Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
849/10.6TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
FALTA
CONSTRUÇÃO DE OBRAS
PRESCRIÇÃO
ILÍCITO INSTANTÂNEO COM EFEITOS DURADOUROS
Data do Acordão: 01/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS A) DO ARTIGO 27.º DO R.G.C.O., 4.º, N.º 3, ALÍNEA F), E 98.º, N.ºS 1, ALÍNEA D) E N.º 4, DO REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E DA EDIFICAÇÃO APROVADO PELO DL N.º 555/99
Sumário: 1. A realização de obra sem a correspondente licença de utilização trata-se de um ilícito instantâneo com efeitos duradouros e não de um ilícito permanente, ilícito este que se consumou no momento em que efectuaram as obras sem a necessária licença.
2. A contra-ordenação consuma-se com a realização da obra sem licença, o que perdura no tempo são os efeitos dessa conduta.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. “SSS…, Lda.”, devidamente identificada nos autos, impugnou judicialmente a decisão da Câmara Municipal de Z... que lhe impôs coima de € 5000 (cinco mil euros), pela prática de uma contra-ordenação prevista  e punida pelos artigos 4.º, n.º 3, alínea f), e 98.º, n.ºs 1, alínea d) e n.º 4, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (doravante designado apenas por R.J.U.E), aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado e republicado pelo DL n.º 177/01, de 4 de Junho.


*

2. Interposto recurso de impugnação judicial, pela arguida, através de despacho elaborado em 3 de Setembro de 2010, o Sr. Juiz do 4.º Juízo Criminal de Z... julgou prescrita a referida contra-ordenação.

*

3. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desse despacho, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – Nos presentes autos, a decisão administrativa, proferida em 18.03.2009, condenou a arguida SSS…, Lda., por violação do disposto na alínea f) do n.º 3 do artigo 4.º, do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 98.º do R.J.E.U (Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16.12, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 04.06).

2.ª – Ora, de acordo com o preceituado no citado artigo 4.º, n.º 3, alínea f) do R.J.E.U «estão sujeitas a autorização administrativa: a utilização de edifícios ou suas fracções, bem como as alterações à mesma que não se encontrem previstas na alínea e) do número anterior», sendo que tal comportamento é punido nos termos estabelecidos nos n.ºs 1 e 4 do artigo 98.º do citado R.J.E.U, com coima graduada entre € 498,00 e € 249 398,95.

3.ª – Assim, ao contrário do entendimento expendido na douta sentença ora em recurso, a punição imposta à arguida prende-se com a utilização de instalações sem possuir a respectiva autorização de utilização e não com a efectuação de obras não licenciadas.

4.ª – Na verdade, a edificação de obras sem licença e a utilização de instalações sem autorização administrativa são comportamentos distintos, com punições autónomas e distintas.

5.ª – E esta distinção mostra-se decisiva, designadamente, no que concerne à prescrição do procedimento contra-ordenacional, por efeito da qualificação da infracção como contra-ordenação permanente.

6.ª – De facto, no caso em apreço, a ocupação de uma edificação pela arguida, sem possuir licença de utilização para o efeito, é por natureza uma infracção permanente, uma vez que o momento de consumação perdura enquanto o infractor não cessar o comportamento ilícito, mediante a obtenção do licenciamento ou pela cessação da utilização do local.

7.ª – Por outro lado, o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, no momento em que deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.

8.ª – Os ilícitos permanentes não se confundem com os ilícitos de efeitos duradouros ou permanentes.

9.ª – Os ilícitos permanentes são aqueles cuja execução se prolonga no tempo, no sentido de que há uma voluntária manutenção da situação antijurídica, até que cesse.

10.ª – Ora, sendo a prescrição uma causa extintiva da responsabilidade contra-ordenacional, não pode a mesma decorrer senão a partir do momento em que essa responsabilidade se estabelece sobre actos materiais que, uma vez chegados ao seu termo, configuram a contra-ordenação consumada.

11.ª – Assim, sendo a contra-ordenação dos autos uma infracção em que a realização do acto ou produção do evento com prolongamento no tempo do estado antijurídico típico por efeito de constante renovação da resolução contra-ordenacional do agente, o qual tem a faculdade de lhe por termo a qualquer altura, terá a mesma de ser classificada como infracção duradoura ou permanente.

12.ª – Considerando-se a contra-ordenação dos autos como sendo uma contra-ordenação permanente o prazo de prescrição da mesma só se inicia com a cessação do facto executivo, ou seja, só começa a correr no dia em que cessa a consumação.

13.ª – De acordo com o estabelecido na alínea a) do artigo 27.º do R.G.C.O., o procedimento contra-ordenacional extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação haja decorrido o prazo de cinco anos, sempre que à infracção seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a € 49.879,79.

14.ª – E, não obstante poderem verificar-se causas de interrupção ou de suspensão do procedimento contra-ordenacional, existe um limite temporal máximo a partir do qual se opera sempre a prescrição do procedimento, uma vez que, ao abrigo do n.º 3 do artigo 28.º do R.G.C.O, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.

15.ª – Assim, verifica-se que, no caso sub judice, o prazo máximo de prescrição legalmente admissível é de sete anos e seis meses (isto é, o prazo de cinco anos previsto na alínea b) do artigo 27.º do R.G.C.O acrescido de dois anos e seis meses em conformidade com o n.º 3 do artigo 28.º do R.G.C.O.), contados sobre a prática da contra-ordenação (em conformidade com o disposto na alínea a) do artigo 27.º do R.G.C.O).

16.ª – Mas, como se disse supra, sendo a contra-ordenação dos autos considerada contra-ordenação permanente o prazo da prescrição da mesma só corre desde o dia em que cessa a consumação.

17.ª – E, de acordo com os factos dados como provados na decisão administrativa, é possível concluir que a arguida manteve a utilização das instalações ampliadas, pelo menos, desde 04/10/2002 até 08/04/2008, sem possuir licença de utilização para esse efeito.

18.ª – Assim, a infracção pratica pela arguida não se pode ter por consumada antes de 08/04/2008 (data em que a própria arguida informou a Câmara Municipal de Z... que se encontrava a utilizar as referidas instalações).

19.ª – Consequentemente, tendo por referência a data de 08/04/2008 e o prazo prescricional de cinco anos, aplicável à ocupação das instalações da arguida sem licença de utilização (nos termos da alínea a) do artigo 27.º do R.G.C.O. e da alínea d), n.º 1 e n.º 4, do artigo 98.º do R.J.E.U), verifica-se que o procedimento contra-ordenacional dos presentes autos não se encontra prescrito.

20.ª – Razão pela qual entendemos que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que declare não prescrito o procedimento contra-ordenacional dos presentes autos.


*

4. A arguida respondeu ao recurso. Porém, por despacho de fls. 196, a resposta foi rejeitada, porque extemporânea.

*

5. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, em parecer a fls. 203, louvando-se nos fundamentos do recurso, pugnou pela procedência deste.

*

6. Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, a arguida-recorrente não exerceu o seu direito de resposta.

*

7. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

***

II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Em processo de contra-ordenação, o regime de recurso interposto, para o Tribunal da Relação, de decisões proferidas em 1.ª Instância deve observar as regras específicas referidas nos arts. 73.º a 75.º do DL 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12 (Regime Jurídico das Contra-Ordenações, doravante apenas designado por RGCO), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art. 74.º, n.º 4), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciado no art. 41.º, n.º 1, do citado diploma.

Como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1, do CPP).
O recurso do Ministério Público resume-se apenas à questão de saber se se encontra extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional dos autos.

*

2. Na decisão administrativa, foram dados como provados os factos infra transcritos:

a) SSS…, Lda. é pessoa colectiva n.º 502 263 610, com sede na freguesia de Santiago da Guarda, no concelho de Ansião (cfr. fls. 2, 15 e 69).

b) A arguida é proprietária do estabelecimento escolar situado em U... (cfr. fls. 2 e 16).

c) Após a vistoria realizada pelos Serviços da Câmara Municipal de Z..., em 15/06/1994, às instalações da SSS…, Lda., localizada em U..., verificou-se que o edifício se encontrava conforme o projecto aprovado e reunia as condições de salubridade e de segurança, pelo que foi emitida a Licença de Utilização n.º 298, de 19/08/1994 (cfr. fls. 60).

d) Através do registo n.º 31454/95, foi apresentado, junto da Câmara Municipal de Z..., projecto de ampliação das instalações tendo sido a requerente/arguida notificada para suprir algumas deficiências no processo, mediante o ofício n.º 3787, de 07/03/2007 (cfr. fls. 60).

e) O projecto foi deferido por deliberação de Câmara em 05/07/96 e comunicado à requerente/arguida, mediante o ofício n.º 12156, de 24/07/96 (cfr. fls. 60).

f) Nesta fase foi solicitado um projecto de arranjos exteriores da zona envolvente do estabelecimento de ensino, incluindo parque de estacionamento com capacidade de 40 lugares, nos termos do parecer do Chefe da DGU-S, de 03/07/96 (cfr. fls. 60).

g) O licenciamento da obra foi deferido por despacho de 27/07/97, tendo sido condicionada a emissão da licença de legalização à prévia apresentação e aprovação do novo projecto de arranjos exteriores, mediante o ofício n.º 14865, de 26/08/97, porquanto o estudo de arranjos apresentado foi considerado pouco adequado em termos funcionais e de imagem urbana (cfr. fls. 60).

h) Tal não se concretizou, tendo sido a requerente notificada pessoalmente, mediante notificação pessoal n.º 89/98, para dar cumprimento à notificação referida no ponto anterior (cfr. fls. 60).

i) Após o pedir a colaboração da Junta de Freguesia de U..., esta entidade emitido o parecer, referenciado sob o n.º 07/01, de 09/01/2001, estando prevista a resolução do estacionamento em articulação com a arguida, provavelmente no decurso do ano de 2001 (cfr. fls. 60 e 61).

j) O projecto de alteração/legalização apresentado pela requerente/arguida foi deferido, por despacho exarado em 02/02/2001 pelo Exmo Vereador, com competência delegada, Dr. JS… (cfr. 2, 60 e 61).

k) Assim, a requerente/arguida foi notificada do deferimento do projecto de ampliação das referidas instalações, mediante o ofício n.º 3798, de 09/02/2001, em conformidade com a informação n.º 243, emitida pelo Departamento de Administração Urbanística, em 22/01/2001 (cfr. fls. 58, 60 e 61).

l) Posteriormente, o Departamento de Administração Urbanística da Câmara Municipal de Z... notificou a requerente arguida, mediante o ofício n.º 4413, de 14/02/2001, que para efeitos de emissão de Alvará de licença de construção é necessária a junção de termo de responsabilidade técnica pela direcção da obra, no prazo de um ano, com início na data da notificação da decisão municipal que aprovou o licenciamento (cfr. fls. 57).

m) Em 16/04/2001, sob o registo n.º 16882, a arguida juntou Termo de Responsabilidade Técnica pela Direcção da Obra, subscrita pelo Engenheiro Civil FP… (cfr. fls. 55 e 56).

n) No dia 4 de Outubro de 2002, o Fiscal Municipal CS… verificou que a arguida utilizava a edificação resultante das obras de ampliação sem possuir a correspondente licença de utilização (cfr. fls. 2 e 53).

o) Nessa data, a arguida tinha conhecimento da obrigação de exercer a sua actividade em conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis inerentes ao licenciamento das obras de ampliação e à autorização da respectiva utilização (cfr. fls. 58, 60 e 61).

p) Porém, a arguida não procedeu ao pedido de emissão de Alvará de licença de construção/legalização das obras de ampliação, dentro do prazo legal (cfr. fls. 51 e 52).

q) Por despacho exarado em 04/11/2002, pelo Exmo Vereador, com competência delegada, Eng. JR…, notificou-se a arguida, mediante o ofício n.º 31257, de 18/11/2002, para requerer a reapreciação do processo, no prazo de 30 dias, e apresentar planta de arranjos exteriores adequada para melhorar a qualidade do conjunto urbano e prever parque de estacionamento, indicando o prazo ao qual se vincula para a realização das obras (cfr. fls. 51 e 52).

r) Em Março de 2008, o Fiscal Municipal AC…, para colher elementos no âmbito do processo administrativo n.º 663/08, contactou o Dr. LC…, Director do Estabelecimento de Ensino da arguida, que se mostrou surpreendido com a inexistência de autorização de utilização (cfr. fls. 48 e 49).

s) Em 24/03/2008, a arguida apresentou junto da Câmara Municipal de Z... o requerimento registado sob o n.º 4320, mediante o qual o Director Pedagógico do Instituto de U..., Dr. LC…, informou que se encontra no exercício do cargo, desde 1/09/2007, afirmou que desconhecia a inexistência de licença de utilização relativa ao estabelecimento da arguida e manifestou a intenção de diligenciar pela regularização da situação do referido estabelecimento, requerendo, para o efeito, a concessão de um “prazo razoável” (cfr. fls. 48).

t) Em 09/04/2008, a arguida apresentou junto da Câmara Municipal de Z... o requerimento registado sob o n.º 5189, mediante o qual solicitou a emissão de alvará de licença de construção relativa ao pedido de licenciamento da edificação deferido por despacho de 02/02/2001, e referiu ter a intenção de requerer, posteriormente, a emissão da licença de utilização (cfr. fls. 47).

u) No requerimento datado de 08/04/2008 e melhor referenciado na alínea anterior, a arguida informou que “Neste momento as instalações ampliadas estão a ser usadas pela instituição efectuando nas mesmas as diversas actividades” (cfr. fls. 47).

v) Por despacho exarado, em 18/06/2009, pelo Exmo Director do Departamento de Gestão Urbanística e de Renovação Urbana, Eng. LL…, foi ordenada a notificação da requerente/arguida para dar conhecimento que, encontrando-se esgotado o prazo de renovação de licença, deverá proceder a novo pedido de licenciamento, podendo ser utilizados no novo processo os elementos que instruíram o processo anterior, desde que não existam alterações de facto e de direito que justifiquem nova apresentação, fixando-se para o efeito o prazo de 60 dias. Deu-se ainda conhecimento à requerente/arguida que o pedido de autorização de utilização deverá ser efectuado após a conclusão do procedimento de licenciamento de construção (cfr. fls. 37, 43 e 44).

w) Assim, a recorrente/arguida foi notificada, mediante o ofício n.º 21907, de 23/06/2009, para proceder a novo pedido de licenciamento nos termos expostos na alínea anterior (cfr. fls. 37, 43 e 44).

x) Pelo menos até 11/11/2009, a arguida não apresentou novo pedido de licenciamento para legalizar as obras de ampliação efectuadas no estabelecimento de ensino em apreço (cfr. fls. 68 e 69).

y) No ano de 2007, a arguida recebeu apoios financeiros concedidos pelo Fundo Social Europeu, no montante de € 72.835,29 (cfr. fls. 72 e 77).

z) No ano de 2008, a arguida recebeu apoios financeiros concedidos pelo Programa Operacional Potencial Humano, no montante de € 166,159,26 (relativo ao Projecto de Cursos de Educação e Formação de Jovens) e no montante de € 181.746,26 (respeitante ao Projecto de Cursos Profissionais) (cfr. fls. 78 e 79).

aa) Em 2008, a arguida foi considerada uma das pequenas e médias empresas líder, no distrito de Z... (cfr. fls. 70).

bb) Na Secção de Contra-Ordenações da Câmara Municipal de Z... não existe registo de outros processos de Contra-Ordenação (cfr. fls. 63 e 64).


*

3. É do seguinte teor o despacho sob recurso (transcrição):

SSS…, não se conformando com a decisão administrativa proferida nestes autos que a condenou no pagamento da quantia de € 5.000,00, pela prática de uma contra-ordenação, por violação ao disposto nos artigos 4.º, n.º 3, alínea f) e 98.º, n.º 1, alínea d) e n.º 4 do R.J.U.E., veio impugnar a mesma, invocando, para o efeito que:

- O procedimento contra-ordenacional já se encontra prescrito.

- A recorrente desconhece se as diversas pessoas que participaram na autuação e instrução do procedimento contra-ordenacional tinham competência para tal.

  - A arguida actuou sem dolo, com erro, pois actuou sem consciência da ilicitude do facto, não lhe sendo o erro censurável.

  - A decisão administrativa não determinou a gravidade da coima, sendo, por isso, nula.

  - Não foram valorados correctamente os critérios referentes à determinação da coima.

Terminou pedindo que se declare a prescrição do procedimento criminal, a invocada incompetência e, consequentemente, que se declare extinto o procedimento instaurado contra a recorrente.

Caso assim não se entenda, que se decrete a sua absolvição.

Se ainda assim não se entender, então que se aplique a coima no seu mínimo legal.


*

  Dispensou-se a realização da audiência de discussão e julgamento, com a concordância do Ministério Público e da recorrente.

*

  Questão Prévia:

  Analisemos, então, a questão prévia invocada pela recorrente referente à prescrição do procedimento contra-ordenacional.

  A recorrente foi condenada pela entidade administrativa por ter efectuado obras – operações urbanísticas – sem possuir a correspondente licença ou autorização de utilização, sendo certo que tais factos foram verificados em 4 de Outubro de 2002 [cfr. alínea n) dos factos dados como provados pela entidade administrativa].

  À data dos factos a conduta descrita era punida pelas disposições conjugadas dos artigos 4.º, n.º 1 e n.º 3, alínea f) e 98.º, n.º 1, alínea d) e n.º 4 do R.J.U.E. (D.L. n.º 555/99, de 16.12), com coima de € 498,80 a € 249,398,95.

O artigo 27.º, alínea a) do Dec.-Lei n.º 433/82, de 27.10 (doravante RGCOC), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, determina que “o procedimento por contra-ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido os seguintes prazos: a) cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a € 49.879,79(…)”.

Verifica-se, assim, que o prazo prescricional aplicável é de cinco anos, atendendo à moldura da coima, e que remontando os factos a 04.10.2002, a prescrição do procedimento contra-ordenacional ocorreria em 04.10.2007, caso, claro está, não existissem causas de interrupção ou suspensão deste prazo.

Estabelece o artigo 28.º, n.º 3 do RGCOC que “a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade”.

A ser assim, não obstante existirem nos autos causas de interrupção da instância, a prescrição ocorre, independentemente destas, desde que, ressalvado o tempo de suspensão, decorra o prazo de 7 anos e seis meses.

As causas de suspensão da prescrição estão previstas no artigo 27.º-A do RGCOC.

No caso dos autos, a primeira causa de suspensão ocorreu com o envio do processo ao Ministério Público em 16.06.2010.

Assim, verificamos que quando o processo foi reenviado para o Ministério Público, já se encontrava prescrito o procedimento contra-ordenacional, pois, desde a data dos factos – 04.10.2002 – já haviam decorrido mais de sete anos e seis meses (sendo irrelevante nesta contagem os prazos de interrupção). Com feito, a prescrição tinha ocorrido em 04.04.2010.

Resta só acrescentar que não assiste razão à entidade administrativa quando diz que a contra-ordenação praticada é uma contra-ordenação permanente pelo que o prazo de prescrição só corre quando cessar a sua consumação.

Com efeito, a contra-ordenação consumou-se com a realização da obra sem licença, o que perdura no tempo são os efeitos dessa conduta.

Com efeito, ocorre um crime duradouro (ou uma contra-ordenação duradoura), como é exemplo típico o crime de sequestro, sempre que à prática de um acto ilícito se segue a produção de evento com prolongamento no tempo do estado antijurídico típico por efeito de constante renovação da resolução criminosa do agente, o qual tem a faculdade de lhe por termo a qualquer altura. Neste tipo de crimes há, por conseguinte, duas fases distintas integradas numa só figura criminosa: uma primeira, em que se cria um estado antijurídico e uma segunda, correspondente à manutenção desse evento.

Já os crimes instantâneos se praticam num determinado momento, ao que não obsta o facto das suas consequências se prolongarem no tempo. Aqui inexiste o dever jurídico de remoção das consequências duradouras e também a constante renovação da resolução criminosa (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Z... Ed., 2ª edição, 2007, pág. 314, e Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, 1983).

  Ora, na esteira dos Acórdãos da R.C. de 13-01-2010 e de 04-06-2008, in www.dgsi.pt, entendemos que se trata de um ilícito instantâneo com efeitos duradouros e não de um ilícito permanente, ilícito este que se consumou no momento em que efectuaram as obras sem a necessária licença. Efectivamente, a manutenção da utilização ilícita não constitui elemento típico da contra-ordenação: o que sucede, outrossim, é os efeitos da contra-ordenação prolongarem-se no tempo.

  Assim, dúvidas não subsistem que a contra-ordenação em causa se encontra prescrita.


**

  Em face do exposto, na total procedência do recurso, julgo prescrita a contra-ordenação imputada à recorrente SIC – Sociedade de Incremento Cultural, Ltª».


*
4. Do mérito do recurso:
Segundo o despacho recorrido, encontra-se extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional dos autos, porquanto, estando em causa uma infracção instantânea com efeitos duradouros, desde a consumação da contra-ordenação, verificada no momento em que se efectuaram as obras sem a necessária licença, já decorrera o prazo residual de 7 anos e seis meses fixado no artigo 28.º, n.º 3, do RGCO.
Em contrário, como vimos, sustenta o Ministério Público a não verificação, ao momento, da prescrição, por a contra-ordenação imputada à arguida consistir na utilização de instalações sem a respectiva autorização de utilização, e não, como refere o julgador do tribunal de 1.ª instância, na realização de obras sem licenciamento, situando-nos, deste modo, perante uma infracção de natureza permanente.
*
Preceitua o art. 59.º, n.º 1, do RGCO: «A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial», «sendo competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção» (art. 61.º, n.º 1, do referido regime).
«Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação» (art. 62.º, n.º 1, também do indicado diploma).
Em consonância com as normas que se vêm de citar, a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima provoca a deslocação da apreciação do ilícito contra-ordenacional do domínio administrativo para o âmbito jurisdicional, de tal modo que a dita decisão administrativa só virtualmente constitui uma “condenação”, pois que, se impugnada, “tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação”.
*
Dito isto, os factos imputados à arguida e que determinaram a sua condenação na fase administrativa circunscrevem-se, tão só, à utilização da edificação ampliada do Estabelecimento de Ensino sito em U..., Z....
Efectivamente, tanto no auto de notícia (fls. 2), como na decisão administrativa, as normas que se referem como violadas são as dos artigos 4.º, n.º 3, alínea f) e 98.º, n.ºs 1, alínea d), e n.º 4, do artigo 98.º, ambos do R.J.U.E.
Dispõe o artigo 4.º, n.º 3, alínea f) deste diploma:
«Estão sujeitas a autorização administrativa, a utilização de edifícios ou suas fracções, bem como as alterações à mesma que não se encontrarem previstas na alínea e) do número anterior».
E o artigo 98.º, n.ºs 1, alínea f), e 4, do mesmo corpo normativo:
«1 – Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou disciplinar, são puníveis como contra-ordenação:
(…)
d) A ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem licença ou autorização de utilização ou em desacordo com o uso fixado no respectivo alvará, salvo se este não tiver sido emitido no prazo legal por razões exclusivamente imputáveis à câmara municipal.
(…).
4 – A contra-ordenação prevista nas alíneas c) e d) e s) do n.º 1 é punível com coima graduada de € 498,80 a € 99759,58, no caso de pessoa singular, ou até € 249398,95, no caso de pessoa colectiva».
*
Existe consenso entre o Sr. Juiz do tribunal a quo e o recorrente quanto ao prazo máximo de prescrição a considerar na situação dos autos [7 anos e 6 meses (correspondente ao prazo normal de prescrição (5 anos), acrescido de metade (2 anos e 6 meses), por referência ao disposto nos artigos 27.º, alínea a) e 28.º, n.º 3, ambos do RGCO].
*

Como é sabido, a prescrição do procedimento criminal constitui um pressuposto processual negativo, querendo isto significar que, uma vez verificada, determina o arquivamento do processo e não a absolvição do arguido.

Porém, daqui não se retira sem mais que a referida figura jurídica assuma uma natureza meramente processual.

Contra a posição tradicional que considerava as normas relativas à prescrição de natureza processual estrita, é hoje entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência que os preceitos relativos ao referido instituto são de índole material ou substantivo, uma vez que condicionam a punição, a aplicação da pena/coima, contendendo, por isso, directamente com os direitos dos arguidos.
Assim, sendo o RGCO omisso sobre o início do prazo de prescrição contra-ordenacional, por força do disposto no artigo 31.º, daquele diploma, há que recorrer ao preceito regulador do artigo 119.º do Código Penal.

*
O ponto nuclear do dissídio entre a decisão judicial e a posição vertida no recurso  está no dies a quo do prazo de prescrição.
Nos termos do despacho recorrido, a contra-ordenação imputada à arguida foi definida como infracção instantânea com efeitos duradouros e não como infracção permanente, precisamente porque se teve em conta, como facto típico, a construção de obras sem a respectiva licença.
Porém, como decorre do acima dito e é posto em relevo pelo recorrente, a imputação do facto e a punição administrativa imposta à arguida decorre da utilização de instalações sem a necessária licença de utilização e não com a realização de obras não licenciadas, circunstancialismo que remete a contra-ordenação para o tipo de infracção permanente.
Na categoria dos ilícitos permanentes ou duradouros estão aqueles cuja lesão do bem jurídico se pode prolongar por um tempo mais ou menos longo (p. ex., o sequestro, violação de domicílio). Pode dizer-se que os bens jurídicos protegidos pelos respectivos tipos legais são indestrutíveis: podem ser afectados (lesados) mas não destruídos. Assim, embora a consumação do crime ocorra com o início da lesão do bem jurídico, todavia só termina com a cessação da lesão[1].
Em sentido equivalente, ensina Eduardo Correia: tipos permanentes são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo, distinguindo-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem nada de característico em relação a qualquer outro crime; outra, esta específica, que corresponde à manutenção desse evento e que, para alguns autores, consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz.
A existência deste dever, naturalmente ligada à natureza dos bens jurídicos protegidos, distingue o crime permanente dos chamados crimes de efeitos permanentes – v. g. o furto[2].
Deste modo, no crime permanente haverá, pelo menos, uma acção e uma omissão de estrutura indivisível.
O estado violador da lei prolonga-se sem intervalos, numa duração, digamos, assim, sem colapsos e sem limites, e a qualquer momento está sendo cometida a infracção, porque esse inimterrupto estado antijurídico é que é, exactamente, o ilícito. A prescrição, portanto, há-de correr quando cessa a permanência da acção[3].
Como se refere no Ac. desta Relação de 04-06-2008, «esta tipologia de infracções não se confunde com a dos ilícitos instantâneos com efeitos duradouros pois, nestes, inexiste o dever jurídico de remoção das consequências duradouras e também a constante renovação da resolução criminosa, e tem como exemplos expressivos o furto ou a bigamia»[4].
Volvendo ao caso dos autos, resulta com linear clareza que a contra-ordenação imputada à arguida se insere na categoria de infracção permanente e não instantânea ainda que com efeitos duradouros.
A violação da lei iniciou-se com a utilização, sem licença, pela arguida, das instalações de ensino já identificadas, pelo menos a partir de 4 de Outubro de 2002 (data em que o Fiscal Municipal verificou que a arguida utilizava a edificação resultantes das obras de ampliação sem possuir a correspondente licença [cfr. fls. 2 e alínea n) dos factos dados como provados na decisão administrativa], e prolongou-se desde aquela data até à cessação desse acto de utilização, que, a ter ocorrido, apenas aconteceu após 8 de Abril de 2008 [cfr. facto do ponto u) da decisão da Câmara Municipal de Z...].
Daí que, como bem refere o recorrente, não se possa ter por terminada a consumação do facto consubstanciador da infracção imputada à arguida  antes de 8 de Abril de 2008.
Consequentemente, tendo em conta a referida data de 8 de Abril de 2008 e o prazo prescricional de cinco anos fixado para a contra-ordenação em análise, é apodíctico que, neste momento, o procedimento contra-ordenacional ainda não está extinto, por prescrição.
*
A procedência do recurso implica a elaboração de novo despacho pelo tribunal de 1.ª instância, visando o conhecimento das restantes questões objecto do recurso interposto pela arguida.
*
III. Dispositivo:
Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Z..., concedendo provimento ao recurso, revogam o despacho recorrido, por não estar extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional dos autos, e determinam que o tribunal de 1.ª instância, em novo despacho, conheça das restantes questões apresentadas no recurso da arguida SSS…, Lda.
Sem tributação.

*


Alberto Mira (Relator)
Elisa Sales


  


[1] Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Volume II, Teoria Geral do Crime, Publicações Universidade Católica, Porto, 2004, pág. 101.
[2] Direito Criminal, Livraria Almedina, Coimbra – 1968, pág. 309/310, A teoria do concurso em direito criminal, Almedina, Coimbra – 2003, nota de rodapé na pág. 23.
[3] Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações, 3.ª edição, pág. 249, citando A. Carvalho Filho, Comentário ao Código Penal Brasileiro, pág. 249.
[4] Publicado, em texto integral, no sítio www.dgsi.pt.