Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1566/07.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
DANO
EXCESSIVA ONEROSIDADE
PRIVAÇÃO DE USO
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.483, 562, 563, 564, 566 DO CC
Sumário: I - Em sede de obrigação de indemnização, a excessiva onerosidade afere-se entre o valor da reparação e o valor que o bem representa no património do lesado.

II - Ao lesado cabe provar o custo da reparação e ao lesante os factos em que se traduz a excessiva onerosidade.

III - A privação do uso de veículo não constitui, só por si, dano indemnizável, sendo necessário que o lesado alegue e prove matéria de facto de onde resulte um prejuízo concreto.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:



A...., solteiro, residente ..., intentou acção declarativa comum, sob a forma de processo ordinário, contra B.... Companhia de Seguros, S.A., com sede...., alegando, em resumo, que:

No dia 21 de Maio de 2006, cerca das 06H15 horas, ao quilómetro 115,300 da A1, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o seu veículo de matrícula 00-00-EA, por si conduzido, e o veículo de matrícula 00-00-RD, conduzido por C...., propriedade de D... e seguro na ré.

O seu veículo, que circulava no sentido sul/norte, a cerca de 90 km/hora, pela faixa da direita, foi embatido na respectiva traseira pela parte dianteira da outra viatura, que circulava no mesmo sentido de trânsito, a uma velocidade superior a 130 km/hora, devido à circunstância de o seu condutor seguir desatento ao trânsito.

Em consequência do acidente, sofreu ferimentos que o obrigaram a receber tratamentos médicos, tendo estado doente e incapacitado para o trabalho durante 10 dias.

O seu veículo ficou danificado, sendo que, com a respectiva reparação, terá de despender € 8.310,91.

Está privado do uso do seu veículo, que não pode circular, uma vez que não dispõe de dinheiro para o reparar e a ré não assumiu a responsabilidade pelo pagamento da reparação.

Utilizava, diariamente, o seu veículo para se deslocar para o seu local de trabalho, para repartições públicas e para passear, nos seus momentos de lazer, pelo que, entre 22 de Maio de 2006 e 13 de Junho de 2006, deslocou-se para o seu local de trabalho de táxi, no que despendeu a quantia de € 3.113,25.

A privação do seu veículo acarreta, para si, um prejuízo diário de € 25,00, pois não dispõe de outra viatura e tem de usar veículos emprestados.

Devido ao embate, o seu veículo, mesmo depois de reparado, ficará mais fragilizado na sua estrutura, o que o desvalorizará em montante não inferior a € 1.500,00.

Em tratamentos médicos e medicamentosos, despendeu € 150,00 e esteve doente e incapacitado para o trabalho durante o período de dez dias, em virtude do que sofreu perdas salariais no valor de € 133,33;

Devido aos ferimentos e respectivo tratamento, sofreu danos não patrimoniais, consistentes em dores, medo e angústia pelo aproximar da morte, que computa em € 2.500,00.

Concluiu pela condenação da ré no pagamento da importância de € 20.844,74, acrescida de € 25,00 diários pela paralisação do seu veículo, desde 04.01.2007 até efectiva reparação do mesmo, e, ainda, de juros, à taxa de 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento.

Regularmente citada, a ré contestou, afirmando, ignorar o acidente, por lhe não ter sido participado, mas, referindo, de qualquer modo, que o veículo do autor valia, à data do acidente, cerca de € 2.000,00, que, depois dele, passou a valer € 300,00 e que a respectiva seguradora (Companhia de Seguros E.....), contactada ao abrigo da Convenção IDS, se disponibilizou a pagar € 1.700,00, dado a reparação da viatura não ser aconselhável, quer em termos técnicos, como o próprio autor admitiu na sua petição inicial, quer em termos económicos.

Quanto ao mais, sustentou não haver fundamento para os valores peticionados.

Terminou pelo julgamento da causa de acordo com a prova produzida.

No despacho saneador foram afirmadas a validade e a regularidade da lide.

A selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória) não foi objecto de reclamação.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, que condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 2.166,50, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença e até integral pagamento.

Inconformado, o autor interpôs recurso e apresentou a respectiva alegação, finalizada por 21 conclusões, que se resumem, sem qualquer dificuldade, a, apenas, sete:

1) A matéria de facto constante dos artigos 9.º, 10.º, 19.º, 22.º e 23.º da base instrutória foi erradamente julgada;

2) A motivação da matéria de facto não obedece ao preceituado nos artigos 653.º, n.º 2, e 660.º, n.º 2, do Código de Processo Civil;

3) A excessiva onerosidade a que se refere o artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil tem de ser aferida em função da situação económica do lesado e não, apenas, em razão do custo da reparação;

4) A paralisação do seu veículo constitui, só por si, um prejuízo, pelo que lhe não cabia fazer a prova de todas as despesas suportadas com transportes alternativos ou com viaturas de substituição;

5) Na falta de quantificação do prejuízo concreto, deveria a privação ser ressarcida por recurso à equidade;

6) Alteradas as respostas aos quesitos 9.º, 10.º, 22.º e 23.º, devem os danos não patrimoniais ser valorizados em e 2.500,00;

7) Foram violados os artigos 342.º, 351.º, 483.º, 496.º, 563.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil.

A ré respondeu à alegação do autor, defendendo o acerto da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Em face das conclusões da alegação do recorrente, que delimitam o objecto do recurso, são estas as questões a resolver:

a) A alteração da matéria de facto;

b) O quantum indemnizatório.

II. Na sentença sob recurso foram dados por assentes os seguintes factos:


1) No dia 21 de Maio de 2006, pelas 6.15 horas, na A1, km 115,300, ocorreu um acidente de viação.

2) No qual foram intervenientes o veículo do autor de matrícula 00-00-EA e o veículo de matrícula 00-00-RD, conduzido por C...., propriedade de D....., segurado na ré, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº....., válido à data do acidente.

3) O veículo do autor é um O...., a gasóleo, do ano de 1994.

4) Na data e local referidos em 1), o veículo do autor circulava no sentido sul/norte.

5) A auto-estrada, no local, tem duas faixas de rodagem no mesmo sentido.

6) No circunstancialismo de tempo e lugar referido em 1), deu-se um embate entre a parte frontal do veículo de matrícula 00-00-RD e a traseira do veículo do autor.

7) O RD circulava no mesmo sentido de trânsito do veículo do autor.

8) O veículo do autor ficou com a sua parte traseira danificada, o que afectou esse veículo, quer ao nível da sua estrutura, quer ao nível mecânico.
9) Para a sua reparação, é necessário aplicar peças e executar serviços de chapeiro e de mecânico, ascendendo o valor orçado para essa reparação a €8.310,91.
10) Em virtude dos danos aludidos em 8), o veículo do autor ficou sem poder circular.
11) O autor usava, habitualmente, o seu veículo para se deslocar para o seu local de trabalho.
12) O valor venal do veículo do autor, à data do acidente, ascendia a montante próximo dos € 2.000,00.


III. O direito:



a) A alteração da matéria de facto

            Nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo decreto-lei n.º 303/07, de 24 de Agosto (diploma de que serão os demais preceitos a citar sem indicação de origem), a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

            a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;

            b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

            Prescreve, por seu turno, o n.º 1 do artigo 690.º-A que quando se impugne a decisão de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – alíneas a) e b) –, acrescentando o n.º 2 que, no caso de terem sido invocados como fundamento do erro na apreciação das provas depoimentos gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicá-los por referência ao assinalado na acta, nos termos do artigo 522.º-C.

            Dispõe, por fim, este último normativo, no n.º 2, que tendo havido registo áudio, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.

            Tal como a apelante configura a impugnação – errada interpretação da prova testemunhal – a disposição a ter em conta é a da segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º, a conjugar com o artigo 690.º-A.

            Cumpre esclarecer que o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no artigo 655.º, restringe largamente as possibilidades de o tribunal de recurso modificar a decisão de 1.ª instância. Desde que os factos declarados assentes tenham apoio nos elementos de prova utilizados e a motivação não enferme de vício lógico que a desvalorize, a alteração é, na prática, inviável.

            A regra é a estabilidade e a excepção a modificabilidade. Atribuindo ao princípio da prova livre o alcance de “prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 245), não há como alterar o julgamento de facto, se a solução encontrada reflectir, com razoabilidade, uma convicção fundada em provas consideradas credíveis à luz dos dados da experiência, da ciência e da razão.

            No rigor dos termos, só o erro notório, clamoroso, flagrantemente desconforme entre os elementos de prova recolhidos e a decisão de facto, permitirá à Relação alterar a decisão de facto.

            Presentes estes considerandos, passemos, então, à concreta situação trazida a este tribunal.

(…)

b) O quantitativo da indemnização

            São três os pontos concretos suscitados, neste particular, pelo recorrente: 1) a indemnização pelos danos no veículo; 2) a indemnização pela privação do seu uso; 3) a indemnização pelos danos não patrimoniais.

1) No que se refere ao primeiro ponto, o autor peticionou a quantia de 8.310,91 euros, valor orçado para a reparação do seu veículo.

Na sentença, no entanto, foi-lhe atribuído, tão-somente, a importância de € 2.166,50, correspondente ao valor comercial actualizado da viatura, na consideração de que a reconstituição natural era excessivamente onerosa para o devedor ou, quando assim se não entendesse, que o autor não demonstrou, cabendo-lhe a ele a prova, que não era possível adquirir um veículo idêntico ao sinistrado com um montante próximo do do seu valor comercial.

Diferente é a posição do recorrente, para quem a excessiva onerosidade não pode resultar apenas da circunstância de a reparação custar quatro vezes mais que o valor venal do veículo, tendo de ser aferida, também, pela capacidade económica do devedor, para além de que não impendia sobre si, mas sim sobre a ré, a prova de que era possível adquirir uma viatura semelhante à acidentada por preço aproximado ao do valor comercial desta.

E, atalhando caminho, há que reconhecer que a razão está do seu lado.

Em sede de obrigação de indemnização o princípio base é a reconstituição natural (“quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, reza o artigo 562.º do Código Civil, de futuro designado, abreviadamente, CC).

“O fim precípuo da lei nesta matéria é, por conseguinte, o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes. Se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa (veículo, quadro, jóia, etc.) ou em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e à sua entrega ao lesado, ou ao conserto, reparação, ou substituição da coisa por conta do agente” (Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, página 902).

A indemnização por equivalente (artigo 566.º do CC) é a excepção.

Só quando a reposição em espécie não for possível, seja por razões materiais (morte da pessoa ou destruição de coisa não fungível), seja por questões de insuficiência (porque não cobre todos os danos, por exemplo), seja por via da sua inadequação (em casos de excessiva onerosidade para o devedor), é que se recorre à indemnização em dinheiro, a calcular em função da chamada “teoria da diferença”: diferença entre a situação (real) em que o lesado se encontra devido ao facto lesivo e a situação (hipotética) em que se encontraria se não tivesse sofrido o dano (Prof. Antunes Varela, ob. cit., páginas 902 e seguintes, e Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição refundida, páginas 524 e seguintes).

A indagação, em cada caso, sobre se deve ter lugar a restauração natural ou a indemnização por equivalente tem a ver com a melhor forma de satisfazer o interesse do lesado (não o do lesante), sendo a alternativa estabelecida em seu favor; o lesante apenas poderá discutir se a restauração natural é excessivamente onerosa para si, podendo, também, discutir o montante da indemnização em dinheiro, se for esta a opção seguida (acórdão do STJ, de 19.03.2009, processo n.º 09B0520, base de dados da DGSI).

Apelando às regras do ónus da prova estabelecidas no artigo 342.º do CC, ao credor cabe a prova do princípio (restauração natural) e ao devedor a prova da excepção (que a restauração natural é excessivamente onerosa para si – não, apenas, mais onerosa, mas excessivamente onerosa).

Regressando à hipótese vertida nos autos, ao autor incumbia a prova do custo da reparação do automóvel acidentado, enquanto que à ré cabia demonstrar que esse custo constituía para si “um encargo desmedido, desajustado e a exceder manifestamente os limites postos legalmente a uma legítima indemnização (acórdão do STJ, de 05.06.2008, base de dados da DGSI, processo n.º 08P1370).

Esta excessividade há-de aferir-se, naturalmente, pela diferença entre dois pólos: um deles é o preço da reparação (…) mas o outro não é o valor venal do veículo (…), porque, passe a expressão, uma coisa é ter o valor, outra coisa é ter a coisa (…). O valor a ter em conta (…) é aquele a que chamaremos o valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado” (acórdão do STJ, de 04.12.2007, processo n.º 06B4219, base de dados da DGSI).

Como se explica, em termos práticos, no mesmo aresto, uma coisa é ter € 1.200,00, outra coisa é ter um R....– ainda que valendo apenas essa quantia – mas que é nosso, que satisfaz os nossos interesses.

Ou, como se diz no citado acórdão de 05.06.2008, “um veículo já com muito uso pode ter – e tem habitualmente – um valor comercial pouco significativo, mas, ainda, assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto que a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, o mesmo é dizer que pode não reconstituir a situação que o lesado teria se não tivesse ocorrido o dano”.

Na situação em apreço, ficou provado que o veículo do autor é um O...., a gasóleo, do ano de 1994, que ele usava, habitualmente, para se deslocar para o trabalho, no valor comercial de cerca de € 2.000,00, mas que sofreu danos cuja reparação importa em € 8.310,91.

O autor provou o que as regras do ónus da prova lhe impunham: o custo da restauração “in natura”.

Feita esta prova, cabia à ré demonstrar que a reparação era excessivamente onerosa para si, alegando o outro pólo da aferição da excessividade, ou seja, que o valor patrimonial da viatura sinistrada era inferior ao preço da reparação, que o autor encontraria no mercado um veículo em tudo igual ao seu por preço mais baixo (acórdão do STJ de 05.03.2002, base de dados da DGSI, processo n.º 02A024).

Só que não o fez. Numa atitude frequente das seguradoras de pretenderem pagar apenas o valor venal do veículo usado (acórdão do STJ de 27.02.2003, CJ/STJ, Ano XI, Tomo I, página 112), limitou-se a dizer que o custo da reparação era superior em mais de quatro vezes ao valor comercial da viatura.

Colocou-se na posição, como se escreveu no falado acórdão de 04.12.2007, de quem quisesse vender o veículo, quando o autor não pretendia vender, mas, tão-só, ter um automóvel que satisfizesse as suas necessidades.

Não provou, portanto, a excepção, a excessiva onerosidade, pelo que lhe não resta outra alternativa que não seja a satisfação do princípio, que é como quem diz, a reintegração natural, pagando o valor necessário à reparação do veículo acidentado, isto é, a quantia de € 8.310,91, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da citação (artigo 805.º, n.º 3, do CC), como o autor defende.

Nesta parte, procederá o recurso.

2) A privação do uso do veículo

A este título, o autor reclamou o pagamento da quantia de € 3.113,25, que alegadamente teria despendido em táxis entre 22 de Maio (dia seguinte ao do acidente) e 13 de Junho de 2006 e, ainda, a importância diária de € 25,00, desde 14 de Junho de 2006 até à efectiva reparação do veículo.

O pedido foi desconsiderado na sentença, por se entender não ter sido feita prova, seja das despesas com táxi, seja de quaisquer prejuízos resultantes da paralisação da viatura sinistrada.

Na óptica do recorrente, a privação do uso do veículo é indemnizável de per si, devendo a falta de prova da quantificação dos prejuízos ser suprida por recurso à equidade, no âmbito da qual nada tem de exagerado a fixação de um montante diário de € 25,00, contado desde a data do acidente.

Deixou cair, portanto, passe a expressão, a quantia, aliás, elevada do custo do táxi, ou seja, o dano concreto, para se ater exclusivamente ao dano hipotético.

Sobre este tema desenham-se duas posições na nossa jurisprudência: uma, no sentido de que a mera indisponibilidade do bem constitui, só por si, dano indemnizável, independentemente da sua utilização efectiva (acórdãos do STJ de 29.11.2005 e de 05.07.2007, in CJ/STJ, Ano XIII, Tomo III, página 151, e Ano XV, Tomo II, página 151, por exemplo), e outra que propende para a necessidade de ser provada a existência de prejuízos, sem a exigência, embora, de os demonstrar um a um (entre outros, os acórdãos do mesmo Tribunal, de o8.06.2006, 05.07.2007, 05.07.2007, 16.09.2008, 09.12.2008 e 19.11.2009, in base de dados da DGSI, processos n.ºs 06A1497, 07B2138, 07B2111, 08A2094, 08A3401 e 31/04.1TVLSD.S1, respectivamente).

Adere-se a esta última corrente, na consideração, não, apenas, de se tratar de posição maioritária, mas, também, de ela se enquadrar melhor no nosso sistema jurídico, que faz depender a obrigação de indemnizar da existência concreta de danos.

É o que resulta, desde logo, do princípio geral da responsabilidade civil, estabelecido no n.º 1 do artigo 483.º do CC (…fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”), e, depois, dos preceitos específicos sobre a matéria, nomeadamente os artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do mesmo diploma, na medida em que falam, respectivamente, da reparação de um dano, dos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão, do prejuízo causado/benefícios deixados de obter e na diferença entre a situação patrimonial do lesado e a que teria se não existissem os danos.

No nosso sistema jurídico, a pedra de toque desencadeadora da indemnização é, como se observou no mencionado acórdão de 16.09.2008, o dano.

E, aceitando-se que a paralisação de um veículo causa, via de regra, prejuízos ao seu proprietário, a verdade é que nem sempre assim acontecerá; basta que nos lembremos, como naquele aresto se acentuou, de quem dispõe de vários veículos, que, na falta de um, utiliza outro, ou da pessoa que utiliza o veículo apenas para se deslocar para o trabalho e que, impossibilitado de o usar, passa a ir para o emprego de boleia ou em veículo da empresa (ou, até, em transporte público, acrescentaremos). Em tais casos, em vez de um prejuízo, haverá um benefício, consistente na poupança derivada dos custos da utilização (combustível, óleo, pneus, depreciação geral do automóvel, etc.).

Conclui-se, pois, que sem a alegação e prova de factos caracterizadores de prejuízo efectivo não é admissível a atribuição de indemnização.

A mera privação do uso de um veículo automóvel, que se não reflicta negativamente na situação patrimonial do lesado, isto é, se não acarretar um dano específico, seja na modalidade de dano emergente, seja na de lucro cessante, não logra fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil” (voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa no acórdão do STJ de 29.11.2005).

No caso em apreço, resultou provado, apenas, que a viatura do autor, que ele utilizava para se deslocar para o seu posto de trabalho, ficou incapaz de circular, devido ao embate documentado nos autos.

Danos concretos, nenhum se provou. O autor alegou que, numa primeira fase, se deslocou para o trabalho de táxi, no que despendeu a importância de € 3.113,25, e, posteriormente, passou a utilizar veículos emprestados, mas nada disso conseguiu demonstrar.

De resto, a simples alegação do empréstimo a nenhum resultado prático poderia conduzir, na exacta medida em que não foi acompanhada dos factos em que o prejuízo de traduziu. É que nada autoriza a pensar que o emprestador não era a empresa onde trabalhava e que esta continuou a suportar os custos de circulação e de manutenção. Nessa hipótese, era evidente o seu benefício.

Como quer que seja, nenhum prejuízo real logrou verificação, pelo que a sua pretensão não pode, nesta parte, obter acolhimento.

3) A indemnização pelos danos não patrimoniais

 

Neste conspecto, alegou o autor ter sofrido lesões corporais que lhe provocaram dores e o obrigaram a receber tratamentos médicos e passado por grande susto, medo e angústia, ante a perspectiva de se ver irreversivelmente incapacitado para exercer toda e qualquer actividade e, até, da aproximação da morte, para pedir uma compensação monetária de € 2.500,00.

Não provada a factualidade em que o pedido assentava, foi o mesmo julgado improcedente.

No recurso o autor insistiu pelo direito à referida quantia, mas só na perspectiva de serem alteradas as respostas aos quesitos 9.º, 10.º, 22.º e 23.º.

Como a matéria de facto se manteve inalterada, é óbvio que o recurso está votado ao naufrágio.

IV. Síntese final:

1) A matéria de facto só pode ser alterada pela Relação se a decisão de 1.ª instância se mostrar repassada de erro clamoroso na apreciação da prova.

2) A falta de motivação da matéria de facto determina unicamente a sua repetição pelo tribunal de 1.ª instância, se algum dos interessados o requerer em via de recurso.

3) Em sede de obrigação de indemnização, a excessiva onerosidade afere-se entre o valor da reparação e o valor que o bem representa no património do lesado.

4) Ao lesado cabe provar o custo da reparação e ao lesante os factos em que se traduz a excessiva onerosidade.

5) A privação do uso de veículo não constitui, só por si, dano indemnizável, sendo necessário que o lesado alegue e prove matéria de facto de onde resulte um prejuízo concreto.

V. Decisão:

Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente, nos termos acima apontados, e, por consequência, em revogar a sentença na parte em que condenou a recorrida a pagar ao recorrente a importância de € 2.166,50, acrescida de juros a partir da decisão, condenando-a, agora, a pagar a quantia de € 8.310,91 (oito mil trezentos e dez euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, a contar da citação.

No mais, mantém-se a sentença recorrida, mormente no que tange à absolvição da recorrida do restante que lhe foi pedido.

Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento.