Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
122/22.7GCSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE DANO
PERSEGUIÇÃO
PROJÉCTIL
MUNIÇÕES EM MAU ESTADO
Data do Acordão: 01/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 152º E 154º DO CÓDIGO PENAL; ARTS. 86º, N.º 1, AL. M), E 2º, N.º 3, AL. P), DA LEI N.º 5/2006
Sumário:
I – Não pode dar-se por preenchido o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º/1-b, do CP, que é um crime de dano, se a conduta do arguido, dirigindo-lhe sucessivas mensagens telefónicas com sugestões inespecíficas mas ameaçadoras e rondando-lhe a habitação e uma propriedade, para observá-la e de modo a ser por ela visto, apesar de movida pelo intuito de intimidá-la e constrangê-la a reatar uma relação amorosa terminada, não logrou minimamente com efeito intimidá-la ou condicioná-la em qualquer medida.

II – Não obstante, sendo essa conduta reiterada e nas circunstâncias adequada a conseguir um tal resultado, que apenas as características pessoais da ofendida afastaram, não deixa de com a mesma se preencher, isso sim, o crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154.º-A/1, do CP, o qual, prescindindo da efectiva produção daquele resultado, é um crime de perigo-concreto.

III – A detenção de munições de arma de fogo que, por força do respectivo mau estado de conservação e consequente deterioração, tenham comprometido o desempenho, não estando em condições de ser deflagradas e propulsionar projécteis, não pode integrar o preenchimento do crime de detenção de arma proibida, segundo previsto no art. 86.º/1-m, do RJAM, por isso que, não oferecendo os perigos próprios que a lei supõe, em verdade não correspondem substantivamente ao conceito de munição do art. 2.º/3-p, também do RJAM.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão (J1), do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, e após audiência de julgamento em processo comum com intervenção de juiz singular, proferiu-se a 18/07/2023 sentença em cujos termos o arguido

AA, reformado, nascido a .../.../1959, natural de ..., filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ...,  

foi condenado, como autor de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º/1-a, do Código Penal (CP), na pena de um ano e seis meses de prisão, como autor de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos art. 86.º/1-e, da Lei 5/2006, de 23/02, que aprovou o Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), na pena de um ano de prisão, em cúmulo jurídico dessas penas sendo-lhe aplicada a única de um ano e oito meses de prisão, todavia substituída por suspensão da execução respectiva por igual período, com a condição de nos primeiros seis meses dessa suspensão pagar ao Estado a quantia de 1.500,00 €, além disso e no que aqui possa importar sendo ainda declarados perdidos a favor do Estado objectos no processo apreendidos   

2. Contra essa sentença vem o arguido interpor recurso em que, arguindo nulidades dela, impugnando a respectiva decisão em matéria de facto e apontando-lhe erros de direito, pugna afinal pela sua total absolvição e, em todo o caso, pela limitação do conjunto de objectos declarados perdidos. Das extensas motivações de recurso extrai longas conclusões que são as seguintes:

(…)

3. Respondeu o MP, pugnando pela integral negação de provimento ao recurso, com manutenção do decidido nos seus precisos termos, dessa resposta igualmente formulando conclusões que são as seguintes:

(…)

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando as razões da resposta do MP em primeira instância, a que sem acrescentar argumentos adere, se pronuncia afinal igualmente pela negação de provimento ao recurso e consequente manutenção integral da sentença recorrida.

5. Cumprido que foi o disposto no art. 417.º/2, do Código de Processo Penal (CPP), respondeu ainda o arguido, meramente reiterando a posição que em recurso expressara, e ao exame preliminar não se tendo patenteado dúvidas relevantes, sem vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

6. No decurso da apreciação do recurso em conferência, e perspectivada a possibilidade de eventual modificação da decisão sobre os factos da sentença recorrida implicar também a alteração da qualificação jurídica de parte dos imputados que se mantenham entre os provados, em concreto de com eles se dar por preenchido não um crime de violência doméstica mas antes um de perseguição, foi nos termos dos art. 421.º/3, do CPP, concedido prazo ao recorrente, para que querendo se pronunciasse.

7. Na sequência, o recorrente tomou com efeito posição, retomando a impugnação da decisão em matéria de facto e, no essencial, manifestando o entendimento de que em todo o caso os factos dados como provados na sentença recorrida também não integram o crime de perseguição, como previsto no art. 154.º-A/1, do CP, além de que pelo mesmo não fora oportunamente deduzida a pertinente queixa (art. 154.º-A/5, do CP), inviabilizando-se com isso a sua eventual condenação por ele.   

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso está limitado às focadas nas conclusões apresentada pelo recorrente. Considerando estas últimas, no sentido de procurar discernir entre elas o relevante, e em todo o caso tendo presente que parte do que nas mesmas se foca sempre seria oficiosamente cognoscível, as matérias aqui a apreciar, alinhando-as segundo a boa ordem lógico processual, de modo que a decisão relativa a umas vá sucessivamente prejudicando ou viabilizando o conhecimento das outras, e incluindo a questão advertida, da eventual alteração da qualificação jurídica de parte dos factos, podem delimitar-se pelo seguinte modo:

i. As eventuais nulidades da sentença, por falta/insuficiência da motivação da decisão em matéria de facto (art. 374.º/2 e 379.º/1-a, do CPP), e por omissão de pronúncia quanto à suposta nulidade de certas provas que em alegações finais tinha sido arguida (art. 379.º/1-c, do CPP);

ii. Os putativos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, e do erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2-a-b-c, do CPP);

iii. O suposto erro de julgamento, relevante do art. 412.º/3-a-b, do CPP, em que na decisão da matéria de facto o tribunal teria incorrido por, ao arrepio dos limites da liberdade de apreciação da prova e formação de convicção que lhe assiste (art. 127.º, do CPP), tê-la estribado em provas insuficientes, ter desconsiderado provas que lhe imporiam sentido diverso e em todo o caso ter-se desviado das imposições do princípio in dubio pro reo, de tudo e em concreto resultando que os factos dados como provados sob 3, 4 a 14 e 17 a 19 deveriam ter sido isso sim, no todo ou em parte, julgados como não provados, e que os factos dados como não provados sob h) a o) e w) a ff) deveriam ter sido julgados como provados;

iv. A presuntiva insusceptibilidade de os factos apurados, com as hipotéticas modificações da decisão que nesse plano se imponham ou até logo como nela assentes, darem preenchimento cabal aos tipos de crime imputados, logo quanto aos elementos objectivos do tipo, no que tange ao de violência doméstica (art. 152.º/1, do CP), e quanto aos elementos objectivos e em todo o caso subjectivos, no que respeita ao de detenção de arma proibida (art. 86.º/1-e, do RJAM, e 14.º, do CP);

v. No caso de concluir-se pelo preenchimento daqueles crimes, então ainda o alegado excesso das concretas penas por eles determinadas (art. 71.º, do CP) e a pretendida inadequação do condicionamento da suspensão da execução da pena única ao pagamento de quantia ao Estado (art. 51.º/1-c, do CP);

vi. E no caso de concluir-se pelo não preenchimento do crime de violência doméstica, então a eventualidade de preenchimento isso sim, e com os factos pertinentes, do crime de perseguição (art. 154.º-A/1, do CP), nessa hipótese determinando a pena correspondente; e 

vii. De todo o jeito, o invocado erro da declaração de perda a favor do estado de todos os objectos no processo apreendidos (art. 109.º/1, do CP).

             

1.2. Não cabendo renovação de provas e de igual modo não sendo caso de realização de audiência (o que nada aliás o recorrente requereu), sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º/3-c, do CPP), como foi.

2. A decisão recorrida

A boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, importa que, não obstante a extensão assim imposta a esta peça, se faça aqui presente, da sentença recorrida, tanto a decisão em matéria de facto (factos provados, não provados e motivação correspondente), quanto as partes da fundamentação de direito atinentes à afirmação do preenchimento, com eles, dos crimes imputados, da determinação das penas e à declaração de perda, isto é, e afinal, a sua quase totalidade. É o seguinte o teor respectivo:

« (…)

II – Da audiência de julgamento resultaram os seguintes factos:

A) Factos provados

1) O arguido e a ofendida DD mantiveram uma relação amorosa durante cerca de três anos, entre o ano de 2019 e o ano de 2022, sendo que nos últimos dois anos, o arguido passou a residir na habitação da ofendida sita na Rua ..., em ....

2) O arguido era caçador e detinha na sua posse duas espingardas e munições.

3) Nomeadamente, em data não concretamente apurada, mas no período compreendido entre os anos de 2019 e 2022, numa ida a uma discoteca, o arguido observava a ofendida a dançar e quando esta se sentava dizia-lhe: “pois para dançares comigo estás cansada, mas para dançares com os outros não estás cansada”.

4) Em data não concretamente apurada, mas no final do mês de Abril de 2022, a ofendida terminou o relacionamento, tendo o arguido saído da residência por iniciativa daquela, sem que este se tivesse conformado com tal decisão.

5) Desde o final do mês de Abril de 2022 até pelo menos 05/07/2022, o arguido, de forma reiterada, contactou telefonicamente a ofendida e mandou mensagens escritas com teor sério e ameaçador, fazendo com que a mesma ficasse receosa pela sua vida e pelo seu corpo.

6) No dia .../.04/2022, pelas 09:52 horas, o arguido enviou mensagem escrita à ofendida com os seguintes dizeres: “eu peço mais uma vez para pensares bem e não gozes comigo nem me faças perder a cabeça e tivesses motivos eu aceitava a decisão agora sem motivo para tal e queres acabar desta forma enquanto eu não perceber vou-te dar tempo mas se eu vier aperceber que por detrás desta tua desculpa esfarrapada algo mais aí não sei o possa fazer só peço Adeus que me deixe perder o juízo”.

7) Em data não concretamente apurada, mas entre os dias .../.04/2022 e .../05/2022, o arguido enviou mensagem escrita à ofendida com os seguintes dizeres: “(…) por favor nos termos tudo para dar certo não me leves ao desespero e que o amor que tenho por ti se transformem em ódio porque e posso perder a cabeça (…)”.

8) No dia .../05/2022, pelas 05:35 horas, o arguido enviou mensagem escrita à ofendida com os seguintes dizeres: “(…) mas pensa e não faças coisas que te vanhas arrepender para o resto da tua vida mais não me provoques nem me ameaças porque o amor que tenho por ti se transformar em ódio é o fim pecote por favor não brinques comigo sabes que adoro faço tudo por ti mas o manha é outro dia”.

9) Em data não concretamente apurada, mas entre os dias .../05/2022 e 29/05/2022, o arguido enviou mensagem escrita à ofendida com os seguintes dizeres: “(…) faço tudo por ti para te ver feliz estou a ficar passado se perder a cabeça não sei se correspondo por mim por isso te peço que penses bem (…)”.

10) Em data não concretamente apurada, mas entre os dias .../05/2022 e 29/05/2022, o arguido enviou mensagem escrita à ofendida com os seguintes dizeres: “(…) não me faças perder a cabeça espero que Deus não me deixe entrar em paranóia e fazer algo que não quero mas não continues com essas atitudes por pode acabar mal (…)”.

11) Em data não concretamente apurada, mas entre os dias .../05/2022 e 29/05/2022, o arguido enviou mensagem escrita à ofendida com os seguintes dizeres: “(…) mas não faças ameaças porque posso perder a cabeça e fazer algo que não quero mais uma vez pensa bem.

12) Em data não concretamente apurada, mas entre os dias .../05/2022 e 29/05/2022, o arguido enviou mensagem escrita à ofendida com os seguintes dizeres: “(…) não me faças sofrer mais não me provoques porque não é motivo para isso porque posso perder a cabeça e fazer algo que não quero”.

13) No dia .../06/2022, pelas 11:30 horas, o arguido dirigiu-se ao terreno da ofendida e disse-lhe: “vou acabar com esse teu sorriso e a seguir acabo comigo”, com o que quis significar e assim foi entendido, que a mataria.

14) Entre o dia .../04/2022 e o dia .../06/2022, o arguido passou, com uma frequência quase diária, pela residência da ofendida e deslocava-se para um terreno desta, observando-a, por forma a que a ofendida o visse, atemorizando-a.

15) No dia 06/07/2022, no interior da residência sita na Rua ..., ..., em ..., o arguido detinha:

- Dois cartuchos carregados com projécteis zagalotes, um de calibre 16 e outro de calibre 12, classificados na classe A.

- Dois cartuchos de precursão anelar ou lateral, carregados com múltiplos projécteis, normalmente utilizados em armas de fogo de arma lisa, classificados na Classe C.

- Quatro cartuchos de precursão anelar ou lateral, com projécteis em metal, normalmente utilizados em armas de fogo de arma lisa, classificados na Classe C.

16) O arguido não possui licença de uso e porte de arma para tipo de armas da Classe A e C.

17) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, de modo reiterado, com o propósito concretizado, de afectar, como afectou, o bem-estar físico e psíquico de DD, bem como de ofender a sua honra e dignidade pessoal, bem sabendo que ao enviar as aludidas mensagens escritas com o teor sério constante nas mesmas, conjugadas com o conhecimento da ofendida de que aquele detinha duas espingardas, tais eram aptas a causar à ofendida medo, inquietação e pânico pela sua vida e integridade física, fazendo-a temer pela sua segurança e fragilizando-a psiquicamente.

18) O arguido agiu também com o propósito concretizado de deter e guardar as aludidas munições, bem sabendo que para as deter e guardar necessitava de ser portador de licença para esse efeito e que não a tinha para as armas e munições da Classe A e C, o que representou.

19) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Das condições pessoais

20) O arguido está reformado, recebe cerca de € 2.000,00 mensais a título de reforma, tem o 6º ano de escolaridade, mora em casa própria, não tem empréstimos, gasta cerca de € 200,00 em medicação na farmácia entre 1 mês e meio a 2 meses, não tendo outras despesas para além das normais. Encontra-se numa nova relação amorosa.

21) Do certificado de registo criminal do arguido consta a seguinte condenação, pela prática, em 17/10/2018, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º nº 1 al. c) e d) da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período de tempo, no âmbito do processo comum, tribunal colectivo, nº 126/18...., que correu termos no Juízo Central Criminal – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., por decisão datada de 08/07/2020, extinta pelo cumprimento em 07/01/2022;

Da contestação

22) O arguido é uma pessoa de bem, educada, séria, honesta, digna, respeitadora e respeitável, tanto no local onde reside como nos locais onde é conhecido.

(…)»

3. Enfim apreciando

(…)

3.30. Até aqui, versando a impugnação relativamente aos factos na sentença recorrida dados por provados, fomos sempre concluindo que a mesma se mostra improcedente, mas tal escrutínio não pode encerrar-se sem, agora sim, abordarmos a questão de ter ou não a ofendida sentido efectivo receio com a conduta do recorrente. A hipótese de não o ter sentido, em nada briga com a intenção do recorrente em causar-lho (facto provado 17), que a objectividade das suas voluntárias condutas necessariamente implica, mas ainda assim não é irrelevante, desde logo na própria perspectiva da viabilidade de configuração do crime,  e sempre ao menos na da aferição do grau de ilicitude da acção, e tem por isso de ser ponderada. Nesse plano, o tribunal recorrido, assentando-o nas declarações da ofendida, coadjuvadas pelas da testemunha DD, deu como provado [no último segmento do facto provado 5, em inciso do facto provado 14 (“atemorizando-a”) e ainda em inciso do facto provado 17 (“como afectou”), que aquela efectivamente ficou ‘atemorizada’, “receosa pela sua vida e pelo seu corpo” e afectada “no seu bem-estar físico e psíquico”. E todavia, como o recorrente longa e repetitivamente enfatiza, e se colhe das pertinentes transcrições das declarações respectivas, a própria manifestou, mais de uma vez e em jeito claríssimo, não se ter sentido intimidada ou constrangida.

3.31. Ora, importa conceder que se o recorrente fez as ameaças, por mensagens telefónicas e pessoalmente, nas circunstâncias em que fez e com o evidente objectivo de atemorizar, se as mesmas se mostravam adequadas à consecução desse efeito de atemorização e constrangimento, como indiscutivelmente mostram, para mais conhecendo a ofendida a disponibilidade de armas por parte dele, então nada de irrazoável haveria, à partida, em dá-lo por provado, em a mesma o alvitrando. Porém, e sempre como o recorrente vai ilustrando com sucessivas transcrições de depoimentos, não obstante o ter alvitrado (e isso ao cabo de alguma insistência…), conclui-se que o que a ofendida recearia eram afinal estragos na sua viatura, ou na de uma amiga, porventura maledicências, mas não certamente pela sua vida e pelo seu corpo (para além de mal se compreender como, logo em tese, pudessem as ameaças causar-lhe mal-estar não apenas psíquico mas também físico…). Independentemente dos avanços e recuos do respectivo depoimento, não é possível descartar o significado decisivo de afirmações como as seguintes:

(…)

3.32. Independentemente do já referido contexto conflitual, da adequação das acções do recorrente a isso e do mais que pudesse concitar-se para eventual robustecimento da conclusão de a ofendida ter efectivamente sentido receio e perturbação do seu bem-estar psíquico, temos de convir que a forma peremptória como o nega a própria, afinal principal juiz disso, na verdade impõe, à luz da lógica das coisas, que o facto seja dado como não provado, aqui sim se detectando verdadeiro erro de julgamento que carece de ser corrigido com a pertinente modificação da decisão de facto. Obviamente, afina pelo mesmo diapasão quanto possa tanger à suposta perturbação também do bem-estar físico da ofendida, aqui patenteando-se o erro não apenas na ausência de manifestação dela própria em tal sentido, quanto, e até sobretudo, por ser coisa de sua natureza insusceptível de gerar-se com meras palavras e aproximações do recorrente, sendo inútil o denodado esforço deste, no recurso, para negar maus-tratos físicos que lhe não foram imputados e que não constam da factualidade tida como provada. Em suma, nesta parte procede a impugnação.

3.32. E no que tange aos factos não provados que o recorrente igualmente impugna, sustentando que deveriam ter sido dados por provados [recordemo-lo: os enunciados sob h) a o) e w) a ff)], diremos que se por um lado e em boa verdade é manifesto serem em larga medida inócuos, por nada potencialmente acrescentarem ou tirarem ao que da actuação sobre a ofendida importa [é o caso dos que constam sob h) a o)], e por outro e pela mesma razão, mas também porque o não atendimento da impugnação dos provados, nos termos das apreciações antecedentes, reversamente implicaria o não atendimento igualmente neste plano [é o caso dos enunciados sob w) a dd) e da primeira parte do ff)], matérias sobre as quais e por conseguinte nada mais cabe dizer, há pelo menos dois pontos ainda em que o recorrente mostra igualmente ter razão. Falamos desde logo do ponto ee), na parte em que refere a troca de mensagens entre ele e a ofendida, isto é, a bidireccionalidade de tais comunicações mesmo após a separação. É que, ainda aqui, as declarações da própria ofendida realmente impõem dá-lo como provado, bastando uma vez mais fazer presente a transcrição do pertinente passo, que fala por si em jeito terminante:

(…)

3.33. E não é só nisto que também quanto à matéria de facto não provada tem de proceder a impugnação, sucedendo o mesmo, e por iguais razões, no que tange ao enunciado do respectivo ponto v). Nos repetidos alinhamentos dos pontos da decisão em matéria de facto que impugna, o recorrente não especifica esse v) como tal, mas isso não exclui a questão da possibilidade de conhecimento deste tribunal de recurso, porque a despeito da já referida alguma desordem com que encadeia a argumentação, o certo é que ao cabo do longuíssimo ponto 52 das suas motivações de recurso (em cujo início declara votá-lo à impugnação do facto provado 13…), e depois das mais díspares considerações, explicitamente alinha as razões que imporiam dar como provada parte da factualidade ali referida – concretamente, certo trecho das declarações da ofendida que uma vez mais falam por si, e muito alto: vejamo-lo:

«(…)

Advogado (do arguido): É verdade que a senhora se punha a dançar às vezes quando ele ia lá?

Ofendida: A dançar como?

Advogado: Quando o via a ele.

Ofendida: Nesse dia em que me foi ameaçar, para não ouvir o que me estava a dizer eu comecei a cantar para não o ouvir, o que ele dizia.

Advogado: Chegou a chamar ordinário? A ele?

Ofendida: Sim, chamei e chamei-lhe porco e chamei-lhe nojento.

Advogado: Filho da puta também?

Ofendida: É verdade, sim. Sim, chamei.

(…)»

3.34. Com o devido respeito, em face de tais declarações da própria ofendida, insusceptíveis de gerar dúvida alguma, torna-se praticamente incompreensível como pôde, sem prejuízo do mais, deixar de dar-se por provado, e ter-se até considerado não provado, contra o que essa prova evidentemente impunha, ao menos, que na referida ocasião e em face da presença do recorrente, aquela começou a cantar e lhe chamou “ordinário” e “filho da puta”. Também nisto a decisão em matéria de facto enferma de erro de julgamento que carece de ser corrigido, com a pertinente modificação. E além disso e por fim, há um último aspecto em que a impugnação igualmente procede, agora quanto ao ponto ff) dos factos não provados, e em cujo segundo segmento como tal se considerou o estarem os cartuchos detidos pelo recorrente em mau estado de conservação. É que também isso é em sentido próprio imposto pela prova, designadamente pelo exame pericial (a que o tribunal está especialmente adstrito, em termos de só dele poder divergir com juízos de igual valia técnica, de acordo com o art. 163.º/1/2, do CPP), onde explicitamente se consigna que (cfr. o doc. ref. 544597, de 02/08/2022, designadamente a fls. 19 do respectivo ficheiro pdf – correspondente a fls. 206 dos autos) “a maior parte dos cartuchos encontram-se em mau estado de conservação, devido à base se encontrar deteriorada (gasta pelo tempo), o metal dos mesmos em contacto com o oxigénio, presente na água e no ar, devido ao tempo em depósito e à umidade [a] que estiveram expostas, nomeadamente na sua composição química, pode inviabilizando [leia-se: podendo inviabilizar] o seu normal desempenho”.

3.35. Também esse mau estado de conservação dos cartuchos pode assumir relevo jurídico-penal, logo no plano do preenchimento do tipo ou ao menos em sede de graduação da ilicitude do facto, e na sentença recorrida não foi ignorado aquele relatório, que aliás expressamente invocou na motivação da decisão de facto. Isso torna acrescidamente surpreendente que viesse a dar como não provada semelhante circunstância, para mais sendo certo que sobre isso e em inteiro rigor não adianta uma linha sequer naquela motivação – em que, quanto ao facto não provado em causa, se cinge ao primeiro dos segmentos respectivos, isto é, a explicitar (e de resto adequadamente, segundo acima vimos já), porque não podia ter sido dado crédito à suposta ignorância do recorrente sobre a natureza dessas munições que detinha. Vale dizer, ainda neste plano se constata um claro erro de julgamento, verdadeiramente impondo a prova, aliás com o seu dito valor reforçado, que o facto seja dado como provado. Uma vez mais, e nessa conformidade, será modificado o decidido, nisto igualmente procedendo a impugnação.

3.36. Temos enfim, ao cabo deste labor, que a despeito de pela larga maior parte a impugnação ampla da decisão em matéria de facto empreendida pelo recorrente, se revelar como uma inatendível tentativa de obter deste tribunal e recurso um novo julgamento em que, assumindo como suas as valorações dele, a final as sobreponha às do tribunal recorrido, movendo-se no plano do mero confronto de perspectivas sobre a credibilidade dos meios de prova e do sentido dela, alguma parte há, e relativa a matérias não despiciendas, em que com efeito aquela decisão enferma de erros de julgamento – os que acabamos de identificar. E para começar a encerrar esta vertente do recurso, bastará por último dizer que no que tange à parte da decisão em que não acolhemos aquelas razões do recorrente, a consequente improcedência da impugnação não se altera pela invocação do princípio in dubio pro reo, que supostamente teria sido violado. Trata-se de um princípio probatório de processo penal que, decorrente do de presunção de inocência que o art. 32.º/2 da CR consagra, se resolve em regra decisória em matéria de facto: na dúvida razoável sobre um facto desfavorável ao arguido, o tribunal deve dá-lo como não provado. Porém, e como é evidente, violar essa regra suporia ou que o tribunal recorrido tivesse tido uma tal dúvida e acabasse por resolvê-la em desfavor do recorrente, o que de modo absolutamente nenhum se tira da sentença; ou que quando menos e no plano da objectividade das coisas, uma semelhante dúvida, ainda que não subjectivamente nutrida pelo julgador, fosse coisa que em face da insegurança probatória racionalmente se lhe impusesse.

3.37. Ora, isso apenas acontece no que tange à capacidade de deflagração das munições que o recorrente detinha. Aqui, e na verdade, o exame pericial não determinou esclarecimento rigoroso sobre se estavam em condições de ser disparadas, apenas concluindo que em função do mau estado de funcionamento isso era uma probabilidade ou quando menos possibilidade, mas a dúvida que assim objectiva e necessariamente se instala, não pode deixar de beneficiar o arguido, de tal sorte que o que se impõe dar como provado, com isto concluindo o que primeiro abordámos supra, sob 3.35, é que as munições não estavam em condições de deflagração. Descontando isto, e quanto mais referimos acerca dos concretos pontos em que a impugnação procede (aí porque a prova impõe decisão diversa da tomada, e não em função de qualquer dúvida), não colhe a invocação da violação do princípio relativamente a qualquer dos outros factos. E desta sorte temos enfim que a impugnação procede apenas na estrita medida do acima apontado (que não é já pouco). As modificações que em consequência e ao abrigo dos art. 412.º/3 e 431.º/b, do CPP, aqui fazemos à decisão em matéria de facto (incluindo, nos mais factos não provados e nos provados as que a procedência da impugnação implica), são enfim as seguintes:

a) Quanto aos factos provados:

5) Desde o final do mês de Abril de 2022 até pelo menos 05/07/2022, o arguido, de forma reiterada, contactou telefonicamente a ofendida e mandou-lhe mensagens escritas.

13) No dia .../06/2022, pelas 11:30 horas, o arguido dirigiu-se ao terreno da ofendida e disse-lhe: “vou acabar com esse teu sorriso e a seguir acabo comigo”, com o que quis significar e assim foi entendido, que a mataria, tendo a ofendida em reacção começado a cantar e a chamar-lhe “ordinário” e “filho da puta”.

14) Entre o dia .../04/2022 e o dia .../06/2022, o arguido passou, com uma frequência quase diária, pela residência da ofendida e deslocava-se para um terreno desta, observando-a, por forma a que a ofendida o visse.

14.a) Posteriormente, o arguido foi enviando algumas mensagens à ofendida, e esta foi respondendo, pelo menos até 01 de Julho de 2022, quando era já acompanhada por elementos da GNR.

15) No dia 06/07/2022, no interior da residência sita na Rua ..., ..., em ..., o arguido detinha, em mau estado de conservação que lhes inviabilizava o desempenho:

- Dois cartuchos carregados com projécteis zagalotes, um de calibre 16 e outro de calibre 12, classificados na classe A;

- Dois cartuchos de percussão anelar ou lateral, carregados com múltiplos projécteis, normalmente utilizados em armas de fogo de arma lisa, classificados na Classe C;

- Quatro cartuchos de percussão anelar ou lateral, com projécteis em metal, normalmente utilizados em armas de fogo de arma lisa, classificados na Classe C;

17) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, de modo reiterado, com o propósito de afectar o bem-estar psíquico de DD, bem como de ofender a sua honra e dignidade pessoal, bem sabendo que ao enviar as aludidas mensagens escritas com o teor constante nas mesmas, conjugadas com o conhecimento da ofendida de que aquele detinha duas espingardas, tais eram aptas a causar à ofendida medo, inquietação e pânico pela sua vida e integridade física, fazendo-a temer pela sua segurança e fragilizando-a psiquicamente.

b) Quanto aos factos não provados: 

v) A partir desse momento, sempre que o arguido ia a casa da ofendida, tocava e não passava da porta, ocorrendo esses encontros na presença da EE, pessoa a quem a ofendida chamava e assistia às conversas, se é que se podiam chamar conversas àquela troca de palavras entre ambos, pois a ofendida, estranhamente e sem motivo aparente, punha-se a dançar à frente do arguido em tom de gozo e, quando este lhe perguntava o porquê desse comportamento e das injúrias, ela respondia: — “estou a brincar”.

ee) Que nas mensagens enviadas ao arguido, no contexto da troca delas referidas em 14.a) dos factos, a ofendida denotasse ou deixasse de denotar que se sentisse ameaçada e/ou que aquele a perturbasse ou dele tivesse receio por poder atentar contra a sua integridade física.

ff) O arguido desconhecia o que estava no saco de cartuchos.

C) Da qualificação jurídico-penal dos factos

3.38. Deste modo reconfigurada a base factual da decisão, cumpre enfim cuidar da valoração penal respectiva, advertindo desde já que a alteração dos factos não é inócua, antes impondo modificações significativas ao enfim decidido na sentença sob recurso, e logo no plano da afirmação, ou não, do preenchimento dos tipos de crime imputados.

3.39. Começando pelo de violência doméstica, não cabe discutir, sendo aliás pacífica, a integral susceptibilidade de com ameaças se preencher o correspondente tipo objectivo, tendo em conta que, sendo meio apto a gerar na visada relevantes perturbações psíquicas, designadamente medo e por essa via condicionamento da liberdade respectiva ou até verdadeiro domínio, são inequivocamente configuradoras de maus-tratos e correspondem ao prevenido na norma do art. 152.º/1, do CP (cuja enumeração, cingida a castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, não é taxativa – coisa igualmente pacífica). De resto, sem que a reiteração da conduta seja requisito desse preenchimento do crime (a norma afasta-o literal e explicitamente), o facto de a mesma em concreto se verificar, assumindo até modalidades de acção distintas (porque às aproximações se somam comunicações intimidantes que tiveram lugar tanto por contactos e mensagens telefónicas quanto presencialmente), reforçaria a conclusão pelo dito preenchimento, na medida em que precisamente representa um meio de persistentemente lesar a saúde psíquica e dignidade pessoal da visada no contexto relacional com o agente, bem que o crime tutela. Entre o recorrente e a ofendida houvera até recentemente uma relação análoga à dos cônjuges, e na sequência do rompimento dessa relação, ele ter-lhe-ia infligido, com o dito comportamento (em rigor integrante do crime de perseguição, como previsto pelo art. 154.º-A/1, do CP, e que esse sim exige a dita reiteração), maus tratos psíquicos, do que resultaria enfim, tendo em conta o dolo com que agiu, o integral preenchimento do crime.

3.40. E todavia, não pode desconsiderar-se a evidente circunstância de que afinal e a despeito dos objectivos que o animaram, a ofendida não sentiu afinal medo algum com as condutas do recorrente, que em nada a deixaram atemorizada ou por qualquer meio a condicionaram. Esse resultado, que não é exigido no âmbito do tipo de crime respectivo, como desenhado pelo art. 154.º-A/1, do CP, a cujo preenchimento basta reiteração e a adequação da conduta a causá-lo (reiteração e adequação cuja evidência aqui julgamos dispensar discussão), é pelo contrário elemento do de violência doméstica, que nos termos em que o recorta o art. 152.º/1, do CP, é um crime de dano: é necessário que sejam efectivamente infligidos maus tratos, coisa que não pode afirmar-se quando, a despeito de no contexto da relação conjugal (em curso ou mesmo já finda, como era o caso), o sujeitar a visada a sucessivas comunicações e aproximações intimidantes, sempre e necessariamente alguma medida de perturbação causar, afinal essa visada não sofre é constrangimento algum com que pudesse dar-se por lesado, com a específica gravidade pressuposta no tipo, o bem jurídico protegido: a saúde psíquica e dignidade pessoal dela no contexto relacional com o agente. Por outras palavras, na falta de uma mais relevante afectação da pessoa da ofendida, a mera perturbação psíquica implícita na perseguição que o recorrente lhe moveu, não causando efectivo receio e em nada a condicionando, não permite concluir que tivessem sido praticados maus tratos, sequer psíquicos, e com isso inviabiliza-se a afirmação do preenchimento do tipo de crime de violência doméstica.

3.41. Sucede que da inviabilidade de condenação do recorrente por esse crime, plano em que a decisão da sentença recorrida tem igualmente de ser alterada, não resulta a pura e simples desresponsabilização penal dele. Os factos em causa, e como amplamente vimos já, dão preenchimento, isso sim, a um crime de perseguição, como previsto pelo art. 154.º-A/1, do CP: com o evidente objetivo de causar-lhe inquietação e condicioná-la quanto à subsistência/reatamento da relação entre os dois a que aquela pusera termos, e ciente da ilicitude criminal disso, mas ainda assim querendo levar a cabo a actuação, isto é, com dolo directo, o recorrente moveu à ofendida um assédio que incluiu rondar-lhe a habitação, para observá-la e ser por ela nisso visto, enviar-lhe sucessivas mensagens cujo teor, a despeito dos termos vagos, eram de tom manifestamente intimidante, e mesmo e pelo menos uma vez pessoal e verbalmente explicitar a referência a que a mataria (cfr. factos provados 6 a 14). Neste âmbito, e como dissemos já, o facto de a ofendida não ter sentido efectiva atemorização nem se ter deixado condicionar, nada briga com a perfectibilização do tipo, que se basta com a adequação da conduta a alcançar esse efeito, adequação que, como também dissemos, não pode merecer dúvida. É pois por este crime que o recorrente deve ser condenado, recordando-se que com efeito depende de queixa o procedimento por ele (art. 154.º-A/5, do CP), mas que a ofendida com efeito a formulara, manifestando desejar procedimento criminal pelos factos em causa, sendo irrelevante a qualificação jurídica que deles tivesse então tido em vista e bem assim a alteração da que na acusação se lhes deu.

3.42. No que tange ao crime de detenção de arma proibida, como previsto no art. 86.º/1-e, do RJAM (por referência aos art. 2.º/3-e-l-m-ab-ac-ae, 3.º/2-v, todos também do RJAM), temos que, não merecendo discussão os mais elementos, incluindo os subjectivos, certo é, segundo teve de assumir-se apurado, que o mau estado de conservação das munições detidas lhes inviabilizava o desempenho. Ora, uma munição que não esteja em condições de ser deflagrada, é afinal um objecto que não corresponde sequer às definições legais no caso pertinentes, de “projéctil”, de “cartucho”, de “munição” e, sobretudo, de “munição de arma de fogo”, como previstas no art. 2.º/3-a-e-m-p, do RJAM, desde logo e cortando cerce, por se não tratar de “dispositivo contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do projéctil ou de múltiplos projécteis, quando introduzidos numa arma de fogo”. Breve, se não estão em condições de disparar, as “munições” (por facilidade discursiva continuemos a chamar-lhes assim) não oferecem os perigos que lhes são próprios e supostos na lei, e a detenção delas não fica por isso na alçada da incriminação naquela estabelecida. Detê-las o recorrente, aliás dolosamente, ficar-se-ia por conseguinte no plano da tentativa, que todavia no caso não é punível (nos termos do art. 23.º/1, do CP, e porque o não prevê o RJAM), e mesmo que fosse não poderia importar concreta punição por inidoneidade do objecto (art. 23.º/3, do CP). Vale dizer, deste crime tem o recorrente de ser absolvido, nisso procedendo o recurso.

D) Das penas

3.43. Concluindo-se pela absolvição do recorrente quanto ao crime de detenção de arma proibida, e com isso ficando prejudicado quanto o mesmo subsidiariamente argumentou a respeito da pena respectiva, nenhuma por esse crime havendo que determinar, o que nesta sede fica por apreciar é somente a pena a impor pelo crime de perseguição, que já vimos ser o que correctamente se dá por preenchido com os factos pertinentes, devendo afastar-se o de violência doméstica. Ora, contemplando a lei, para esse crime de perseguição, a alternativa entre a prisão (de um mês a três anos, nos termos dos art. 154.º/a/1 e 41.º/1, do CP) e a multa (de dez a trezentos e sessenta dias, nos termos dos art. 154.º/1 e 47.º/1, do CP), o que se nos oferece desde logo dizer é que não vemos no único antecedente criminal do recorrente, aliás por crime diverso (detenção de arma proibida), e para mais tendo em conta a idade dele a sua inserção social aparentemente regular, razão bastante para concluir, em afastamento da regra de preferência pelas penas não privativas de liberdade, que a multa se mostrasse inadequada ou insuficiente para dar satisfação às exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, para mais não cabendo dá-las por especialmente elevadas. Breve, e nos termos do art. 70.º, do CP, decidimos a aplicação e pena de multa, em preterição da de prisão.

3.44. Dentro da moldura respectiva, valoramos em desfavor do recorrente a multiplicidade e variedade dos actos de perseguição, o tempo ao longo do qual a manteve, o dolo directo com que agiu, os motivos que o animaram (impor à ofendida a subsistência/reatamento de uma relação que ela manifestamente não queria já) e o especial dever de respeito para com a ex-companheira que o onerava, bem como ainda aquele referido antecedente criminal; e a seu favor ponderamos somente o escasso relevo das consequências da actuação e, por outro lado, a consideração de que, ultrapassados aqueles seus específicos objectivos, é improvável a reiteração nela. Tudo equacionado, à luz do art. 71.º/1/2-a-b-ce, do CP, entendemos serem significativamente menos que medianas as exigências de prevenção, geral como especial, e nessa conformidade consideramos adequada uma pena concreta de cento e vinte dias de multa, com que de modo nenhum se excederia o limite da culpa, aliás relativamente intensa. Quanto à taxa diária dessa multa, e vistas as condições económicas do recorrente, como retratadas no facto provado 20, julgamos que entre os limites legais de 5,00 € e 500,00 € (art. 47.º/2, do CP), o montante concreto de 8,00 € se mostra adequado (art. 47.º/2, do CP), assim resultando a multa na quantia global de 900,00 €. E prejudicada que fica, como dissemos, a questão do concurso de crimes e consequente cúmulo de penas, que na sentença recorrida resultara em prisão todavia suspensa na execução respectiva, com ela cai igualmente a do condicionamento dessa suspensão ao pagamento do que quer que seja, matéria sobre que nada resta para apreciar.

E) Da perda de bens 

3.45. E assim, resta por último abordar o tema da perda, a favor do Estado, dos bens que ao recorrente tinham sido apreendidos no processo, e que incluíam, além dos cartuchos próprios de armas para as quais não tinha licença de uso e porte, também armas e munições que todavia, essas, licitamente detinha. O tribunal recorrido a todos declarou perdidos, nos termos do art. 109.º/1, do CP, mas isso decorre ou de manifesto erro de direito ou de mero lapso, sendo em todo o caso indevido. As armas e munições licitamente detidas nem foram empregues no crime de violência doméstica em primeira instância configurado, nem certamente no de perseguição por que em lugar dele resulta agora condenado, nem enfim há razão para concluir que a isso estivessem destinadas, e, justamente sendo para ele de detenção lícita, a declaração da perda respectiva não encontra fundamento naquele art. 109.º/1, do CP, nem de resto em outra norma alguma. Como é óbvio, ainda aqui procedem os argumentos de recurso, e assim, e sem prejuízo de se manter a declaração de perda dos cartuchos referidos no ponto 15 dos factos provados, com a respectiva entrega à PSP, nos termos do art. 78.º/1, do RJAM (tendo em conta que, não obstante a falta de funcionalidade respectiva e a consequente inexistência do específico perigo que lhes seria próprio afastar o crime, em todo o caso sempre tem de acautelar-se algum residual perigo que impliquem), devem os demais objectos apreendidos ser restituídos ao recorrente, nos termos do art. 186.º/2, do CPP.                

  

III – Decisão

À luz do exposto, e concedendo parcial provimento ao recurso do arguido AA, decide-se:

a) Modificar a decisão de facto da sentença recorrida, nos precisos termos referidos supra no ponto II/B/B.2/3.37/a/b;

b) E à luz da factualidade provada desse modo reconfigurada:

i. Absolver o arguido do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º/1-e, do RJAM, que lhe vinha imputado;

ii. Alterar a qualificação jurídica dos factos que em primeira instância lhe tinham valido a condenação por crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º/1-b, do CP, e em lugar disso condená-lo agora, como autor de um crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154.º-A/1, do CP, na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de 7,50 €.

c) E enfim determinar a restituição ao arguido dos objectos que nos autos lhe foram apreendidos e descritos a fls. 96 a 98, com excepção dos cartuchos referidos no ponto 15 dos factos provados, quanto a estes mantendo-se a declaração de perda a favor do Estado e sua entrega à PSP.        

Sem custas (art. 513.º/1, a contrario, do CPP)

Notifique


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Coimbra, 10 de Janeiro de 2024
Pedro Lima (relator)

Eduardo Martins (1.º adjunto)

Ana Carolina Cardoso (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente