Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4538/14.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
MÚTUO
ESTABELECIMENTO DE CRÉDITO PREDIAL
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – SEC. DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI DE 16 DE ABRIL DE 1874; 703º, Nº 1, AL. B) DO NCPC.
Sumário: I – A Lei de 16 de Abril de 1874 não foi revogada pela legislação posterior, designadamente pelo CPC vigente, pelo que os títulos emitidos para documentar mútuos celebrados por «estabelecimentos de crédito predial autorizados a emiti-los» serão «considerados como escrituras públicas», «para todos os efeitos», incluindo o da respectiva exequibilidade, ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 703º do novo CPC.

II - Mesmo que assim se não entendesse, teria de se considerar a exequibilidade de um tal documento, ao abrigo do art. 46º, nº 1, c) do CPC de 1961, porque constituído em momento anterior à entrada em vigor do novo CPC, por ser de sufragar o entendimento do TC (Acs. nºs 847/2014 e 161/2015), ao julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 703º do nCPC e 6º, nº 3 da Lei nº 41/2013, de 26/6, na interpretação de que aquele artigo 703º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, c) do CPC de 1961.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

       Banco C..., SA, intentou a presente execução contra J... e M..., com vista à cobrança coerciva da quantia de € 40.066,43, apresentando para tal o documento de fls. 5 a 14, datado de 22.12.2006, intitulado «TÍTULO PARTICULAR Lei de 16 de Abril de 1874 e Decreto de 7 de Janeiro de 1876 (Decreto-Lei nº 272/90, de 7 de Setembro) CONTRATO N.º 0040.00490425810 (COM HIPOTECA)».
O Sr. Juiz indeferiu liminarmente o requerimento apresentado, nos termos do disposto no artigo 726º nº 2 a) do CPC, por considerar que, contrariamente ao estabelecido no regime anterior à Lei nº 41/2013, de 26/6, o documento apresentado não pode valer como título executivo, sendo manifesta a falta de título executivo.
Inconformada, a exequente apelou, suscitando nas respectivas conclusões as seguintes questões:
- o documento apresentado à execução, por força dos diplomas legais nele invocados, deve ser considerado como uma escritura pública para todos os efeitos legais;
- ainda que assim se não entenda, o mesmo sempre valeria como título executivo, embora enquanto simples documento particular, porque constituído em momento anterior à entrada em vigor do novo CPC, sendo inconstitucional diferente interpretação.
Importa apreciar as questões enunciadas e decidir.
1. A equiparação do documento a escritura pública.
 No essencial, o Sr. Juiz ponderou que o documento aqui apresentado não se subsume a qualquer das espécies previstas no artigo 703º do novo CPC e que a Lei nº 41/2013 optou por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que fosse a obrigação titulada, inclusivamente aos emitidos pelos bancos e aos preexistentes à entrada em vigor do mesmo código (1/9/2013), como sucede com o aqui apresentado (datado de 22/12/2006).

É indubitável que, com a reforma de 2013, o legislador deixou de reconhecer força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor e que importem a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação: no novo CPC, o elenco dos títulos executivos foi alterado (art. 703º), deixando de merecer tal qualificação os documentos particulares (não autenticados), que têm agora de passar pelo crivo da injunção (ou da acção).

Porém, o Sr. Juiz, ao fundamentar a sua decisão de indeferimento, curou apenas de saber da exequibilidade do contrato aqui em questão enquanto titulado num mero documento particular, tal como estava consagrado no art. 46º do CPC de 1961.

Ora, do que se trata é de saber se o documento com que foi outorgado o referido contrato, por força dos diplomas nele evocados, deve ser considerado como uma escritura pública para todos os efeitos legais, particularmente o da respectiva exequibilidade.
É certo que, posteriormente, ao pronunciar-se sobre a admissibilidade do recurso, não obstante ter considerado esgotado o respectivo poder jurisdicional, o Sr. Juiz resolveu esclarecer, em complemento do decidido, que, com a actual reforma do CPC, cessou a vigência dos diplomas a que a recorrente aludira, por revogação tácita, ou seja, por ser manifesta a incompatibilidade entre o regime fixado à data e o actualmente em vigor ou por caducidade, caso se considere que o artigo 10º do DL nº 272/90 de 7/9 constituía norma meramente transitória. Mas, salvo o devido respeito, não tem razão.
Vejamos.

A presente execução foi proposta em 3/12/2014, portanto, em data muito posterior à entrada em vigor do novo CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/6. Contudo, o enfoque da questão não deve ser colocado na análise do documento dado à execução enquanto um dos documentos particulares aludidos na al. c) do art. 46º do CPC de 1961, mas, sim na da sua viabilidade para ser equiparado, para efeito da respectiva exequibilidade, à espécie dos documentos aludidos na al. b) do nº 1 do art. 703º do novo CPC, i. é, os exarados ou autenticados por notário.

Ora, como já o reconheceu o Ac. do STJ de 24/1/1995 (086625-Fernando Fabião), «a Lei de 16 de Abril de 1874 e o Decreto de 7 de Janeiro de 1876, não foram revogados pela legislação posterior, designadamente pelo Código Civil vigente, o que resulta até expressamente do Decreto-Lei 272/90, de 7 de Setembro e do Decreto-Lei 32715, de 29 de Abril de 1943». E a citada Lei de 16 de Abril de 1874 autorizou o governo a decretar as formalidades e condições que devem ter os títulos pertencentes aos estabelecimentos de crédito predial autorizados a emiti-los e estatuiu que esses títulos para todos os efeitos serão considerados como escrituras públicas.

Por sua vez, o DL 272/90, de 7/9, que transformou em sociedade anónima o C..., EP, veio corroborar a não derrogação daquela regra quanto à ora exequente, ao dispor no seu art. 10º: «Todos os contratos ou actos jurídicos que tenham por objecto principal ou acessório a constituição, alteração ou restrição de garantias reais sobre imóveis de que seja beneficiário o C..., S. A., continuarão a ser formalizados através de títulos particulares, que são considerados como escrituras públicas para todos os efeitos legais, conforme a Carta de Lei de 16 de Abril de 1864, regulamentada pelo Decreto de 7 de Janeiro de 1876 e mantida pelo artigo 90.º, alínea c), do Código do Notariado (…)» ([1]).

«De resto, no que toca à validade formal desses títulos particulares, ela resultaria ainda do preceituado no artigo único do Decreto-Lei 32765, de 29 de Abril de
1943, segundo o qual os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem fazer-se por escrito particular, ainda mesmo que o outro contratante não seja comerciante
» ([2]).

Perante o exposto, não sofre dúvida a vigência dos diplomas em causa ([3]) nem, por isso, a equiparação a escritura pública do título junto com a petição executiva e a respectiva exequibilidade, ao abrigo da al. b) do nº1 do art. 703º do novo CPC.

2. A inconstitucionalidade da interpretação perfilhada na decisão recorrida.

Mesmo que, porventura, não se admitisse, nos termos expostos, a equiparação a escritura pública do título junto, sempre teríamos de considerar a respectiva exequibilidade, por força do artigo 46º, nº 1, c) do CPC de 1961. Com efeito, sufragaríamos o entendimento perfilhado pelos sucessivos Acs. do TC nºs 847/2014 (de 3/12/2014) e 161/2015 (de 4/3/2015), subscritos já por dez dos Srs. Conselheiros daquele Tribunal. Tendo ambos o mesmo alcance e idêntica fundamentação, a que nos limitamos a aderir para evitar inútil reprodução, citamos apenas a conclusão do mais recente:

«Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito democrático constante do artigo 2.º da Constituição, a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961» ([4]).
Síntese conclusiva:

1ª) A Lei de 16 de Abril de 1874 não foi revogada pela legislação posterior, designadamente pelo CPC vigente, pelo que os títulos emitidos para documentar mútuos celebrados por «estabelecimentos de crédito predial autorizados a emiti-los» serão «considerados como escrituras públicas», «para todos os efeitos», incluindo o da respectiva exequibilidade, ao abrigo da al. b) do nº1 do art. 703º do novo CPC.

2ª) Mesmo que assim se não entendesse, teria de se considerar a exequibilidade de um tal documento, ao abrigo do art. 46º nº 1 c) do CPC de 1961, porque constituído em momento anterior à entrada em vigor do novo CPC, por ser de sufragar o entendimento do TC (Acs. nºs 847/2014 e 161/2015), ao julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 703º do CPC e 6º nº 3 da Lei nº 41/2013 de 26/6, na interpretação de que aquele artigo 703º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46º nº 1 c) do CPC de 1961.

Decisão.
Nos termos expostos, julgando procedente o recurso, decide-se revogar a decisão recorrida e, por consequência, determinar a sua substituição por outra que faça prosseguir a execução, se não se verificar diferente causa de indeferimento.
Sem custas (a apelação).
                   Coimbra, 05/05/2015 
Alexandre Reis (Relator)
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo



[1] Não se vislumbrando a razão para considerar tal norma meramente transitória.
[2] Citado Ac. do STJ.

[3] No mesmo sentido, o Parecer do Instituto dos Registos e Notariado homologado por despacho do subdirector-geral de 14/4/1998: «O Crédito Predial Português, S.A. continua a beneficiar do regime especial decorrente do estatuído na Carta de Lei de 16 de Abril de 1874, regulamentada pelo Decreto de 7 de Janeiro de 1876, e do artigo 10º do Decreto-Lei nº 272/90, de 07.09, relativo à constituição, alteração ou restrição de garantias reais sobre imóveis. Com efeito, estes contratos podem ser formalizados através de títulos particulares considerados, para todos os efeitos legais, como escrituras públicas.»  (www.irn.mj.pt/sections/irn/legislacao/publicacao-de-brn/docs-brn/pdf/1998-parte-1/downloadFile/attachedFile_5_f0/6_1998.pdf?nocache=1216387305.24.)

[4] No mesmo sentido, os Acs da RL de 17/12/2014 (23/14.2TTVFX.L1-4-Jerónimo Freitas) e de 26/3/2014 (766/13.8TTALM.L1-4-Paula Santos) e da RE de 27/2/2014 (374/13.3TUEVR.E1-Paula do Paço) e de 10/4/2014 (305/13.0TBVVC.E1-Mata Ribeiro). Também não ignoramos, é certo, que a RC já se pronunciou em sentido contrário no seu Ac. de 7/10/2014 (61/14.5TBSBG.C1-Maria João Areias), que, aliás, foi seguido de muito perto na decisão recorrida, ainda que não explicitamente.