Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/18.9GACDR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: HOMICÍDIO NEGLIGENTE
ERRO MÉDICO
PREVISIBILIDADE
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 15º E 137º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - Não podendo afirmar-se que seria previsível que uma criança saudável com sintomas de um quadro gripal evoluísse em poucas horas para um quadro fatal, não era exigível ao médico que devesse prever a ocorrência daquele risco atípico.
II- Para aferir pela verificação de erro médico, importante é saber se a ação omitida poderia ter dado à doente a possibilidade de não morrer. Se sim (incremento do risco tratando-se de ação, não diminuição do risco, tratando-se de omissão) o nexo de imputação objetiva deverá ser afirmado; se a dúvida permanecer ele deverá ser negado.
Decisão Texto Integral:

*

            Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I.

No processo que, com o nº 20/18...., corre termos pelo juízo de instrução criminal de Viseu foi decidido não pronunciar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio por negligência p.p. artigo 10º, 13º, 15, alínea b) e 137, nº 1 do Código Penal, em concurso aparente com um crime de omissão de tratamentos médicos cirúrgicos com violação das leges artis p.p. artigo 10º, nºs 1 e 2, 14º, nº 1, 26 e 150, nºs 1 e 2 todos do Código Penal.

                                                           *

Inconformados com a decisão instrutória recorreram o Ministério Público e o Assistente BB, concluindo os respetivos recursos de modo que a seguir se transcreve:

Conclusões de recurso do Ministério Público (transcrição):

1 — Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido de certeza de existência de crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime imputado ao arguido.

2 — Na pronúncia o juiz não julga a causa, contentando-se a lei em exigir que da prova carreada para os autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela uma pena.

3 — Não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.

4 — Compulsada a prova carreada para o inquérito e para a instrução, compulsados os factos articulados na acusação e a imputação que dos mesmos foi feita ao arguido, analisado o teor do despacho de não pronúncia,  considerando a prova junta aos autos, temos que a Meritíssima Juiz julgou a causa, impondo-se a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.

5 — Assim, a Meritíssima Juiz , salvo melhor parecer, ultrapassou a mera exigência de indiciação suficiente, para exigir um juízo de certeza, este típico do julgamento, assim violando o disposto nos arts. 308.º, n.º 1 e  283.°, n.° 2, ambos  do Código de Processo Penal.

6 — A jovem CC foi observada, pelas 20:07h, do dia 26 de Janeiro de 2018,  no Centro de Saúde ..., sendo que o médico que a observou procedeu à auscultação cardiopulmonar e  à observação da  garganta e ouvidos daquela,  tendo registado na ficha clinica de atendimento os sintomas de “ tosse”, “espirro/congestão nasal” e “febre”, sendo que, por referência à sintomatologia e à época sazonal, concluiu pelo diagnóstico de “gripe”, tendo  atribuído  alta para o domicílio e prescrito , em receita médica, os fármacos considerados adequados .

7 — No dia  28 de Janeiro de 2018 ,  pelas 16:47h desse dia, a jovem  CC, na presença do seu pai , foi assistida pelo arguido AA,  novamente no Centro de Saúde ..., sendo que durante a consulta, o arguido, nomeadamente, verificou o histórico clínico da jovem  CC, mormente a consulta  do dia 26/01/2018, respectiva observação, diagnóstico atribuído e tratamento farmacológico prescrito , acabando o arguido por  registar , no processo clínico da jovem  CC “ voltou por manter tosse; iniciou quadro de diarreia (já medicada pela farmácia com imodium + UL-250); apirética; abdómen depressivo e sem defesas; apirética; ACP – sem alterações; gastroenterite com infecção presumível … ” .

8 — Quando os serviços do INEM chegaram  à casa onde a jovem habitava, em hora situada entre as 06:00h e as 07:08h do dia 29 de Janeiro  de 2018 , a jovem  CC já não apresentava pulsação e brotava sangue pelo nariz e boca.

O óbito da jovem CC veio a falecer na sua residência, tendo o seu óbito sido verificado pelas 07:38h do dia 29/01/2018.

9 —  O óbito da jovem  CC foi devido a infecção bacteriana (Gram +) pulmonar [com edema muito marcado (70%): agudo], pleural [com pleurite fibrinosa], traqueal, laríngea e das amígdalas [amigdalite aguda incipiente], alterações morfológicas essas consistentes com sobreinfecção bacteriana.

Na cavidade pleural direita a jovem tinha 350 cc de liquido sanguinolento.

Na cavidade pleural  esquerda a jovem tinha 50 cc de liquido sanguinolento.

11 — As declarações da testemunha DD apontam para um quadro claro de dificuldades respiratórias, de dores no peito e nas costas e de  prostração geral da jovem, quadro este em curso desde o dia 25 de Janeiro de 2018, sendo que esta testemunha é ouvida no próprio dia 29 de Janeiro de 2018, pelas 11h30, poucas horas após a morta da sua sobrinha.

12 — Também as declarações da mãe da jovem apontam para um quadro claro de dificuldades respiratórias, de dores no peito e nas costas e de  prostração geral da jovem, quadro este em curso desde o dia 25 de Janeiro de 2018, dia em que a jovem já não foi às aulas da tarde, quadro  de dificuldades respiratórias que por volta da hora do almoço do dia 28 de Janeiro de 2018 motivou a decisão de conduzir novamente a jovem ao Centro de Saúde.

13 — Ninguém se desloca de ânimo leve a um Centro de Saúde decorridos menos de dois dias após uma anterior consulta, quando já estava medicado e supostamente a aguardar que a medicação produzisse efeitos, residindo numa aldeia, ...,  em pleno mês de Janeiro e em época de surto gripal.

14 —  O  relato do pai da jovem sobre a respiração acelerada indicia que pudesse estar presente um sinal de dificuldade respiratória – polipneia ou taquipneia – que devem ser valorizados , sobretudo em período de apirexia .

15 — O  relato da observação clinica feito pelo pai da jovem – auscultação super - rápida na zona dos rins e não na zona dos pulmões – não corresponde a uma observação médica correcta.

16 — Pelos dados referidos pelos pais e pelo tio paterno da jovem impunha – se uma observação cuidada, sendo que  as queixas de falta de ar e dor torácica obrigam a suspeitar de pneumonia , com ou sem derrame pleural ou de pneumotórax;

17 — O  diagnóstico de pneumonia é sobretudo clinico e não obriga à realização de radiografia do tórax se não há suspeita de complicação.

18 — Uma das principais complicações da gripe é a pneumonia bacteriana habitualmente causada causada por bactérias Gram Positivas, nomeadamente as assinaladas no parecer  e no relatório da autópsia  .

19 - Qualquer uma destas bactérias pode ser responsável por um quadro de choque séptico ou choque tóxico que nalguns casos pode evoluir rapidamente para a morte ,  nestes casos pode estar presente um foco primário de infecção do trato respiratório;

20.º - A autópsia confirmou esta infecção do trato respiratório e a presença de derrame pulmonar ,  a presença de derrame com um volume de 350 ml teria tradução na auscultação pulmonar,mas não se pode saber se estaria presente com este volume no momento da observação médica.

21.º - A  sobre – infecção bacteriana necessita de várias horas a dias para culminar em pneumonia complicada com derrame pleural de moderado volume , seria de esperar que no momento da observação ( cerca de 14 horas antes da declaração da morte ) houvesse alguma alteração da auscultação pulmonar , como por exemplo diminuição dos sons respiratórios , sendo que uma 2.ª ida à urgência e a sensação de falta de ar e a dor torácica são um sinal de alarme , que deve levantar a suspeita de progressão da doença provavelmente vírica prévia e, portanto, orientação para a realização de exames complementares de diagnóstico ou instituição de tratamento antibiótico .

22.º - Se a  jovem tivesse  iniciado antibioticoterapia endovenosa , mesmo na madrugada do dia 29 de Janeiro de 2028, poderia ter sido mudado o desfecho - parecer junto a fls. 561 – 563 dos autos - , sendo que a  infecção do trato respiratório obriga ao tratamento com antibiótico eficaz , sendo o prognóstico mais favorável associado à precocidade da instituição do tratamento – parecer junto a fls. 217 – 218 dos autos e na presença de dispneia grave ou de sinais de choque o tratamento é obrigatoriamente hospitalar – parecer junto a fls. 217 – 218 dos autos.

23.º - No quadro global de declarações, correlacionado com o relatório da autópsia, as declarações do pai da jovem, da mãe da jovem e do tio da jovem – estas recolhidas no próprio dia da morte da jovem - , correlacionadas   com os pareceres do senhor médico assistente graduado de infeciologia pediátrica e da senhora médica pediatra merecem , salvo o devido respeito, toda a credibilidade.

24.º - E merecendo  tais declarações credibilidade , correlacionadas entre si  e compaginadas com o relatório da autópsia e com os pareceres médicos do senhor médico assistente graduado de infeciologia pediátrica e da senhora médica pediatra, então esta suficientemente indiciado que  o arguido  violou as legis artis – deveria ter feito uma correcta auscultação pulmonar , devia ter examinado a garganta da jovem, deveria ter  suspeitado da existência de uma pneumonia, devia ter suspeitado de uma infecção do trato respiratório, devia ter receitado antibióticos, devia ter encaminhado a jovem para o hospital, para exames complementares e adequado tratamento .

25.º - E  esta suficientemente indiciado que  daquela  violação  resultou  um risco  acrescido de perigo  para a vida da jovem ,   que  aumentou a probabilidade de ocorrência da  morte da jovem .

26.º - « I - As leges artis médicas (conjunto de regras e procedimentos que naquelas circunstancias deviam ser tidas em conta) impõem o despiste, de uma patologia de que o doente apresenta sintomas, potencialmente causadora da morte, sem tratamento, sendo possível a sua detecção.
II – O nexo causal, na omissão, ocorre quando a conduta omitida podia, com toda a probabilidade causar o evento.
III – Há conexão de risco quando a ação omitida não tenha diminuído o risco de produção do resultado, a menos que se comprove (posteriormente ao evento) que a ação omitida em nada teria servido para evitar o evento.
IV- Se a ação omitida podia ter dado à doente a possibilidade de não morrer é de afirmar a existência do nexo de imputação objectiva.
V – Se a conduta omitida pelos arguidos aumentou o perigo e risco de vida da paciente existe nexo de causalidade, na medida em que existe uma conexão de risco entre a ação omitida e a morte. » -  acórdão da Relação do Porto de 22 de Abril de 2015, tendo como relatora a Exm.ª Senhora Desembargadora Eduarda Lobo, Processo n.º 46/11.3 TAMCD.P1.

27  — Mostra – se suficientemente indiciado que na observação médica o arguido violou as legis artis,  que o arguido no diagnóstico violou as legis artis e  que o arguido também  na prescrição médica  violou as legis artis.

28 – Aquelas violações  foram  causais  da morte da jovem ,  pois que aumentaram  o perigo de ocorrência do resultado, sendo que se não tivessem ocorrido tais violações o perigo de morte teria diminuído e poderia ter sido evitado o desfecho fatal .

29.º - Ao não pronunciar o arguido a Meritíssima Juiz violou, salvo melhor parecer, os artigos  308.º, n.º 1,  283.°, n.° 2, e 127.º, todos do Código de Processo Penal, bem como as  disposições conjugadas dos arts. 10.º, 13.º, 15.º, al. b) e 137.º, n.º 1, do Código Penal, este   em concurso aparente com um crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelos arts. 10.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.º 1, 26.º e 150.º, n.ºs 1 e 2,  todos também do Código Penal .

30 — Termos em que, nesta parte, o douto despacho de não pronúncia deve ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido  pela autoria material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 10.º, 13.º, 15.º, al. b) e 137.º, n.º 1, do Código Penal, este   em concurso aparente com um crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p.  pelas disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.º 1, 26.º e 150.º, n.º s 1 e 2,  todos também do Código Penal.

Vossas Excelências, porém, e como sempre, farão Justiça

                                                           *

Conclusões do recurso do Assistente BB (transcrição):

A.         Atendendo à prova constante dos autos, designadamente:

- Relatório de autópsia, de fls. 56-61v;

- Parecer elaborado pelo INML, de fls. 121-123;

- Relatórios elaborados por EE, de fls. 439-444 e 561-564;

- Informação por óbito e anexos, de fls. 3-7; Certidão de assento de óbito, d e fls. 28-29;

- Guia de tratamento para o utente, de fls. 31;

- Fatura/recibo, de fls. 32-33;

- Assento de nascimento, de fls. 36-37; - Elementos clínicos, de fls. 44-52;

- Ficha vacinal, de fls. 53-54;

- Fotocópias certificadas, certidões e cópias de elementos do proc. de inquérito n.º 4/20..., de fls. 112-117, 134-268v e 279-281;

- Fotocópias certificadas, certidões e cópias de elementos do proc. n.º ...18, de fls.126-128, 349-351 e 355-384;

- Informações prestadas pelo SNS –INEM,de fls.312-323,345,420,426-431v, 471, 514-518 e 533-534;

- Fotocópias certificadas, certidões e cópias de elementos do proc. n.º 3/20..., de fls. 335-341 e 449-453;

- Ata da 3.ª de Reunião de 2019 do Conselho Médico-Legal, de fls. 410-415;

- Certidão de todo o processado, referente ao proc. n.º 3/20..., constante do Anexo 1;

- Certidão de todo o processado, referente ato proc. n.º ...18, constante do Anexo 2;

r)         Depoimentos de testemunhas que se encontram a fls. 8-10; 11-13; 71-74; 75-76; 98-99; 292-293; 294; 308-309; 330-331 e 499-500;

            B.         Conclui-se que existe séria probabilidade de o arguido ser condenado pela prática de, pelo menos, um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 10.º, 13.º, 15.º, al. b) e 137.º, n.º 1, em concurso aparente com um crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelos arts.10.º, n.º s 1 e 2, 14.º, n.º 1, 2.6.º e 150.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal e ambos os crimes com referência ao art. 26.º, 1ª parte, do mesmo diploma, após subsunção dos factos a julgamento.

C.        Por conseguinte, como se defende no presente recurso, deveria a Meritíssima Juiz ter pronunciado o arguido pela prática dos crimes de que vinha acusado.

TERMOS EM QUE, pelos fundamentos expostos nas presentes alegações de recurso, deverá ser revogado o douto despacho de não pronúncia e substituído por outro que pronuncie o arguido pelos crimes de que estava acusado, nos termos da acusação pública, fazendo-se JUSTIÇA.


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Respondeu aos recursos o arguido pugnando pela manutenção da decisão de não pronúncia.

Remetidos os autos a este Tribunal de novo o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.


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            Foi cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal (doravante CPP).

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            Após os vistos, foram os autos à conferência.

            II.

            Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões de recurso que delimitam a apreciação a fazer, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

            Analisando as sínteses conclusivas temos como questão fulcral a apreciar a de saber se os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito apontam para a possibilidade de o arguido vir a ser condenado caso venha a ser sujeito a julgamento.

                                                                       *

            É o seguinte o teor da decisão recorrida (transcrição):

I-Relatório:

            Em Processo Comum, com Intervenção do Tribunal Singular, o MP acusou:

            AA, médico, casado, nascido em ../../1957, filho de AA e de FF, titular do BI n.º ...81 e residente na Rua ..., ..., ... ..., ..., ...,

            Imputando-lhe:

            Em autoria material e na forma consumada, um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 10.º, 13.º, 15.º, al. b) e 137.º, n.º 1, em concurso aparente com um crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelos arts. 10.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.º 1, 26.º e 150.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal e ambos os crimes com referência ao art. 26.º, 1.ª parte, do mesmo diploma.

            Inconformado com esse despacho veio o arguido requerer a abertura de instrução, alegando a inexistência de negligência

            Foi admitida a instrução.

            Foi inquirida uma testemunha em sede de instrução.

            Designou-se data para o debate instrutório e procedeu-se à realização do mesmo.


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            O Tribunal é competente e as partes são legítimas.

            Inexistem nulidades

            Não há qualquer questão prévia ou incidental que cumpra conhecer.

            II-Fundamentação da Decisão:

            Cabe agora proferir a decisão a que alude o art. 307º do CPP.


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            Tal como refere o art. 286º, nº1 do CPP “ A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

            De acordo com o artigo 308º, nº1 do mesmo diploma preceitua que: “ Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

            Por sua vez o art. 283º, nº 2 refere que: “ Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

            Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronuncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se poder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança”.

            Assim, em sede de instrução visa-se concluir pela existência, ou não, de indícios suficientes que permitam sujeitar o arguido a julgamento.

Citando o Professor Figueiredo Dias: “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” ( Direito Processual Penal, vol. 1, 1974, pág. 132-133).

            E como refere Jorge Noronha e Silveira: “Afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia” (O conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, p. 171).

            Assim, deverá ser proferido despacho de pronúncia quando os elementos de prova permitem criar a convicção de que o arguido virá a ser condenado em julgamento.

            Tal acontece quando a prova reunida em inquérito e instrução criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, o arguido terá sérias probabilidades de vir a ser condenado.

            No entanto, apesar de não se exigir em sede de instrução o juízo de certeza jurídica imposto em sede de condenação, impõe-se sempre que os elementos colhidos em inquérito e instrução, apontem para uma probabilidade sustentada de condenação.


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            No caso concreto encontra-se o arguido acusado da prática de um crime de homicídio negligente, p.p.p artigo 137, nº1 do CP:

            De acordo com a citada norma:

            “1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

            2. (...).

            E segundo o art. 15º do CP:

             “ Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz”.

            Deste modo, excluído o dolo, nem por isso se torna impossível um juízo de censura ao agente, pois tal juízo pode ter lugar com base na negligência.

            É possível censurar a realização de um tipo legal de crime a um agente, na medida em que este omitiu aqueles deveres de diligência, a que segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos pessoais, era obrigado, e que em consequência disso não previu- como podia- aquela realização do crime (negligência inconsciente), ou, tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar (negligência consciente).

            Existe, portanto, negligência sempre que uma conduta em si, sem os necessários cuidados e cautelas seja adequada a produzir um evento. É um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objetivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência. Cuidados e cautelas que não têm necessariamente a sua fonte num preceito legal, mas simplesmente na sua adequação a evitarem um resultado.

            No entanto, a omissão do dever objetivo de cuidado, não justifica, só por si, a punição a título de negligência. O elemento constitutivo do tipo de culpa negligente é traduzido pelo art. 15º do C.P., na parte em que considera que age com negligência, apenas aquele que não proceda “ com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que era capaz”. E esta capacidade de cumprimento do dever objetivo de cuidado, é o mais autêntico elemento configurador da censurabilidade da negligência e, assim, do conteúdo de culpa, ou seja, o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever-ser- jurídico penal.

            Tal como refere o Prof. Figueiredo Dias “.... Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjetivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem coma as qualidades e capacidades do agente. Se fosse esperara dele que respondesse às exigências do cuidado objetivamente imposto e devido- mas só nessas condições- é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respetiva punição”.

            Cumpre ainda fazer uma breve análise sobre o crime previsto no artigo 150, nº2 do CP

Dispõe o tipo em causa:

“1 - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.

2 - As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal”.  

             São elementos constitutivos do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, os seguintes:

- A realização de intervenção ou tratamento por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com propósito curativo, e com violação das leges artis;

- A criação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, em consequência da inobservância das leges artis; 

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto (que deverá abranger todos os elementos do tipo objetivo, ou seja tem de abarcar a intervenção com violação da legis artis e o perigo).

            Trata-se de um crime específico próprio, pois só pode ser praticado por agente qualificado isto é, por médico ou por outra pessoa legalmente autorizada a levar a cabo a intervenção ou o tratamento.

            Além disso, trata-se de um crime de perigo concreto na medida em que o perigo faz parte do tipo.

            Estamos, ainda, perante um crime de execução vinculada e um crime doloso, em que o dolo abrange a conduta típica – a realização de intervenção ou um tratamento com propósito terapêutico, mas com violação das leges artis – e o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde.

            Assim, parece manifesto que não estará preenchido o tipo, quer quando o dolo do agente abarca a ofensa grave à integridade física ou a morte (nestes casos, os tipos preenchidos serão o de ofensa á integridade física e o de homicídio, respetivamente), quer quando a conduta típica, a violação das leges artis tiver ocorrido por negligência.

            Além disso, de acordo com o artigo 10º do CP:

            “1- Quando um tipo legal de crime compreender certo resultado o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.

2- A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado.”

            Logo, a omissão no tipo legal em causa terá de consistir na realização de intervenção ou tratamentos desapropriados, em detrimento da realização da intervenção ou tratamentos apropriados.

            Exige-se, ainda, o nexo de causalidade, sendo que este se verifica, quando o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde é consequência  previsível das intervenções ou tratamentos violadores das leges artis, no entender de uma pessoa média colocada na posição concreta do agente.


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            Dos indícios:

            Iniciaram-se os presentes autos com a informação que consta de fls. 3, mais concretamente com a comunicação do óbito da menor de 15 anos CC, e isto no dia 29 de janeiro de 2018, pelas 9:13h.

            Nesse mesmo dia, pelas 10:40 foi inquirida a testemunha GG, avô paterno da vitima que referiu que, a neta encontrava-se doente há alguns dias, do género constipação ou similares, tendo ido ao centro de saúde com a mãe, onde foi medicada, tendo voltado a esse Centro de Saúde no dia 28 onde foi mandada para casa com a indicação de continuar com a medicação (cfr auto de inquirição de fls. 11).

            Foi inquirida a testemunha DD, pelas 11:30, tio da vítima, que referiu que a sua sobrinha se encontrava doente desde quinta-feira, com sintomas gripais, queixando-se de dores de costas e com tosse, tendo ido ao Centro de Saúde com a mãe, tendo-lhe sido receitada medicação.

            Contudo, no domingo a CC queixava-se de dores de costas e do peito, dificuldade em respirar, tinha tosse, dores no copo e vómitos, tendo sido levada pelo pai, novamente, ao Centro de saúde, onde foi vista pelo Dr. AA, que reafirmou que ela já se encontrava medicada e que devia continuar com a medicação, tendo-a encaminhado para casa.

            Foram juntos os registos clínicos das consultas da menor, CC, nomeadamente a que respeita à consulta efetuada pelo ora arguido (cfr. fls. 44).

            Dessa ficha consta que voltou por manter tosse, que iniciou quadro de diarreia, presumível gastroenterite com infeção, apirética, abdómen depressivo e sem defesas e ACP-sem alterações.

            Foi junto o relatório de autópsia (cfr. fls. 58).

            Do relatório consta como causa da morte infeção bacteriana pulmonar, pleural, traqueal, laríngea e das amígdalas, consistente com sobreinfecção bacteriana.

            Consta ainda que a pleura parietal e cavidade pleural direita continha cerca de 350cc de líquido sanguinolento e a pleura parietal e cavidade pleural esquerda continha cerca de 50cc de líquido sanguinolento.

            A fls. 71 dos autos, consta o auto de inquirição do ora assistente, que referiu que no dia 26 de janeiro a sua esposa levou a CC ao Centro de Saúde onde lhe foi administrada medicação para a gripe. Que no domingo a menina disse que lhe doía o peito e as costas, tendo vomitado a seguir ao almoço. Perante tal levou-a ao Centro de Saúde ... onde foi atendida pelo Dr. AA, tendo-lhe transmitido que a filha tinha sido vista na sexta feira, que tomou a medicação prescrita, mas que lhe doía o peito e as costas. Que o medico auscultou a menina na zona das costas, na zona dos rins, e que com as mãos lhe pressionou a zona do peito perguntando se lhe doía, tendo a mesma dito que não. Perante isto o Dr. AA disse: “os medicamentos ainda não fizeram efeito e vocês já vêm para aqui”.

            Referiu, ainda, que o médico não a mandou abrir a boca que a mandou respirar mais devagar porque ninguém estava a morrer e que aquilo era uma gripezita, receitando-lhe mais dois medicamentos, não obstante o lhe ter pedido para ver bem a filha pois ela não era de se queixar.

            Esclareceu que a filha tomou banho, que lhe pediu para lhe fazer uma massagem porque lhe doíam as costas, tendo de seguida tido que já se sentina melhor e que pelas 6h a menina começou a sentir-se mal, com muitas dores nas costas e peito e apresentava-se gelada, acabando por perder os sentidos quando aguardavam pelo INEM, perdendo sangue pelo nariz e pela boca.

            Foi inquirida a testemunha HH, mãe da menor, que referi ter levada a filha ao Centro de Saúde no dia 26, onde foi vista pelo Dr. II, dizendo-lhe que ela se queixava de dores no peito.

            Também esclareceu os sintomas que a filha apresentava nos dias seguintes, nomeadamente diarreia e vómitos, tendo o marido trazido medicação da farmácia para tal.

            A fls. 98 consta o auto de inquirição de II, médico que assistiu a menor no dia 26 de janeiro, que confirmou ter auscultado a mesma, tendo ainda observado a garganta, não apresentando a mesma qualquer alteração, tendo diagnosticado gripe.

            A fls. 100 consta o auto de inquirição do ora arguido, ouvido como testemunha, que refere que consultou a menor no dia 28, que a mesma não se queixava de dores de peito, nem de costas, queixando-se de vómitos, diarreia e dores abdominais. Que se apresentava apirética, sem dispneia e com auscultação cardiopulmonar normal. Referiu não se recordar se viu a zona da garganta, mas que a mesma não se queixava de dores de garganta. 

            Que não equacionou a hipótese de um diagnostico diferente, pois se assim fosse tinha remetido para exames complementares.

            A fls. 121 dos autos consta o parecer de consulta técnico cientifica emitido pelo INMLCF, constando do mesmo que: “ A morte da doente, segundo o relatório de autopsia, foi completamente imprevisível, não havendo qualquer indício nos dias 26 e 28.1.2018, tanto na sintomatologia apresentada como no exame físico realizado, de que estivesse em evolução um quadro séptico como o que foi demonstrado com envolvimento de vários órgãos vitais, sobretudo a nível das vias aéreas”.

            No âmbito do processo do IGAS foi solicitada uma peritagem médica a um assistente graduado de infeciologia pediátrica.

            Tal peritagem concluiu que pelo relato dos pais a atitude médica não foi a adequada, não tendo a criança sido devidamente avaliada e, como tal, não foi diagnosticada, nem tratada, nem referenciada ao hospital, mas que pela descrição do médico  não estavam presentes sinais de gravidade nem de pneumonia e que a manutenção da tosse e o aparecimento da diarreia pode suceder num contexto de gripe e que a infeção bacteriana teria pouca tradução aquando da observação e a morte seria devido a choque séptico rapidamente evolutivo durante a noite.

            Consta ainda desse relatório que a presença de derrame com um volume de 350 ml, descrita na autopsia teria tradução na auscultação pulmonar, mas não se pode saber se estaria presente com este volume no momento da observação médica e que qualquer uma das bactérias detetadas pode ser responsável por um quadro de choque séptico que pode evoluir rapidamente para a morte.

            Foram inquiridas a médica do VMER e a enfermeira, que apenas esclareceram os procedimentos tidos no local.

            A fls. 308 consta o auto de inquirição da testemunha JJ, que referiu ter sido o instrutor do processo de inquérito da IGAS do ora arguido que deu origem a um processo disciplinar e que mencionou, tendo em conta, nomeadamente os depoimentos dos pais da menor e o parecer do perito Dr. KK, ter ficado convencido que o ora arguido não efetuou uma avaliação cabal e ponderosa da situação clínica apresentada pela criança, que apresentava uma quadro de bastante gravidade. 

            Foi junto um parecer, cuja avaliação, foi solicitada pelos assistentes, subscrito pela médica EE que concluiu ser de admitir que a conduta médica em causa configura a violação da legis artis, nomeadamente que houve desvalorização da sintomatologia descrita como sensação de falta de ar e dor torácica.

            Quando interrogado, o arguido confirmou o depoimento anteriormente prestado como testemunha, referindo que a CC não apresentava sintomas, nem sinais de pneumonia e que a mesma se encontrava sem dificuldades respiratórias e com auscultação cardiopulmonar normal.

            Fazem parte dos presentes autos o anexo I respeita o processo do IGAS.

            Com mencionado o processo de inquérito deu origem a um processo disciplinar, no qual o arguido apresentou defesa, tendo tal processo sido arquivado.

            Do relatório final que concluiu pelo arquivamento, consta existir dúvida razoável sobre os sintomas apresentados pela utente na consulta do dia 28, não constando do registo clínico febre, sensação de falta de ar e dores no peito e costas, não havendo a certeza que as mesmas se apresentavam de forma a serem objeto de valoração clínica e a despoletarem suspeita de pneumonia.

            Fazem, ainda, parte dos presentes autos o anexo II, referente ao processo disciplinar aberto por parte da Ordem dos Médicos, que, também terminou em arquivamento.

            A fls 128 desse anexo consta um parecer, que foi solicitado pela Ordem dos Médicos ao Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar.

            Esse colégio concluiu que “ Na análise do processo clínico da menina CC não se encontram indícios de uma prática desadequada  à situação clínica  conforme se apresentou nas consultas de 26/01/2018 e 28/01/2018, nem de atitudes negligentes ou má prática dos médicos envolvidos”

            Nesse parecer faz-se constar na avaliação dos factos, que: “não havendo outros elementos de prova que possam resolver a aparente discordância dos testemunhos, consideramos o registo clínico e a expectável evolução da história natural da gripe”.

            Consta ainda desse parecer que a sobreinfeção bacteriana pode aparecer em 0,5% dos casos de gripe em adultos saudáveis, que o diagnóstico é difícil, mas que se deve suspeitar em doentes que apresentam sintomas gripais e dispneia, taquipneia, hipoxia ou sinais de sépsis  e que no caso em análise não foram registados sinais clínicos de gravidade, inexistindo alusão a tais características no registo clínico . Finalmente com relevância consta ainda desse parecer que entre a observação da menor e a hora do óbito é possível uma progressão rapidamente evolutiva no tempo. 

            No relatório do processo disciplinar da OM, faz-se constar que o processo do IGAS, que ordenou a instauração de processo de inquérito, retirou a conclusão sobre a negligência do ponto 2.2.1 das conclusões do parecer do perito médico, sem ter em conta a conclusão 2.2.2, que indiretamente colocou aquela em causa, o que levou a Ordem a solicitar um parecer ao Colégio da Especialidade, cujos pareceres têm natureza pericial, sendo que o mesmo não se baseou nas versões contraditórias dos pais ou do médico, mas em dados objetivos como os registos clínicos (cfr. fls. 146 do anexo).

            O parecer do Colégio da Especialidade é subscrito por 14 médicos. 

            Em sede de instrução foi inquirida uma testemunha, médico pneumologista que confirmou a versão do arguido, nomeadamente que não era expectável, tendo em conta os sintomas que a menina apresentava que a mesma viesse a desenvolver um quadro de septicémia, bem como que à data da consulta os sintomas, nomeadamente de pneumonia não eram percetíveis.      

            Esta foi a prova carreada para os autos.

            Ora, perante esta prova, conjugando-a entre si, e não obstante o trágico desfecho da situação em análise, que todos nós lamentamos, cumpre concluir pela existência, ou não, de indícios suficientes da prática dos factos.

            Desde logo e tendo em conta a especificidade da matéria em causa, tem o Tribunal de se socorrer dos pareceres e peritagens emitidas nos autos.

            Assim, como referido temos os seguintes pareceres/periciais:

            - O parecer de consulta técnico cientifica emitido pelo INMLCF, constando do mesmo que : “ A morte da doente, segundo o relatório de autopsia, foi completamente imprevisível, não havendo qualquer indício nos dias 26 e 28.1.2018, tanto na sintomatologia apresentada como no exame físico realizado, de que estivesse em evolução um quadro séptico como o que foi demonstrado com envolvimento de vários órgãos vitais, sobretudo a nível das vias aéreas”;

            - A peritagem médica de um assistente graduado de infeciologia pediátrica, que  conclui que pelo relato dos pais a atitude médica não foi a adequada, não tendo a criança sido devidamente avaliada e, como tal não foi diagnosticada, nem tratada, nem referenciada ao hospital, mas que pela descrição do médico  não estavam presentes sinais de gravidade nem de pneumonia e que a manutenção da tosse e o aparecimento da diarreia pode suceder num contexto de gripe e que a infeção bacteriana teria pouca tradução aquando da observação e a morte seria devido a choque séptico rapidamente evolutivo durante a noite;

            - Um parecer do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar, constituído por 14 médicos que concluiu que “ Na análise do processo clínico da menina CC não se encontram indícios de uma prática desadequada  à situação clínica  conforme se apresentou nas consultas de 26/01/2018 e 28/01/2018, nem de atitudes negligentes ou má prática dos médicos envolvidos”;

            - Finalmente temos um parecer, solicitada pelos ora assistentes, subscrito pela médica EE, que concluiu ser de admitir que a conduta médica em causa configura a violação da leges artis, nomeadamente que houve desvalorização da sintomatologia descrita como sensação de falta de ar e dor torácica.

            O parecer do INMLCF conclui por morte, de acordo com o relatório de autópsia, completamente imprevisível, não havendo qualquer indício nos dias 26 e 28.1.2018, tanto na sintomatologia apresentada como no exame físico realizado, de que estivesse em evolução um quadro séptico. Tal parecer afasta qualquer comportamento negligente por parte do arguido.

            Por seu turno, a peritagem do assistente médico graduado, Dr. KK, coloca duas hipóteses, ou seja a ser verdade o relato dos pais a atitude do médico não é adequada, mas a ser verdade a versão do médico não estavam presentes sinais de gravidade nem de pneumonia. Logo, deste parecer não se pode concluir pela existência, ou não, de negligência por parte do arguido, tudo dependendo das versões apresentadas.

            Finalmente não podemos deixar de salientar o parecer do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar, que refere que na análise do processo clínico da menina CC não se encontram indícios de uma prática desadequada à situação clínica. Tal parecer subscrito por 14 médicos, não se baseou em nenhuma das versões contraditórias, mas exclusivamente nos elementos objetivos que resultavam dos registos clínicos.

            Tais pareceres e perícias foram emitidos por entidades independentes que merecem toda a credibilidade a este Tribunal.

            Acresce que de nenhum deles, nem do subscrito pelo Dr. KK, pode o Tribunal concluir que o arguido atuou de forma negligente.

            A tal conclusão só poderíamos chegar se ignorássemos a totalidade do parecer do Dr. KK, bem como os restantes pareceres, e concluíssemos que a versão apresentada pelo assistente se encontra suficientemente indiciada, nomeadamente, que é mais credível que a versão do arguido.

            E, como se refere no despacho de arquivamento do Conselho Geral da Ordem dos Médicos, e inexistindo outros elementos que nos permitam chegar a outra conclusão, temos de nos socorrer dos elementos clínicos, elementos esses objetivos, que não permitem concluir por qualquer violação da leges artis.

            Acresce que, tal como resulta de todos os pareceres mencionados e periciais é possível uma progressão rápida da doença nomeadamente após a menor se observada.

             Perante o exposto temos de concluir que a acusação proferida nos presentes autos baseou-se, exclusivamente, nas declarações dos pais da menor e na conclusão 2.1 do perito do IGAS. Contudo, não considerou a conclusão 2.2 subscrita pelo mesmo perito. De facto, o perito do IGAS não conclui pela negligência do arguido, nem pela violação da legis artis, sendo claro quando afirma que a conclusão extraída é condicionada pelos relatos fornecidos pelo médico, versus os fornecidos pelos pais. Aliás, a instauração do processo disciplinar por parte do IGAS, baseou-se nos mesmos pressupostos da acusação, ou seja, no relato dos pais e na conclusão 2.1 do perito do IGAS, sendo certo que tal processo foi arquivado, precisamente com o argumento que existe dúvidas sobre os sintomas de febre, sensação de falta de ar e dores no peito e costas, os quais não constam do registo clínico.

            Pelo contrário, do registo clínico consta que a menor estava apirética, ou seja sem febre, com a ACP (auscultação cardiopulmonar) sem alterações, não constando qualquer referência a inexistindo referência a dispneia, taquipneia ou hipoxia.

            Como concluiu a Ordem dos Médicos (cfr. fls. 146 do anexo) nem sequer há qualquer contradição entre o parecer do Colégio da Especialidade e o do perito do IGAS, tendo em conta as diferentes metodologias seguidas.

            E em relação ao parecer do Colégio de Especialidade trazemos à colação o ac. da RG de 11.6.2019, onde se escreve:

            “I. Vindo imputado um crime de homicídio negligente decorrente da inobservância das leges artis da profissão dos arguidos (médicos), a prova pericial – especialmente a contida nos pareceres disponibilizados pelo Conselho Médico-Legal ou pelos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos – assume uma essencial e determinante importância na aferição da causa do resultado e da violação dos deveres de cuidado, por envolver um “plus” de conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal, sendo, por isso, um elemento probatório vinculadamente avaliável”.

            Como mencionado, na situação concreta temos um parecer do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos que conclui não existirem indícios de uma prática desadequada à situação clínica conforme se apresentou nas consultas de 26/01/2018 e 28/01/2018, nem de atitudes negligentes ou má prática dos médicos envolvidos.

            Assim, tendo em conta os elementos objetivos juntos aos autos e os vários pareceres emitidos por vários médicos, nomeadamente por um Colégio de Especialidade constituído por 14 médicos, não nos parece que se possa concluir que existem indícios suficientes de à data da consulta da menor esta apresentar sintomas de sinais clínicos de gravidade, que impusessem outro tipo de conduto por parte do arguido, ou seja que o quadro apresentado não fosse compatível com um quadro de gripe normal. Alias, a este respeito concluiu o IML que a morte da menor foi completamente imprevisível, não havendo qualquer indício, nos dias 26 e 28.1.2018, tanto na sintomatologia apresentada como no exame físico realizado, de que estivesse em evolução um quadro séptico.

            Tais pareceres não são infirmados nem pela perícia solicitada pelo IGAS, pelos motivos já analisados, e com bem explica o parecer do Colégio, nem pelo parecer solicitado pelos assistentes que parte do princípio, valorando, apenas, os depoimentos dos assistentes, que os sintomas, nomeadamente de pneumonia já eram percetíveis à data da consulta e que foram desvalorizados pelo arguido.

            A sintomatologia que consta do registo clínico é compatível com um quadro de evolução natural de gripe, como se extrai dos vários pareceres/perícias.

            Alias, a mãe da menor quando inquirida referiu que já no dia 26, quando foi pela primeira vez ao Centro de Saúde, a filha dizia que lhe doía o peito, sendo que do registo clínico de fls 45, nada consta a esse respeito, antes pelo contrário apenas foi registado exame clínico normal. 

            Tudo isto, faz, pelo menos, suscitar a dúvida razoável, sobre os factos, nomeadamente a duvida sobre os sintomas que a menor apresentava.

             Tal como se escreve no ac. da RG de 12. 10. 2020:

            “I- (…)

            II) A suficiência dos indícios para proferir despacho de pronúncia deverá ser aferida em função da existência, no quadro probatório disponível nos autos, de uma probabilidade elevada ou particularmente qualificada de condenação, assente numa convicção que, num juízo de prognose, tenha a potencialidade de, em julgamento, ultrapassar a barreira do princípio in dubio pro reo.

            III) Só este critério da possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o princípio in dubio pro reo”.

            Ora, atento o exposto, a barreira do “pincipio in dúbio pro reo”, no caso concreto, não poderá ser ultrapassada em fase de julgamento.    

            Como se escreve no ac. do STJ de 25.2.2015: “- A Responsabilidade médica, por negligência, por violação das “leges artis“ tem lugar sempre que por indesculpável falta de cuidado seu, o médico deixa de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, lhe eram de exigir, em função da sua qualidade profissional”.

            Não obstante o desfecho trágico da situação em análise e a dor imensurável da perda de um filho, não podemos concluir que existem indícios suficientes que a morte da menor possa ser imputada ao ora arguido, nomeadamente que o mesmo indesculpavelmente deixou de prestar os cuidados que lhe eram exigíveis.

            Aliás, como nos explicou o médico especialista em pneumologia, inquirido em sede de instrução, mesmo que a situação tivesse sido detetada na consulta de 28, não é garantido que a menor tivesse sobrevivido, ou seja nem sequer resulta dos autos, nomeadamente das periciais realizadas, que se focam na questão do arguido ter atuado, ou não, como lhe seria exigível, que a ter sido detetada a septicemia a menor tivesse sobrevivido tendo em conta o quadro e a gravidade com que a mesma se desenvolveu.

            Assim, tendo em conta a prova produzida, nomeadamente documental e pericial a que aludimos:

            - Encontra-se suficientemente indiciado que:

            - À data dos factos infra descritos, o arguido era Médico e prestava serviços de clínica geral no Serviço de Atendimento Complementar (SAC) do Centro de Saúde ..., em ..., Distrito ...;

            - Até à data dos factos infra descritos, CC, filha de BB e de HH, nascida a ../../2003, então com 14 anos de idade e residente na Estrada Municipal n.º ...7, ..., ..., era uma criança saudável, não padecendo de problemas de saúde, designadamente crónicos, que pudessem influir nos factos em questão, sendo que a mesma cumpria com o Plano Nacional de Vacinação actualizado, acrescido de 3 doses de vacina anti-pneumocócica (Prevenar n.º 7).

            - No dia 26/01/2018, em hora que não foi possível apurar, mas certamente antes das 20:07h, por experienciar febre (com a sua temperatura corporal de, pelo menos, 38,2º C), tosse seca, congestão nasal, dores no corpo, particularmente no peito, quando tossia e mal-estar generalizado, CC foi transportada e acompanhada pela sua progenitora, HH, ao/no Centro de Saúde ....

            -  Ali chegada, e na companhia da sua progenitora, CC foi observada, pelas 20:07h, por II, Médico de medicina geral e familiar, à data em exercício de funções no SAC do Centro de Saúde acima referido, o qual, após auscultação cardiopulmonar e observação de garganta e ouvidos daquela, registou os sintomas de “tosse”, “espirro/congestão nasal” e “febre”, sendo que, por referência à sintomatologia e à época sazonal, concluiu pelo diagnóstico de “gripe”, atribuiu alta para o domicílio e prescreveu, em receita médica, os seguintes fármacos, com o respectivo regime de toma:

            a. “Nasexm 0,05% x 15 sol pulv nasal”, em “2 nebulizações 2 vezes por dia”;

            b. “Lavotuss, 60 mg x 20 comp”, em “1 comprimido de 8 em 8 horas”;

            c. “Ib-u-ron, 400 mg x 20 comp revest”, em “1 comprimido, de 8 em 8 dias”;

            d. “Ben-U-Ron, 500 mg x 20 comp”, em “1 comprimido e meio de 6 em 6 horas”.

            - Nessa sequência, a receita médica acima aludida foi aviada e CC foi transportada para a sua residência, tendo ingerido os fármacos acima descritos, de acordo com o prescrito pelo médico que a havia observado anteriormente.

            - Acontece que, como a CC mantinha a tosse e iniciou um quadro de diarreia e vómitos, no dia 28/01/2018, no período temporal compreendido entre, sensivelmente, as 15:00h e as 16:00h, aquela foi transportada e acompanhada pelo seu progenitor, o assistente BB, ao Centro de Saúde acima identificado;

            -  Assim, pelas 16:47h desse dia, CC, na presença do assistente, foi assistida pelo arguido AA;

            - Durante a consulta, o arguido, nomeadamente, verificou o histórico clínico de CC, mormente a consulta descrita em 4., respectiva observação, diagnóstico atribuído e tratamento farmacológico prescrito;

            - Fez constar os elementos que constam do registo clínico da consulta junto aos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, nomeadamente que a doente voltou por manter tosse, que s estava apirética e que a ACP não tinha alterações.

            -. Determinou a CC o tratamento farmacológico e respetivo regime de toma nos seguintes termos:

            a. não continuar com a toma de “Levotuss” e “Brufen” (que CC havia começado a tomar tendo em conta as dores que experienciava, entre a consulta supra referida e a prestada pelo arguido);

            b. continuar a toma de “Ben-U-Ron”, “UL 250 mg” e “Imodium” (sendo que CC havia começado a tomar os dois últimos fármacos por força dos sintomas de diarreia, entre a consulta supra referida e a prestada pelo arguido), em “um á noite”;

            c. iniciar a toma de “Desloratina” (devido à tosse seca que CC manifestava) e “Cinet” (para tratar as náuseas), em “3x ao antes de comer”;

            - Assim, o arguido registou, no processo clínico de CC, o seguinte: “voltou por manter tosse; iniciou quadro de diarreia (já medicada pela farmácia com imodium + UL-250); apirética; abdómen depressivo e sem defesas; apirética; ACP – sem alterações; gastroenterite com infecção presumível; Imperidona (Cinet), 10 mg; Desloratadina, 5 mg” (cf. registo clínico de fls. 44, cujo teor se dá por integralmente reproduzido na presente acusação, por razões de economia processual e desnecessidade de transcrição, para todos os efeitos legais);

            - Posteriormente, no mesmo dia, a receita médica acima referida foi aviada e CC foi transportada para a sua residência, tendo ingerido os fármacos acima descritos, de acordo com o prescrito pelo arguido;

            - Após, já na sua residência, em hora que não foi possível apurar, CC experienciou aumento da sua temperatura corporal, sentindo calor e, ainda, dores nas costas, na sequência do que tomou banho, para se refrescar e, posteriormente, entre as 22:00h e as 23:00h, foi para o seu quarto descansar;

            - Porém, pelas 06:00h do dia 29/01/2018, CC ficou indisposta e teve dores no peito e nas costas, bem como redução da sua temperatura corporal, experienciado frio;

            - Mercê dos sintomas de CC, foram acionados os serviços de socorro para a sua residência, sendo que, antes de os mesmos chegarem ao local, aquela perdeu os sentidos;

            - Nesse contexto, o assistente contactou telefonicamente com o INEM, tendo-lhe sido dadas instruções de manobras de suporte de vida, como respiração bocal, as quais não tiveram qualquer resultado;

            - Quando os serviços do INEM chegaram ao local, em hora que não foi possível apurar, mas situada entre as 06:00h e as 07:08h, CC já não apresentava pulsação e brotava sangue pelo nariz e boca;

            - Pese embora as manobras de suporte de vida realizadas pelos técnicos do INEM, CC veio a falecer na sua residência, tendo o seu óbito sido verificado pelas 07:38h do dia 29/01/2018;

            - O óbito de CC foi devido a infecção bacteriana (Gram +) pulmonar [com edema muito marcado (70%): agudo], pleural [com pleurite fibrinosa], traqueal, laríngea e das amígdalas [amigdalite aguda incipiente], alterações morfológicas essas consistentes com sobreinfecção bacteriana (cf. relatório de autópsia de fls. 56-61v, cujo teor se dá por integralmente reproduzido na presente acusação, por razões de economia processual e desnecessidade de transcrição, para todos os efeitos legais).

            Não resulta suficientemente indiciado que:

            - O arguido apenas auscultou os dois lados da parte inferior da paciente, junto aos rins, durante uns segundos, não tendo auscultado a zona dos pulmões de qualquer forma ou modo;

            - O arguido não tenha valorizado uma respiração mais arquejante da menor;

            - O arguido foi instado pelo assistente para observar a menor pelo facto da mesma ter dores no peito, não o tendo feito;

            - O arguido não tenha atendido a toda a sintomatologia que lhe foi comunicada por CC e pelo assistente, bem como a por si constatada, nomeadamente que à data a mesma apresentasse problemas respiratórios, que sugeriam a presença de pneumonia bacteriana com dificuldade respiratória e que tivessem que levar, ao encaminhamento a qualquer Hospital;

            - O arguido soubesse que as leges artis lhe impunham, em face da sintomatologia apresentada, de agravamento de anteriores sintomas e surgimento de novos, que fosse realizado um estudo complementar e mais minucioso de diagnóstico, bem como que fossem utilizados todos os meios complementares de diagnóstico à sua disposição e que a situação da paciente CC, lhe impunha, designadamente, uma observação e auscultação da zona da boca e garganta e dos pulmões da mesma.

            - O arguido não tenha  procedido com o cuidado devido a que estava obrigado e era capaz, tendo em conta a sintomatologia apresentada e a evolução do estado clínico de CC, em momento em que esta estava entregue aos seus cuidados e sob a sua responsabilidade, não tendo valorizado as queixas verbalizadas por esta e pelo seu progenitor, que revelavam pneumonia bacteriana com dificuldade respiratória;

            - A observação e auscultação da zona da boca e garganta e dos pulmões de CC, teriam permitido ao arguido a determinação e administração do tratamento adequado àquela, mormente de antibióticos ou, pelo menos, o seu encaminhamento para um Hospital, a fim de ali ser melhor observada e iniciar o respectivo tratamento e, dessa forma, evitar o resultado morte;

            - O arguido não interpretou corretamente os sintomas acima referidos nem adotou os procedimentos de observação e análise que eram devidos, não tendo orientado devidamente o processo de diagnóstico e tratamento de CC, optando por medicá-la e atribuído alta para o domicílio, nos termos acima descritos;

            - Fosse exigível a qualquer médico, em circunstâncias como as do arguido à data dos factos, que interpretasse corretamente a sintomatologia que lhe foi comunicada por CC e pelo progenitor desta e constatada pelo próprio arguido, porquanto, por força da sua formação académica, conhecimentos e capacidades pessoais, podia e devia ter interpretado o quadro clínico acima referido, que conhecia, como indiciador de pneumonia bacteriana com dificuldade respiratória e, consequentemente, decidir-se pelos procedimentos de observação e auscultação supra descritos, de prescrição de antibióticos, ou, pelo menos, de encaminhamento de CC a um Hospital, de modo a que CC ali pudesse ser melhor observada, sendo estas as únicas formas de evitar o resultado morte;

            - A morte de CC foi consequência direta e necessária da omissão, por parte do arguido, das precauções e cautelas mais elementares exigidas pelas boas práticas da sua profissão;

            - O arguido violou as leges artis típicas da sua profissão, por não ter utilizado em tempo útil todos os conhecimentos científicos de aplicação possível e todos os meios de que dispunha para diagnóstico e tratamento da paciente que lhe estava naquele momento confiada;

            - O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

            Pelo exposto;

            III- Decide-se:

            - Não pronunciar o arguido pelos factos e pelo crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 10.º, 13.º, 15.º, al. b) e 137.º, n.º 1, em concurso aparente com um crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelos arts. 10.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.º 1, 26.º e 150.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal e ambos os crimes com referência ao art. 26.º, 1.ª parte, do mesmo diploma, que constam da acusação.

            (…)


*

            Apreciação dos recursos.

            Questão prévia: não obstante serem dois os recorrentes, a questão central a tratar e acima identificada é a mesma (a de saber se os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito apontam para a possibilidade de o arguido vir a ser condenado em julgamento), pelo que a apreciação dos recursos será feita em simultâneo.

                                                                       *

            Nos termos do artigo 308º do CPP se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos, caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

            Entendeu a juiz a quo que os indícios recolhidos não foram suficientes para sujeitar o arguido a julgamento, uma vez que adquiriu a convicção de que em julgamento o arguido não viria a ser condenado.

            Compete agora a este tribunal da Relação avaliar se a análise dos indícios existentes nos atos impunha decisão diversa.

            Antes de mais há que enquadrar a questão juridicamente a partir da qualificação dos factos constantes da acusação que imputa ao arguido, em autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 10.º, 13.º, 15.º, al. b) e 137.º, n.º 1, em concurso aparente com um crime de omissão de tratamentos médicos e cirúrgicos com violação das leges artis, p. e p. pelos arts. 10.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.º 1, 26.º e 150.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal e ambos os crimes com referência ao art. 26.º, 1.ª parte, do mesmo diploma.

            O crime de homicídio por negligência está previsto no artigo 137º, nº 1 do Código Penal que estipula que quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Trata-se de uma especialização do tipo matricial constante do artigo 131º do Código Penal a partir da qual se protege o mais importante bem jurídico: a vida humana. Portanto, incorre na prática deste crime quem causar, por negligência, a morte de outrem.

            A negligência, por sua vez, está prevista no artigo 15º do mesmo código que preceitua que “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

            A decisão recorrida trata a questão sob o ponto de vista doutrinal, pelo que não se impõe repetir considerações de direito. No entanto, sempre se diga, a partir dos ensinamentos do Professor Figueiredo Dias ( cfr. Direito Penal – Parte Geral – Tomo I – Questões Fundamentais da doutrina Geral do Crime, 3ª ed, Gestlegal, 2019, pág. 1001 e ss ) que o tipo de ilícito negligente se consubstancia na violação pelo agente de um dever de cuidado que sobre ele juridicamente impende, sendo que tal violação projeta o desvalor da ação, ao qual acrescerá um desvalor de resultado, traduzido na “ produção, causação e previsibilidade” do evento típico, evento este que deverá ser previsível e evitável para um homem prudente, dotado das capacidades do “homem médio”, pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente.

            Sob o ponto de vista da culpa negligente o conteúdo da culpa é dado pela censurabilidade da ação ilícita-típica em função da atitude interna juridicamente desaprovada que naquela se expressa e fundamenta. Surge na sua forma tipificada quando no facto se exprime uma atitude de descuido ou leviandade perante o Direito e as suas normas. A materialidade do tipo de culpa negligente reside, pois, na atitude descuidada ou leviana revelada pelo agente e nas suas qualidades desvaliosas que no facto se exprimem. Portanto, a questão de saber se o agente se encontrava em condições, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, de ter cumprido o dever de cuidado que integra o tipo negligente ( ou se se encontrava em condições –  sempre que o delito negligente é um delito de resultado – de representar e evitar ou afastar o resultado) configura, então, a questão do tipo de culpa negligente.

            Assim, para que o agente seja punível por negligência, tem não apenas de violar o cuidado objetivamente imposto, mas ainda de não afastar o perigo ou o resultado, apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável: só nesta medida se pode afirmar que ele documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou leviandade pelas quais tem de responder, uma vez que o tipo de culpa negligente é uma censura pessoal que se dirige ao agente por ter violado, por desleixo ou leviandade, a norma de cuidado que tinha capacidade para cumprir.

            Também a jurisprudência o tem afirmado. A título de exemplo veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 11/06/2019 in wwwdgsi.pt proferido no processo 629/10.9TAVRL.G1:

           A verificação do ilícito p. no art. 137º do C. Penal (homicídio por negligência) exige: (i) a violação do dever objectivo de cuidado, que passa pela previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico e pela não observância do cuidado objectivamente adequado a impedir a ocorrência do resultado típico; (ii) a imputação objectiva do resultado típico (“desvalor de resultado”) à acção violadora do dever objectivo de cuidado (“desvalor de acção”), a qual implica o nexo causal efectivo e a conexão típica; (iii) o elemento subjectivo, com representação ou não da possibilidade de resultado; (iv) e a previsibilidade subjectiva do perigo e a possibilidade de o agente ter cumprido o dever objectivo de cuidado por ter representado ou pelo menos tido a possibilidade de representar os riscos da conduta que pratica (a “culpa negligente”).
 Ou seja, a par da imputação objectiva do resultado, i. é, que se possa concluir pela sua previsibilidade objectiva, impõe-se, no plano subjectivo, de harmonia com o disposto no art. 15º do C. Penal, que o agente, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, actue sem se conformar com a realização do facto que preenche um tipo de crime, tanto quando represente essa realização como possível (negligência consciente), como quando não chegue sequer a representar a possibilidade de realização desse facto (negligência inconsciente), exigindo-se também, nos termos do art. 10º do mesmo código, um nexo de causalidade adequada entre a omissão do dever de cuidado e a verificação do resultado típico e que a realização deste seja objectivamente evitável.

Assim, há, então, que ver se os indícios existentes nos autos permitem atribuir ao arguido objetiva e subjetivamente o ilícito típico, isto é, se se verifica um nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a morte ocorrida, sendo que na delimitação da adequação da conduta omitida, a doutrina identifica a chamada conexão de risco, isto é, o entendimento de que a ação esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico

Dito de outro modo, importante é saber se a ação omitida poderia ter dado à doente a possibilidade de não morrer. Se sim (incremento do risco tratando-se de ação, não diminuição do risco, tratando-se de omissão) o nexo de imputação objetiva deverá ser afirmado; se a dúvida permanecer ele deverá ser negado (in dubio pro reo).

Antes, porém, há que fazer uma referência prévia ao facto de que, normalmente, a avaliação de uma atuação negligente ou de erro médico implica um grande número de variáveis, de causas ou condições que exigem conhecimentos que o jurista não tem, donde releva necessariamente a importância da prova pericial. A perícia enquanto atividade de perceção ou apreciação de factos efetuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos implica que, nos termos do artigo 163º do CPP, o juízo técnico, científico ou artístico que lhe está inerente se presuma subtraído à livre apreciação do julgador. Portanto, o juiz só pode divergir do juízo contido no parecer do perito, fundamentando devidamente a divergência. Isto é a prova pericial não pode ser livremente apreciada, antes impõe ao juiz uma apreciação vinculada.

Façamos, então, agora a aproximação no caso concreto, começando desde já pela prova pericial existente nos autos, uma vez que foi por ter em conta os pareceres periciais obtidos e constantes do processo, que o tribunal a quo concluiu pela inexistência de indícios da prática do crime.

 Efetivamente do parecer de consulta técnico científica emitido pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses ( fls 121) consta que “a morte da doente, segundo o relatório da autópsia foi completamente imprevisível, não havendo qualquer indício nos dias 26 e 28/01/2018, tanto na sintomatologia apresentada como no exame físico realizado de que estivesse em evolução um quadro séptico como o que foi demonstrado com envolvimento de vários órgãos vitais, sobretudo a nível das vias aéreas”.

Na mesma linha surge o parecer do Colégio de Especialidade de Medicina Geral e Famíliar aprovado por 14 médicos ( identificados a fls. 129 do anexo II e 197 v do anexo 1) no âmbito  do processo disciplinar instaurado pela Ordem dos Médicos, que concluiu que “na análise do processo clínico da menina CC não se encontram indícios de uma prática desadequada à situação clínica conforme se apresentou nas consultas de 26/01/2018 e 28/01/2018 nem de atitude negligente ou má prática dos médicos envolvidos”.

No entanto há nos autos também ( fls. 92 v e ss) um parecer do assistente médico graduado Dr. KK que coloca duas possibilidades: se o relato dos pais for verdadeiro a atitude do médico não é adequada; se a versão do médico for verdadeira não estavam presentes sinais de gravidade ou de pneumonia.

Um outro parecer pedido pelos pais da menor subscrito pela médica Dra. EE ( fls. 439 e ss) conclui ser de admitir preliminarmente que a conduta médica em causa configura violação das leges artis.

E são precisamente estes dois últimos pareceres que os recorrentes invocam para, em conjugação com a prova testemunhal, concluir que todo o “circunstancialismo evidenciado – desde o objetivamente evidenciado pela autópsia até ao suficientemente indiciado pelas testemunhas referidas, desde a segunda ida à consulta em menos de dois dias até às dores torácicas e às dificuldades respiratórias, concomitantemente com o aparecimento de náuseas e vómitos – já seria suficientemente indiciária a existência de uma provável pneumonia/infeção vírica ou pelo menos a necessidade de ser feito um diagnóstico diferenciado, com a orientação para a realização de exames médicos complementares de diagnóstico ou instituição de tratamento antibiótico (recurso do Ministério Público) ou que "da análise da prova existente nos autos, mesmo aquela a que tem de ser dada mais preponderância, como são os relatórios e conclusões de peritos da área da medicina, concluímos aqueles que existem e que tiveram em consideração outros fatores e provas existentes no inquérito, para além dos relatórios clínicos, concluem pela  existência e prática de factos por parte do arguido violadores das leges artis” (recurso do Assistente).

Não nos parece, salvo o devido respeito, por opinião diversa e sobretudo pela imensa dor que a perda da CC provocou na sua família, que tal se possa afirmar.

É certo que estamos perante uma doente quer voltou a recorrer a um médico porque não sentiu sinais de recuperação ou porque sentiu, até, que o seu estado de saúde se agravou, o que só por si obriga a uma maior exigência na avaliação e a um maior cumprimento das obrigações de zelo, de cuidado e diligência por parte do médico que a observa. De facto e em tese, como é dito na dissertação de Mestrado “O erro do diagnostico e a chance perdida” de Diana Antão Seabra sob orientação do Professor Doutor André Gonçalo Dias Pereira constatando a ausência de melhorias no estado de saúde do paciente e confirmando que os médicos que o examinaram anteriormente se mostraram, também eles, zelosos, evidencia-se a necessidade e equacionar diagnósticos de patologias mais remotas e realizar mais exames complementares.

Mas a questão que se põe é a de saber se, na verdade, se evidenciavam, na menina, sintomas que fizessem supor que algo mais do que uma gripe se verificava. Ora, se é certo que de acordo com as declarações prestadas pelo assistente - e sublinhadas pelo Ministério Público -, o pai (única pessoa que acompanhou sempre a menina) declarou ao arguido que a menina se queixava de dores nas costas, que tinha uma respiração mais profunda, que disse para o arguido ver bem o que se passava porque a menina não era de se queixar e que o arguido (numa atitude reveladora de pouca simpatia desde o início da consulta) foi afirmando ó menina, respire devagar que não está ninguém a morrer e os medicamentos ainda não fizeram efeito e vocês vêm para aqui, também é verdade que o pai também disse ( fls. 73) que a menina, depois da consulta e já em casa afirmou sentir-se melhor, tomou banho e disse que no dia seguinte iria à escola, o que é claramente indiciador de que não era ainda patente um quadro de gravidade que fizesse supor ou permitisse, sequer, equacionar o desfecho fatal. Mais decorre das mesmas declarações do assistente que a menina dormiu bem e que só a partir das 6 da manhã o estado de doença se manifestou com contornos de enorme gravidade, evoluindo muito rapidamente para a morte ocorrida passados poucos minutos e antes que qualquer socorro pudesse ser prestado.

A questão que se deverá pôr é, pois, a de saber se seria exigível no quadro observado pelo arguido que este tivesse equacionado que o diagnóstico afinal era diferente do que o que havia sido feito dois dias antes. É certo que a menina passou a ter novos sintomas (v.g. diarreia e vómitos) mas sendo tais sintomas comuns em quadros de gripe e tendo o arguido receitado medicação para os debelar, não se pode, em consciência, afirmar que violou as leges artis na sua atuação, tanto mais quanto não detetou na observação feita - criticada pelo assistente ao afirmar, por exemplo, que foram auscultados os rins e não os pulmões, mas com justificação clínica por ter sido auscultada a parte inferior dos pulmões e não os rins, como explicou o arguido-, tal como na levada a efeito dois dias antes por outro médico, que houvesse sinais de que uma situação de tão grande gravidade pudesse estar em curso.

É que, como é admitido no parecer junto a fls 561 e ss solicitado pelos pais da menina e que concluiu pela violação das leges artis pelo arguido, a inexistência de febre alta (designadamente acima de 39ºC), que era expectável numa situação de tão grande gravidade, bem como a manutenção de um razoável estado geral são fatores que conduzem o raciocínio clínico no sentido de se tratar de persistência do quadro vírico (síndrome gripal) que já tinha sido diagnosticado dois dias antes.

E acrescenta o mesmo parecer “o descrito pelo pai é que a CC terá dormido toda a noite, facto que também não seria espectável, pois a dificuldade respiratória, a febre e o mal-estar gradualmente despertam o individuo doente do sono. E continua: “O facto de não ter sido percetível aos pais o agravamento da situação durante a noite, nas horas que antecederam o evento da paragem cardio-respiratória, mostra como pode ser difícil valorizar a situação clínica sobretudo numa fase mais precoce da doença como aconteceu na observação médica no Centro de Saúde na tarde de 28/01/2018”.

Portanto, mesmo o parecer solicitado pelos pais e que diverge dos demais pareceres médicos não permite, em consciência, apontar um comportamento negligente ao arguido, em face do quadro com que se deparou. O agravamento progressivo de doença nas horas que antecederam a morte não foi detetado, infelizmente, porque não era patente, nem previsível, em face do estado geral avaliado.

E a previsibilidade é um dos requisitos essenciais na avaliação da negligência porque o dever de cuidado só é equacionável perante riscos considerados previsíveis. Isto é, perante os riscos típicos que usualmente acompanham certas patologias, uma conduta descuidada que os não considere terá de considerar-se negligente. Mas perante riscos atípicos - riscos que raramente ocorrem em determinado contexto -, não será exigível ao médico que atue tendo em conta a sua multiplicidade, sob pena de tornar impraticável a medicina, pela imensa quantidade de riscos possíveis decorrentes de uma ação por mais simples que seja. A frequência do risco é, pois, um critério essencial para a sua qualificação como previsível e, nessa medida, para avaliação de uma conduta negligente.

Ora, em face dos dados objetivos constantes dos autos e apesar do que o pai da menina afirmou ter dito ao arguido na consulta, não pode afirmar-se que seria previsível que uma criança saudável com sintomas de um quadro gripal evoluísse em poucas horas para um quadro fatal.

Acresce que não se percebe que o arguido se tenha afastado do modo de atuar de um médico médio, colocado naquelas circunstâncias. Desagradou evidentemente ao pai a antipatia que sentiu no atendimento (deixando-o expresso nas suas declarações), mas tal não basta para que se possa afirmar que em termos de avaliação, diagnóstico e prescrição médica, outro profissional teria agido de outra maneira, tendo em conta os dados objetivos existentes, a avaliar sobretudo pelo facto de até às 6 da manhã do dia 29/01/2018 a menina ter dormido bem, ter dito que se sentia melhor, enfim apresentar sintomas gripais, mas não outros que indicassem que morreria daí a poucos minutos

Acresce ainda que, mesmo que tivesse sido percecionado o agravamento dos sinais clínicos e a menina tivesse sido observada em contexto hospitalar naquela madrugada e iniciado antibioticoterapia endovenosa, não é segura a conclusão de que o desfecho final seria diferente, a avaliar pelo depoimento médico especialista em pneumologia ouvido em fase de instrução, quando afirma que mesmo que a situação tivesse sido detetada na consulta do dia 28, não havia qualquer garantia de que a menina sobreviveria, tal a gravidade do quadro clínico decorrente da evolução da septicémia. Fica, portanto, por indiciar e muito menos por demonstrar, que a assunção de outro comportamento teria evitado a verificação do resultado.

 Percebe-se e respeita-se profundamente a dor imensa dos pais da menina, mas, terá, em verdade, de dizer-se que, infelizmente, não esteve nem nas suas mãos, nem nas mãos do arguido, a possibilidade de evitar tão precoce fim de vida.

Isto mesmo concluiu a senhora juiz de instrução ao não pronunciar o arguido por ter percebido que em julgamento não seria condenado, nem pelo crime de homicídio negligente, nem a conduta poderia vir a ser subsumida, diga-se agora também, na previsão do crime acusado em concurso aparente por não estar demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do arguido e o perigo concreto para a vida.

Mas mesmo que assim não se entendesse, não está indiciado o dolo do arguido relativamente ao perigo para a vida uma vez que o tipo legal em causa, no caso do tipo de ilícito previsto no art. 150º nº 2 do Código Penal exige que o médico conheça e equacione a violação das leges artis e, bem assim, a criação do perigo, o que não ocorre nas circunstâncias em apreço.

 Teremos, pois, de concluir que a decisão recorrida não merece censura.


*

            III.

DECISÃO.

Em face do exposto, os juízes da 4ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra julgam improcedentes os recursos do Ministério Público e do Assistente e confirmam a decisão instrutória recorrida.

              Custas pelo Assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.

                        Notifique.


Coimbra, 10 de abril de 2024

Maria Teresa Coimbra

   João Abrunhosa

Rosa Pinto