Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HUGO MEIRELES | ||
Descritores: | AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA CAUSA PREJUDICIAL INVENTÁRIO MORTIS CAUSA | ||
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Data do Acordão: | 11/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 272.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1412.º, 2014.º, 2104.º, 2110.º, 2113.º, 2162.º E 2174.º DO CÓDIGO CIVIL | ||
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Sumário: | I – Para efeitos do disposto no art.º 272º, n.º 1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta quando a decisão desta última pode afetar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser.
II – A pendência de processo de inventário mortis causa, no qual deva ser considerado, para efeito do cálculo da legítima (art.º 2.162º do Código Civil), o valor dos imóveis doados pelo de cuius a dois dos seus descendentes, que os adquiriram em compropriedade, não constitui causa prejudicial determinante da suspensão da ação de divisão de coisa comum instaurada por um dos donatários/herdeiros contra o outro, uma vez que a decisão final que vier a ser proferida neste processo não corre o risco de se vir a revelar (supervenientemente) inútil, contraditória ou destituída de fundamento em resultado do prosseguimento da tramitação daquele inventário. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório AA e mulher BB instauraram ação de divisão de coisa comum contra CC, alegando que o requerente marido e a requerida são comproprietários, na proporção de metade, de dois imóveis, que identificam e que afirmam ser indivisíveis em substância. Foram juntas aos autos as certidões da descrição predial desses imóveis. * A ré contestou e deduziu reconvenção, invocando, para além do mais, a título de questão prévia, a existência de causa prejudicial ao julgamento da ação.Disse, para o efeito, que os bens imóveis em causa, que foram adquiridos por doação dos pais de ambos, irão ser objeto de partilha no inventário que se encontra a correr por morte da sua mãe, no qual figuram como interessados, para além do requerente marido e da requerida, o cônjuge sobrevivo, pais de ambos, e um outro irmão. Uma vez que tais doações deverão ser objeto de colação, existe uma probabilidade séria de se vir a concluir pela ofensa da legítima dos herdeiros legitimários, com as consequência daí decorrentes, pelo que a decisão que venha a ser tomada no referido inventário pode afetar ou mesmo destruir a razão de ser da ação de divisão de coisa comum. Assim, invocando o disposto no art.º 272.º do Código de Processo Civil, requereu a suspensão da ação até que seja julgada, com trânsito, a ação de inventário. Foi junta a certidão que atesta a pendência do supra mencionado processo de inventário. * Na sequência processual, foi proferido o seguinte despacho:Em sede de contestação, a requerida veio requerer a suspensão da presente instância, alegando, em suma, que corre no Juízo Local Cível de Viseu – J... – o processo de inventário para partilha dos bens deixados por óbito de DD, tendo o mesmo sido proposto pelo aqui requerente e no qual a requerida, juntamente com aquele e com EE figuram como interessados. Mais alegou que os bens que constituem o objeto dos presentes autos foram por si e pelo requerente adquiridos por doação e que é de prever que os mesmos sejam objeto de discussão no inventário, podendo ser desapossados dos mesmos atendendo ao valor dos bens em causa, à quota disponível e à verificação ou não de colação, existindo a hipótese de as referidas doações, ocorridas em vida da mãe do requerente e da requerida, ofenderem a legítima e, nessa medida, serem chamados à colação, com as consequências daí decorrentes. Conclui, então, que a decisão que venha a ser tomada no referido processo de inventário pode afetar ou destruir a razão de ser dos presentes autos. O requerente pronunciou-se no sentido de que os presentes autos devem prosseguir. * Sobre a suspensão da instância por determinação do juiz ou por acordo das partes dispõe o art. 272.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1 que «o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado», continuando o n.º 2 que «não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens». Por sua vez, o n.º 3 do citado preceito dispõe que «quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância» e termina o n.º 4 que «as partes podem acordar na suspensão da instância por períodos que, na sua totalidade, não excedam três meses, desde que dela não resulte o adiamento da audiência final».Desde logo, resulta dos articulados que inexiste acordo entre as partes, pelo que fica afastada a suspensão da instância por essa via. Assim, cumpre indagar se a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos está dependente do julgamento de outra causa já proposta ou se ocorre motivo justificado para a suspensão da instância. Sendo certo que, caso assim se conclua, será de ponderar a aplicação do mecanismo de controlo previsto no n.º 2 do citado preceito. Nessa indagação deve ter-se subjacente a ideia de que a suspensão da instância nos termos do art. 272.º do Código de Processo Civil consubstancia uma vicissitude de natureza excecional, prevista a par de casos especiais de suspensão da instância, pelo que deve ser mobilizada com moderação, tanto mais quando o fundamento é a alegada pendência de causa prejudicial. Destarte, acompanhamos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, quando referem que «apenas podem motivar a suspensão com esse motivo ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa» e que «deve comprovar-se uma efetiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efetivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na ação prejudicial, a qual constitui pressuposto de outra decisão» Para apurar da existência de um nexo de prejudicialidade entre duas ações há, então, que ponderar se a decisão de uma é suscetível de afetar a decisão a proferir na outra, a analisar na perspetiva da economia e coerência de julgamentos, concluindo-se que «uma causa é prejudicial à outra quando a decisão da primeira possa destituir o fundamento ou a razão de ser da segunda» Volvendo ao caso em apreço, para efeitos da apreciação daquele nexo de prejudicialidade temos a considerar os presentes autos e os autos de inventário que correm termos no Juízo Local Cível de Viseu – J... – de modo a aquilatar se, tal como asseverado pela requerida, o desfecho desses autos deixará sem fundamento ou razão de ser os presentes autos de divisão de coisa comum. O argumento mobilizado pela requerida vai no sentido de que os bens objeto dos presentes autos, tendo sido doados às aqui partes, podem ofender a legítima e nessa medida, serem chamados à colação. Como salienta a requerida, nos termos do art. 2162.º do Código Civil, para o cálculo da legítima - e da quota disponível - deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança. Donde, a herança para efeitos do cálculo da legítima compreende, além do mais que aqui não releva, os bens existentes no património do de cujus à data do seu decesso e os que daquele foram distraídos em vida do autor da sucessão por via de doação. Donde, dúvidas inexistem que os bens doados, como os em causa nos presentes autos de divisão de coisa comum, devem, pelo menos em abstrato, ser relacionados no âmbito de processo de inventário. No entanto, é também evidente que os bens doados apenas são relacionados [com] […] vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha, não sendo os mesmos partilhados precisamente por terem sido doados em vida, ou seja, por já não integrarem o património do de cujus à data do óbito. Nessa medida, qualquer que seja o desfecho do processo de inventário, aí não será proferida qualquer decisão que contenda com o direito de compropriedade titulado pelo requerente e pela requerida quanto aos bens cuja divisão está em causa nos presentes autos, isto porque tais bens, porque doados em vida, não vão ser objeto de qualquer partilha entre os interessados no processo de inventário. Quando muito, em virtude das operações da partilha poderão ser devidas tornas pelos seus titulares, mas tal não esvazia nem sequer contende com a decisão a proferir no âmbito da ação de divisão de coisa comum. * Pelo exposto, não determino a suspensão da instância.* Inconformada com esta decisão, apresentou a requerida recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões: (…). * Notificados das alegações de recurso interpostas pela requerida, apresentaram os requerentes resposta, pela qual defendem a manutenção da decisão de indeferimento da suspensão da instância requerida. Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é tão só a de saber se deve ou não ser ordenada a suspensão da instância por existência de causa prejudicial. * III – Fundamentação fáctica. A factualidade a ter em conta para a apreciação e decisão do recurso circunscreve-se à indicada no relatório acima enunciado. * IV - Fundamentação de Direito A questão que está aqui em apreciação é, pois, a de saber se deverá ser determinada a suspensão da instância dos autos de divisão de coisa comum, com fundamento na pendência do processo de inventário por óbito da mãe do aqui requerente marido e da requerida, que esta última entende constituir uma causa prejudicial. Nos termos do art.º 272º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”. “Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens (º 2 do mesmo artigo). De acordo com Lebre de Freitas[1], “(a) questão diz-se prejudicial quando a sua resolução constitui pressuposto necessário da decisão de mérito, quer esta necessidade resulte da configuração da causa de pedir, quer da arguição ou existência duma excepção peremptória ou dilatória, quer ainda do objecto de incidentes em correlação lógica com o objecto do processo, e seja mais ou menos directa a relação que ocorra entre essa questão e a pretensão ou o thema decidendum. Quando autonomizada como objecto de outra acção, constitui causa prejudicial, a qual pode constituir fundamento da suspensão da instância (art. 272º)” Em comentário a este regime, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa[2] o seguinte: “A suspensão da instância fora dos casos referidos nos preceitos anteriores constitui uma vicissitude que, face aos efeitos que projecta, deve ser interpretada com moderação. Assim acontece quando o motivo para a suspensão for centrado na pendência de uma causa prejudicial. Apenas podem motivar a suspensão com esse motivo acções que tenham sido instauradas anteriormente à acção em causa, a não ser que se verifique uma relação de prejudicialidade relativamente a um processo da competência dos tribunais criminais ou dos tribunais administrativos e fiscais (art. 92º), situação em que o juiz pode decretar a suspensão até que o tribunal competente se pronuncie. Por outro lado, deve comprovar-se uma efectiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efectivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na acção prejudicial, a qual constitui um pressuposto da outra decisão (vg, acção para cumprimento de um contrato e acção em que se invoque a nulidade desse contrato). O nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão de uma poder afectar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial, é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (cf. Alberto dos Reis, Comentário do CPC, vol. III, pp 268 a 285; num exemplo que integra a acção de anulação de deliberação de amortização de quota e processo especial de inquérito judicial (cf. RL 12-4-11, 1207/10)”. * Sumário – artº 663º nº7 do CPC(…). * V. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida. * Coimbra, 12 de novembro de 2024 Assinado eletronicamente por: Hugo Meireles Anabela Marques Ferreira Francisco Costeira da Rocha
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] CPC Anotado, Volume 1º, Coimbra Editora, pág. 173. |