Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
72/08.0TAMMV-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: REQUISITOS DA SENTENÇA
OBJECTOS APREENDIDOS
DECLARAÇÃO DE PERDIMENTO
DESPACHO AVULSO POSTERIOR
Data do Acordão: 02/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 374.º, N.º 3, AL. C), E 380.º, DO CPP
Sumário: Só é possível decretar o perdimento a favor do Estado de objectos (de detenção ilícita) ou de quantias monetárias apreendidas no âmbito de um processo, por mero despacho de correcção da sentença, quando da factualidade dada como provada nessa peça processual consta a respectiva proveniência típica e nada é decidido acerca do destino a dar a tais bens e valores.
Decisão Texto Integral:






ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

No Juízo Central Criminal de Coimbra, J2, Comarca de Coimbra, no Processo Comum (colectivo) que aí correu termos sob o nº 72/08.0TAMMV, foi o arguido MP submetido a julgamento, acusado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, p.p. pelo art. 205º, 1 e 4, b), por referência ao artº 202º, b e 5), ambos do Código Penal.

Realizado o julgamento, viria a ser proferido acórdão, o qual não se pronunciou acerca do destino a dar à quantia apreendida nos autos, v.g. de 911,46€, saldo de uma conta bancária do arguido.

O MP viria a promover que fosse declarado perdido a favor do Estado essa quantia, pois que «constitui uma vantagem dos factos ilícitos típicos cometidos pelo arguido e pelos quais foi condenado».

Foi posteriormente proferido despacho do seguinte teor literal:

Em 16 de Março de 2009 foi ordenada a apreensão do saldo da conta bancária a que corresponde o NIB (…), sedeada no Banco (…) e de que é titular MP (fls 272, referência 576530).

O ofício referido pelo BIC a fls 3669 (de 04.05.2009) corresponde ao que comunica tal decisão e está indicado no termo de entrega de fls 284 (referência 600973).

O acórdão proferido no presente processo nada decidiu a respeito de tal apreensão e nada é referido quanto a esse dinheiro (fls 2528 a 2553).

Ora, relativamente ao destino das apreensões, é ponto assente que “a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão”.

Se o tribunal colectivo, no acórdão proferido após a realização do julgamento, não decidiu acerca do perdimento do dinheiro apreendido, nem definiu se o mesmo constituiu vantagem dos factos ilícitos cometidos, já não é possível a declaração de perdimento promovida pelo Digno Magistrado do Ministério Público.

Nessa conformidade, nada tendo sido declarado perdido a favor do Estado, deve ordenar-se o levantamento da apreensão do saldo bancário em causa.

Notifique.

Informe o (…) de que o saldo pode ser disponibilidade pois foi ordenado o levantamento da apreensão do saldo.

Inconformado, o Digno Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motivou, assim concluindo:

1.ª) Discordamos do douto despacho proferido, a 29.09.2021, nos presentes autos, quando, afastando-se do concretamente promovido pelo Ministério Público a 23.09.2021, onde se requereu o perdimento a favor do Estado, nos termos do art. 110º-1-b) do Código Penal, de saldo bancário de conta titulada pelo arguido MP, no valor de €911,46, ordenou o levantamento da apreensão e consequente disponibilização de tal saldo ao arguido, considerando-se impedido para apreciar tal questão, em momento posterior à prolação do acórdão condenatório.

2.ª) O arguido MP foi condenado, por acórdão transitado a 20.02.2020 e pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. nos arts. 205º-1-4-b) do CP, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova, bem como à condição de entregar a quantia de €51.882,28 a diversas IPSS.

3.ª) Seguindo a factualidade dada como provada no acórdão condenatório, sobretudo os factos 21., 49., 53. e 54., o arguido, enquanto advogado, apropriou-se ilicitamente da quantia total de €51.882,28, a qual lhe havia sido entregue pela sua cliente M para pagamento das dívidas da sociedade “A., Lda.”.

4.ª) A apropriação de tal quantia ocorreu através do depósito de diversos cheques na conta pessoal do arguido com o NIB (…), então sedeada no “…”, hoje “…”.

5.ª) Foi nessa conta bancária que, em sede de inquérito, foi apreendido o saldo bancário de €911,46.

6.ª) A questão do destino a dar às apreensões constantes dos autos não se integra no objecto do processo e em nada contende com este, logo a sua eventual apreciação, após a prolação de sentença, não constitui violação do caso julgado.

7.º) Quando essa questão não é decidida, nem apreciada em sede de sentença, por mera omissão/lapso, continua a incumbir ao Tribunal tomar posição adequada sobre a mesma, sendo que essa apreciação posterior não contende com as expectativas jurídicas do arguido ou com os valores da certeza e segurança jurídicas.

8.ª) Esta interpretação redutora do Tribunal a quo relativamente ao art. 374º do CPP leva a um verdadeiro impasse processual, admitindo-se que o Tribunal está impedido, em momento posterior à sentença, de julgar e apreciar o adequado destino a dar às apreensões existentes nos autos.

9.ª) Quando interpelado pela necessidade de dar resposta a questão ainda não decidida e depois de confrontado com a omissão de pronúncia, em sentença, sobre o destino a dar a bens apreendidos, impõe-se que o Tribunal sinta a urgência de decidir, o que sempre se espera, mostrando-se livre para julgar tal questão, recorrendo à “sedimentada” fundamentação vertida na decisão final e que cristalizou o objecto do processo.

10.ª) A solução defendida no despacho ora em crise é materialmente desajustada e incompreensível aos olhos da comunidade, sendo sintomático que o arguido em nenhum momento tenha vindo requerer a restituição de tal saldo bancário, certamente porque, intimamente, não o reconhece como seu.

11.ª) Como reagirá o próprio arguido a este despacho, em face da necessária e desejável interiorização da condenação de que foi alvo?

12.ª) Com perplexidade, na medida em que não é compreensível ou harmonizável com a pena que se encontra a cumprir.

13ª) Ao não decidir conforme o promovido pelo MP, o despacho recorrido violou as normas dos arts. 109º e 110º, ambos do CP, 374º e 380º, ambos do CPP; e art. 8º-1 do Código Civil, ex vi art. 4º do CPP.

Termos em que, dando-se provimento ao recurso e, em consequência, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que declare perdido a favor do Estado o saldo bancário ainda apreendido, no valor de €911,46, definindo-o como vantagem ilícita decorrente da prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, nos termos do art. 110º-1-b) do CP, farão V. Ex.ªs a costumada JUSTIÇA!

            A este recurso respondeu o arguido, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

1. Princípio elementar e básico de direito adjectivo é o de que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – n.º 1 do art. 613.º do CPC, aqui aplicável ex vi art. 4.º do CPP.

2. A lei apenas possibilita a correcção oficiosa ou a requerimento da sentença, para correcta observância dos seus requisitos, desde que a correcção não incida sobre qualquer das omissões ou falhas integrantes de nulidade, com previsão no art. 379.º, bem como para rectificação de qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial – art. 380.º.

3. Daqui decorre estar vedado ao juiz alterar o decidido, suprir as nulidades da sentença (a menos que a decisão não admita recurso), bem como proceder a qualquer correcção que importe modificação essencial.

4. A omissão de pronúncia quanto ao destino a dar aos bens aprendidos nos autos, no caso, um saldo bancário de € 911,46, configura uma nulidade do acórdão condenatório, nos termos do art. 374.º, n.º 3-c) do CPP, nulidade essa que deveria ter sido arguida pelo Ministério Público em sede de recurso – artigo 379.º, n.º 2 do CPP.

5. Não o tendo sido, transitado em julgado o acórdão condenatório, e sendo o mesmo omisso quanto ao destino dos bens apreendidos, deve ser dado cumprimento ao art. 186º, n.º 2, do CPP, desde que a detenção dos bens por particulares seja lícita, não podendo o tribunal determinar em despacho posteriormente proferido o perdimento de tais objetos.

6. O arguido não requereu a restituição de tal saldo bancário, porque aguardava o cumprimento, por parte do Tribunal a quo, pelo cumprimento do artigo 86º, n.º 2, do CPP, não necessitando tal restituição de qualquer impulso da sua parte.

7. Acontece, ainda, que o arguido tinha um empréstimo associado àquela conta bancária, que já terminou, pretendendo agora encerrá-la, sendo, por isso, necessário resolver a questão da apreensão.

8. De salientar, ainda, que basta consultar os extractos bancários da referida conta para constatar que o dinheiro que lá se encontrava à data da apreensão foi transferido ou depositado no ano de 2009, destinando-se a pagar, mensalmente, a prestação do empréstimo, nada tendo a ver com os anos anteriores, nomeadamente o ano de 2006 (factos da acusação).

9. Considera o arguido que tal dinheiro lhe pertence na íntegra, nada tendo a ver com os factos descritos na acusação e pelos quais foi condenado.

10. A omissão, pelo Tribunal a quo, da decisão sobre a restituição ou declaração de perda a favor do Estado não pode, nunca, configurar uma mera irregularidade, ou um qualquer impasse processual, como pretende o Digno Magistrado do Ministério Público.

11. No caso concreto, a decisão condenatória nem sequer se pronunciou sobre tal saldo bancário, não tendo ficado provado que tal valor resultou ou é produto dos actos ilícitos cometidos.

12. A decisão sobre a perda de bens é uma decisão de mérito e, portanto, se o acórdão condenatório não se pronuncia sobre a questão, esta falta não pode ser suprida com recurso ao mecanismo do art.º 380 do CPP;

13. Para que o Tribunal a quo pudesse, por mero despacho, e após o trânsito em julgado da decisão condenatória que não se debruçou sobre essa questão, decidir do perdimento do saldo bancário a favor do Estado, teria, necessariamente, de modificar a própria fundamentação do acórdão, dando como provado que tal valor é produto da prática do crime, constituindo uma vantagem ilícita,

14. O que faria o Tribunal incorrer na violação do princípio geral de direito adjectivo atrás enunciado, segundo o qual proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz – Cfr. n.º 1 do art. 613.º do CPC, aqui aplicável ex vi art. 4.º do CPP.

15. Não se encontrando qualquer paralelismo com os exemplos mencionados nas doutas alegações de recurso; de facto, não pode ser tratado como igual o que é diferente: ora, conceder o direito, ao Tribunal a quo de, após trânsito em julgado da decisão condenatória alterar a matéria de facto, de forma a incluir nos factos provados que o valor de € 911,46, apreendido nos autos, é produto da actuação ilícita do arguido, requisito essencial para declarar o seu perdimento a favor do Estado,

16. Não é o mesmo que sanar a falta da assinatura dos Juízes ou a omissão da ordem para, após trânsito, ser remetido o competente boletim ao registo criminal, isto porque, estes casos não configuram uma situação que contende com a fundamentação e o dispositivo do acórdão condenatório, nem constituiu uma decisão de mérito com caso julgado material.

17. Assim, se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da decisão condenatória onde, com desrespeito pelo estatuído no art. 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe.

18. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a decisão condenatória é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.

19. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.

20. Concorda, pois, o arguido, com tal solução “híbrida”, sendo que, no caso concreto, a detenção de valores monetários não configura qualquer ilicitude, tendo andado bem o Tribunal a quo ao determinar o levantamento da apreensão do saldo bancário, ordenando a sua colocação ao dispor do arguido.

21. Pelo que, o despacho recorrido não infirma de qualquer vício, sendo conforme ao Direito, devendo ser confirmado e mantido.

22. O despacho recorrido não violou qualquer norma jurídica.

Pelo exposto e por tudo o mais que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, por assim ser de inteira JUSTIÇA.

            Nesta Relação, o Dig.mo PGA emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso.

           

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            A única questão a decidir no presente recurso, tal qual se retira da respectiva motivação e conclusões, prende-se com aquela de saber se é possível, após a prolação do acórdão final que a tal propósito foi omisso, decidir do perdimento de eventuais produtos ou vantagens do crime, por mero despacho.

            A regra geral, de todos conhecida é a de que, uma vez proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (artº 613º, 1 do CPC, aqui aplicável ex vi artº 4º do CPP).

            No entanto, permite a norma do artº 380º do CPP, aqui aplicável por expressa remissão operada pelo artº 425º, 4, ao tribunal é lícito proceder à correção da sentença, a requerimento ou oficiosamente quando (nº 1, a)) «fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374º».

            Um dos requisitos da sentença é, precisamente, o de se pronunciar acerca da «indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime» (referido artº 374º, 3, c)).

            A omissão de determinados requisitos da sentença conduz à sua nulidade (a omissão das menções referidas no nº 2 e na al. b) do nº 3 do artigo 374º - v. artº 379º, 1, a)).

            Daqui se retira, a contrario, que a omissão das demais menções não conduz necessariamente à nulidade do aresto, podendo ser corrigidas mediante o acionamento do mecanismo previsto no referido artº 380º.

            É esse o nosso caso.

            Cremos, no entanto, que a decisão de perdimento dos objectos ou vantagens do crime só pode ser proferida em via de correcção da sentença quando resulte da factualidade provada a respectiva integração substantiva, ou seja, que essa foi a proveniência dos objectos ou das vantagens em causa.

Não poderá ocorrer essa decisão quando nada conste da factualidade assente relativamente a esse ponto, a não ser que os objectos em causa sejam objectivamente perigosos (artº 109º, CP) ou a sua simples detenção seja objectivamente proibida, por força da aplicação de uma qualquer norma legal.

Neste sentido, v. a jurisprudência constante do acórdão proferido no ac. RP, proc. 803/14.9JABRG.P2, pesquisado em DGSI:
I - Não obstante ser a sentença o momento correcto para dar destino aos objectos apreendidos, será ainda possível, posteriormente, declarar o seu perdimento a favor do Estado no caso de bem ou objecto, que pela sua própria natureza, seja de detecção proibida por particulares.
II - Já não assim, no caso de transitada a
sentença onde nada se decidiu em relação aos bens ou objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, devendo, neste caso, ser ordenada a sua entrega a quem de direito.

           

            No entendimento que explanamos, só será possível decretar o perdimento de objectos (de detenção lícita) ou de quantias monetárias apreendidas nos autos, por mero despacho de correcção da sentença quando da factualidade provada na mesma consta a respectiva proveniência típica e nada é decidido acerca do destino a dar-lhe.

            Ou seja, na sentença devem constar os factos pertinentes, limitando-se a correcção da sentença a completar o silogismo, estabelecendo a conclusão jurídica.

            Ora, no caso presente ocorre que falta o pressuposto de partida: a sentença é omissa, na factualidade provada, acerca da proveniência da quantia apreendida nos autos, v.g. de 911,46€, que constituía o saldo de uma conta bancária do arguido.

            Assim sendo, não é possível proceder à respectiva correcção, por falta de tipicidade.

            Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o douto despacho recorrido.

            Recurso sem tributação.

Jorge França (relator)

Paulo Guerra (adjunto)