Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
65/19.1T9TCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA À SEGURANÇA SOCIAL
CRIME CONTINUADO
COMPETÊNCIA PARA PROCEDER À NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO DAS QUOTIZAÇÕES RETIDAS E NÃO PAGAS
INDICAÇÃO DO VALOR EXACTO EM DÍVIDA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 30.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 270.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGOS 35.º, N.ºS 2 E 3, 40.º, 41.º E 105.º, N.º 4, ALÍNEA B), DA LEI N.º 15/2001, DE 5 DE JUNHO/REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS/RGIT
Sumário:
I – Dos artigos 40.º e 41.º do RGIT decorre que o legislador atribuiu aos órgãos da administração tributária e da administração da segurança social os poderes e as funções que o C.P.P. atribui aos órgãos de polícia criminal, através de uma delegação presumida da competência para a prática de actos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos, exigindo apenas a comunicação imediata da instauração do inquérito, sem necessidade de, em concreto, dar qualquer directiva ou ordenar qualquer diligência de investigação.

II – Decorre do n.º 2 do artigo 41.º do RGIT que a lei confere aos titulares dos órgãos e funcionários e agentes dos serviços aduaneiros, tributários ou da segurança social, a competência para a realização da notificação referida no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), sem necessidade de uma subdelegação e muito menos de concretização dos poderes que são subdelegados.

III – A maior autonomia da investigação por parte da administração fiscal e da segurança social compreende-se e justifica-se pela especial natureza técnica das matérias em causa, sem que tal traduza uma administrativização da fase de inquérito, cuja direção continua a pertencer ao órgão a quem constitucionalmente está atribuída.

IV – Dependendo a liquidação dos juros de mora do momento do pagamento, o seu valor exacto nunca pode constar daquela notificação.

V – Quando o valor em dívida deriva de vários actos de não pagamento de quotizações retidas, significa que os arguidos foram reiterando, a cada mês, a sua conduta de não entrega das referidas quotizações, o que pressupõe várias resoluções criminosas.

Decisão Texto Integral:
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            2. Realizada a audiência de julgamento, com intervenção do Tribunal Singular, veio nela a ser proferida sentença, em 15.05.2023, na qual se decidiu:

            - Condenar a arguida … Lda. pela prática, em autoria material e execução continuada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, 7.º, n.º 1, 12.º, n.ºs 2 e 3, e 107.º, n.º 1, por referência ao artigo 105.º, n.ºs 1, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho e 11.º do Código Penal, na pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 …

               - Condenar o arguido … pela prática, em autoria material e execução continuada, por referência aos artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelas disposições conjugadas do artigo 6.º, 7.º, n.º 1, 107.º, n.º 1, por referência ao artigo 105.º, n.º 1, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 …


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            3. Inconformados com tal decisão dela interpuseram recurso ambos os arguidos extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões que se transcrevem:

                    …

                    7. A notificação da Arguida, para proceder ao pagamento do tributo em divida (paragrafo 11 dos factos provados), datada de 19/03/2019, foi praticada por pessoa que não tinha competência funcional para o ato;

                    8. Acrescendo que predita notificação enferma de vicio de forma, por não apresentar, de forma expressa, o valor em divida, acrescido de juros de mora;

                    9. Em face do que, tal notificação é nula;

                    10. Devendo, consequentemente, considerar-se que a Arguida não foi notificada nos termos e para os efeitos do artigo 105º / 4 do RGIT;

                    11. Faltando assim uma condição objetiva de punibilidade;

                    12. O que deverá determinar a sua absolvição.

                    …

                    17. Acresce que, os arguidos vieram acusados da prática, na forma consumada e em continuação criminosa, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social;

                    18. Acusação que o Tribunal a quo julgou provada.

                    19. O crime continuado, carateriza-se por advir de resoluções plurimas da atuação delituosa;

                    …

                    22. O agente do crime, face à ausência de meio que lhe permitam solver o tributo fiscal, toma a decisão de se abster de pagar a quotizações devidas à segurança social;

               23. Renovando tal decisão sempre que se debate com a circunstância de não dispor de meios que lhe permitam pagar tal tributo fiscal;

                    24. Ao invés de produzir uma nova resolução de não pagar tal tributo, sempre que não dispõe de meios para o fazer, mas antes, reitere-se, uma decisão que já se encontra tomada e se renova a cada momento.

                    …


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      6. Colhidos os vistos, foram os autos apresentados a conferência.

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            II-  Fundamentação

            A) Delimitação do objecto do recurso

            …

            Assim sendo, estando a apreciação do recurso balizada pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, as questões a decidir no recurso em apreciação são as seguintes:

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto, por erro de julgamento e por contradição insanável da factualidade provada entre si e com a fundamentação;

            - A nulidade da sentença por falta de fundamentação;

            - A nulidade da notificação da arguida para o pagamento integral dos montantes de quotizações retidas e não entregues à Segurança Social no prazo de 30 dias, por ter sido feita por quem não tinha competência funcional para o acto e por não indicar o valor exacto em dívida, acrescido de juros;

            - A inverificação da condição objectiva de punibilidade prevista no art. 105º, nº4, alínea b) do RGIT;

      - O incorrecto enquadramento jurídico-penal relativo à actuação dos arguidos na figura do crime continuado.

             


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            B) Da decisão recorrida


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             C) Apreciação do recurso

            Sendo, como são, várias as questões suscitadas no presente recurso, procederemos à apreciação das mesmas pela ordem que, em termos sistemáticos, melhor se impõe.


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            - Da nulidade da sentença por falta de fundamentação

            Alegam os arguidos e ora recorrentes - que a sentença que por eles agora vem posta em crise “ está totalmente deserta de qualquer fundamentação de facto …

            …

      Não existe um ‘padrão’ e também não existem ‘fórmulas’ para o cumprimento da fundamentação da decisão ( sentença ou acórdão ), a qual, como é evidente, variará em função de factores tão diversos como a complexidade do thema probandum, a extensão dos meios de prova produzidos, a sua relevância ou irrelevância, a maior ou menor capacidade de síntese e de expressão do julgador. Porém, o que, em qualquer caso, é imprescindível é a sua aptidão para assegurar a função primordial supra referida, a plena compreensão da decisão, a total compreensão do que se decidiu e por que razão assim se decidiu.

A motivação exarada na sentença recorrida permite apreender o juízo de valoração e de apreciação da prova que permitiu ao julgador da primeira instância sustentar a factualidade que nele se considerou provada e não provada.

Poderá concordar-se ou discordar-se, e os recorrentes discordam da valoração feita pelo tribunal recorrido relativamente aos meios de prova em que este se ancorou para sufragar a sua convicção em relação à versão da pronúncia deduzida nos autos contra os arguidos atinente à factualidade constante das alíneas E), F) e J) do elenco factual provado, razão pela qual pretendem, também, através do presente recurso a modificação da matéria de facto que nela veio a ser considerada provada e que se mostra vertida nas citadas alíneas, mas esta divergência de perspectivas não significa, nunca, a verificação da nulidade da sentença  por falta ou insuficiência de fundamentação com a abrangência normativa que o citado preceito legal comporta.

Em suma, a sentença recorrida cumpre as exigências do art. 374º, nº 2 do C. Processo Penal, não enfermando da nulidade que lhe vem assacada, prevista na alínea a) do nº 1 do art. 379º do mesmo diploma.

      Soçobrando, assim, neste segmento o recurso interposto pelos recorrentes.


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            …

           


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            - Da nulidade da notificação da arguida para o pagamento integral dos montantes de quotizações retidas e não entregues à Segurança Social no prazo de 30 dias, por ter sido feita por quem não tinha competência funcional para o acto e por não indicar o valor exacto em dívida, acrescido de juros

            Em sede de motivação do recurso, alegam os recorrentes que “o ato de notificar o sujeito passivo, é um ato da competência exclusiva do Diretor da Unidade de Prestações e Contribuições do Centro Distrital da Segurança Social de ...; …

            Com a arguição da nulidade da referida notificação, visam os recorrentes que se considere que a sociedade arguida não foi notificada nos termos e para os efeitos do artigo 105º, nº4 do RGIT, e, que, por isso, faltando uma condição objetiva de punibilidade, devem ser absolvidos do  crime que lhe vem imputado, conforme resumo contido nas Conclusões 10ª a 12ª.

A argumentação dos recorrentes em sede recursiva a respeito da notificação dos arguidos, para efeito do disposto no art. 105º, nº4 alínea b) do RGIT, apresenta-se dúbia em relação a qual das notificações levadas a cabo nos autos para esse efeito os mesmos se referem, não só porque, no corpo da motivação do recurso se limitam a alegar que a competência para a mesma é exclusiva do Director da Unidade de Prestações e Contribuições do Centro Distrital da Segurança Social da ... e que essa competência não foi delegada “ na visada Sra. Directora do Núcleo de Contribuições” – dando, assim a entender que pretendem referir-se às notificações que constam dos autos a fls. 11 e vª e 12 e vº- já a menção feita, na Conclusão 7ª,  à data de “19.03.2019 “ como tendo sido a data em que foi notificada a arguida, pode deixar antever que os recorrentes pretendem referir-se a outra notificação que, igualmente, foi feita aos arguidos no decurso do inquérito, para os efeitos do disposto no art. 105º, nº4 alínea b) do RGIT, e que consta de fls. 118 e 121.

É que, se, efectivamente, os recorrentes pretendem aludir à notificação que lhes foi feita, para os referidos efeitos legais, que consta de fls. fls. 11 e vª e 12 e vº, esta, como bem se assinala na sentença recorrida ,“ está assinada por “chefe da equipa de conta corrente” e por “técnica superior”, e, acrescentamos nós, emana do Instituto da Segurança Social, IP, Núcleo Distrital …, mostra-se datada de 18-10-2018, foi efectuada através de carta registada, com aviso de recepção, este assinado com a data de 22-10-2018, datas estas que não têm qualquer correspondência com a indicada pelos recorrentes (“19.03.2019 “ ).

Já se pretendem referir-se a outra notificação que lhes foi feita, para o mesmo efeito, adiantaremos que consta dos autos, a fls. 118 e 121, uma outra notificação dos arguidos no decurso do inquérito, a qual ocorreu na data de 16-12-2019 e foi levada a cabo por OPC.

Dito isto.

O art. 40º do RGIT dispõe que:

Por seu turno, o art. 41º do mesmo diploma preceitua que:

Do teor destes preceitos legais decorre que o legislador atribuiu aos órgãos da administração tributária e da administração da segurança social os poderes e as funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos de polícia criminal, através de uma delegação presumida da competência para a prática de actos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos, exigindo apenas a comunicação imediata da instauração do inquérito.

Ora, nos termos do art. 270º, n.º 1, o Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências de investigação relativas ao inquérito, com exceção, para além dos actos que são da competência exclusiva do juiz de instrução (arts. 268° e 269º), dos atos previstos no n.º 2 daquele artigo.

Porém, não é necessário que o Ministério Público, em concreto, dê qualquer diretiva ou ordene qualquer diligência de investigação quanto à prática desses actos por parte dos órgãos de polícia criminal.

Por seu lado, a referida delegação presumida consiste apenas na autorização para o exercício de um poder, podendo o processo ser avocado a todo o momento ou ser ordenada a realização de diligências, complementares ou não das já efetuadas.

De todo o modo, a maior autonomia da investigação por parte da administração fiscal e da segurança social compreende-se e justifica-se pela especial natureza técnica das matérias em causa, sem que tal se traduza numa administrativização da fase de inquérito, cuja direção continua a pertencer ao órgão a quem constitucionalmente está atribuída, o qual não deixa de promover o processo.

No caso dos autos o que sucedeu foi que, antes da comunicação ao MºPº da instauração de inquérito, foi feita pelos funcionários dos serviços da Segurança Social a notificação aos arguidos para os efeitos do disposto no art. 105º, nº4 alínea b) do RGIT, a qual ocorreu, como referido, em 22-10-2018, sendo que quanto à prática de tais actos de inquérito por parte dos titulares dos órgãos e pelos funcionários e agentes dos serviços aduaneiros, tributários ou da segurança social, é o próprio RGIT, no n.º 2 do seu art. 41º, a prevê-la expressamente, pelo que está a mesma legitimada por força desse preceito legal, sem qualquer necessidade de uma subdelegação e muito menos concretização dos poderes que são subdelegados.

Notificação essa que que se compreende na actuação prevista no citado nº2 do art. 41º do RGIT, antes da comunicação ao Ministério Público da instalação do inquérito, que permitiram a elaboração do Relatório Preliminar, pelo instrutor nomeado através do despacho do Director do Núcleo de Investigação Criminal, da Unidade de Fiscalização do Centro, Departamento de Fiscalização do Instituto da Segurança Social, I.P., no qual o mesmo faz uma "exposição dos factos constitutivos da presumível prática do crime contra a segurança social" e indica os "elementos de identificação dos agentes", com vista a, uma vez obtida a concordância superior, ser determinada a instauração do processo, com a imediata comunicação da mesma ao Ministério Público, como efetivamente foi feito.

Ou seja, o referido Relatório Preliminar destinou-se apenas a transmitir a notícia do crime ao órgão da administração da segurança social com competência para o inquérito, conforme impõe o art. 35º, n.º 2 e 4, do RGIT, para que o mesmo, se assim o entendesse, determinasse a sua instauração, como veio a fazer, através de despacho, no qual, aliás, voltou a nomear o mesmo instrutor para o processo.

Não obstante a referida delegação presumida, no caso concreto, ao receber a comunicação da instauração do inquérito, a Digna Magistrada do MºPº titular do inquérito no âmbito dos presentes autos proferiu de imediato despacho a delegar no NIC do Departamento de Fiscalização do Instituto da Segurança Social, I.P., a competência para proceder às diligências de inquérito, nos termos do citado art. 270º, nº1 do CPP ( Cfr. fls. 14-15).

E, na sequência de tais diligências, veio a ocorrer nova notificação dos arguidos para os efeitos do disposto no art. 105º, nº4 alínea b) do RGIT, desta feita na data de 16-12-2019, através de OPC ( no caso GNR ).

Em suma, é de concluir que qualquer uma das duas notificações feitas aos arguidos para os efeitos do disposto no art. 105º, nº 4 alínea b) do RGIT não enferma de qualquer nulidade, mostrando-se validamente efectuadas, ao contrário do propugnado pelos recorrentes.

            Investem, ainda, os recorrentes em assacar a tal notificação para os efeitos do disposto no art. 105º, nº4, alínea b) do RGIT, o vício de forma com fundamento em que desta não consta o exacto valor em dívida, acrescido de juros.
Compulsado o teor das respetivas notificações feitas aos arguidos, delas consta expressamente que o montante em dívida correspondente às quotizações retidas nos salários pagos aos trabalhadores e não entregues à Segurança Social, é de € 10.917,39, valor este ao qual acrescem os respectivos juros legais de mora, que se vencem até integral pagamento. 
Mais uma vez não assiste razão aos recorrentes, pois o montante total em dívida, foi devidamente identificado nas notificações feitas aos mesmos.
 Quanto aos juros de mora, a sua liquidação total depende do momento exato do pagamento e, portanto, não foram nem poderiam ser, naquele momento das referidas notificações, quantificados.
A esse propósito, tem vindo a jurisprudência, incluindo a deste Tribunal da Relação de Coimbra, a decidir no sentido de que na notificação efectuada para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, não tem de constar a menção expressa dos montantes em dívida – v. ac. desta Relação de Coimbra de 2015-11-04, processo n.º 103/12.9IDVIS.C1 e de 08-09-2021, processo nº 180/19.1T9SRT.C1, de 08-09-2021, processo 180/19.1T9SRT.C1, disponíveis in www.dgsi.pt.  
No mesmo sentido, vide, ainda o ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 4-6-2013, processo nº 299/09.7IDSTB-D.E1, e o ac. do Tribunal da Relação de Guimaães, de 10.10.2016, processo nº 263/11.6IDBRG.G, disponíveis in www.dgsi.pt.
Visto que, no presente caso, na notificação dos arguidos e ora recorrentes, para efeitos do disposto no art. 105º, nº4, alínea b) do RGIT, se mostra quantificado o montante em dívida, embora nela não se mostrando, apenas, (quantificado) o montante dos juros legais que acrescem aquele, pelas razões já expostas, entende-se que não padece tal notificação de qualquer nulidade por vício de forma.

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            - Da inverificação da condição objectiva de punibilidade prevista no art. 105º, nº4, alínea b) do RGIT

            Para além do preenchimento dos elementos constitutivos do respectivo tipo, a punição pela prática do crime de abuso de confiança fiscal à Segurança Social imputado nos autos aos arguidos e ora recorrentes - cuja verificação estes nem sequer põem em causa -, só poderá ocorrer se estiveram verificadas as duas condições objectivas de punibilidade que a lei prevê, a saber:

            - a situação de incumprimento perante o credor tributário subsistir para além dos 90 dias a que alude artigo 105º, nº 4, al. a), do RGIT, assim se preenchendo a condição objectiva de punibilidade ínsita no preceito;

            - as prestações em dívida não forem pagas e decorrerem mais de 30 dias após a notificação para o efeito, assim se preenchendo a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT (introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro).

            Em sede recursiva, os arguidos põem em causa, apenas, a verificação da condiçã objectiva de punibilidade enunciada em segundo lugar, …

             Assim sendo, não poder deixar de improceder a pretensão dos recorrentes no sentido da sua absolvição do crime por que vêm acusados com fundamento na falta da referida condição objectiva de punibilidade.


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            -  Do incorrecto enquadramento jurídico-penal relativo à actuação dos arguidos na figura do crime continuado

      Investem, por último, os recorrentes na pretensão de verem alterada a sentença recorrida na parte desta em que se decidiu a sua condenação pelo imputado crime na forma continuada, …

     
A questão do concurso é regulado no artigo 30º, do Código Penal, no qual se dispõe  que:

De acordo com a factualidade provada:

“[E)] No período entre Outubro de 2014 e Julho de 2018, a sociedade arguida procedeu ao desconto das quotizações nas remunerações efectivamente pagas aos seus trabalhadores.

[F)] Porém, a sociedade arguida, por intermédio do arguido, não procedeu à entrega à Segurança Social dos montantes retidos nos salários efectivamente pagos aos seus trabalhadores e órgãos sociais, nos prazos legalmente fixados ou nos 90 dias seguintes ao termo legal de pagamento, entre os meses de Outubro de 2014 e Julho de 2018, nos períodos e montantes descritos no mapa das quotizações retidas e não pagas reproduzido na tabela infra, cujo montante total ascende a 10.917,39€:

[G)] Os arguidos foram notificados pelo Instituto da Segurança Social, nos termos disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infrações Tributárias) para proceder, no prazo de 30 dias, a contar da data da sua notificação, ao pagamento das quantias em dívida, acrescidas dos acréscimos legais.

[H)] Contudo, até à presente data, os arguidos não pagaram as mencionadas quantias, sendo por isso devedores das quotizações retidas nas remunerações, referidas e descritas em F) e, bem assim, dos respectivos juros vencidos e vincendos até integral pagamento.

[I)] O arguido, por si e em representação da arguida sociedade, agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado, de não entregar aos cofres da Segurança Social as quotizações referidas em F), sabendo que haviam sido retidas nas remunerações dos seus trabalhadores e órgãos sociais e efectivamente pagas.

[J)] Agiu, igualmente, com o propósito concretizado de integrar tais montantes, na esfera patrimonial da sociedade arguida e do arguido, que ascenderam a 10.917,39€, dos quais dispôs como coisa sua, bem sabendo que tal montante pertencia à Segurança Social e, bem assim, que ao actuar da forma descrita causava prejuízo ao Estado, o que quis e logrou.

[K)] O arguido procedeu da forma descrita movido pela facilidade com que sucessivamente logrou concretizar os seus intentos, pois que, depois de não ter entregue as quantias referentes às contribuições do mês de Outubro de 2014, não entregou as prestações subsequentes acima referidas, em virtude de o Instituto da Segurança Social não os ter entretanto inspeccionado, criando ao longo desse período de tempo a convicção de que as suas condutas criminosas tinham sido bem-sucedidas e permaneciam impunes.

[L)] O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

[M)] A falta de pagamento dos valores descritos em F) deveu-se a dificuldades atravessadas pela sociedade e pela família em virtude da doença do arguido, mas também pelas dívidas de clientes que não foram pagas.

[N)] A arguida sociedade, por meio do seu gerente, priorizou a afectação dos recursos que dispunha ao pagamento de outras despesas em detrimento do cumprimento das suas obrigações para com a Segurança Social.”

Daqui resulta que o montante em dívida à Segurança Social se refere não a um acto único de não pagamento de uma quotização, de valor igual ao total em dívida, mas sim à prática de vários actos constituindo o montante global ao somatório de várias quotizações não pagas, mensalmente, durante o período compreendido entre Outubro de 2014 e Julho de 2018.

O que significa que a sociedade arguida bem como o arguido, seu então gerente, foram reiterando cada mês e ao longo de dezenas de meses durante o referido período temporal, a sua conduta de não entrega das respetivas quotizações deduzidas e retidas às remunerações dos trabalhadores e da consequente não entrega à Segurança Social. Ou seja, perante esta repetição de actos ou condutas, a questão a equacionar é a de saber se se está perante uma pluralidade de crimes, porque existe uma pluralidade de actos praticados pelos recorrente, ou se estamos apenas perante um crime, mas praticado sob a forma continuada, nunca, pois, se podendo equacionar estarmos em presença de um resolução única, porque, para além de serem várias as actuações dos arguidos descritas na factualidade provada ao longo do referido período temporal, desta emerge, também, que o arguido, na qualidade de gerente da sociedade arguida, assim actuou “ movido pela facilidade com que sucessivamente logrou concretizar os seus intentos “,o que pressupõe várias, e não apenas uma, resoluções criminosas.


 “Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crimes, a culpa está tão acentuadamente diminuída que um só juízo de censura, e não vários, é possível formular” – neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código Penal Português - Anotado e Comentado”, 15.ª edição, 2002, Almedina, págs. 142 e 143.
Do preceito legal contido no nº2 do art. 30º do C. Penal extrai-se que o crime continuado pressupõe:
- a realização plúrima de um mesmo tipo de crime ou de vários outros tipos, desde que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;
- a homogeneidade de condutas do agente;
- a lesão do mesmo bem jurídico;
- a unidade de dolo, ou seja, a existência de uma linha psicológica continuada;
- a existência de uma situação exterior ao agente que facilite a execução dos ilícitos, assim diminuindo a sua culpa”
No caso concreto, tenta a factualidade dada como provada, resulta evidente a existência de uma realização plúrima de crimes, já que entre Outubro de 2014 e Julho de 2018, a sociedade arguida, por intermédio do arguido AA, na qualidade de gerente daquela, não entregou o valor correspondente às quotizações descontadas das remunerações pagas aos seus trabalhadores e que eram devidas à segurança social. A distância temporal entre cada uma das infrações (um mês ou mais) permite firmar a conclusão de que são tantas as resoluções criminosas quantas as omissões de entrega das quotizações. Ou seja, em relação a cada mês de quotizações corresponde um crime de abuso de confiança.
Sendo cometido o mesmo crime várias vezes, necessariamente foi violado o mesmo bem jurídico, a saber, os interesses patrimoniais da Segurança Social.
Resulta igualmente claro que a execução de tais crimes foi levada a cabo pelo arguido de uma forma homogénea (descontos das quotizações dos trabalhadores, não entrega das mesmas à Segurança Social, integrando-as na sua esfera patrimonial e na da sociedade arguida).
Por fim, ficou provado que a não entrega dos montantes retidos nos salários dos trabalhadores em causa nos autos se deveu a dificuldades atravessadas pela sociedade arguida e pela família do gerente desta em virtude da doença do arguido AA, mas também pelas dívidas de clientes que não foram pagas.
Este circunstancialismo e a ausência de controlo mais precoce por parte da entidade credora dessas quantias - facto vertido na alínea K) -  constituiu uma situação exterior ao arguido que, confrontado com as dificuldades económicas sentidas pela sociedade arguida, de que era gerente, e o esforço de a manter no giro comercial, lhe facilitou a execução do ilícito, diminuindo consideravelmente a sua culpa.
Nestes termos, conclui-se que os arguidos praticaram, na forma continuada, o crime de abuso de confiança contra a segurança social pelo qual vinham pronunciados e pelo qual foram condenados, tal como sentenciado na decisão recorrida, a qual, por isso, também nessa parte é de confirmar.

            Soçobrando também neste segmento, a pretensão dos recorrentes.


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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto …

            2. Condenar os recorrentes nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça individual em 4 UCs ( artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).


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                                                                                               Coimbra, 13 de dezembro de 2023

                    ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

                    ( Maria José Guerra – relatora )

                    ( Maria Teresa Coimbra  - 1ª adjunta )

                 (Maria Fátima Sanches Calvo – 2ª adjunta)