Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
205237/10.9YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INJUNÇÃO
CAUSA DE PEDIR
ACÇÃO DECLARATIVA
CONFISSÃO JUDICIAL COMPLEXA
FORÇA PROBATÓRIA
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTICULADO ANEXO AO DECRETO-LEI Nº 269/98, DE 1 DE SETEMBRO (V. ARTIGOS 2º, A CONTRARIO, 3º, EX VI DO ARTIGO 15º, 14º, A CONTRARIO, 16º E 17º TODOS DO “REGIME DOS PROCEDIMENTOS DESTINADOS A EXIGIR O CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS EMERGENTES DE CONTRATOS DE VALOR NÃO SUPERIOR A €15.000,00”, ANEXO AO INDICADO DL 269/98).
Sumário: I – A caracterização genérica e sucinta da origem (da fonte contratual) de um crédito pretendido realizar através de um requerimento injuntivo assente num formulário, vale para efeito de individualização da causa de pedir na posterior acção declarativa conexa com essa injunção quando esta não adquiriu a natureza de título executivo;

II – As novas incidências temporais e quantitativas introduzidas na modelação desse crédito pela ulterior tramitação declarativa conexa com a injunção, não importam qualquer alteração da causa de pedir se se mantiver intocada a origem (a fonte contratual) do crédito visado com o requerimento injuntivo;

III – A aceitação e a eficácia probatória de uma confissão judicial complexa – uma confissão contendo elementos contextualizadores, não correspondentes em si à admissão de factos desfavoráveis ao confitente (artigo 360º do CC) – funciona, na falta de uma declaração expressa de aceitação, através do silêncio da parte contrária ao confitente, enquanto incidência verificada no desenvolvimento desse processo, posteriormente ao depoimento de parte que contém essa confissão (complexa);

IV – Uma obrigação cuja liquidez só resulta da sentença, que alterou os termos do pedido quanto a esse elemento, só se torna líquida, e consequentemente só vence juros, com o trânsito dessa sentença, inexistindo mora do devedor anteriormente a esse evento (artigo 805º, nº 3 do CC).

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


1. Através do requerimento de injunção de fls. 1 (desde já se sublinha tratar-se este de um modelo normalizado[1]), entregue em 11 de Junho de 2010[2], pretendeu a sociedade Requerente, C…, Lda. (A. e neste recurso Apelada), conferir força executiva a uma injunção[3], indicando como Requerido o “Condomínio do Prédio …” em ...(R. e aqui Apelante), expondo nesse documento, no campo específico, a seguinte pretensão e indicando os elementos caracterizadores desta nos seguintes termos:
“[…]
Contrato de: Fornecimento de bens ou serviços
Data do contrato: 09/06/2010
Período a que se refere: 06/06/2007 a 09/06/2010
Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:
A Requerente prestou ao Requerido os trabalhos de construção civil que lhe foram solicitados, descriminados na factura nº 184, datada de 06/02/2007[[4]], cujo custo, IVA incluído à taxa em vigor, se elevou ao montante de €5.912,50.
Interpelado para pagar pela Requerente, o mesmo não o fez, pelo que à quantia em dívida acrescem juros de mora, à taxa legal, que nesta data se elevam ao montante de €827,75. A quantia em dívida é assim de €6.760,25.
[…]”
            [transcrição de fls. 1]

1.1. O Requerido (doravante designado como R.) contestou/opôs-se (a fls. 2/3[5]), impugnando a pretensão do Requerente (que agora passaremos a designar como A.) – contestação esta que impediu que a esse requerimento fosse conferida força executiva e determinou o prosseguimento da causa como acção declarativa de condenação, conexa à injunção e seguindo a tramitação especial prevista no articulado Anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro (v. artigos 2º, a contrario, 3º, ex vi do artigo 15º, 14º, a contrario, 16º e 17º todos do “Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00”, anexo ao indicado DL 269/98) – contestou o R., dizíamos, negando a contratação de quaisquer trabalhos na data mencionada no requerimento injuntivo (09/06/2010), referindo-se a uma anterior adjudicação (31/01/2006), efectivamente correspondente aos trabalhos indicados no mesmo requerimento de injunção, cujo valor já estaria, todavia, satisfeito[6].

1.2. A culminar o julgamento documentado a fls. 29/33 e 41/44, foi proferida a Sentença de fls. 45/56 – contém esta a fixação dos factos provados e corresponde à decisão ora recorrida – cujo pronunciamento decisório foi o seguinte:
“[…]
Nestes termos, julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condeno o réu a pagar à autora a quantia de €5.797,75 (cinco mil setecentos e noventa e sete euros e setenta e cinco cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal de 8% (oito por cento), ou a que vier a ser fixada como taxa supletiva de juros moratórios relativa a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, sobre a importância de €4.970,00 (quatro mil novecentos e setenta euros), que se vencerem desde 12/06/2010, inclusive (v. fls. 1), até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.
[…]”
            [transcrição de fls. 56]

1.3. Inconformado, apresentou o R. o presente recurso, motivando-o a fls. 60/68, aí formulando as seguintes conclusões:
“[…]
                        [transcrição de fls. 66/67]

            1.3.1. O Exmo. Juiz a quo apreciou negativamente, a fls. 73/74, a nulidade da Sentença (excesso de pronúncia) invocada pelo Apelante nas conclusões do recurso.


II – Fundamentação

            2. Relatado que está o iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelo Apelante, a cuja transcrição se procedeu no item anterior, operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            Vistas essas conclusões deparamo-nos, (a) à partida (conclusões 1ª a 8ª), com a qualificação pelo Apelante dos factos provados como extravasando da causa de pedir apresentada pela A. (desvalor qualificado como nulidade da Sentença, nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea d) do CPC). Seguidamente (b) (conclusões 9ª e 10ª), pugna o Apelante por um distinto entendimento da prova por confissão, ocorrida em sede de depoimento de parte do sócio-gerente, representante legal da A. Finalmente (c) (conclusões 11ª a 14ª), discute o Apelante a exactidão do montante considerado na condenação e a correspondente obrigação de juros.

            2.1. Como ponto de partida da apreciação dos três fundamentos do recurso acabados de identificar, importa ter presente a factualidade considerada na decisão apelada, sublinhando-se ser esta inacessível a esta Relação, assentando, como decorre amplamente do item 2.1.3. da Sentença (fls. 47/54), na valoração de prova testemunhal que não foi objecto de gravação (v. o segundo trecho da alínea a) do nº 1 do artigo 712º e o nº 2 do artigo 685º-A, ambos do CPC)[7].

Vale isto, enfim, pela afirmação de estarem os factos a considerar definitivamente fixados, serem eles os indicados na Sentença apelada e que aqui se transcrevem:
“[…]
            [transcrição de fls. 46/47]

            2.1.1. (a) Interessa-nos aqui – e assim abordamos o primeiro fundamento do recurso (que se expressa nas conclusões 1ª a 8ª) – o alegado extravasar pela Sentença, em sede de fixação dos factos provados (todos os factos provados, v. a 1ª conclusão da motivação), da causa de pedir constante do requerimento injuntivo de fls. 1, aqui feito corresponder à função desempenhada por uma petição inicial de uma instância declarativa, tendo presente que a pretensão executiva implícita na injunção não se concretizou face à oposição deduzida pelo R. (cfr. artigos 16º e 17º do regime anexo ao DL 269/98), evoluindo o processo para uma fase declarativa em que o requerimento injuntivo passou a funcionar como petição inicial.

            É, pois, no requerimento injuntivo de fls. 1 e, dentro deste, no campo documental, transcrito no item 1. deste Acórdão, respeitante à exposição sucinta dos factos que fundamentam a pretensão (alínea d) do nº 2 do artigo 10º do regime anexo ao DL 269/98), que devemos procurar a causa de pedir da acção, isto, como se observou, na sua evolução para uma acção declarativa, perscrutando nesse âmbito quais os factos que servem de fundamento à pretensão expressa nessa acção conexa com a injunção (artigo 467º, nº 1, alínea d) do CPC).

            A tal respeito – a respeito da individualidade da injunção enquanto incidência plasmada no respectivo requerimento – ocorre-nos transcrever, por pertinência argumentativa, alguns trechos da anotação de Salvador da Costa à indicada alínea d) do nº 2 do artigo 10º do regime anexo ao DL 269/98:
“[…]
[Não se dispensa o requerente da injunção] de invocar, no requerimento, os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, certo que a lei só flexibiliza a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves.
Como a pretensão do requerente só é susceptível de derivar de um contrato ou de uma pluralidade de contratos, a causa de pedir, embora sintética, não pode deixar de envolver o conteúdo das respectivas declarações negociais e os factos negativos ou positivos consubstanciadores do seu incumprimento por parte do requerido.
[…]
A data do contrato é, porém, susceptível de relevar em sede de causa de pedir, porque funciona como elemento temporalmente delimitador da constituição do direito de crédito invocado.
Mas o que verdadeiramente releva como causa de pedir é a descrição da origem do direito de crédito invocado pelo requerente ou os períodos a que se reporta […].
[…]”[8]

            Ora, pegando nesta referência final à centralidade, na acção declarativa conexa com a injunção, da descrição da origem do direito de crédito, da fonte contratual deste, com algum esbatimento de outros elementos, designadamente da referenciação temporal, e tendo presente o teor da exposição dos factos que aqui nos foi presente pela A., não deixamos de observar nesta peça, com todas as limitações que o uso de um formulário pré-estabelecido sempre acarreta, uma identificação, em traços gerais mas que temos por suficientemente individualizadores da situação, quanto à circunstância de o crédito reclamado pela A. através da injunção se referir a determinadas obras – a um determinado contrato de empreitada respeitante a certos trabalhos nas partes comuns daquele prédio – que foram adjudicadas pelo condomínio R. à sociedade A.

            Não se pode clamar pela necessidade da introdução de regimes processuais simplificados, no sentido de algo aligeirados nos seus pressupostos formais, e depois sindicar as manifestações concretas dessa simplificação com base num exacerbamento dos elementos de forma. Valem nestes casos critérios de razoabilidade e de adequação formal mínima dirigidos à aferição da tutela conferida aos interesses do demandado. Se tais interesses foram suficientemente salvaguardados, mesmo que com base num significativo aligeiramento dos pressupostos formais habituais, devemos considerar estarem efectivamente garantidos os direitos processuais das partes no quadro de um processo que não deixou de se configurar, procedimentalmente, como justo[9].

E, de facto, tanto assim sucedeu aqui que o Condomínio R., em sede de oposição à injunção, não deixou de expressar inequivocamente que sabia perfeitamente ao que se referia a pretensão da A.[10], limitando-se a fornecer-lhe – e bem – um contexto temporal e uma incidência quantitativa algo distintas, relativamente ao relato sucinto constante do requerimento de injunção – incidências que o ulterior julgamento viria, aliás, a confirmar em alguns aspectos –, mas isto, estamos seguros, sem que se possa deixar de afirmar que a consideração da realidade emergente do julgamento nada tivesse que ver com a fundamentação da pretensão apresentada pelo A. na injunção, designadamente que não estivesse em causa nela a remuneração da A. pela efectiva realização de determinados trabalhos de conservação na unidade predial correspondente àquele condomínio.

            Seja como for, quanto ao que existe de distinto entre a pretensão da A. e o resultado alcançado em julgamento quanto a factos – e isto para quem, como parece suceder com o Apelante, sobrevalorize um entendimento formalista do princípio do dispositivo subjacente ao nº 2 do artigo 264º do CPC –, deparamo-nos aqui com o cruzamento entre duas versões na base das quais está inquestionavelmente a mesma situação (o R. aceitou, tanto à partida como agora, estar em causa a efectiva realização dos trabalhos descritos no orçamento de fls. 37) à qual foram acrescentados, na dialéctica da acção induzida pela evolução da injunção contestada para uma acção declarativa conexa, outros factos complementares ou concretizadores dos primitivamente alegados, em termos que tornam os primeiros perfeitamente aproveitáveis, nos termos do nº 3 do artigo 264º do CPC[11]. A tal respeito, parece-nos evidente que o R. alegou esses factos na contestação – o que até nos colocaria aquém das situações do nº 3 da citada norma[12] –, que a A. os aproveitou em julgamento (basta termos presente o teor do depoimento de parte e a iniciativa da A. de juntar os documentos que ilustram esses factos complementares) e, enfim, parece-nos ser igualmente evidente o exercício de um exuberante contraditório entre as partes relativamente a essa factualidade – em rigor, ao longo do processo, as partes acabaram por discutir amplamente o contrato de empreitada que o Condomínio R. adjudicou à A. e todas as vicissitudes deste, designadamente as referidas pelo Apelante, não obstante a A., seguindo uma discutível técnica expositiva[13], ter começado por indicar, mas fê-lo, veio-se a saber em julgamento, por sugestão do administrador do condomínio (v. item dos 6. dos factos), apenas a facturação da parcela dos trabalhos correspondentes à empreitada que ainda se encontrava em dívida, omitindo que estava a pedir a parcela de um todo.

            Não verificamos, pois, é o que conclui esta Relação relativamente ao indicado primeiro fundamento do recurso, qualquer extravasar da causa de pedir por via dos factos provados, sendo que isso corresponde aqui, tendo presente a roupagem com a qual o Apelante indica este fundamento do recurso, a exclusão da verificação da nulidade da sentença prevista no artigo 668º, nº 1, alínea d) do CPC.

            2.1.2. (b) Excluído, pelas razões já adiantadas na nota 8, supra, que esta Relação controle a fixação dos factos pelo Tribunal a quo, estando em causa nessa operação (na fixação dos factos na primeira instância) a valoração de meios de prova inacessíveis a esta segunda instância, trata-se aqui – e corresponde ao segundo fundamento do recurso (que se expressa nas conclusões 9ª e 10ª) – de apreciar o entendimento da instância precedente quanto à prova por confissão consubstanciada no depoimento de parte prestado pelo sócio gerente da A.

            A confissão aqui em causa, em si mesma – ou seja, o reconhecimento que a parte (a A.) aqui fez da realidade de um facto que lhe era desfavorável e favorecia a parte contrária [artigo 352º do Código Civil (CC)] –, correspondeu, segundo a assentada constante de fls. 31 (artigo 563º, nº 1 do CPC[14]) à circunstância de à A. ter sido paga, por conta dos trabalhos por ela realizados no condomínio, a importância de €8.780,00 (a A. confessa, portanto, o recebimento desta).

Estamos, encarando globalmente os factos relatados pelo gerente da A. levados a essa assentada, perante uma situação de indivisibilidade da confissão, por esta conter uma narração de factos complexa, assentando, paralelamente ao elemento confessório em si mesmo considerado (recebi €8.780,00 do R. relativamente ao contrato que invoco), noutros factos e em circunstâncias particulares que não podem ser vistas como revestindo essa natureza confessória (embora estruturalmente ligadas a esse elemento confessório)[15], estamos, pois, no domínio da facti species do artigo 360º do CC, sendo que este actua aqui – actuou aqui –, na sua eficácia probatória também referida a esses elementos matizantes ou contextualizadores, diferidamente, através do silêncio do R.[16] posteriormente observado e que os autos documentam. Note-se que este elemento matizante traduziu-se aqui, no essencial, na afirmação de que esses €8.780,00 corresponderiam a parte de um valor global (disse-se ser este de aproximadamente €14.700,00, verificando-se depois, com base no documento de fls. 35, ser de €13.750,00), do qual faltaria pagar o elemento excedente (€13.750,00 – €8.780,00 = €4.970,00), precisamente o valor mencionado na condenação como correspondente ao capital em dívida.

Aliás, atingiríamos o mesmo resultado, quanto ao entendimento das declarações do gerente da A. constantes da assentada, ponderando o reconhecimento de factos aí envolvido, como não podendo valer como confissão, desta feita aplicando o artigo 361º do CC, tomando como livre apreciação, que a fundamentação demonstra corresponder a um entendimento racional, o sentido em que foram entendidos os elementos relatados nesse depoimento de parte: a A. realizou trabalhos correspondentes ao valor, previamente orçamentado, de €13.750,00; por conta destes trabalhos e deste orçamento recebeu €8.780,00; falta pagar (referimo-nos ao capital) €4.970,00.

Vale isto por afirmar a improcedência deste segundo fundamento do recurso, sendo notória a falta de pressupostos de facto, referidos à declaração confessória complexa aqui valorada através da assentada, que sustentem o entendimento de que aos €8.780,00 que o gerente da A. reconheceu ter recebido, haveria que juntar €5.065,00 em cheques (v. a conclusão 10ª do recurso), quando – e isso foi explicitado na fundamentação de facto a fls. 53 – do que se tratou foi de corrigir a imprecisão desse reconhecimento quanto ao modo como foram entregues esses €8.780,00, correcção que operou, nesse particular, pela valoração livre de determinado segmento do reconhecimento de factos (nos termos do artigo 361º do CC), face à credibilidade atribuída ao depoimento, como testemunha, do anterior administrador do condomínio.

2.1.3. (c) E resta-nos o fundamento culminante do recurso, expresso nas conclusões 11ª à 14ª, respeitante à exactidão do montante considerado na condenação (o capital em dívida) e à correspondente obrigação de juros.

Existe nesta crítica do Apelante, à partida, uma notória confusão relativamente aos elementos envolvidos na condenação quanto à dívida de capital, sendo evidente (basta ler a condenação a fls. 56) que o valor considerado como respeitante ao capital em dívida (€4.970,00) corresponde exactamente, como já o dissemos, ao que falta pagar de €13.750,00, descontados os €8.780,00 reconhecidamente já pagos. O que está para além disto refere-se, tão-só, à obrigação de juros vencidos, sendo que a condenação até foi reduzida na Sentença (v. fls. 56) por se considerar que com a contabilização dos juros aí operada se ultrapassava o montante do pedido (artigo 661º, nº 1 do CPC).

2.1.3.1. (c) Todavia – e neste aspecto (v. a conclusão 13ª) tem o Apelante razão –, a liquidação da obrigação a cargo do Condomínio R., contrariamente ao que se indica na Sentença, estando em causa uma situação de responsabilidade contratual[17], só ocorreu através desta decisão, sendo que só então – só após o trânsito deste Acórdão – se tornará o crédito da A. sobre o R. um crédito líquido, ou seja, um crédito certo e de conteúdo quantitativamente determinado, havendo que ter presente que, “[s]e o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor […]” (primeiro trecho do nº 3 do artigo 805º do CC).

Ora, neste quadro, em que tanto a interpelação extrajudicial do devedor, aqui indicada no ponto 7. dos factos, como a interpelação judicial, aqui decorrente da notificação da injunção (que ora é feita equivaler à citação), não se referem ao mesmo valor da liquidação efectuada no julgamento, teremos de considerar a obrigação como ilíquida antes desse momento (antes do resultado do julgamento), não obstante a interpelação, e, nesse sentido, teremos de considerar o devedor como ainda não constituído em mora (v. artigo 805º, nºs 1 e 3 do CC)[18], até porque não lhe é assacável culpa, no sentido de responsabilidade, por o credor lhe ter apresentado “à cobrança”, chamemos-lhe assim, uma dívida deficientemente quantificada[19].

Haverá, assim, que reduzir os juros, calculados sobre o montante do capital em dívida (€4.970,00), aos que se vierem a vencer após esta decisão (após o trânsito deste Acórdão), calculados à designada taxa de juros comerciais.

Procede, pois, embora só em parte, este terceiro fundamento da apelação.

2.2. Importa alterar a decisão recorrida neste ponto específico, depois de sumariarmos, como impõe o artigo 717º, nº 3 do CPC, o antecedente percurso argumentativo:
I – A caracterização genérica e sucinta da origem (da fonte contratual) de um crédito pretendido realizar através de um requerimento injuntivo assente num formulário, vale para efeito de individualização da causa de pedir na posterior acção declarativa conexa com essa injunção quando esta não adquiriu a natureza de título executivo;
II – As novas incidências temporais e quantitativas introduzidas na modelação desse crédito pela ulterior tramitação declarativa conexa com a injunção, não importam qualquer alteração da causa de pedir se se mantiver intocada a origem (a fonte contratual) do crédito visado com o requerimento injuntivo;
III – A aceitação e a eficácia probatória de uma confissão judicial complexa – uma confissão contendo elementos contextualizadores, não correspondentes em si à admissão de factos desfavoráveis ao confitente (artigo 360º do CC) – funciona, na falta de uma declaração expressa de aceitação, através do silêncio da parte contrária ao confitente, enquanto incidência verificada no desenvolvimento desse processo, posteriormente ao depoimento de parte que contém essa confissão (complexa);
IV – Uma obrigação cuja liquidez só resulta da sentença, que alterou os termos do pedido quanto a esse elemento, só se torna líquida, e consequentemente só vence juros, com o trânsito dessa sentença, inexistindo mora do devedor anteriormente a esse evento (artigo 805º, nº 3 do CC).


III – Decisão


            3. Assim, na parcial procedência do recurso – confirmando-se em tudo o mais a decisão apelada (referimo-nos ao pronunciamento decisório de fls. 56) – revoga-se o trecho da Sentença respeitante aos juros devidos, condenando-se o R., “Condomínio do Prédio …”, a satisfazer à A., C…, Lda., a quantia de €4.970,00, acrescida dos juros (calculados às taxas comerciais aplicáveis) que se vierem a vencer desde a data do trânsito deste Acórdão até integral pagamento.

            Custas em ambas as instâncias a cargo da A. e do R. na mesma proporção indicada na Sentença apelada.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


***


[1] O modelo aprovado pela Portaria nº 808/2005, de 15 de Setembro.
[2] Indicando aqui esta data marca-se a ocorrência do início da presente instância (cujo processo se transferiu em 01/09/2010 para o Tribunal de Gouveia), sendo que esse elemento – a apresentação do requerimento injuntivo – determina a aplicação do regime dos recursos resultante do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, sempre que seja necessário convocar na subsequente exposição alguma norma do Código de Processo Civil cujo texto tenha sido alterado pelo referido DL 303/2007, sê-lo-á na redacção decorrente deste último Diploma.
[3] Estamos aqui no domínio da “acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção”, cujo regime foi publicado em anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), estando em causa, relativamente ao requerimento de injunção aqui considerado, o teor do artigo 10º do indicado anexo ao DL 269/98.
[4] Trata-se do documento junto a fls. 28.
[5] “Oposição que deduz o Administrador do Condomínio do Prédio Rua […]” (transcrição de fls. 2).
[6] Diz o R. nessa contestação:
“[…]3º
O actual administrador do prédio, F…, perante o presente pedido de injunção procurou saber junto dos anteriores administradores se eram ou não verdadeiros os factos constantes do requerimento e pediu os respectivos documentos.
Ficou, assim, a saber que o administrador do condomínio adjudicou em 31 de Janeiro de 2006 à requerente, mediante proposta desta, os trabalhos de construção civil.
[…]
[V]eio o requerido a saber que efectivamente a requerente executou os trabalhos de construção civil referidos no requerimento de injunção, na segunda semana de Junho de 2006.
E que os mesmos foram pagos à requerente, conforme informação de alguns condóminos.
Tudo como melhor consta das fotocópias dos cheques que vão juntas, emitidos em 14 de Julho de 2006 [documentos de fls. 23].
[…]”
                [transcrição de fls. 2/3]
[7] A respeito desta incidência do julgamento (não gravação da prova testemunhal), tenha-se presente – e assim se aborda desde já uma questão implicitamente colocada pelo Apelante no recurso (v. a respectiva conclusão 9ª) – que esta Relação não poderá controlar o significado dos depoimentos das testemunhas … e que, por isso mesmo, não poderá considerar provado, com essa base (com base na apreciação dos depoimentos destas testemunhas) se a Apelante pagou à A., para além dos €8.780,00 confessados por esta no depoimento de parte do seu gerente, mais €5.065,00 através de dois cheques (os cheques existentes nos autos a fls. 23), quando a conclusão à qual chegou o Tribunal, quanto ao que foi pago e ao que falta pagar, assentou na valoração do depoimento da testemunha …, administrador do condomínio ao tempo das obras aqui em causa, valoração esta que é notório ter ocorrido num sentido antagónico ao propugnado pelo Apelante (v. a fundamentação, particularmente clara, da asserção à qual chegou o Tribunal a fls, 49/50).
É em função desta incidência que na apreciação do segundo fundamento do recurso – item 2.1.2. (b) deste Acórdão, infra –, correspondente às conclusões 9ª e 10ª, nos limitaremos a controlar as incidências da valoração da prova por confissão, tendo presente a respectiva assentada (artigo 563º, nº 1 do CPC, in fine), face ao valor de uma declaração confessória acompanhada da narração de circunstâncias particulares susceptíveis de ser entendidas como favoráveis ao confitente, isto face ao disposto no artigo 360º do Código Civil.
[8] A Injunção e as Conexas Acções e Execução, 5ª ed., Coimbra, 2005, pp. 189/190.
[9] Interessa-nos aqui a distinção, muito presente na doutrina constitucional norte-americana, a propósito do conceito de “processo justo” (due process), entre uma dimensão substancial (substantive due process) e uma dimensão procedimental (procedural due process). Atribui-se a esta última dimensão – a que aqui nos interessa – uma “função básica” de conferir um efectivo direito a ser ouvido (right to be heard) em termos que proporcionem uma efectiva capacidade de intervir num procedimento e, através disso, a moldar o seu resultado (v. Norman Vieira, Constitutional Civil Rights in a nutshell, 2ª ed., St. Paul, Minnesota, 1990, pp. 36/37: [i]t is often observed that the basic function of procedural due process is to afford «an opportunity to be heard…at a meaningful time and inn a meaning manner» thereby promoting fairness and accuracy in the resolution of disputes”, p. 36).
[10] Disse o R. na contestação – e trata-se de um dado muito relevante – que “[v]eio […] a saber que efectivamente a requerente executou os trabalhos de construção civil referidos no requerimento de injunção, na segunda semana de Junho de 2006”.
Encontramo-nos aqui, relacionando o requerimento injuntivo e a contestação, no que existe de comum e de distinto nas duas peças, perante um caso substancialmente semelhante àquele que se configura, no artigo 193º, nº 3 do CPC, a respeito da alegação pelo R. de ineptidão da petição inicial: “[s]e o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão [por ininteligibilidade da causa de pedir], não se julgará procedente a arguição quando […] se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”. Desta norma resulta um modelo decisório, com vocação de generalidade, estruturado em torno da ideia de promoção da materialidade subjacente, que atende à evidência de uma compreensão pelo R. dessa situação subjacente à pretensão contra ele dirigida. Essa é, com efeito, a situação do Condomínio R. ao denotar na contestação saber a que trabalhos, efectivamente executados pela A. (logo a que contrato), se referia a pretensão desta, limitando-se a fornecer-lhes um enquadramento temporal distinto e a contestar o valor indicado no requerimento injuntivo como sendo devido.
[11] V. a caracterização deste tipo de factos por Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., Coimbra, 2004, pp. 254/255: “[…] tendo a parte alegado satisfatoriamente o núcleo fáctico essencial, integrador da causa de pedir ou da excepção (sem a qual a petição seria, aliás, claramente inepta no primeiro caso, por falta de causa de pedir) omite a concretização ou densificação de um segmento ou circunstância que acaba por se revelar fundamental para a procedência da acção, da reconvenção ou da excepção” (p. 254).
[12] Pois a sua aquisição no processo decorre da alegação de uma das partes.
[13] Que poderemos explicar – não tanto justificar em termos de correcção argumentativa, diga-se – pela vocação primordial da injunção de criar um título executivo relativamente ao qual está em causa – algo redundantemente com a alínea d) do nº 2 do artigo 10º do regime anexo ao DL 269/98 – fornecer a “exposição sucinta” prevista no artigo 810º, nº 3, alínea b) do CPC.
[14] “O depoimento é sempre reduzido a escrito, mesmo que tenha sido gravado, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória”.
[15] V. a caracterização da situação em José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, Coimbra, 2000, pp. 243/244.
[16] José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, cit., p. 244, nota 49 e, do mesmo Autor, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra, 1991, pp. 216/218.
[17] Não de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, v. o segundo trecho do nº 3 do artigo 805º do CC.
[18] “A liquidez […] advém, como requisito, do considerando de que não seria exequível a prestação ilíquida, isto é: de conteúdo não determinado ou não conhecido” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo IV, Coimbra, 2010, p. 121).
[19] O que aqui é tanto mais verdade quando no requerimento injuntivo a A. não indicou correctamente (como veio a resultar do posterior depoimento de parte) o montante em dívida pela empreitada considerada.