito inferior ao seu valor real, circunstância que, per si, sem ser conjugada com a qualidade da coisa não preenche o tipo legal:

6ª A matéria de facto dada como provada não permite fundar a decisão de direito proferida;

7ª O artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal impõe a análise crítica da prova produzida, esclarecendo quais os meios de prova que serviram para formar a convicção do Tribunal;

8ª A douta fundamentação da sentença recorrida é deficiente e insuficiente, desde logo no que concerne ao exame crítico das provas e ao processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção;

9ª O arguido e todas as testemunhas afirmaram, como é dito na sentença, que o arguido, ora recorrente, não sabia da proveniência ilícita do LED em causa;

10ª A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é voluntarista nem uma previsão com base na probabilidade mas sim a conformação intelectual do conhecimento do facto com a verdade alcançada nos autos:

11ª Ainda que assim se não entenda, o Tribunal "a quo" não acatou o disposto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.

12ª A sentença recorrida, para além dos factos constantes da douta acusação, deu como provados outros que dela não constavam e que não foram alegados pela defesa;

13ª De igual modo o Tribunal "a quo" alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pois que nessa era imputado ao arguido a prática do crime previsto no artigo 231º, nº 1 do Código Penal e na sentença proferida foi o arguido condenado pelo nº 2 do mesmo artigo;

14ª As mencionadas alterações de factos e de qualificação jurídica não foram comunicadas ao arguido – o que importa a nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 379°, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal:

15ª Sem conceder, dir-se-á que a douta sentença recorrida faz uma errada apreciação da prova ao dar como provados os factos contidos nos pontos 3 e 4 da tábua dos factos assentes;

16ª O Tribunal deu como provados tais factos mesmo sabendo que as testemunhas da GNR do NIC do Fundão referiram que o arguido desconhecia que o LCD era furtado;

17ª O arguido e as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento negaram todos os conhecimentos da proveniência ilícita por parte do arguido-recorrente;

18ª A testemunha Cabo B...(gravação 14:46 a 15:12) disse que "O  A... não sabia de onde era o LCD" e "Não sabia "que era roubado;

19ª O cabo F... perguntado se o  A... sabia que o LCD era furtado respondeu que "Eu acho que quase de certeza lhe fizemos a pergunta e ele disse que não tinha conhecimento de que era furtado" perguntado se o arguido sabia que era roubado respondeu que "Não tinha conhecimento." gravação 15:10:37 a 15:38:00);

20ª Da audição do suporte digital de todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento ter­-se-á de concluir pela total ausência da referência a este conhecimento;

21ª Face à total ausência de prova e, até mesmo à prova do seu contrário, isto é, que o arguido não conhecia a proveniência ilícita do LCD - necessário se toma concluir pela incorrecta aplicação do artigo 127° do Código de Processo Penal;

22ª Impondo-se a absolvição do arguido quer do crime imputado na douta acusação pública quer no crime pelo qual veio a ser doutamente condenado;

23ª A douta sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 127°, 231° do Código Penal, 410°, n.º 2, 374°, nº 2, 358° e 379°, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogada.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao recurso, absolvendo-se o recorrente, fazendo-se deste modo JUSTIÇA.

 

Notificado, contra-motivou o Ministério Público na 1ª Instância, extraindo as seguintes conclusões:

1. O tribunal a quo apesar de ter dado como provados factos (segmentos dos pontos 3. e 4.) que podiam e deviam levar à condenação do arguido pela prática do crime de receptação dolosa, não os tomou em consideração na parte decisória;

2. O que foi bem explanado na motivação, onde apresenta de forma clara e inequívoca o percurso do seu pensamento, não deixando margem para dúvidas que o arguido agiu de forma negligente, e por isso, aqueles segmentos, apesar de contraditórios com a decisão proferida, são um mero lapso, que não influi na verdade material e na decisão, não existindo assim, a necessária relevância que deve existir no vício, nem existindo a apontada nulidade;

3. Sendo o arguido beneficiado e não prejudicado, pois que viu a sua condenação ser inscrita no nº2 do art. 231º do Código Penal e não pelo nº 1 do mesmo preceito legal;

4. O crime em questão é o mesmo, pelo que não existe nenhuma alteração substancial dos factos, de acordo com o disposto nos art. 359º e 1º, alínea f), ambos do Código de Processo Penal;

5. Mas também não existe nenhuma alteração não substancial de acordo com o art. 358º do Código de Processo Penal, pois que não existem factos novos. O que o tribunal entendeu é que não havia factos suficientemente fortes e válidos para se considerar um comportamento doloso, mas entendeu também, que os mesmos factos já eram bastantes para afirmar a existência de um comportamento negligente.

6. Quanto à impugnação da matéria de facto, a mesma não apresenta relevância uma vez que apenas incide no crime doloso, quando o arguido foi condenado pelo crime negligente.

7. Não foram violados os apontados preceitos legais nem outros.

Tendo em conta o âmbito do presente recurso, não está vedado a esse Venerando Tribunal o conhecimento de direito e de facto, pelo que, em abono da justiça material, deverá ser expurgado os segmentos da matéria de facto dados como provados e antes apontados, mantendo-se a condenação do arguido a título negligente, como o foi, assim se fazendo JUSTIÇA.

Nesta Instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável de fundamentação e de nulidade por incumprimento do disposto no artigo 358º, nº 3 do Código de Processo Penal.

            Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.

            Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Fundamentos da Decisão Recorrida

A sentença recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

Factos provados

Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. Na noite de 20 para 21 de Fevereiro de 2010, o C... nascido a 11 de Junho de 1994 e D..., nascido a 03 de Novembro de 1994, ambos residentes na localidade de (...), partiram o vidro da porta da residência sita junto à estação da CP daquela mesma localidade, propriedade de E... , e após rebentaram com cadeado que prendia uma tranca de ferro, e entraram dentro da mesma.

2. De dentro daquela casa retiraram e trouxeram com eles o aparelho de televisão LCD de marca MITSAI, HDMI, com o número de série 6492815900207, com o respectivo comando, um cabo SCART e uma extensão eléctrica de cor preta.

3. Dias depois, naquela localidade do (...), o arguido encontrou-se os seus amigos C... e D..., os quais lhe propuseram a venda do LCD antes mencionado, tendo-lhe dito que a haviam retirado da casa mencionada em 1.

4. Mesmo sabendo da proveniência do LCD, o arguido combinou comprá-lo pelo valor de €50, que sabia ser muito inferior ao valor real.

5. No dia 10 de Março de 2010, foi apreendido ao arguido na Rua (...), os objectos mencionados em 2.

6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de fazer seus aqueles objectos, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência.

7. Sabia o arguido que o seu comportamento lhe era proibido e punido por lei penal.

8. O arguido já foi condenado, conforme resulta do seu CRC de fls 130 a 131, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, neste juízo em 09 de Junho de 2011, pela prática em 11 de Março de 2011, de um crime de furto qualificado, na pena de um ano e quatro meses de prisão suspensa por igual período.

Mais se provou que:

9. O arguido é amigo de infância de D..., C...e G..., formando os quatro dois grupos, formando os dois primeiros um grupo e segundos outro grupo.

10. O arguido frequentava a casa do D... nunca tendo aí visto o LCD.

11. O arguido efectua biscates de construção civil, auferindo quantia não concretamente apurada mas não inferior a €500.

12. O arguido vive em casa arrendada com a namorada que trabalha num café, pagando mensalmente a título de renda a importância de €250.


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Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a boa decisão da causa.

Motivação

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como, da que consta dos autos, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal.

Assim, o tribunal atendeu ao teor do auto de apreensão de fls 18 a 19; ao relatório de inspecção lofoscópica, de fls 23; ao relatório de recolha de vestígios biológicos de fls 25 e fotografias de fls 26 a 37; às certidões dos assentos de nascimento de fls 53 a 55; ao auto de exame e avaliação de objectos de fls 59 e à certidão de fls 137 a 178, junta em sede de audiência de julgamento, a requerimento do Ministério Público e, reportada à condenação do arguido.

Conjugadamente com os aludidos elementos documentais, atendeu ainda o tribunal ao depoimento das testemunhas B... e F..., ambos cabos da GNR do NIC do Fundão, que no âmbito das suas funções procederam à investigação do furto ocorrido na noite de 20 para 21 de Fevereiro de 2010, da residência sita junto à estação da CP de (...), propriedade de E..., de onde retiraram o aparelho de televisão LCD de marca MITSAI, HDMI, com o número de série 6492815900207, com o respectivo comando, um cabo SCART e uma extensão eléctrica de cor preta.

Mais referiram tais testemunhas, que na sequência das diligências de investigação do referido furto acabaram por descobrir o LCD que havia sido furtado na posse do arguido.

Por seu turno, o arguido prestou declarações negando conhecer que o LCD, respectivo comando e cabo scart que lhe foram apresentados pelo D... tivessem sido por este e pelo C...furtados da casa existente junto à estação da CP, e, (...).

Segundo referiu, o D... propôs-lhe a compra do LCD pelo valor de €50,00, que não lhe chegou a entregar, sendo que, desconhecia e, nem sequer desconfiou que o mesmo tivesse sido furtado, porquanto e alegadamente o D... “vivia bem”, “tinha tudo” e “não tinha necessidade disso”.

No entanto, posteriormente referiu que frequentava a casa do D... e do irmão deste, G..., dos quais era amigo de infância, não tendo aí visto o LCD.

Acrescentou, ainda, que também não desconfiou da proveniência do LCD por o D... e o irmão G... venderem habitualmente telemóveis e jogos de playstation.

Não nos acreditamos, contudo na versão aqui apresentada pelo arguido.

Senão vejamos.

É certo que nenhuma das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento presenciou os factos aqui em causa, como é igualmente certo que os cabos da GNR do NIC do Fundão, B... e F..., referiram que o arguido desconhecia que o LCD tinha sido furtado pelo D... e pelo C..., por este lho ter dito.

Ora, salvo melhor entendimento, não é por causa disso que o tribunal terá logo que concluir no sentido de que efectivamente o arguido não sabia da proveniência do LCD, pois que, por um lado, não é crível que dissesse aos GNR’s que sabia efectivamente a origem daquele aparelho e, por outro lado, existe todo um conjunto de factos que foram trazidos para os autos que têm que ser necessariamente articulados e conjugados de forma a formar-se uma conclusão firme quanto à imputação dos mesmos ao arguido.

E, no caso concreto, não temos dúvidas de que, de facto, o arguido sabia e necessariamente tinha que ter conhecimento da proveniência do LCD, designadamente que o mesmo tinha sido furtado da casa junto à estação da CP de (...) pelo D... e C....

Isto porque.

Em primeiro lugar, o arguido conforme ele próprio referiu e se deu como provado, era amigo de infância do D... e do C..., bem como do irmão daquele G..., sendo que os quatro formavam dois grupos, um composto pelos referidos D... e C... e outro constituído pelo arguido e pelo irmão do D..., o G....

Na sequência dessa amizade, o arguido frequentava a casa do D... e, conforme expressamente referiu nunca lá tinha visto o LCD cuja venda este lhe ofereceu.

O D... e o C... furtaram o LCD em causa na noite de 20 para 21 de Fevereiro de 2010, enquanto que o arguido e o G... foram condenados por sentença já transitada em julgado (certidão de fls 158 a 178 à qual se fez supra referência) por um crime de furto praticado em 04 de Março de 2010.

O LCD foi entregue pelo arguido à GNR em 10 de Março de 2012.

Sendo o arguido e os restantes jovens amigos, não nos parece crível que todos eles, entre si, comentassem os furtos que haviam feito, tanto mais que, conforme o arguido referiu só praticou o furto a que fizemos alusão pelo espírito de aventura, pela adrenalina que isso lhe dava.

Ora, sendo esse o espírito – de aventura – era mais do que evidente que os amigos, entre si, conforme resulta aliás das regras da experiência comum, comentassem/partilhassem essas aventuras.

Depois, como se disse, segundo o que referiu o arguido o D... nem sequer desconfiou que o LCD tivesse sido furtado, porquanto e alegadamente o D... “vivia bem”, “tinha tudo” e “não tinha necessidade disso”.

Em nosso entendimento, essa constituiria mais uma razão para o arguido – pressupondo que não sabia, como ele disse, da proveniência do LCD – desconfiar da proveniência do electrodoméstico. Se o amigo vivia bem, porque motivo estaria a vender um LCD? Para que queria o dinheiro se não precisava disso? Tanto mais que, nunca tinha visto o LCD em casa do D...?

O normal, seria ter o arguido perguntado ao D... de onde vinha aquele aparelho e porque é que lho queria vender e, não como fez, não perguntar nada, como ele disse. Temos para nós, como profunda convicção que só não procedeu desse modo porque bem sabia que o mesmo tinha sido furtado pelos amigos do interior da casa existente junto à estação da CP de (...).

Depois, justificar-se que nada desconfiou porque era usual o D... vender telemóveis e jogos de playstation, não é justificação, sequer justificação plausível, uma vez que, admite-se que os jovens entre si vendam DVD’s de jogos, música e filmes.

No entanto, no caso concreto estamos a falar de um LCD, um electrodoméstico que pela sua própria natureza deveria por si ter desde logo suscitado a dúvida no arguido – pressupondo, mais uma vez que desconhecesse a proveniência do aparelho.

Não podemos ainda olvidar que estavam em causa jovens de 16 anos – conforme resulta do teor dos assentos de nascimento a que supra se fez referência – que provavelmente em razão da idade nem sequer trabalhavam, o que mais uma vez aponta para o facto de não ser crível que o arguido não tivesse desconfiado da origem do LCD.

Acresce ainda que, a convicção do tribunal quanto aos apontados factos saiu reforçada com o depoimento da testemunha C..., que confirmou ter furtado o LCD em causa juntamente com o D..., tendo este lhe dito que iria entregá-lo ao arguido sem lhe dizer que o mesmo era furtado.

Mais referiu que, desconhecia por quanto é que o LCD ia ser vendido, pese embora o produto da venda fosse para dividir entre os dois.

Ora, o depoimento da apontada testemunha para além de se ter afigurado parcial e titubeante, é igualmente incoerente e descabido, porquanto, não se compreende que tivesse mais interesse em saber que nada foi dito ao arguido acerca da proveniência do LCD e, não se lhe tivesse dito qual o valor da venda, tanto mais que, como se disse, o resultado da mesma era para dividir. Seria mais normal e justificável que tivesse antes procurado saber qual o lucro que histeria para si, do que saber se o D... contou ou não ao arguido onde é que tinha ido buscar o LCD.

De todo este conjunto de factos, sai efectivamente reforçada a ideia de que o arguido deveria ter, pelo menos, desconfiado da proveniência daquele aparelho e, deveria ter indagado tal facto, recusando-se a receber o aparelho, o que não sucedeu pelas razões supra apontadas.

Quanto às condições económicas, sociais e pessoais do arguido, na falta de outros meios de prova o tribunal atendeu às declarações prestadas pelo arguido.

Por fim, quanto aos antecedentes criminais do arguido, levou-se em consideração o teor do seu CRC de fls 130 a 131.


***

III. Apreciação do Recurso.

Tendo sido documentadas em acta as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento, este Tribunal, em princípio, conhece de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sempre sem embargo de questões do conhecimento oficioso, as questões a apreciar serão as seguintes, alinhadas por ordem de precedência:
- Se a sentença recorrida viola o disposto no artigo 374º, nº 2 do Código Penal, sendo deficiente e insuficiente no que respeita ao exame crítico das provas e ao processo que subjaz à formação da convicção;
- Se a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, sendo nula;
- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo esta ser alterada e o arguido absolvido;
- Se a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Apreciando:
Alega o recorrente que a sentença é nula porque é deficiente e insuficiente quanto à análise crítica da prova e ao processo que subjaz à formação da sua convicção, violando o disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, o que afinal se reconduz à alegação da nulidade da sentença prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

O artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, versando sobre os requisitos da sentença, preceitua que "ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".

Analisada a sentença recorrida, não se detecta qualquer insuficiência na exposição dos motivos que determinaram a convicção do Tribunal e até se pode considerar prolixa na análise critica da prova segundo as regras da experiência.

Nota-se, com efeito, alguma deficiência que extravasa, porém, o aspecto focado, uma vez que se afirmam e justificam duas convicções distintas sobre a subjectividade da conduta, o que não integra o vício em causa mas outro como adiante se abordará.

Alega o recorrente que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 358º e 359º do Código Penal porque alterou a qualificação jurídica dos factos, condenando o arguido por crime do nº 2 do artigo 231º do Código Penal, quando se encontrava acusado do crime do nº 1 do mesmo artigo.
Violação simultânea dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal não cremos que seja possível porque se referem a diferentes realidades com campos de aplicação distintos.
Preceitua o artigo 358.º do Código de Processo Penal relativo à alteração não substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia, o seguinte:
1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3. O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Já o artigo 359º do mesmo diploma reporta-se à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo esta definida no artigo 1º, alínea f), também do mesmo diploma, como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Liminarmente se poderá afastar a existência de uma alteração substancial, posto que o que está em causa nos autos é a imputação do mesmo crime, não na forma dolosa que constava da acusação, mas na sua forma negligente e a alteração teve por efeito, não agravação, mas diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis.
Restringe-se, pois, a questão a saber se ocorre alteração não substancial dos factos/alteração da qualificação jurídica.
O que está subjacente ao regime de alteração dos factos no processo penal (e da qualificação jurídica) é a própria estrutura acusatória do processo que deve ter o seu objecto balizado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. Tal significa que a acusação (ou a pronúncia, tendo havido instrução) define e delimita o objecto do processo, fixando o thema decidendum.
No entanto, como refere Germano Marques da Silva, "por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo" (cfr. Curso de Processo Penal, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273).
Tem sido, pela jurisprudência considerado que não existe alteração dos factos nos termos previstos no artigo 358º, quando a factualidade dada como provada na sentença condenatória consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou da pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos (cf. Ac. Tribunal Constitucional n.º 330/97).
O mesmo sucede quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes – Acs. STJ de 3.4.1991, 11.11.1992 e 16.10.1995 in BMJ 406/287, 421/309, www.dgsi.pt.
Também tal não ocorrerá quando se tratar de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a acção do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação ou na pronúncia – Ac. TC n.º 387/2005.
Também não se poderá falar de alteração dos factos com relevo para a decisão, quando a decisão condenatória se sustenta «exclusivamente nos factos constantes da acusação e da contestação e o recorrente não foi surpreendido com os factos, dadas as considerações que precedem. (cf. o AC. STJ Acórdão de 23.6.2005, C.J. 184, Tomo II, 2005).
A transposição de um crime doloso para um crime negligente importará sempre alguma alteração factual (não mera redução) porque não são coincidentes os factos que traduzem o elemento subjectivo da infracção e isso mesmo resulta da análise da sentença recorrida onde se acrescenta precisamente factualidade nova que traduz a conduta negligente que é imputada ao arguido.
A questão primária é, pois, a de alteração dos factos que conduziu por sua vez a alteração da qualificação jurídica, porque a imputação a diferente título de culpa também constitui ela uma alteração da qualificação jurídica.
E note-se que a afectação do direito de defesa existe pese embora a diminuição da responsabilidade em função da acusação (como é o caso, em abstracto, da decisão de condenação por negligência em relação à acusação por dolo). O certo é que mesmo essa decisão pode consubstanciar uma "decisão surpresa" se, no caso, essa possibilidade nunca foi colocada. E daí poder permitir uma forma de defesa também ela diferenciada.
Ora, sendo isso o que ocorreu nos autos, a consequência da falta de comunicação da alteração nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal consiste na nulidade da sentença tal como se prevê no artigo 379º nº 1 alínea b) do Código de Processo Penal.
O Tribunal deve pois, comunicar previamente ao arguido essa alteração, dar-lhe oportunidade de se defender e então, em função disso, proferir sentença.
A procedência desta vertente do recurso torna imediatamente inútil o conhecimento das restantes questões, na medida em que poderá decorrer uma alteração da decisão, por via do agora decidido.

Não obstante, e na sequência do exposto aquando do conhecimento da primeira nulidade elencada nas questões a decidir, importa referir o seguinte de modo a que a nova sentença a proferir não padeça do mesmo vício.
Na descrição dos factos provados o Tribunal a quo, para além de ter dado como provado que "Mesmo sabendo da proveniência do LCD, o arguido combinou comprá-lo pelo valor de €50, que sabia ser muito inferior ao valor real." deu também como provado que "O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de fazer seus aqueles objectos, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência".
Estes factos são manifestamente contraditórios porque ou o arguido sabia da proveniência ilícita do objecto ou não sabia e, nesse caso, então não se assegurou da sua legítima proveniência.
Mas também na motivação da sua convicção o Tribunal a quo entra em contradição porque simultaneamente afirma que se convenceu que o arguido sabia da proveniência ilícita dos objectos e, por outro lado, afirma que o arguido devia ter desconfiado dessa proveniência ilícita, como ilustram os seguintes trechos:
E, no caso concreto, não temos dúvidas de que, de facto, o arguido sabia e necessariamente tinha que ter conhecimento da proveniência do LCD, designadamente que o mesmo tinha sido furtado da casa junto à estação da CP de (...) pelo D... e C....

Temos para nós, como profunda convicção que só não procedeu desse modo porque bem sabia que o mesmo tinha sido furtado pelos amigos do interior da casa existente junto à estação da CP de (...).

De todo este conjunto de factos, sai efectivamente reforçada a ideia de que o arguido deveria ter, pelo menos, desconfiado da proveniência daquele aparelho e, deveria ter indagado tal facto, recusando-se a receber o aparelho, o que não sucedeu pelas razões supra apontadas.
São patentes contradições (eventualmente a constante da motivação querendo o Tribunal referir-se a uma convicção apenas íntima em contraponto com uma convicção alicerçada nos princípios do processo penal, mas mal se entende que seja essa a raiz da deficiência até porque a primeira não deve ser motivada) possivelmente vencíveis, porque afinal o Tribunal a quo condenou o arguido por crime de receptação negligente, mas que devem ser eliminadas na nova decisão a proferir.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto, declarando nula a sentença recorrida e ordenando a reabertura da audiência de julgamento para cumprimento do disposto no artigo 358º, nºs 1 e nº 3 do Código de Processo Penal, a que se seguirá a prolação de nova sentença.

Não há lugar a tributação.


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                          (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relator)
      (José Eduardo Fernandes Martins)