Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
26/16.2GESRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (J C GENÉRICA DA SERTÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 410.º, N.º 2. AL. C), E 426.º DO CPP
Sumário:
I – O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
II - Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
III - Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
IV - De acordo com as regras da experiência comum, se existe uma ligação do tipo “direta” da rede pública para uma casa em obras, onde não existe contador de energia, quem tem interesse em consumir a eletricidade - certamente nas obras -, sem a pagar, é o proprietário da casa, que no caso é o arguido.
V - As regras da experiência comum levam-nos a concluir, também, que nunca um trabalhador e menos ainda um simples pedreiro - que por definição é um operário que trabalha na construção civil, em obras com pedra, tijolo, cimento, cal, etc. -, estabeleceria essa ligação, mesmo que tivesse para tal conhecimentos de eletricidade, sem autorização da entidade patronal e, este, não a daria ao trabalhador sem autorização do dono da obra.
VI - O reenvio do processo para novo julgamento depende dos vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º,do C.P.P. poderem ou não ser supridos pelo tribunal de recurso.
VII - Não sendo possivel decidir da causa e dada a extensão do vício reconhecido, impõe-se reenviar o processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objeto.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo de Competência Genérica da Sertã, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido
A…, casado, electricista, (…),
imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria cometido um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 19 de dezembro de 2017, decidiu julgar improcedente a acusação e absolver o arguido A… da prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.203.º, n.º1 do Código Penal.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público , concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1ª - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos, que absolveu o arguido A…, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, de cuja prática, em autoria material e na forma consumada, vinha acusado;
2ª - O arguido é o dono da casa de habitação onde foi detectada a ligação directa e exerce a profissão de electricista, pelo que tem, necessariamente, conhecimentos que lhe permitem efectuar uma ligação directa como a que foi detectada;
3ª - Por outro lado, o facto de ser electricista de profissão e de ser o dono da referida casa, levam-nos a considerar que não merecem qualquer credibilidade as suas declarações, em Audiência de Discussão e Julgamento, ao mencionar que desconhecia a existência da referida ligação directa;
4ª - Por sua vez, foi o arguido que beneficiou com a referida ligação directa, o que causou um prejuízo de €3.042,45 (três mil e quarenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos) à “B…”;
5ª - Estes factos são os “factos conhecidos” que permitem que, mediante o recurso à prova indiciária ou por presunção, deles se tirem ilações, de molde a que se possa concluir que o arguido foi, efectivamente, o autor dos factos que lhe são imputados no despacho de acusação proferido;
6ª - Verifica-se assim que a douta sentença não procedeu a uma correcta avaliação da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, isto porque os elementos probatórios constantes dos autos e, bem assim, a prova produzida em Audiência, era suficiente para condenar o arguido pela prática de 1 (um) crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
7ª - A douta sentença a quo enferma do vício enunciado no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
8ª - Ao dar como não provados os factos a), b), c), d) e f), incorreu a douta sentença a quo em erro notório na apreciação da prova, na medida em que:
a) - Houve erro na crítica dos factos;
b) - Se valorizou prova contra regras da experiência comum;
e) - Houve um erro de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da sentença. As provas revelam, claramente um sentido e a decisão ilação contrária, logicamente impossível.
9ª - Ao ter-se decidido como se decidiu, violou-se na douta Sentença a quo o disposto nos artigos 14.º, 26.º e 203.º, n.º 1, do Código Penal e artigos 127.º e 410.º, n.º 2, alínea c), ambos do Código de Processo Penal.
Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência:
- Deverá a douta Sentença a quo ser revogada e substituída por outra que condene o arguido A… pela prática, em autoria material, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, em pena de multa, de acordo com a gravidade do mesmo e com a exigências de prevenção geral e especial que, no caso se fazem sentir, caso se entenda que os autos dispõem de todos os elementos de facto e de direito que habilitam o Venerando Tribunal a decidir nos termos supra expostos, ou caso assim não se entenda, deverá anular-se, nesta parte, o julgamento e a douta sentença ora recorrida, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426.º “in fine”, do Código de Processo Penal.
Pelo que dando procedência ao recurso, revogando a sentença recorrida e substituindo-a por outra que condene o arguido ou reenvie o processo para novo julgamento, Vossas Excelências farão a necessária e costumada Justiça.

O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido, na resposta ao douto parecer, pugnado pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
(…)
Convicção do Tribunal
O Tribunal formou a sua convicção a partir de uma ponderação, conjugada e à luz das regras da experiência comum, da prova pessoal e documental produzida, concretizando, e desde já quanto a esta (a documental):
i. o auto de inspeção da B… de 17.06.2016, de fls.4-5 dos autos, confirmado e explicitado, na sua razão de ser e no seu conteúdo pelas testemunhas indicadas pela Acusação, eletricista a exercer funções para a B…, respectivamente, há 30 anos e há 23 anos, C…, de 51 anos de idade, e D…, de 53 anos de idade – cfr. sob o ponto 1.;
ii. o auto de apreensão/avaliação de um cabo elétrico com caixa e de dois ligadores elétricos de 29.06.2016, a fls.6 dos autos, cujas fotografias constam a fls.7 dos autos, elaborado pelo Posto da G.N.R. de K…, sendo o “entregante” e fiel depositário o acima identificado C…, que o confirmou, mais explicando que “são a baixada da propriedade da B…”, “estavam soltos, no local”, e que a energia obtida (ilegalmente) foi através destes cabos ou, usando as suas palavras elucidativas, a baixada “não estava fixa…ligada diretamente na rede” – cfr. sob o ponto 2.;
iii. as fotografias juntas a fls.23-32 dos autos, com as quais as Testemunhas foram confrontadas, tendo, designadamente a testemunha C… identificado o cabo preto visível na fotografia de fls.27 dos autos como sendo “onde estava a extensão ligada”, e correspondendo ao cabo percetível na fotografia de fls.7 dos autos, admitindo como possível tratar-se de “baixada antiga”, o que, de seguida, foi corroborado pela testemunha D…;
iv. as fotografias de dois contadores, juntas pelo Arguido a fls.51 e 52 dos autos, e o esclarecimento que, em consequência, a B… prestou a fls.67 dos autos, identificando o local de consumo (Largo …), o titular (Sr. E…) e os contratos atinentes àqueles contadores, lendo-se, ainda, que “desconhecem se o indiciado (s) referenciado no respetivo ofício está relacionado com o referido LC 12236603”;
v. a resposta/esclarecimento da B… a fls.60 – “não foi pedida até à presente data nenhuma baixada para o referido Local de Consumo” –, seguida do cálculo dos danos, a fls.61; e
vi. a fotografia do local e as faturas da B… juntas pelo Arguido na audiência de julgamento, a fls.129-113 dos autos.
Da análise das fotografias supra referidas no decorrer dos depoimentos prestados pelos identificados Funcionários da B... – que integram a equipa de que é superior hierárquico a testemunha F..., engenheiro a exercer funções para a B... há treze anos, de 40 anos de idade, cujo conhecimento revelado foi-o, mormente, por apelo ao que, então, lhe foi transmitido (entenda-se, pelos funcionários) –, não subsistiram dúvidas em torno da existência, aquando das ações inspetivas-fiscalizadoras levadas a cabo por aqueles Funcionários, de uma ligação dita “direta”, no sentido de o cabo detetado no local se encontrar ligado a uma baixada da B... sem que estivesse ligado a um contador e/ou passasse em local e/ou equipamento que permitisse a contabilização da energia elétrica consumida, nem ainda passasse por aparelhos que assegurassem a inerente segurança. Estes Funcionários da B... foram claros, pormenorizados e assertivos na descrição do que, então, percecionaram no local, nomeadamente quando interpelados pelo Tribunal para ilustrarem a referida ligação direta – tendo C…, até, elaborado um esboço; asseguraram, com igual firmeza, que verificaram que havia corrente (com o aparelho de que eram portadores usado para o efeito) – nas palavras de D..., “a gente mediu, na ponta havia tensão”; bem ainda rejeitaram a possibilidade, colocada a instâncias da Defesa, de o cabo preto que identificaram a fls.27 dos autos pudesse estar ligado dentro da casa a algum contador e, ainda, designadamente aos contadores documentados nas das fotografias de fls.51 e 52 dos autos – nas palavras de C..., “com esse tipo de cabo não” e, nas palavras de D..., “neste caso não, morria numa ficha”, “só estava esse cabo conforme aí está”.
Os depoimentos assim prestados mereceram a credibilidade deste Tribunal, tanto mais que não foram infirmados nem pelas declarações que haviam sido prestadas pelo Arguido, nem pelos depoimentos das Testemunhas por si indicadas, nomeadamente pelo eletricista funcionário da empresa G…, por seu turno subcontratada pela B..., H..., de 59 anos de idade, na medida em que o trabalho que executou no local e que identificou na fotografia de fls.26 dos autos – afirmando que “o cabo era o mesmo”, “o cabo da caixa foi ligado ali” e que “havia duas entradas”, saindo um para cada casa” – remonta há “mais ou menos dez anos”, além do que, e também por isso, não logrou precisar, com certeza, que a caixa metálica ali existente fosse a fotografada a fls.7 dos autos.
Outrossim os depoimentos prestados pelo construtor civil de 52 anos de idade, conhecido do Arguido por, e ademais, ter sido o responsável pelas obras em causa, I…, e pelo seu funcionário, pedreiro de 44 anos de idade, J…, não contrariaram o descrito pelos Funcionários da B..., desde logo porque aquele Primeiro foi pronto em dizer que não percebe nada de eletricidade, não fazendo ideia onde iria ligar o cabo fotografado a fls.27 dos autos, limitando-se a confirmar que terá sido o cabo então cortado pelo Segundo, que, por sua vez, confirmou esse corte, não sabendo, porém, responder se tal cabo teria uma ficha, nem localizar temporalmente esse corte. Esta última testemunha acrescentou, ainda, que o dito cabo “não tinha corrente, senão tinha dado choque”, ao que, igualmente, se referiu o filho do Arguido L..., eletricista, de 32 anos de idade, por apelo ao que lhe foi dito pelos pedreiros que andaram na obra, porém, pelas razões explicitadas, tal não invalida, nem descredibiliza os depoimentos dos Funcionários da B..., cujo conhecimento se apresentou, também a este respeito, direto, concreto e justificado, a saber, na verificação que, então, efectuaram com o aparelho para o efeito.
Se, por um lado não subsistiram dúvidas quanto à deteção, pela B..., de uma ligação direta nos termos supra explicitados, por outro lado, nenhuma prova, documental e/ou pessoal, foi produzida que permita afirmar que essa ligação direta foi feita pelo Arguido: na verdade, dos autos decorre, tão-só, que o Arguido era o dono da obra em causa, proprietário da casa onde foi detetada aquela ligação, bem assim que é eletricista de profissão, elementos factuais que, no entanto, não se crê serem suficientes para, e ainda que por apelo às regras da experiência comum, se considerar provada a atuação de que o Arguido veio acusado.
Nesta ordem de ideias, e mais atentos os depoimentos prestados pelo Pedreiro e pelo seu filho, na parte em que, confirmando as declarações prestadas pelo próprio Arguido, asseguraram que a eletricidade para as obras em causa “vinha da casa do” Segundo (do Filho), “da extensão que estava permanentemente ligada”, impõe-se o respeito pelo princípio estrutural do processo penal in dubio pro reo, tanto mais diante da resposta afirmação veiculada pelo funcionário da B... C..., a instâncias do Ministério Público, de que a ligação direta detetada poderia ser facilmente feita por um trabalhador, inclusivamente um pedreiro, que ali estivesse a trabalhar.
Por fim, quanto à ausência de antecedentes criminais, teve-se em atenção o respetivo certificado de registo criminal junto aos autos em 29.11.2017.
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458.º, pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do Ministério Público as questões a decidir são as seguintes:
- se a decisão recorrida padece do vício de errro notório na apreciação da prova, a que alude o art.410.º, n.º2, alínea c), do C.P.P.; e
- se, por a tal estar habilitado com os necessários elementos deve o tribunal de recurso condenar o arguido pela prática do crime de que vem acusado ou, assim não se entendendo, se deve ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art 426.º, “in fine”, do mesmo Código.
Passemos ao seu conhecimento.
-
1.ª Questão: do erro notório na apreciação da prova.
O Ministério Público defende que a douta sentença recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.410.º, n.º2, alínea c), do Código de Processo Penal ,
ao dar como não provados os factos constantes das alíneas a), b), c), d) e f).
Alega para o efeito, e em síntese o seguinte:
- O arguido é o dono da casa de habitação onde foi detetada a ligação direta;
- O arguido exerce a profissão de eletricista, pelo que tem, necessariamente, conhecimentos que lhe permitem efetuar uma ligação direta como a que foi detetada;
- Sendo eletricista de profissão e dono da referida casa, não merecem credibilidade as suas declarações prestadas em audiência de julgamento ao mencionar que desconhecia a existência da referida ligação direta;
- Foi o arguido que beneficiou com a referida ligação direta, o que causou um prejuízo de €3.042,45 à “B….”;
- Estes “factos conhecidos” permitem, mediante o recurso à prova indiciária ou por presunção, que deles se tirem ilações de molde a que se possa concluir que o arguido foi, efetivamente, o autor dos factos que lhe são imputados no despacho de acusação proferido;
- O Tribunal a quo valorizou a prova contra as regras da experiência comum e incorreu em erro de raciocínio na sua apreciação, evidenciado pela simples leitura do texto da sentença.
Vejamos.
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, «…o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou
c) O erro notório na apreciação da prova.».
Os vícios aqui descritos, que são de conhecimento oficioso Acórdão do STJ n.º 7/95 : «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.»., in DR, I-A Série, de 28-12-1995., são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei. Cf. Acórdão do STJ de 04-09-2015, in www.dgsi.pt.
O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
Na lição do Prof. Germano Marques da Silva, regras da experiência comum, “são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.”. In " Curso de Processo Penal", Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.
Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - Cf. Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, obra citada, 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º, pág.182 ) e acórdão da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Este erro na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média.
Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente Cf. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). .
Retomando o caso concreto.
O arguido vem acusado pelo Ministério Público , no essencial:
- De em data não concretamente apurada, mas situada entre o dia 19 de Junho de 2013 e o dia 17 de Junho de 2016, no lugar (…), o arguido A… ter estabelecido o fornecimento de energia elétrica a uma casa de habitação de sua pertença e que se encontrava a reconstruir, tendo, para o efeito e através de mecanismo não concretamente apurado, efetuado uma ligação direta a montante da rede pública de fornecimento, sem que tenha contrato ativo com qualquer comercializador de energia.
- Para poder apropriar-se da energia elétrica propriedade da ofendida “B….”, o arguido fez uso de um cabo elétrico, ao qual cortou as placas de junção (onde estavam ligadas as extensões) e deixou a ponta de tal cabo em tensão ligado diretamente à rede pública;
- A energia elétrica obtida e consumida pelo arguido foi utilizada na casa que se encontrava a reconstruir e noutra casa que se encontrava a edificar ao lado daquela, sendo ambas de sua pertença.
- Em 17 de Junho de 2016, por volta das 11 horas e 50 minutos, através de ação de fiscalização efetuada por dois funcionários da B…., foi detetada esta ligação de energia direta, e posteriormente, no dia 24 de junho de 2016, por volta das 11 horas e 50 minutos, através de nova ação de fiscalização verificando os mesmos funcionários que a ligação não cessara desligaram e retiraram o cabo utilizado pelo arguido para efetuar a ligação direta.
- Com esta conduta o arguido apropriou-se de cerca 16.185 quilowatts de energia elétrica pertencente à B..., no valor de €3.042,45.
- O arguido A… atuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de integrar no seu património a referida energia elétrica apesar de saber que a mesma não lhe pertencia e que atuava contra a vontade e sem o consentimento da legítima proprietária daquela e que a sua conduta era censurada, proibida e punida por lei penal.
Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo deu como provado, apenas, que:“no dia 17 de Junho de 2016, por volta das 11 horas e 50 minutos, através de ação de fiscalização efetuada por dois funcionários da B..., foi detetada uma ligação de energia direta, tendo sido elaborado auto de inspeção” (ponto n.º 1); e que “posteriormente, através de nova ação de fiscalização efetuada por dois funcionários da B..., foi verificado que a dita ligação ainda não tinha cessado, tendo aqueles funcionários desligaram os ligadores e retiraram o cabo utilizado para efetuar a ligação direta “( ponto n.º 2).
Todos os restantes factos da acusação foram dados como não provados, ou seja, designadamente, não deu como provado que entre o dia 19 de Junho de 2013 e o dia 17 de Junho de 2016, no lugar (…), numa casa de habitação pertença do arguido A…, que se encontrava a reconstruir, este efetuou uma ligação direta a montante da rede pública de fornecimento, fez uso de um cabo elétrico, sem que tenha contrato ativo com qualquer comercializador de energia e que esta energia elétrica foi utilizada não só na casa que se encontrava a reconstruir, mas ainda noutra casa de sua pertença que se encontrava a edificar ao lado daquela.
Da fundamentação da matéria de facto da sentença, desde logo, da remessa para o auto de inspeção da B... de 17.06.2016, de fls.4 e 5 dos autos, para o auto de apreensão/avaliação de um cabo elétrico com caixa e de dois ligadores elétricos de 29.06.2016, a fls.6 dos autos, para as fotografias juntas a fls. 7, e 23 a 32 dos autos, que foram confirmados pelos funcionários da B..., C… e D…, e da resposta/esclarecimento da B… a fls.60 - “não foi pedida até à presente data nenhuma baixada para o referido Local de Consumo”-, seguida do cálculo dos danos, a fls.61, resulta medianamente claro que a inspeção mencionada nos pontos n.ºs 1 e 2 da factualidade dada como provada foi realizada por estas duas testemunhas e que “ a ligação dita “direta”, foi detetada numa casa em obras pertencente ao arguido A… e que ao lado desta casa existia outra construção.
Consta da mesma fundamentação que o depoimento das testemunhas C… e D…, que verificaram a existência de “tensão” na ponta do cabo preto e a ausência de contador, mereceu a credibilidade ao Tribunal, em detrimento da versão colocada em julgamento pela defesa do arguido A…, no sentido de que o cabo preto identificado na fotografia de folhas 27 estaria ligado a algum contador, designadamente aos constantes das fotografias de folhas 51 e 52.
Os restantes depoimentos indicados na fundamentação da matéria de facto, das testemunhas H..., I..., J... e
L..., de acordo com a fundamentação da sentença, não invalidam, nem descredibilizam os depoimentos das testemunhas funcionários da B....
De acordo, ainda, com a fundamentação da matéria de facto da sentença, a circunstância do arguido A… ser dono da obra em causa, ser o proprietário da casa onde foi detetada a ligação e ser eletricista de profissão não permite, ainda que por apelo às regras da experiência comum, considerar provada a atuação de que o arguido está acusado, ou seja, que tenha subtraído à B... e integrado do seu património energia elétrica.
E porquê?
Porque a testemunha que é pedreiro e a testemunha que é filho do arguido - que serão, respetivamente, J... e L... - confirmaram as declarações do arguido A…, assegurando que «… a eletricidade para as obras em causa “ vinha da casa do” Segundo (do Filho), “da extensão que estava permanentemente ligada” (…) e o funcionário da B..., a testemunha C..., a instâncias do Ministério Público, declarou que a ligação direta detetada poderia ser facilmente feita por um trabalhador, inclusivamente um pedreiro, que ali estivesse a trabalhar.
Vejamos.
Referindo o Tribunal a quo, expressamente, na parte final da fundamentação da matéria de facto da sentença, que a B... detetou, sem dúvidas, a existência de uma ligação direta numa obra de que o arguido A… era dono, podemos desde já dizer, que existe um notório erro na apreciação da prova ao dar-se como não provado na sentença que, pelo menos, no dia referido no ponto n.º 1, a ligação de energia direta, feita a partir da rede pública, detetada por dois funcionários da B... aquando de uma ação de fiscalização, assegurava energia a uma casa em obras, sita no lugar (…), freguesia de (…), pertença do arguido A….
Por outro lado, a circunstância da testemunha C..., a instâncias do Ministério Público, ter declarado que a ligação direta detetada poderia ser facilmente feita por um trabalhador, inclusivamente um pedreiro, que ali estivesse a trabalhar, está longe, salvo o devido respeito, da relevância que o Tribunal a quo lhe dá.
De acordo com as regras da experiência comum, se existe uma ligação do tipo “direta” da rede pública para uma casa em obras, onde não existe contador de energia, quem tem interesse em consumir a eletricidade - certamente nas obras -, sem a pagar, é o proprietário da casa, que no caso é o arguido A….
As regras da experiência comum levam-nos a concluir, também, que nunca um trabalhador e menos ainda um simples pedreiro - que por definição é um operário que trabalha na construção civil, em obras com pedra, tijolo, cimento, cal, etc. -, estabeleceria essa ligação, mesmo que tivesse para tal conhecimentos de eletricidade, sem autorização da entidade patronal e, este, não a daria ao trabalhador sem autorização do dono da obra.
No caso, o construtor civil responsável pelas obras, foi a testemunha I..., que de modo algum, face ao que consta da fundamentação da matéria de facto, terá dado autorização a qualquer trabalhador para fazer a ligação dita “direta”, referindo apenas, como relevante para o Tribunal a quo, que não percebe nada de eletricidade, não faz ideia onde iria ligar o cabo fotografado a folhas 27 dos autos e que este “terá sido” cortado pelo seu funcionário J....
A testemunha J..., pedreiro da obra, também não referiu em julgamento, de acordo com fundamentação da matéria de facto da sentença, que pediu autorização ao seu patrão ou ao dono da obra para fazer a dita ligação “direta” de energia da B... à casa do arguido, constando daquela fundamentação apenas que cortou o cabo fotografado a folhas 27, sem saber responder se o cabo teria uma ficha e quando fez o corte, sabendo sim que não tinha corrente quando fez o seu corte.
Não tendo o responsável pelas obras assumido que fez chegar a energia elétrica à casa em reconstrução ou mandou a algum dos seus trabalhadores fazer a dita ligação “direta” de energia da B... à casa do arguido, nem pedreiro assumido ter feito tal ligação, por um lado, e sendo o arguido A… eletricista de profissão e dono da obra e da casa, por outro lado, foge às regras da experiência comum não dever concluir-se que a ligação “direta” detetada na sua casa em obras foi pelo próprio, pois para tal está habilitado profissionalmente e é o único interessado em não pagar a energia elétrica que, através de meio fraudulento, chega a, pelo menos, uma sua casa.
A referência ao depoimento da testemunha que é pedreiro e à testemunha que é filho do arguido - que serão, respetivamente, J... e L... – como tendo confirmado as declarações do arguido A…, assegurando que «… a eletricidade para as obras em causa “ vinha da casa do” Segundo (do Filho), “da extensão que estava permanentemente ligada”, remete-nos, salvo o devido respeito, para a falta de inteligibilidade e não propriamente para as dúvidas próprias do princípio in dubio pro reo.
O arguido vem acusado de consumir a energia elétrica da B... obtida através da dita ligação “direta” utilizar na casa que se encontrava a reconstruir e numa outra casa que se encontrava a construir ao lado daquela, ambas de sua pertença.
O Tribunal a quo deu esta matéria como não provada, na al. c) da respetiva factualidade da sentença, mas ao introduzir este facto novo ao referir que a eletricidade para “as obras em causa” – «…“vinha da casa do” Segundo (do Filho), da extensão que estava permanentemente ligada”...», deixa por um lado, sem perceber a razão da existência da ligação dita “direta” nas obras do arguido e, por outro lado, deixa várias respostas por esclarecer.
Se as “as obras em causa” do arguido A… eram abastecidas através de uma extensão que vinha da casa do filho, não se percebe a razão pela qual o Tribunal a quo refere na fundamentação da matéria de facto, contra a versão do arguido e do pedreiro, que existia energia elétrica na ligação dita “direta” que foi encontrada na casa do arguido, sem equipamento que permitisse a sua contabilização.
Ficam sem resposta, na fundamentação da matéria de facto, também várias questões, como: as obras em causa para onde vai a eletricidade da casa do filho respeitam a uma ou a duas casas do arguido? Aonde é que se situa a casa do filho do arguido? Onde está nas fotografias a extensão permanentemente ligada entre “as obras em causa” e a casa do filho para fornecimento da energia ou porque é que a extensão não surge nas fotografias? Através de que meio (contrato com fornecedor, produção própria) o filho do arguido obtinha a energia elétrica, pois para a transmitir tem de provar-se que este a possuía na sua casa.
Em suma o Tribunal da Relação considera, pela simples leitura da fundamentação da matéria de facto da sentença, que o Tribunal a quo incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova, a que alude a alínea c) do art.410.º do Código de Processo Penal, ao dar como não provada a factualidade constante das alíneas a), b) , c), e) e f) no que respeita pelo menos ao fornecimento de energia a uma casa de habitação, pertença do arguido A…, procedendo nestes termos a presente questão.

2.ª Questão: das consequências do reconhecimento do vício a que alude a alínea c) do art.410.º do C.P.P..
O recorrente defende que o tribunal de recurso dispõe de todos os elementos de facto e de direito que o habilitam a revogar e substituir a douta sentença recorrida por uma decisão condenatória do arguido A…, pugnando pela condenação deste pela prática, em autoria material, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, em pena de multa.
Caso assim não se entenda, deverá anular-se o julgamento e a douta sentença ora recorrida, e ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426.º “in fine”, do Código de Processo Penal.
Apreciando.
O art.426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estatui que « Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.».
O reenvio do processo para novo julgamento depende pois dos vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º,do C.P.P. poderem ou não ser supridos pelo tribunal de recurso.
No caso em apreciação, para além do erro notório na apreciação da prova que inquina a fundamentação da sentença em matéria de facto, não se mostra esclarecido na sentença e prova indicada pelo recorrente, se a energia que chega a uma casa de habitação em obras do arguido foi consumida apenas nessa casa ou se as obras em causa e respetivo consumo incluem duas casas pertencentes ao arguido, uma ao lado da outra, nem se vislumbra, ainda, da prova indicada pelo recorrente que o arguido consumiu energia da B..., através da ligação dita “direta” entre o dia 19 de junho de 2013 e o dia 17 de junho de 2016, no montante referido na acusação do Ministério Público.
Uma situação é a queixosa B... indicar a folhas 60 o valor da energia subtraída como ascendendo a € 3042,45, de acordo com critérios que terão na sua base o n.º1 do art.6.º do DL n.º 328/90, de 22 de outubro, mostrar-se esclarecido o motivo pelo qual entende que a subtração da energia pelo arguido ocorre entre aquelas datas, o que não se mostra feito nem no documento ora referido, nem na fundamentação da matéria de facto provada.
Pelo exposto, não sendo possivel decidir da causa e dada a extensão do vício reconhecido, impõe-se reenviar o processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objeto.

Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, declarando a existência do vício a que alude a alínea c), n.º2, do art.410.º do C.P.P., determina-se, nos termos dos artigos 426.º, n.º1 e 426-A, do mesmo Código, o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objeto do processo.
Sem tributação.
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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
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Coimbra, 10 de julho de 2018

Orlando Gonçalves (relator)

Inácio Monteiro (adjunto)