Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2618/08.4TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARVALHO MARTINS
Descritores: CHEQUE
REVOGAÇÃO
RESPONSABILIDADE
BANCO
DANO
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 483, 563 CC, 29, 32 LUCH
Sumário: 1. A recusa pelo banco sacado no pagamento do cheque apresentado no prazo legal configura uma situação de responsabilidade civil extra-contratual, por violação do art.32 LUCH.
2.Compete ao portador do cheque alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual ( ilícito, culpa, nexo causal e dano).

3. O dano real corresponde ao valor do cheque.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

A Santa Casa da Misericórdia de ..., com sede em ..., veio instaurar esta acção com processo sumário contra o Banco (…) S.A., com sede em Lisboa, alegando, em suma, que é portadora do cheque n.° ..., emitido em ..., datado de 01/02/2008, no valor de € 12.000,00, sacado por P (…) sobre a conta n.° ... do balcão de ... do réu, titulada por este, sendo que tal cheque foi emitido à ordem de A (…), que o endossou à autora, e que, apresentado a pagamento em 04/02/2008, foi devolvido em 07/02/2008 pela Câmara de Compensação, com a menção de “cheque revogado por falta/vício da vontade.”

Conclui, pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe € 12.000,00, acrescidos de juros de mora a partir da citação.

Juntou documentos.

x

Citado, contestou o réu, aceitando, em suma, ter recusado o pagamento do dito cheque por ter recebido ordem do sacador nesse sentido alegando falta vício na formação da vontade e, defendendo a correcção do seu comportamento, conclui, pedindo a improcedência da acção.

Juntou um documento.

x

Foi proferido saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância e foi ordenada a matéria de facto mediante despacho, não tendo havido qualquer reparo.

Oportunamente, foi proferida decisão onde se consagrou que

“(…) conforme resulta da matéria assente, o pagamento do cheque foi recusado com a simples menção de “cheque revogado por falta/vício da vontade”, sem que do mesmo resultarem os factos concretos conducentes à ocorrência de tal falta ou vício. Porque nos parece que em tal caso, ou seja, na ausência duma fundamentação factual concreta para a ocorrência de tal anomalia da vontade, o sacado tem de cumprir a ordem inicialmente dada pelo sacador, não podia o réu recusar o pagamento do cheque apresentado pelo seu portador legítimo. Assim, terá de proceder a acção.

Nestes termos, na procedência da acção, condeno o réu a pagar à autora doze mil euros, acrescidos dos juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento”.

O BANCO (…), SA nos autos de acção com processo sumário que lhe move a SANTA CASA DA MISERICÓRCIA DE ... à margem referenciados, notificado da sentença de fls... e porque com a mesma se não conforma, veio dela interpor recurso de apelação, alegando e concluindo que:

1. O presente recurso tem por objecto discutir a bondade da solução do caso dos autos no que respeita à medida do dano a indemnizar — tema a que se circunscreve o recurso, sem prejuízo de o Banco continuar a pensar que agiu conforme ao direito ao dar acatamento à ordem de revogação dos cheques;

2. Inscrevendo-se a responsabilidade do sacado no âmbito da responsabilidade civil, é sobre o lesado que recai a obrigação de alegar e provar o dano, inexistindo norma legal que o dispense do cumprimento deste ónus de direito material;

3. Condenar o lesante a pagar o montante do cheque sem que o lesado tenha alegado e provado que o seu dano teve, precisamente, por medida a medida do montante titulado pelo cheque constituiu violação dos art°s 483° (princípio geral da responsabilidade civil) e 342° (distribuição do ónus da prova), ambos do Código Civil; Ora,

4. Não tendo a Autora alegado o que quer que seja nos autos a propósito do dano decorrente da (indevida) revogação do cheque e não estando o portador dispensado de o alegar e provar — a ausência de alegação e prova de outros factos que conduzissem à existência e medida deste conduz à improcedência da acção;

5. Este entendimento é o que corresponde ao mais recente entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que, no seu Acórdão de 2 de Fevereiro de 2010 (Processo: 1614/05.8TJNF.S2) decidiu: 9) O facto de o cheque não ter provisão, mas ser recusado por revogação indevida, não exonera a responsabilidade do Banco, por irrelevância negativa da causa virtual, mas o dano do portador deve ser por ele demonstrado, ou seja deve alegar e provar que sem o facto operante (cancelamento) o pagamento ser-lhe-ia efectuado na sequência da notificação ao sacador para provisionar a conta ou pagar-lhe directamente, da inclusão na listagem do Banco de Portugal (que sempre funciona como forma de pressão) ou da possibilidade de, em momento ulterior voltar a apresentar o chegue a pagamento. assim sur a relevância, agora positiva, da causa virtual (o sublinhado é nosso);

6. Contra este entendimento nada pode o Ac. Uniformizador do STJ n° 4/2008 de 28 de Fevereiro pois este apenas uniformizou a jurisprudência quanto à questão da ilicitude da conduta do banco sacado ao aceitar a ordem de revogação e não quanto à questão de saber qual a medida da responsabilidade, calculada em termos de dano indemnizável (Ac. Rei do Porto de 25.03.10);

7. A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou o disposto nos art°s 483°, 342° e 563° do Cód. Civil.

Legal e tempestivamente notificada, a Apelada SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE ..., veio apresentar as suas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão, por sua vez concluindo que

A) A douta sentença recorrida não enferma de nenhum dos vícios apontados pelo Apelante e muito menos se encontram violados os artigos 483°, 342° e 563° do Código Civil.

B) O Tribunal a quo, ante os factos que resultaram provados (factualidade, essa, que não vem impugnada) aplicou bem o direito, designadamente, a jurisprudência constante do Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.° 4/2008, porquanto

C) Resultaram demonstrados todos os pressupostos de que depende a obrigação, por parte do Apelante, de indemnizar.

D) Com efeito, a Apelada alegou e provou factos subsumíveis no quadro dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, consequentemente, na obrigação de indemnizar por parte do Apelante face à recusa infundada no pagamento do cheque sub judice.

E) A Apelada alegou qual o seu objecto social e os fins que visa prosseguir; assim como as formas / meios de obter rendimentos para prossecução dos fins sociais que promove junto dos mais carenciados e que passam por subsídios estatais e por donativos de particulares e / ou empresas.

F) Disse, também, que os rendimentos que aufere a tal titulo são escassos para prover as mais carenciados e que o montante titulado pelo cheque sub judice, na altura em que lhe foi entregue, seria uma grande ajuda, tendo promovido logo o alargamento da sua rede de apoio a contar que tal cheque seria pago. Ora

G) Como o valor aposto no cheque não lhe foi entregue, não pode a Apelada prosseguir de forma desafogada os fins de ajuda social aos mais carenciados, referindo-se que à custa destes donativos que a Apelada sobrevive.

H) E se a Apelada alegou os prejuízos que teve em virtude de não ter obtido o pagamento do cheque, após realização da audiência de discussão e julgamento, os mesmos — ao contrário do referido pelo Apelante — resultaram provados. Assim

I) E para o que agora interessa, após a realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo deu como provado, além do mais, o seguinte: - o cheque aludido em D) foi, em 4 de Abril de 2008, entregue por A (…) à autora como donativo para a instituição mediante o endosso referido em F); - tal cheque foi entregue à autora, tendo em conta os fins que esta visa prosseguir no sentido de prover às necessidades dos cidadãos que a si recorrem para receberem assistência social; - tal quantia iria ser empregue no alargamento da rede de apoio social a mais pessoas carenciadas do concelho de ... ou a outras que recorrem à assitência que a autora presta; - a autora, na actividade que desenvolve, sobrevive à custa de donativos dos seus benfeitores, bem como dos subsídios públicos e privados que lhe vão sendo atribuídos, conforme o referido em C); - tais montantes são escassos, tendo em conta a situação socioeconómica das famílias e indivíduos do concelho de ... abrangidos pela actividade social da Autora; - devido ao não pagamento do cheque pelo réu a autora deixou de poder contar com tal valor para tais finalidades.

J) O Apelante não podia, por isso, ter recusado o pagamento do cheque objecto dos presentes autos, visto que o mesmo foi apresentado dentro do prazo legal e não havia justa causa para que tivesses aposto os dizeres no verso que resultam da Compensação.

K) Com efeito, verificou-se que foi dada uma ordem de revogação a que o Apelante deu cumprimento, recusando o seu pagamento e violando, assim, o disposto no artigo 3 da LUCH, não tendo o Apelante procedido com a diligência que se lhe impunha, impedindo, desse modo, com a sua omissão a cobrança do cheque pela sua legitima portadora, bem como a possibilidade de esta fazer uso da acção executiva ou de o vir novamente apresentar a pagamento para recebimento da quantia por ele titulada.

II. Os Fundamentos:

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Matéria de Facto assente na 1ª Instância e que consta da sentença recorrida:

- A autora é uma instituição particular de solidariedade social, com utilidade pública, que se encontra registada desde 6 de Janeiro de 1983 no Livro das Irmandades da Misericórdia, sob o n.° 2/83, a fls. 89 e 89 verso, - A)

- Nessa qualidade a autora visa a prossecução dos fms que estão na génese da criação das Santas Casas da Misericórdia, designadamente, tem por missão prosseguir e desenvolver fins de acção social, apoiando sobretudo os cidadãos mais desprotegidos e desfavorecidos, as crianças, os jovens, adultos e idosos, indivíduos em risco de exclusão, pessoas com doenças e deficiências, visa prevenir situações de desigualdade social e carência socioeconómica, entre outros fins; -B)

- Por forma a prosseguir e a desenvolver os fins de acção social acima mencionados, a autora, como instituição particular de utilidade pública sem fins lucrativos, obtém rendimentos de subsídios e fundos que instituições públicas e particulares lhe concedem, bem como através de donativos que pessoas da região onde a mesma se insere lhe fazem; - C)

- A autora é portadora do cheque n.° ..., emitido em ..., datado de 01.02.2008, n valor de € 1 2.000,00€ (doze mil euros), sacado por P (…) sobre a conta n.° ... do réu, balcão de ..., e titulada por aquele; - D)

- Tal cheque, datado de 1 de Fevereiro de 2008, foi assinado por P (…)e emitido à ordem de A (…); - E)

- Que o endossou; - F)

- Apresentado a pagamento, no dia 04/02/2008, foi o mesmo devolvido, em 07/02/2008, pela Câmara de Compensação, com a menção de “cheque revogado por falta/vício da vontade” - G).

- O cheque aludido em D) foi, em 4 de Abril de 2008 do corrente ano, entregue por A (…) à autora como donativo para a instituição mediante o endosso referido em F). — 1.0)

- Tal cheque foi entregue à autora, tendo em conta os fins que esta visa prosseguir no sentido de prover às necessidades dos cidadãos que a si recorrem para receberem a assistência social. — 2.°)

- Tal quantia iria ser empregue no alargamento da rede de apoio social a mais pessoas carenciadas do concelho de ... ou a outras que recorrem à assistência que a autora presta. — 3.°)

- O réu aceitou e cumpriu a ordem de revogação do citado cheque, dada por P (…) — 5.°)

- O identificado P (…) assinou e entregou o cheque a A (…). — 8.°)

- A autora, na actividade que desenvolve, sobrevive à custa de donativos dos seus benfeitores, bem como dos subsídios públicos e privados que lhe vão sendo atribuídos, conforme o referido em C). -9.°)

- Tais montantes são escassos, tendo em conta a situação socioeconómica das famílias e indivíduos do concelho de ... abrangidos pela actividade social da autora. -10.°)

- Devido ao não pagamento do cheque pelo réu a autora deixou de poder contar com tal valor para tais finalidades. — 11.0)

- O réu devolveu o aludido cheque porque o sacador antes da apresentação a pagamento comunicou por escrito que o revogava, dando ordens para não ser pago. -13.°

- O réu apôs no cheque a declaração aludida em G). — 15.°).

Nos termos do art. 684°, n°3, e 690°,n°1, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n°2, do art. 660°, do mesmo Código.

*

Das conclusões, utilizando a sua própria matriz, ressalta a seguinte questão:

1. Inscrevendo-se a responsabilidade do sacado no âmbito da responsabilidade civil, é sobre o lesado que recai a obrigação de alegar e provar o dano, inexistindo norma legal que o dispense do cumprimento deste ónus de direito material; pois que condenar o lesante a pagar o montante do cheque sem que o lesado tenha alegado e provado que o seu dano teve, precisamente, por medida a medida do montante titulado pelo cheque constituiu violação dos art°s 483° (princípio geral da responsabilidade civil) e 342° (distribuição do ónus da prova), ambos do Código Civil - o que continua a reconduzir-se - tal como originariamente - a que a única questão que interessa dilucidar é a que se relaciona com o facto de o réu ter cumprido a ordem de revogação do cheque endossado à autora pelo primitivo tomador, dada pelo sacador do título no prazo de pagamento do mesmo e saber se tal atitude é legal e o réu lhe devia obediência?

Apreciando, diga-se que, reconduzindo a questão à sua verdadeira dimensão, se perfilam como elementos pressuponentes de abordagem - no que, no caso, importa fazer ressumar -, os seguintes (de resto, elencados no Acórdão do STJ, de 2 de Fevereiro de 2010 - Processo: 1614105.8TJNF.S2):

1) Como regra, o Banco está obrigado, nos termos da convenção que celebrou com o sacador (titular da provisão) a pagar à vista a soma inscrita no cheque desde que a conta do sacador tenha fundos disponíveis.

2) A revogação do cheque consiste na declaração do sacador ao Banco para que não o pague, apesar do título já ter entrado em circulação.

3) O instituto da revogação rege-se pelo artigo 32.° da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, sendo controversa a vigência da segunda parte do artigo 14.° do Decreto n.° 13004 de 12 de Dezembro de 1927, uma vez que Portugal não opôs qualquer reserva ao artigo 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912 que consagrou a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa (alínea a) do artigo 16.° do Anexo III) e o citado artigo 32.° só acolheu a 1 a parte do corpo daquele artigo 14.°.

4) A ordem de revogação pelo sacador tem de especificar — clara e inequivocamente — os motivos que a determinaram (v.g., desapossamento fraudulento ou aquisição com falta grave) não sendo suficiente a mera alegação genérica de não coincidência entre a vontade real do emitente e o declarado no titulo.

5) O regime da revogação ilícita deve acolher-se nos princípios comuns da responsabilidade civil extracontratual.

6) O portador do cheque que vê o seu pagamento recusado por revogação tem de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana: ilícito, culpa, nexo causal e dano.

7) Ao aceitar uma revogação sem causa legitima, o Banco comete um acto ilícito pois recusa o pagamento do título com esse fundamento, impedindo a sua ulterior, e nova, apresentação a pagamento, retirando-o indevidamente da circulação.

O que tudo decorre da circunstância de  a Convenção de Genebra de 19 de Março de 1931, ter, como seu anexo 1, a Lei Uniforme Relativa ao Cheque, aprovada pelo Decreto-Lei n.° 23721, de 29 de Março de 1934 e ratificada, com os anexos e protocolo, em 10 de Maio de 1934, para entrada em vigor em 9 de Junho seguinte.

Nesta data foi depositada no Secretariado da Sociedade das Nações, com os respectivos instrumentos de ratificação, sendo que, então, Portugal apenas declarou a sua inaplicabilidade no “Território Colonial Português” (cf., “inter alia”, o Cons. Lucas Coelho in “Problemas Penais do Cheque sem Cobertura”, 1979, p. 149).

Certo, porém, que na sequência do artigo 17.° das Resoluções da Conferência da Haia de 1912, veio a ser adoptado o artigo 32.° da LUCH que, no essencial, corresponde a esse preceito.

Portugal, então, propôs a adopção de um regime idêntico ao consagrado no artigo 14.° n.° 2 do Decreto n.° 13004, o que não veio a ser aceite, sendo que, de seguida, e como se disse, não formulou qualquer reserva ao citado artigo 32.° (como lhe era permitido pela alínea a) do artigo 16.° do Anexo II).

Tal implica duas conclusões: a plena vigência do artigo 32.° da LUCH e fundadas dúvidas sobre a vigência da segunda parte do corpo do artigo 14.° do Decreto n.° 13004.

Para alcançar esta última conclusão há que enfatizar que a 1ª parte do corpo e § único do artigo 14.° desse Decreto são reproduções dos § 1.º e 2.° do artigo 17.º das Resoluções da Haia enquanto o artigo 32.° da LUCH só acolheu (no § 1) a 1.a parte do corpo do artigo 14.° e (no § 2) o 3.° do artigo 17.° e que a 2ª parte do corpo daquele artigo 14.° não tem qualquer correspondência quer nas Resoluções da Haia, quer no artigo 32.° da LUCH.

Outrossim, não tem eco em qualquer outra norma da LUCH nem no artigo 19.° do Anexo II da Convenção de Genebra, onde, aliás, se lê que “a lei uniforme não abrange a questão de saber se o portador tem direitos especiais sobre a provisão e quais são as consequências desses direitos.”

Essa eventual revogação é “vexata quaestio”, com larga controvérsia doutrinária e jurisprudencial, (cf., no sentido da revogação, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1943 — B.O III, 409, e de 20 de Dezembro de 1977 ,este anotado favoravelmente pelo Prof. Ferrer Correia — “Revista de Direito e Economia”, 4ª 1978; Prof. Galvão Telles, Drs. Mário de Castro, Tito Arantes e Manuel Casanova e, no sentido da não revogação, os Profs. Palma Carlos, Paulo Cunha, e Drs. Cancela de Abreu, Carlos Pereira e Vasco de Almeida e Silva — “Revista da Ordem dos Advogados”, 6.°, n.°s 1 e 2, p. 439 e ss e o Supremo Tribunal de Justiça - Assento n.° 4/2000).

A tese da revogação foi ainda sustentada pelo Dr. Filinto Elísio — in “A revogação do cheque”, apud, “O Direito”, 100.0, 1968, n.° 4 — Out-Dez, 450 — com o argumento de conter princípios não compatíveis com a Lei Uniforme e acrescentando que “a revogação do cheque dentro do comando do artigo 32.° não dá nem tira quaisquer direitos ao portador; estranho seria, portanto, que este viesse a adquirir com a revogação direitos que então não possuía.” E continuando: “Se não há justa causa — de que tem por exemplos clássicos, designadamente, a perda, o roubo ou outra forma fraudulenta de desapossamento do título — o sacador é responsável; se ela existe, dirime essa responsabilidade. Mas o sacado em nenhuma hipótese é responsável, quer haja ou não, justa causa. Ele está ao serviço do sacador, único protagonista que conhece e com quem contratou, e enquanto não houver preceito a responsabilizá-lo não pode sofrer as consequências desfavoráveis de qualquer acto impensado do sacador.”

É para escapar a esta argumentação que o Assento n.° 4/2000 (Diário da República 1 A de 17 de Fevereiro de 2000), embora forçado a reconhecer a inexistência de uma relação prévia entre o portador e o sacado, refere que a solução da segunda parte do corpo do artigo 14.° “não é imposta pelo regime geral do cheque (...) mas sim pelos princípios do direito comum, mais concretamente pela responsabilidade civil extracontratual” (...) “pelo que a norma em crise é do direito comum”, e a Convenção absteve-se de tratar essa questão, “para a deixar sob o império exclusivo do direito comum.”

O Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.° 4/200 8 (Diário da República 1 A de 4 de Abril de 2008) aplicou, embora com diferente argumentação, (mas apoiando-se, também, no Decreto-Lei n.° 454/91, na redacção do Decreto-Lei n.° 3 16/97) a 2ª parte do artigo 14.° do Decreto n.° 13004 como um caso de responsabilidade aquiliana.

Naquele ponto o aresto teve onze votos de vencido que apenas aceitaram tratar-se de responsabilidade extracontratual “tout court”, por revogação daquele preceito do Decreto de 1927.

Se se aderir a este entendimento por se entender parecer o mais consentâneo com a dogmática da revogação do cheque adoptada na Lei Uniforme — instrumento de direito internacional a que o Estado Português se vinculou — terá de, no direito interno, ser encontrada uma solução compatível com o travejamento jurídico genérico.

Seja como for, feita a alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil — artigos 483.° e 487.° do Código Civil — ilícito, culpa, dano e nexo causal, o portador de um cheque cujo pagamento foi recusado por determinação do sacador, deva ser indemnizado pelos prejuízos que esse não pagamento lhe provocou.

In casu, conforme resulta da matéria assente, o pagamento do cheque foi recusado com a simples menção de “cheque revogado por falta/vício da vontade”, sem que do mesmo resultarem os factos concretos conducentes à ocorrência de tal falta ou vício. Evidenciando ausência duma fundamentação factual concreta para a ocorrência de tal anomalia da vontade, que, em tais termos, não conseguiria obstar a que o sacado houvesse de cumprir a ordem inicialmente dada pelo sacador, não podendo o réu recusar o pagamento do cheque apresentado pelo seu portador legítimo.

Quer isto dizer, aqui também, que o Banco recorrente aceitou uma revogação indevida — por se traduzir numa afirmação genérica não constituída por factos concretos mas, apenas, por uma abstracção que teria de ser preenchida com circunstâncias integradoras da não coincidência entre a vontade real e a vontade declarada — fazendo constar do cheque uma afirmação que, formulada dessa forma genérica, não rigorosamente especificadora, não continha virtualidade implícita capaz, mesmo, de evitar a aplicação de um imperativo constante da legislação e regulamentos bancários.

Praticou, em consequência, um acto ilícito ao, por aquela razão (?!...), recusar o pagamento do cheque que lhe tinha sido apresentado no prazo legal.

Perfilam-se, assim, os primeiros pressupostos da responsabilidade civil — acto ilícito e culpa — sendo que a ilicitude consiste no facto de o Banco ter certificado no título um facto não especificado em termos inequívocos, sem especificação, também, da sua inequívoca e adequada correspondência à realidade.

E, do mesmo modo, ao não recusar o pagamento sem certificar rigorosamente tal facto determinante, incumpriu a obrigação de notificar o sacador para regularizar a situação nos trinta dias seguintes (depositando as quantias que os cheques titulavam ou entregando-as directamente à Autora — artigo 1-A do Decreto-Lei n.° 454/91, de 28/12, aditado pelo Decreto-Lei n.° 3 16/97 de 19/11).

Ademais, não comunicando a situação ao Banco de Portugal o que, necessariamente, representaria um meio de pressão contra a sacadora, impediu a utilização desse meio.

Finalmente, ao considerar o cheque revogado, de modo ilegal, também impediu definitivamente a sua reutilização, com eventual, nova e ulterior, apresentação a pagamento numa altura em que, porventura, a provisão existisse.

A conduta do Banco — através do seu funcionário (artigo 500.° do Código Civil) constituiu, igualmente, um facto ilícito, pressuposto da responsabilidade civil.

Procurando, por decorrência, aferir do dano sofrido pela Autora, haverá que referir, antes do mais, que se evolui no âmbito da responsabilidade extra contratual, instituto cujos pressupostos devem ser alegados e provados pelo lesado, apenas a culpa podendo resultar de presunção legal, “ex vi” do n.° 1 do artigo 487.° do Código Civil. E o certo é que a Autora logrou provar o dano real, isto é, que o cheque só não lhe foi pago pelo ilegal cancelamento efectuado nos termos preditos.

Cumprindo, e, por isso, satisfazendo, específico “onus probandi”, como constitutivo do seu direito — n.° 1 do artigo 342.° do Código Civil — também  a pretexto de que, em ulterior momento, e se cumprido pelo Banco o artigo 1 .°A do Decreto-Lei n.° 454/91, de 28 de Dezembro, a conta seria sempre provisionada, a quantia lhe seria paga, directamente, pela Ré, ou, finalmente, se perante a eventualidade de inclusão na listagem a que se refere o artigo 3.° daquele diploma, o sacador  procedesse ao pagamento.

O seu dano, é, assim, indiscutivelmente, o montante do cheque, a suportar pelo Banco, que não pode ficar, em consequência, exonerado do pagamento que lhe é pedido por provado aquele pressuposto da responsabilidade civil.

Não pode, deste modo, deixar de conceder-se que - como vem alegado -

“resultaram demonstrados todos os pressupostos de que depende a obrigação, por parte do Apelante, de indemnizar. Com efeito, a Apelada alegou e provou factos subsumíveis no quadro dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, consequentemente, na obrigação de indemnizar por parte do Apelante face à recusa infundada no pagamento do cheque sub judice. A Apelada alegou qual o seu objecto social e os fins que visa prosseguir; assim como as formas / meios de obter rendimentos para prossecução dos fins sociais que promove junto dos mais carenciados e que passam por subsídios estatais e por donativos de particulares e / ou empresas.

Disse, também, que os rendimentos que aufere a tal título são escassos para prover as mais carenciados e que o montante titulado pelo cheque sub judice, na altura em que lhe foi entregue, seria uma grande ajuda, tendo promovido logo o alargamento da sua rede de apoio a contar que tal cheque seria pago. Ora, como o valor aposto no cheque não lhe foi entregue, não pode a Apelada prosseguir de forma desafogada os fins de ajuda social aos mais carenciados, referindo-se que à custa destes donativos que a Apelada sobrevive. E se a Apelada alegou os prejuízos que teve em virtude de não ter obtido o pagamento do cheque, após realização da audiência de discussão e julgamento, os mesmos — ao contrário do referido pelo Apelante — resultaram provados.

 Tudo assente na circunstância de que o Tribunal a quo deu como provado, além do mais, o seguinte: - o cheque aludido em D) foi, em 4 de Abril de 2008, entregue por A (…) à autora como donativo para a instituição mediante o endosso referido em F); - tal cheque foi entregue à autora, tendo em conta os fins que esta visa prosseguir no sentido de prover às necessidades dos cidadãos que a si recorrem para receberem assistência social; - tal quantia iria ser empregue no alargamento da rede de apoio social a mais pessoas carenciadas do concelho de ... ou a outras que recorrem à assistência que a autora presta; - a autora, na actividade que desenvolve, sobrevive à custa de donativos dos seus benfeitores, bem como dos subsídios públicos e privados que lhe vão sendo atribuídos, conforme o referido em C); - tais montantes são escassos, tendo em conta a situação socioeconómica das famílias e indivíduos do concelho de ... abrangidos pela actividade social da Autora; - devido ao não pagamento do cheque pelo réu a autora deixou de poder contar com tal valor para tais finalidades.

O Apelante não podia, por isso, ter recusado o pagamento do cheque objecto dos presentes autos, visto que o mesmo foi apresentado dentro do prazo legal e não havia justa causa para que tivesses aposto os dizeres no verso que resultam da Compensação. Com efeito, verificou-se que foi dada uma ordem de revogação a que o Apelante deu cumprimento, recusando o seu pagamento e violando, assim, o disposto no artigo 32º da LUCH, não tendo o Apelante procedido com a diligência que se lhe impunha, impedindo, desse modo, com a sua omissão a cobrança do cheque pela sua legitima portadora, bem como a possibilidade de esta fazer uso da acção executiva ou de o vir novamente apresentar a pagamento para recebimento da quantia por ele titulada”.

É, assim, chegado o momento de concluir, tomando por base as premissas anteriores, sem que - torne-se impressivo -, nos termos expressos, ocorra qualquer tipo de contradição ou não abrangência com o Ac. Uniformizador do STJ n° 4/2008 de 28 de Fevereiro, justamente ao enunciar que:

“uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14º, segunda parte, do Decreto n.° 13 004 e 483.º, n.° 1, do Código Civil”.

Isto porque - como no referido aresto se destaca - o Banco réu (sacado) não poderia ter recusado o pagamento do cheque, com fundamento na sua revogação, visto que o mesmo foi apresentado dentro do prazo legal.

Tal recusa só seria legítima se fundada em justa causa - furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício da vontade.

No caso dos autos resulta da matéria provada que tal como julgado em 1ª instância, o que, na verdade, se verificou foi mera ordem de revogação, a que o sacado deu cumprimento, recusando o pagamento - com violação do disposto no artigo 32.° da LUCH.

A recusa operada foi, pois, ilegítima face ao disposto no artigo 32.° da LUCH, pelo que, nos termos do artigo 14°, segunda parte, do Decreto n.° 13 004 e 483.º do Código Civil, o réu terá que responder por perdas e danos, uma vez verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil.

Conforme decidido nos Acórdãos deste STJ de 2 de Junho de 1997, processo n.° 96B503, e de 7 de Dezembro de 2005, processo n.° 3451/05-6ª o primeiro inserto em www.dgsi.pt e o segundo em Sumários

 «o Banco sacado que aceita, sem mais, a ordem de revogação de cheque antes de findo o prazo de apresentação a pagamento, e com violação, por isso, do artigo 32.°, n.° 1, da LUCH, não procede com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, e impedindo indevidamente com a sua omissão a cobrança do cheque pelo seu legítimo portador, causando-lhe prejuízo, torna-se civilmente responsável perante o portador por tal prejuízo, na conformidade do disposto no artigo 483.° do Código Civil».

O recorrente não pode, pois, acatar uma mera ordem de revogação sem incorrer em responsabilidade extracontratual. O comportamento do Banco não pode deixar de ser sancionável, por não se ter provado uma justa causa.

Por isso, há que acatar o que foi decidido na 1ª instância quanto à existência dos demais pressupostos da responsabilidade civil, valendo aqui, designadamente, os artigos 483.°, n.° 1, 562.° e 563.° do Código Civil.

Por tais razões o Banco sacado é responsável extracontratualmente, para com o portador do cheque, pelos danos resultantes do não pagamento do cheque na data da apresentação e pela sua não devolução, com indicação válida e convincente do motivo nele aposto, durante o mesmo prazo de apresentação a pagamento.

Pelo exposto, acordam negar a apelação, mantendo, consequentemente, a integralidade da decisão recorrida, com condenação do Banco recorrente nas custas. Por decorrência, colhe resposta negativa a questão formulada em 1).

Podendo, assim, concluir-se, sumariando que:

1. Como regra, o Banco está obrigado, nos termos da convenção que celebrou com o sacador (titular da provisão) a pagar à vista a soma inscrita no cheque desde que a conta do sacador tenha fundos disponíveis.

2. A revogação do cheque consiste na declaração do sacador ao Banco para que não o pague, apesar do título já ter entrado em circulação.

3. O instituto da revogação rege-se pelo artigo 32.° da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, sendo controversa a vigência da segunda parte do artigo 14.° do Decreto n.° 13004 de 12 de Dezembro de 1927, uma vez que Portugal não opôs qualquer reserva ao artigo 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912 que consagrou a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa (alínea a) do artigo 16.° do Anexo III) e o citado artigo 32.° só acolheu a 1 a parte do corpo daquele artigo 14.°.

4. A ordem de revogação pelo sacador tem de especificar — clara e inequivocamente — os motivos que a determinaram (v.g., desapossamento fraudulento ou aquisição com falta grave) não sendo suficiente a mera alegação genérica de não coincidência entre a vontade real do emitente e o declarado no titulo.

5. O regime da revogação ilícita deve acolher-se nos princípios comuns da responsabilidade civil extracontratual.

6. O portador do cheque que vê o seu pagamento recusado por revogação tem de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana: ilícito, culpa, nexo causal e dano.

7. Ao aceitar uma revogação sem causa legitima, o Banco comete um acto ilícito pois recusa o pagamento do título com esse fundamento, impedindo a sua ulterior, e nova, apresentação a pagamento, retirando-o indevidamente da circulação.

8. Sendo incontornável que o ónus da prova (art. 342º Código Civil) se traduz, pois, para a parte a quem compete, no dever de fornecer a prova do facto visado, sob pena de sofrer as desvantajosas consequências da sua falta.

III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

António Carvalho Martins ( Relator )

Carlos Moreira

Moreira do Carmo