Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1135/11.0PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: FURTO
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS DE COIMBRA - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 203º, N.º1 CP
Sumário: Pratica o crime de furto simples, na forma consumada, aquele que, entrando num estabelecimento sito num centro comercial, aí se apodera de dois tops, dois pares de sandálias, uma camisola e um vestido, no valor total de € 138,94, guardando-os em dois sacos forrados com folhas de alumínio, por forma a impedir que, ao passar com esses artigos na linha de caixa, fossem ativados os alarmes aí existentes e, seguidamente sai desse estabelecimento comercial levando-os consigo sem efetuar o respetivo pagamento, ainda que depois venha a ser intercetado e detido à porta desse estabelecimento.
Decisão Texto Integral: I
Nos presentes autos de processo sumário, após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença oral, gravada, com registo na acta do dispositivo seguinte:
- condenar a arguida A..., melhor identificada nos autos, pela prática, em autoria material, de um crime de furto simples p e p pelo art. 203º, n.º1 do C. Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros), efectuando o desconto de um dia de multa, ficando assim para cumprir 199 dias à aludida razão diária de € 10,00;
- condenar a arguida B..., melhor identificada nos autos, pela prática, em autoria material, de um crime de furto simples p e p pelo art. 203º, n.º1 do C. Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros), efectuando o desconto de um dia de multa, ficando assim para cumprir 249 dias à aludida razão diária de € 10,00.
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Inconformada com a sentença, dela recorre a arguida A....
Na motivação do recurso formula as seguintes CONCLUSÕES (reprodução por sacanner):
A. O presente recurso versa sobre a reapreciação da prova gravada relativamente à consumação e circunstancialismo da prática do crime bem como sobre matéria de Direito, no tocante ao não preenchimento dos requisitos objectivos para a punição e medida da pena.
B. Com o presente recurso não se pretende colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de "manifestação de posição contrária" ou "discordância de opinião", traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea i) do nº 1 do art. 61° CPP e no nº 1 da CRP.
C. Entende-se que a douta sentença padece do vício da nulidade plasmada na alínea c) do n° 1 do art. 379° CPP ao não analisar a questão da consumação da prática do crime ou ocorrência de mera tentativa, sendo tal temática essencialíssima à boa decisão da causa bem como o circunstancialismo de prática dos alegados factos (ausência de dano pela recuperação dos bens) que em nada se assemelham a um furto tal qual se mostra recortado no Código Penal.
D. Tem a recorrente por incorrectamente julgado o facto de se ter apropriado de bens alheios, sendo esse elemento do tipo de crime pelo qual se mostrou acusada, uma vez que os bens foram recuperados tal como confirma a testemunha ... na passagem 01:06 a 01:16, bem como a questão da co-autoria, uma vez que a testemunha ... referiu que as arguidas entraram separadas e saíram separadas (passagem 01:29 a 01:43).
E. A recorrente alegou que nada roubou, tendo sido perseguida e alvo de revista do seu saco e nada tinha, sendo certo que alegadamente apenas numa segunda revista já na loja é que lhe veio a ser imputada a prática de tal crime (depoimento das testemunhas: I) … que relata tais factos na passagem 01:22 a 01:29, 01:40 a 01:48, 01:54 a 02:04, 02:10 a 02:24, sendo perceptível ouvir o próprio Ministério Público a falar em "encalço" na primeira passagem citada: e II) ... na passagem 01:48 a 02:14.
F. Mas há que notar que mesmo o próprio agente (testemunha … ) que acabou por verificar o conteúdo dos sacos, acabou por confirmar que "tiraram para cima do balcão” (passagem 02:53 a 03:00) não conseguindo individualizar o que se mostrava dentro de cada um dos sacos ou, com certeza, afirmar se havia roupa nos dois (passagem 03:13 a 03:38).
G. As situações de perseguição e não estabilidade da posse sempre deverão ser levadas aos factos provados e ser tidas em consideração atenta a especial relevância para efeitos da subsunção dos factos ao Direito bem como relevadas as dúvidas a favor da arguida.
H. Olhada a globalidade da prova tem a recorrente que nem só lhe poderá ser assacada a prática de tais factos, com a certeza e convicção suficiente a afastar as garantis de defesa e o princípio in dúbio pro reo, como ainda os factos configurariam mera tentativa de prática do crime, igualmente punível nos termos do nº2 do art. 203º CP!
I. Atentas as circunstancias de prática dos factos temos que, mesmo a dar por provada a subtracção, nada autoriza a que se tenha por consumado o crime por nunca se ter mostrado a arguida numa posse pacífica das coisas, mostrando-se a funcionária da loja no seu encalço.
J. Haverá que aquilatar, com a ajuda de um "furtímetro”, se possível, quando é que tal apropriação justifica a "entrada em cena" do Direito Penal e a punição a título de crime consumado, devendo interpretar-se cum grano salis a norma incriminadora, não se podendo o intérprete cingir à letra da lei, devendo considerar igualmente os elementos histórico, sistemático e sobretudo teleológico e observar os ditames plasmados no art. 9° CC
K. Daí que se tenha por inconstitucional o entendimento de que crime de furto se baste com o mero transporte não pacífico da coisa ou bem objecto da subtracção, traduzindo-se num comportamento instantâneo, ocasional e por uma única vez, entendendo-se que o mesmo não se consumará sempre e enquanto se mostre o agente sob vigilância e sob encalço do ofendido ou alguém por si, sob pena de, a assim se não entender, se alargar o âmbito da punição de forma desmesurada,
L. E todos os preceitos constitucionais integram normas que fornecem os parâmetros de interpretação recta do Direito que lhe está infra ordenado, devendo assim lançar-se mão do princípio da Interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa, constituindo a essência do princípio da Igualdade não em tratar tudo por Igual sob pena de, por paradoxal que pareça, gerar manifesta e clara desigualdade, mas sim em tratar de forma igualo igual e de forma diferenciada o desigual
M. Têm-se por violados os princípios da Igualdade, proporcionalidade bem como do carácter de ultima ratio do Direito Penal que assim se vê convocado quando a litigiosidade e danosidade material se mostra secundária e a "justiça restauradora" uma realidade ao alcance da devolução dos bens, que in casu foram inequívoca e efectivamente recuperados pelo que nenhuma lesão sensível ocorreu para a ofendida, não devendo unir o julgador o que o legislador desuniu, tratando igualmente situações material e lesivamente desiguais,
N. Mostra-se a recorrente condenada em pena de multa fixada em 200 dias (passagem 04,04 a 04:09), entendendo-se tal medida como excessiva e violadora do princípio da culpa e da proporcionalidade, consagrados nos nº 2 e 3 do art. 40° CP bem como as exigências de prevenção e reintegração do agente na sociedade plasmadas no nº 1 de tal disposição legal
O. Cumpre referir que não foi a loja lesada nesse montante uma vez que todos os bens foram recuperados, devendo tal facto ser igualmente levado em linha de conta para a determinação da medida da pena conjuntamente com um maior peso a ser atribuído à inexistência de condenações anteriores, diminuta expressão dos factos e ausência de danos, entendendo-se que a pena a fixar o deverá ser abaixo do ponto médio da moldura,
P. Há que ter em consideração que a possibilidade de substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade se mostra in casu manifestamente prejudicada pela ausência de percepção da língua portuguesa e um muito rudimentar falar da língua espanhola ou castelhana,
Q. Nos termos da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP brevitatis causa), no seu art. 13° nº2, e em múltiplos outros diplomas internacionais, ninguém poderá ser prejudicado em razão do facto de ser estrangeiro, tendo-se dúvidas se em caso de cidadã nacional, colocada na posição da arguida, a pena seria idêntica.
R. Temos assim por claramente desproporcionada a pena de 200 dias aplicada, a qual terá repercussões sérias para a arguida bem como a sua inserção social e profissional, que se mostrará dificultada seriamente, e por violados o nº 1 e as alíneas a), b), d) e f) do nº2 do art. 71º CP, Julgando por adequada uma condenação nunca superior a 120 dias de multa.
S. Relativamente ao quantitativo diário dever-se-à ter em conta a situação económico-financeira da recorrente e não de terceiros, tendo-se que a sua fixação em € 10,00 se mostra igualmente majorada e Violadora dos mais elementares princípios constitucionais e processuais penais, uma vez que a fixação do mesmo terá de atentar nos reais rendimentos das arguidas, sob pena de oneração de terceiros e cumprimento por estes da pena, não sendo outro o entendimento que se extrai do teor do nº 2 do art. 47º CP.
T. Nada permite concluir seguramente que tal ajuda ora proporcionada pelas suas mães se irá mostrar uma realidade imutável e duradoura, mostrando-se as arguidas desempregadas sendo tal quantitativo diário manifestamente superior à bitola jurisprudencial perfazendo a soma das multas aplicadas € 4.500,00, o que corresponde a quase 32 vezes o valor dos bens que nem chegaram a subtrair ou reter na sua posse, sendo o benefício da prática do crime inexistente!
U. Não se ignora que dispõe a mesma da possibilidade de substituição de tal multa por prestação de trabalho (mais ideal que real, conforme supra alegado!) ou sempre poderia requerer o pagamento a prestações, e tendo as mesmas por limite 24 (limite máximo nos termos do nº3 do art. 47º CP!), implicava que a arguida tivesse de efectuar o pagamento mensal da quantia de € 83,33(3)...
V. Tal valor é manifestamente impossibilitante e proibitivo para a arguida poder fazer face às despesas minimamente indispensáveis à sua subsistência e sempre se mostraria duradouro ao longo de dois anos, sendo um forte óbice à desejável reintegração na sociedade.
W. Razão pela qual se entenda que in casu se estará perante uma situação excepcionalíssima a justificar a fixação do limite mínimo em montante ligeiramente superior à tabela mínima jurisprudencial e legal de € 5,00, devendo o montante do quantitativo diário ser reduzido e, no máximo, fixado na quantia de € 6,00.
X. Na verdade, a procedência do ora alegado relativamente à medida da pena, nas suas duas vertentes, levaria a que a mesma viesse a ser fixada na quantia considerável de € 720,00, diminuindo-se o esforço e sofrimento da arguida no sentido do seu pagamento, mostrando-se alcançados os fins das penas!
Y. E não deixa de constituir facto notório que, nos dias que correm, todo e qualquer pagamento impõe uma concreta punição e não deixa de ser sentida pela arguida, mostrando-se a multa fixada dissonante com a realidade económico-financeira actual, em virtude da crise financeira e ausência notória (art. 514° CPC) de liquidez.
Z. Filipe II, dirigindo-se aos Julgadores, tinha por máxima: "ministrai a Justiça com Imparcialidade e rectidão, e se necessário, com rigor e exemplaridade. Mas quando a natureza das gentes e das coisas o permitam, sede também misericordiosos e benignos" e Santa Catarina de Siena afirmava que "a pérola da Justiça, brilha melhor na concha da misericórdia"!
Factos incorrectamente julgados: os relativos à consumação da subtracção e, inerentemente, co-autoria bem como levar aos factos provados a perseguição, não estabilidade da posse e ausência de dano pela devolução forçada dos bens, cujo valor consta do auto de noticia.
Normas jurídicas violadas: maxime arts. 40°, 47° nº 1 e 2, 71° nº1 e nº2 a). b), d) e f), 203° nºs 1 e 2 CP; arts. 379° nº 1 c) CPP; arts. 13º nº2, 15° nº 1, 32° nº 2 CRP; arts. 514° nº 1 CPC.
Sic,
Contando sempre com o mui douto suprimento de V/ Exas., atento o supra exposto, entende a recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos, que presidem a um Direito processual penal que se queira justo, conjugados com a requerida reapreciação da prova gravada e documental, por essencial para correcta subsunção dos factos ao Direito, não poderá deixar de ser absolvida, atenta a ausência de prática de qualquer facto ilícito típico culposo e punível.
Todavia, a não ser esse o entendimento de V/ Exas., sempre se alega o vício da nulidade da douta sentença, atenta a não abordagem da questão da consumação do crime, entendendo-se que existirá apenas tentativa, bem como, ad cautelam, se entende que deverá a pena de muita ser redefinida e fixada mais próxima dos seus limites mínimos (em termos de número de dias e quantitativo diário), atentas as especiais condições da arguida e demais circunstancialismo factual.
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O digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido respondeu sustentando a improcedência do recurso.
Vai no mesmo sentido o douto parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
Já em fase de recurso foi determinada a transcrição da sentença ditada oralmente para a acta, objecto de gravação, bem como da prova produzida em audiência.
Corridos vistos, cumpre decidir.
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II.

1. Resulta da transcrição da gravação efectuada que o tribunal recorrido deu como provada toda a matéria da acusação – cfr. reprodução da gravação da sentença, a fls. 185).
Mostra-se assim provada a seguinte matéria (cfr. fls. 30):
No dia 18 de Maio 2011, no início da tarde, as arguidas deslocaram-se ao estabelecimento comercial, sito no “Dolce Vita”, em Coimbra, denominado “ … ”, pertença da sociedade comercial “ …, LDA.”.
Onde, próximo das 15h:30m retiraram dois tops, dois pares de sandálias, uma camisola e um vestido, no valor total de € 138,94, que guardaram em dois sacos forrados com folhas de alumínio, por forma a impedir que, ao passarem com esses artigos na linha de caixa, fossem activados os alarmes aí existentes.
Com esses artigos, assim acondicionados, saíram desse estabelecimento comercial levando-os consigo sem efectuarem o respectivo pagamento.
Ao agirem da forma descrita as arguidas fizeram-no de forma voluntária, livre e consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços e intenções, bem sabendo que praticavam actos proibidos por lei penal.
Quiseram apropriar-se dos bens acima descritos, integrá-los no seu património, cientes de que não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade e em prejuízo do legítimo dono, propósito que alcançaram.
As arguidas foram logo nesse dia interceptadas e detidas à porta do estabelecimento comercial em causa, na posse das mencionadas peças de vestuário e entregues à PSP pelas 15h:40m.
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Mais deu como provado o tribunal recorrido (da discussão da causa) que:
As arguidas vivem juntas, em casa arrendada, pagando 500 euros por mês de renda de casa, estão em Portugal há cerca de um mês, são ambas sustentadas palas mães que lhes mandam dinheiro para os seus gastos e para pagar renda de casa e para alimentação, têm ambas 8 anos de escolaridade, a arguida A … não tem antecedentes criminais; a arguida B...já foi condenada pela prática de um crime de furto simples numa pena de multa de 30 dias.
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Por último o tribunal recorrido motiva a decisão: “desde logo com fundamento na confissão da arguida B…, também nos autos de apreensão juntos ao processo e, relativamente à conduta da arguida A… considerou-se ainda os depoimentos das testemunhas que aqui foram ouvidas, credíveis, isentos e firmes, não tiveram dúvidas em relatar a testemunha … , a testemunha … e ... que de facto ambas as arguidas tinham roupa nos sacos, roupa essa da loja …”.
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2. Alega o recorrente que a sentença recorrida “padece do vício da nulidade plasmada na alínea c) do n° 1 do art. 379° CPP ao não analisar a questão da consumação da prática do crime ou ocorrência de mera tentativa”.
Ora resulta claro da sentença que o tribunal recorrido, ainda que de forma sintética, como compete ao processo sumário, considera que a matéria de facto dada como provada – supra reproduzida - integra os elementos do crime de furto na forma consumada. A questão de saber se tal entendimento é de sufragar constitui já apreciação do mérito da decisão, a apreciar em sede própria.
Não se verifica, pois, a invocada nulidade.
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3. Embora questionando a matéria de facto dada como provada, certo é que o recorrente o faz essencialmente, com base em razões de direito – no pressuposto de que não houve consumação (conclusão C) por ausência de “estabilidade” (conclusão I) da posse ou com base na “recuperação” (conclusão D). Dando assim como assente – com base em argumentação de direito que não probatória - aquilo que importava demonstrar.
Os fundamentos relativos à consumação, relegam-se para a apreciação da matéria de direito.
Em termos probatórios, não indica o recorrente, tão-pouco, qualquer passagem concreta de depoimento ou afirmação especificada que contrarie a apreciação da prova efectuada pela decisão recorrida.
Aliás utiliza o recurso para se recrear quando alega: “J. Haverá que aquilatar, com a ajuda de um «furtímetro»”, na vez de objectivar, com rigor, fundamentos materiais.
Por outro lado, ao contrário do que alega a recorrente, as testemunhas ouvidas não tiveram dúvida em afirmar que as arguidas levavam os sacos onde os bens iam escondidos - aliás foram apanhadas em flagrante, imediatamente após a saída da loja, logo depois de terem passado pelo equipamento electrónico de controlo - antenas de detecção e alarme existentes no estabelecimento com essa finalidade – que haviam ludibriado por efeito da protecção de alumínio dos sacos onde transportavam os bens que antes de deles se terem apropriado, se encontravam expostos na loja.
Acresce que as arguidas actuaram em conjunto e a outra co-arguida, confrontada com a evidência do flagrante, à saída da loja, “confessou os factos”. E os bens foram aprendidos na posse das duas arguidas, cada uma delas na posse de um saco onde os bens foram detectados e apreendidos.
Estavam os produtos, incontornavelmente, em sossego, na posse exclusiva de cada uma das arguidas desde que os tinham retirado os produtos da prateleira e guardado nos sacos revestidos a alumínio para neutralizar os sensores de vigilância. A própria recorrente, de tanto porfiar, acaba por reconhecer o óbvio (conclusão E.), citando o depoimento da testemunha (“numa segunda revista, já na loja veio a ser imputada a prática”), aquilo que a revista dos sacos evidenciou, inexoravelmente. Sendo irrelevante que, em audiência, a testemunha possa não ter identificado um a um os bens que estavam dentro de cada um dos sacos, porque tal relação havia sido efectuada no momento e comunicada à PSP que elaborou o auto, estando fora de questão qualquer maquinação contra as arguidas ou a identificação dos produtos identificados à frente das arguidas e mais que uma operadora da loja, além da intervenção subsequente da PSP chamada de imediato.
Por outro lado, dúvidas não pode haver de que as duas arguidas actuaram em conjunto e conjugação de esforços assim potenciando, com a actuação conjunta, o efeito das actuações individuais – entraram juntas na loja, actuaram em conjugação de esforços e no cumprimento de um desígnio comum, foram interceptadas juntas à saída da loja – e tinham-se deslocado juntas, desde Caldas da Rainha onde viviam, como resulta da súmula dos seus depoimentos efectuada na motivação da sentença.
Não faz sentido invocar princípios, superiores, da Constituição pois que a leitura que deles faz a recorrente, ainda que bonita e sonora, não tem o menor apoio nos fundamentos materiais do caso concreto.
Não existe, pois qualquer fundamento probatório válido para modificar a decisão recorrida em matéria de facto.
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4. Em matéria de direito, como já se antecipou, a recorrente questiona a consumação do crime de furto – cfr. conclusão A. a F.
Ora não tem cabimento invocar a violação do princípio da igualdade, sendo manifesto que a arguida apenas responde pelos seus actos, descritos na acusação e na sentença como matéria provada.
Sustenta que o crime não se mostra consumado. Alegando para tanto, em suma, que “as situações de perseguição e não estabilidade da posse sempre deverão (…) ser tidas em consideração atenta a especial relevância para efeitos da subsunção dos factos ao Direito”.
Comete o crime de furto “quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia”.
O bem jurídico protegido pela norma é o direito de propriedade. Ou como sustenta FARIA COSTA, em anotação ao art. 203º do Comentário Conimbricence Ao Código Penal, “o simples poder de facto sobre a coisa, tutelando-se desta forma a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa com um mínimo de representação jurídica... sendo o furto, sobretudo uma agressão ilegítima ao estado actual das relações jurídicas, ainda que provisórias, dos homens com os bens materiais da vida, na sua exteriorização material”.
Para além da apropriação de bem móvel alheio, exige a lei, como elemento subjectivo do tipo de ilícito – impropriamente chamado dolo específico, uma vez que se trata de um elemento descritivo do tipo objectivo e não uma categoria da culpa propriamente dita – uma ilegítima intenção de apropriação. Trata-se de um elemento diferente da motivação do agente, significando que este se comporta com o animus sibi habendi, em relação a um bem que sabe não lhe pertencer.
Constituem assim elementos constitutivos do tipo de crime em apreço:
- a subtracção de uma coisa móvel; que tal coisa móvel seja alheia (elementos objectivos); e ainda, como elemento subjectivo do tipo, a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem da coisa.
A subtracção não se esgota com a mera apreensão da coisa alheia. É necessário que o agente subtraia a coisa da posse exercida pelo lesado e a coloque à sua disposição ou à disposição de terceiro.
A subtracção consiste, tal como refere Beleza dos Santos, “na violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou de dispor dele, e a substituição desse poder pelo do agente” – cfr. RLJ, n.º 58- p. 252.
A subtracção não se tem por completamente integrada com a simples contrectatio, ou mesmo com a aprehensio rei, pois, certamente, veríamos excluída da previsão do furto todas as situações em que a posse não fora sequer violada. Do mesmo modo, não se nos afigura curial exigir-se a ablatio, isto é, a deslocação da coisa de um lado para o outro pelo agente do furto a fim de consolidar a apropriação – cfr. Maia Gonçalves C. Penal Anotado, p. 604).
Assim, é imprescindível que o agente subtraia a coisa do domínio de facto anteriormente exercido sobre ela e a coloque sob o seu domínio, à sua disposição ou à disposição de terceiro.
O crime de furto consuma-se com a entrada da coisa furtada na esfera patrimonial do agente ou de terceiro, ou seja, o tipo basta-se com a consumação formal ou jurídica, desprezando a doutrina da posse pacífica ou consumação material (cfr. Ac. STJ de 26.01.95, CJ-STJ, t. I, pág. 190 e Ac. STJ de 22.05.97, CJ-STJ, t.II, pág. 224).
Quanto ao elemento subjectivo (do tipo objectivo), ou seja, a ilegítima intenção de apropriação, “é traduzido na intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa, a haver para si ou para outrem, comportando-se relativamente a ela com animo sibi rem habendi, integrando-a na sua esfera patrimonial” - cf. Ac. RE. de 29/11/94, CJ, T V, p. 292).
A ilegitimidade traduz-se no conhecimento ou consciência do agente de que a coisa é alheia, pertencente a outrem, querendo apropriar-se dela ou fazer dela coisa sua sem que detenha direito ou título para o efeito, o mesmo é dizer, em violação de direito alheio.
Ora, no caso, falta demonstrar, desde logo, a suposta “perseguição”. Tanto mais que as arguidas guardaram os bens retirados dos expositores e os esconderam em sacos à prova dos detectores instalados na loja. Tomaram-nos como seus em toda a paz e sossego – se nem á vista estavam. E detiveram-nos na sua esfera jurídica exclusiva até que foram interceptadas após a transposição do limite físico da loja.
Depois de, com fundamentos de direito, tentar enovelar a matéria de facto, dando como previamente modificada essa matéria de facto, dela pretende, depois retirar fundamentos de direito. Num exercício de raciocínio em círculo que pretende, por efeito da insistência repetida, suprir o que materialmente não se demonstra.
A motivação do recurso confunde dois momentos distintos – o momento da apropriação ou do apossamento do bem alheio, fazendo-o seu, bem sabendo que não tem título de aquisição. E o momento, necessariamente posterior, em que, tendo havido apropriação (prévia) ilegítima, uma vez descoberta a mesma foi obtida a recuperação do bem e a sua restituição ao dono.
Uma coisa é o apossamento/tomada da posse de coisa alheia, tomando-a como sua, assumindo-se como dono. Outra a (eventual, necessariamente posterior) recuperação. De um lado a assunção da posse, uti domino. Do outro a destituição dessa posse/restituição do objecto, por efeito da descoberta, a posteriori, do crime.
Aliás, no caso, não podia ter havido oposição à apropriação (como não houve) porque não foi presenciada. E apenas podia haver a certeza de que as arguidas queriam levar os produtos sem título de aquisição, depois de ultrapassado o local próprio para o pagamento.
O crime ficara consumado com a tomada da posse de coisa alheia pré-intencionada à apropriação, uti domino, sem qualquer título de transmissão do direito.
Tendo-se por inequívoco que cada a arguida se apropriou dos bens que vieram – mais tarde, em momento posterior – a ser apreendidos na sua posse, quando os retirou da prateleira e os meteu no seu saco(próprio para o efeito, revestido a alumínio para impedir a detecção, à saída, pelos sensores instalados na superfície comercial, com a intenção formada de os fazer seus apesar de saber que não lhe pertenciam nem tinha título de aquisição.
Impondo-se pois, também aqui, a improcedência do recurso.
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5. Depois de percorrer sucessivas faculdades recursivas chega a recorrente finalmente à pena.
Invocando a “possibilidade de substituição da pena de multa por prestação de trabalho”, sustenta que não pode ser prejudicada por não falar português.
Ora, não tendo sido aplicada a substituição por prestação de trabalho, não pode queixar-se da decisão recorrida por algo que esta não decidiu.
No que toca à medida da pena de multa, estabelece o artigo 47º do C. Penal:
1. A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º1 do art. 71º (...).
2. Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5,00 e € 500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
O n.º 1 define o critério para estabelecer o quantum de dias de multa. E o n.º 2 o critério da taxa diária a aplicar ao n.º de dias previamente definido. Consagrando assim o chamado modelo escandinavo dos dias de multa, segundo o qual a fixação desta pena pecuniária se faz através de duas operações sucessivas: na primeira determina-se o número de dias de multa, através dos critérios gerais da fixação das penas; e, na segunda, fixa-se o quantitativo de cada dia de multa, em função da capacidade económica do agente. – cfr. MAIA GONÇALVES, C. Penal Anotado, 15ª ed., em anotação ao art. 47º.
Por sua vez o art. 71º, nº1 do C.P., para que remete o art. 47º, estabelece o critério geral segundo o qual “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigência de prevenção”. Critério que é precisado depois no nº2: “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele. Circunstâncias que são depois exemplificadas (“nomeadamente”) nas várias alíneas do citado nº2 e se reconduzem a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpam sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.
Releva ainda o disposto no art. 40º do C. Penal que postula no seu nº1 (redacção introduzida pela Reforma de 95): “a aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E acrescenta o nº2: “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Consagrando o entendimento mais recente do Prof. Figueiredo Dias sobre os fins das penas (cfr. Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., e Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227, este tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal): “A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos”.
Sendo certo que, como refere o mesmo Professor (Direito Penal II, Parte Geral, ed. da Secção de Textos da F.D.U.C., 1988, p. 121) é “indispensável que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que se não teve coragem de decretar.
Não faz sentido, no caso, invocar a inserção familiar e profissional (conclusão R.) porquanto não são afectadas pela pena de multa, podendo a recorrente continuar a exercita-las amplamente.
Por outro lado o n.º de dias de multa fixando, dentro da moldura abstracta, mostra-se perfeitamente proporcionado à elevada necessidade de prevenção geral de integração, a finalidade essencial da pena. Bem como ao grau de ilicitude e de culpa, onde se destaca a ilicitude do acto em si e do disfarce utilizado, além da actuação conjunta, potenciando o efeito das actuações individuais.
Acresce que, ao contrário do que parece supor a recorrente, que nem se trata de bens de 1ª necessidade, mas antes “roupas de marca”, de natureza voluptuária, além desajustada às dificuldades económicas invocadas.
Nem houve “devolução”, como alega a recorrente na conclusão Z, a qual suporia a actuação voluntária da recorrente (que nem assume o crime) mas antes recuperação por efeito da actuação compulsiva de terceiros.
A ausência de antecedentes foi valorada para a aplicação da pena de multa alternativa à prisão – e encontrando-se a recorrente há pouco tempo em Portugal, assume reduzido relevo.
Sendo certo que a recorrente mantém, ainda na fase de recurso - e apesar de apanhada em flagrante - uma postura hostil à prática dos factos que afasta qualquer tipo de arrependimento e/ou interiorização do bem jurídico violado ou de censura da sua actuação.
Também a taxa diária aplicada, muito próxima do limite mínimo da moldura (€ 5,00 a € 500,00), se mostra ajustada à debilidade da situação económica da recorrente dada como provada.
Não merecendo pois censura a decisão recorrida, tão-pouco neste ponto
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III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso. –
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC

Belmiro Andrade (Relator)
Abílio Ramalho