Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2269/19.8T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO BRANDÃO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
RESTRIÇÃO PROBATÓRIA: CHEQUES
LETRAS E LIVRANÇAS
NULIDADE DE SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 613º, 615º, Nº 1, E 617º, Nº 2 DO NCPC.
Sumário: I - No âmbito do PER, dada a restrição probatória decorrente das exigências de celeridade, basicamente documental, a prova de um crédito resultante de cheque, letra ou livrança, bem como a qualidade de portador, deve ser feita através da apresentação do respetivo título de crédito.

II - Decidida a procedência de uma nulidade da sentença por absoluta falta de fundamentação nos termos dos artºs 613º, 615º, nº 1, b) e 617º, nº 2, do CPC, o novo pronunciamento decisório deve ser o resultado da matéria de facto dada como provada e do enquadramento de Direito feito agora, e não a mera reprodução da decisão anterior.

III - A decisão de anular a sentença homologatória do plano de recuperação subsequente a uma nova sentença que dá outra expressão à lista definitiva de credores, com repercussão na participação das negociações e no quórum de decisão do plano de revitalização, não faz parte desta outra/nova sentença, mas decorre dos seus efeitos e constitui por isso pronunciamento sobre uma nulidade processual.

Decisão Texto Integral:








Acordam os Juízes, em audiência, na 1ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Na sequência da impugnação à lista provisória de créditos apresentada pelo Administrador Provisório, AP, no âmbito do processo especial de revitalização da sociedade “J..., Lda.”, foi proferida uma primeira decisão em 05.02.2020, depois anulada e substituída por uma outra de 22.06.2020 que culminou com o seguinte pronunciamento:

A. Julgo prejudicada, por desistência, a impugnação deduzida pela Agência para o “D..., Ip”.

B. Defiro a redução do crédito com a natureza garantida do Banco..., Sa. do montante de €162.984,68 para a quantia de €92.437,80.

C. Declaro procedente a impugnação deduzida pela G..., Sa.

D. Declaro procedente a impugnação deduzida pelo Banco B..., Sa.

E. Declaro procedente a impugnação deduzida pelo Banco ..., Sa, sem prejuízo do acima determinado em B..

F. Declaro procedente a impugnação deduzida pela C..., Crl.

G. Declaro procedente a impugnação deduzida pela C...

H. Declaro procedente a impugnação deduzida pela L..., Lda..

I. Declaro procedente a impugnação deduzida pela S..., Lda..

J. Declaro parcialmente procedente a impugnação deduzida pela J..., Lda., tudo nos termos e com o âmbito acima exposto no ponto 2.2.3.

Notifique, sendo os impugnantes e recorrentes também nos termos do disposto no artigo 617.º, n.º 3 do Cire”, naturalmente querendo referir-se aqui ao Código de Processo Civil, CPC.

A credora “L..., Lda“, apresentou dois requerimentos, pedindo no primeiro que se completasse  a decisão acima indicada com “a declaração expressa de anulação de todos os atos processuais subsequentes à decisão final respeitante às impugnações deduzidas à Lista Provisória de Créditos, proferida a 05/02/2020, seguindo os ulteriores termos do processo até final, nos termos do disposto no artigo 195º, n.º 2 do CPC com as legais consequências”, e , no segundo “por um lado restringir e por outro lado alargar o âmbito do seu recurso apresentado em 08/05/2020” relativamente à sentença que pôs termo ao processo (referência Citius ...) que homologou o plano de recuperação aprovado” e que tinha como pressuposto a lista de credores que decorria da primeira decisão, entretanto anulada.

A revitalizanda “J..., Lda”, por sua vez, interpôs recurso, cujas alegações finalizou com as seguintes conclusões:

...

Foi proferido um outro despacho em 05.10.2020, sendo aí determinado:

Compulsados os autos, decorre da Decisão proferida no dia 22-6-2020 (ref.ª ...) a nulidade da referida Decisão relativa às impugnações à lista provisória de créditos de 5-2-2020.

Em consequência e desta feita de forma expressa, declaro a anulação de todos os actos praticados nos momentos subsequentes à Decisão de 05-02-2020, com destaque para a Sentença homologatória do plano de recuperação prolatada a 22-4-2020 (artigo 195.º, n.º 2 do CPC).

Ainda em consequência, determino que:

1. No prazo de cinco dias, o Sr. AJP apresente nova versão da lista provisória de créditos, a qual deverá respeitar a Decisão proferida a 22-6-2020.

2. No prazo de dez dias após o trânsito em julgado da Decisão proferida a 22-6-2020, se proceda à repetição da votação do plano de recuperação; bem como à concretização de todos os devidos e ulteriores termos dos autos (artigo 17.º-F do Cire).

O presente despacho consubstancia parte integrante da Decisão proferida a 22-6-2020.

Notifique.

E ainda, quanto ao recurso da “ … L..., Lda. veio restringir e, por outro lado alargar o recurso que interpôs a 8-5-2020 (R. de 24/7/2020 - ref.ª ... neste apenso; R. de 24/7/2020 - ref.ª ... no âmbito dos autos principais).

Antes de mais e não obstante o despacho proferido a 22-6-2020, manifestem-se as recorrentes L..., Lda. e C... quanto ao despacho que antecede”.

O AP, em decorrência da decisão anterior apresentou em 14.10.2020 a lista definitiva de créditos da “J..., Ldª”, pronunciando-se também sobre aqueles relacionados com os reclamados pela “S...” e que, no seu entender, configuram uma duplicação,

O “Banco ..., SA” e a “C..., CRL” vieram impugnar a lista provisória de créditos apresentadas pelo AP, pedindo o primeiro o reconhecimento do crédito reclamado de 198.031,95 € e o segundo o reconhecimento de créditos comuns no valor de 50.882,00 €.

O AP respondeu inclinando-se pelo não reconhecimento do crédito indicado pelo “Banco..., SA”  

A revitalizanda “J..., Lda” veio também interpor recurso da decisão proferida em 05 de Outubro, enunciando, depois das respetivas alegações, as seguintes conclusões:

...

Em 09.12.2020 foi proferido um outro despacho onde se decidiu:

- Admitir a restrição e alargamento do anterior recurso interposto pela “L..., Lda” em decorrência da decisão proferida a 22-6-2020.

- Admitir os recursos interpostos pela “L...” em 24-7-2020 (refª ...) relativamente “à Decisão de homologação do Plano de Recuperação proferida a 22-4-2020 (ref.ª ...) no âmbito dos autos principais”.

- Admitir o recurso interposto pela revitalizanda “J..., Lda” em 3-8-2020 (refª ...), quanto à “Decisão proferida a 22-6-2020 no presente apenso (ref.ª ...), que por sua vez reconheceu a nulidade da Decisão final respeitante às impugnações deduzidas à Lista Provisória de Créditos

Por entender que tais recursos assumem objectos semelhantes, determinou-se que subissem conjuntamente, no âmbito do presente apenso.

- Admitir o recurso interposto pela revitalizanda “J..., Lda” em 20-10-2020 (ref.ª ...) quanto ao “Despacho proferido a 5-10-2020 (ref.ª ...), que anulou todos os actos subsequentes à Decisão de 5/2/2020, inclusive a Decisão homologatória também proferida nos autos principais”.

Face à devolução à 1ª instância, a título definitivo, do apenso relativo ao recurso de apelação interposto da decisão de 05.02.2020, depois de declarada extinta a instância recursiva por via da declaração de nulidade dessa mesma decisão, e à posição assumida pela “L…” quanto à restrição/ alargamento do seu recurso, foi proferido despacho referindo que nada mais há a determinar quanto a este.

O AP enviou a reclamação apresentada pela ”S..., Ldª” do crédito no valor de 168.245,82€. 

Nesta Relação foi, oportunamente, admitido o recurso e mantida a espécie, efeito e regime de subida fixados pela 1ª Instância, nada obstando ao seu conhecimento.

Foi então ordenada a junção de certidão de uma decisão sumária que teria sido proferida no âmbito da apelação nº ..., em que eram recorrentes “Banco B..., SA”, “C..., CRL” e “Banco ..., SA”.

Foi junta uma certidão relativa ao despacho proferido pelo Exmo Sr. Relator daquele outro recurso de apelação, mas sem que tivesse havido qualquer decisão sumária e portanto, como é óbvio, não será considerada.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

É pelas conclusões das alegações do recurso que se afere e delimita o seu objeto – cfr., designadamente, as disposições conjugadas dos art.ºs 5.º, 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do C. P. Civil – sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Ora, no caso em apreço, perante o enquadramento feito, as alegações e as conclusões da apelante em cada um dos recursos interpostos, as questões que importa apreciar são as seguintes:

- Quanto ao primeiro recurso, interposto relativamente à decisão de 22.06.2020, para além da discordância da matéria de facto, concretamente os pontos 40 e 41, com a repercussão da sua procedência na recusa da reclamação de créditos da “S..., Ldª”, a questão aí suscitada é a mesma colocada no recurso interposto quanto à decisão de 05.10.2020, a saber, se o Sr. Juiz, ao proferir cada uma dessas decisões havia já esgotado o seu poder jurisdicional  e infringiu assim o disposto no artº 613º, nº 1, CPC.  

Quanto à impugnação da matéria de facto.

Os dois pontos que concitam a discordância da apelanteJ..., Lda” têm ambos a ver com os créditos reclamados pela “S..., Lda” e são, como se apontou, os constantes de 40 e 41 dos factos dados como provados e que se reproduzem:

40. A S..., Lda. é portadora de 16 letras e de 4 cheques, sendo que tais títulos vêm indicados no artigo 5.º da petição de reclamação de crédito, a qual, por sua vez, consta junta como documento n.º 1 à impugnação deduzida (R. de 9/12/2019 – ref.ª ...).

41. Tais títulos de créditos foram entregues à “S..., Lda. pela J..., Lda”.

Da fundamentação consta que a convicção acerca dessa factualidade dada como assente adveio da análise dos autos principais, bem como do teor dos documentos juntos pelos credores ora impugnantes e, no que respeita às letras cuja portadora é a “C..., Crl” e aos valores concretamente não pagos em relação a tais títulos de créditos, bem como no que respeita às restantes letras, cheques e contratos alegados pelos restantes credores impugnantes, o Tribunal teve presente que a existência daquelas letras e a existência concreta de tais dívidas não foram postas em causa, quer pelo Sr. AJP quer pelos restantes credores (pontos 7.º, 11.º, 12.º, 18.º a 20.º, 24.º, 25.º, 29.º, 30.º, 34.º a 36.º, 39.º, 40.º dos factos provados).

A discordância da apelante, que consta da 13ª à 22ª conclusão quanto ao ponto 40, e da 23ª até ao final, portanto a 31ª, quanto do ponto 41.

Parece-nos igualmente, podemos adiantar já, que não há nos autos qualquer suporte documental que permite fundamentar e alicerçar a prova quanto à afirmação de que a “S..., Lda” é de facto portadora das 16 letras e 4 cheques indicados no artigo 5.º da petição de reclamação de crédito.

O extracto de conta corrente, o documento junto pela “S...” é insuficiente para provar essa titularidade, não nos referimos à existência desses títulos, o que parece não levantar celeuma - embora o mesmo não ocorra com relação à dívida subjacente ao título - mas que terão sido endossados a bancos e a uma outra sociedade, a L..., que reclamaram aqui os créditos emergentes de cada um dos cheques e letras.

Ao contrário do que consta da fundamentação, houve oposição desde logo por parte do AP à reclamação da “S...” aquando da apresentação da lista provisória inicial, e foi junta ainda uma cópia de decisão proferida pelo tribunal de Santarém, no processo em que é requerente esta última sociedade de um mesmo PER onde se aborda a relação comercial entre as duas sociedades, circunstâncias que colocam em causa o afirmado nos pontos da matéria de facto em discussão.

Não poderia pois ser dado como provado os factos constantes dos mencionados pontos 40 e 41 em função do suporte documental constante dos autos. Não se chega à mesma decisão/conclusão probatória expressa na sentença seguindo o itinerário proposto.

Por outro lado, tal como se diz na decisão anterior e aponta a apelante, destinando-se o reconhecimento dos créditos reclamados unicamente a estabelecer o quórum da assembleia que irá decidir quanto ao plano de revitalização gizado de acordo com o disposto no artº 17º-F, n.º 3 do CIRE, a procedência ou improcedência das reclamações depois de apreciadas as impugnações, com o consequente reconhecimento da lista definitiva de créditos, tem de ter em vista na perspectiva desse mesmo objectivo, e portanto há que atender a posição do portador do título e crédito cujo crédito no momento em que é reclamado, independentemente da cadeia de endossos e da responsabilidade que daí decorre.

Não sendo assim, invocando-se a eventual responsabilidade de cada um dos obrigados de um qualquer título de crédito, v. g. uma letra, até ao aceitante, poderiam todos reclamar o crédito que poderiam ser chamados a satisfazer, distorcendo dessa maneira o quórum da assembleia de credores e da sua estrutura de votos. Caso a letra tivesse permanecido no domínio das relações imediatas teria um reclamante, o sacador, mas se tivesse sido colocada em circulação, passando ao domínio das relações mediatas, teria então tantos reclamantes quantos os endossos sucessivos.

Importa assim atender à titularidade do título de crédito invocado, é essa a circunstância que releva, e a prova dessa titularidade, de que é o detentor e o portador legítimo, tem de ser feita perante o próprio título, pela sua apresentação, é isso que resulta das próprias características do título de crédito que é, designadamente o artº 19º da Lei dos Cheques no caso dos cheques e do artº 16º e 17º da LULL no caso letras[1], uma prova que a “S…” não logrou fazer e que não pode ser substituída por um extracto de conta corrente.    

Uma última nota para dizer que a celeridade ditada pela urgência deste processo, com a inerente restrição dos meios de prova[2], também por isso mesmo, não coloca em causa, afasta ou diminui uma exigência de rigor na apreciação da prova admitida e apresentada, basicamente documental.

Voltando então à matéria de facto constante dos pontos 40 e 41, para finalizar esta apreciação, deve pois ser retirada e transitar para a matéria de factos não provada, sendo então a seguinte aquela a ser considerada como provada:

1. A 25/10/2019, a sociedade J..., Lda. declarou pretender estabelecer negociações com os seus credores, com vista à sua recuperação.

2. A 4/12/2019, o Sr. AJP nomeado apresentou lista provisória de credores.

3. A referida lista foi objecto de impugnações pelos credores acima identificados no intróito da presente decisão.

4. A 20/1/2020, o Sr. AJP manifestou-se quanto às referidas impugnações, tendo junto nova versão da Lista provisória de Credores (ref.ª ...).

Dos créditos reclamados pelo Banco B..., Sa.

5. O Banco B..., Sa. tornou-se legítimo portador de duas letras de câmbio, no valor de €8.200,00 e de €10.600,00.

6. Tais letras foram aceites pela J..., Lda.

7. Não foram pagas as importâncias indicadas em tais letras, nem os respectivos juros moratórios e encargos, quer pela revitalizanda quer pela sacadora S..., Lda.

Dos créditos reclamados pelo Banco ..., Sa.

8. O Banco ..., Sa. reclamou créditos cujo montante total ascende a €361.016,63.

9. Os créditos comuns reclamados ascendem a €162.984,68, os quais não foram reconhecidos.

10. A 17/11/1997, o Banco ..., Sa. celebrou com a J..., Lda. contrato de empréstimo, o qual foi objecto de posteriors alterações.

11. A revitalizanda tem pago as prestações inerentes ao referido contrato.

12. A 10/12/2019 (data da apresentação da reclamação de créditos), a dívida em causa ascendia a €27.029,37 a título de capital, a €387,36 no que a juros moratórios e a imposto de selo.

13. No que respeita a saldo devedor na conta bancária n.º ... titulada pela revitalizanda, o Banco ..., Sa. é credor de capital no valor de €100.525,19, cujos juros moratórios e o montante devido a título de imposto de selo ascendem a €3.219,01.

14. No âmbito do contrato de locação financeira n.º 14/117 que o Banco ..., Sa. celebrou, a 16/1/2017, com a J..., Lda. resulta crédito no montante total de €53.620,47, o qual não se encontra pago.

15. O Banco ..., Sa. tornou-se legítimo portador de duas letras de câmbio, no valor de €6.600,00 e de €10.700,00.

16. Tais letras foram aceites pela J..., Lda.

17. A S..., Lda. consta como sacadora em tais letras.

18. A título de capital foi pago apenas o montante de €4.323,95 no que respeita à primeira letra.

19. O capital total em dívida em relação às letras ascende a €13.019,54, a que acrescem juros moratórios e imposto de selo no montante total de €231,01.

20. O montante referido no ponto anterior não foi pago quer pela revitalizanda quer pela sacadora S..., Lda.

Dos créditos reclamados pela C..., Crl.

21. A C..., Crl. tornou-se legítima portadora de cinco letras.

22. Tais letras foram aceites pela J..., Lda.

23. A S..., Lda. consta como sacadora em tais letras.

24. O valor global em dívida em relação às referidas letras ascende a € 54.482,00.

25. O montante referido no ponto anterior não foi pago quer pela revitalizanda quer pela sacadora S..., Lda.

Dos créditos reclamados pela C...

26. A ... tornou-se legítima portadora de letra.

27. A referida letra foi aceite pela J..., Lda.

28. A S..., Lda. consta como sacadora na letra.

29. O capital total em dívida em relação à letra ascende a €11.600,00, a que acrescem juros moratórios e imposto de selo no montante total de €347,05, cujo total ascende a €11.947,05.

30. O montante acima referido não foi pago quer pela revitalizanda quer pela sacadora S..., Lda.

Dos créditos reclamados pela L..., Lda..

31. A L..., Lda. é portadora de quatro cheques, no valor de € 6.800,00, € 5.000,00, € 5.000,00 e € 5.000,00, no total de € 21.800,00.

32. Em tais cheques a J... Lda. apresenta-se como sacadora, tendo os mesmos sido emitidos pela J..., Lda.

33. Os cheques em causa foram endossados pela S..., Lda. à L..., Lda.

34. Apresentados a pagamento, os mesmos cheques foram devolvidos, por falta de provisão.

35. À totalidade do capital em dívida, expresso nos cheques, acrescem juros moratórios (€164,21).

36. A L..., Lda. é portadora de três letras, no montante de € 15.863,45, €16.256,66 e €11.107,59, respectivamente.

37. Em tais letras a S..., Lda. consta como sacadora.

38. As mesmas letras foram aceites pela J..., Lda..

39. Os acima referidos valores referentes a capital, acrescidos de despesas bancárias, juros moratórios e imposto de selo não foram liquidados.

                    Matéria de facto não provada:

Dos créditos reclamados pela “S..., Lda”.

40. A S..., Lda. é portadora de 16 letras e de 4 cheques, sendo que tais títulos vêm indicados no artigo 5.º da petição de reclamação de crédito, a qual, por sua vez, consta junta como documento n.º 1 à impugnação deduzida (R. de 9/12/2019 – ref.ª ...).

41. Tais títulos de créditos foram entregues à S..., Lda. pela J..., Lda.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

Decorre como consequência directa e óbvia da alteração da meteria de facto acima indicada que não pode ser admitida a reclamação de créditos deduzida pela “S..., Lda”, que deverá assim ser rejeitada e retirada da lista definitiva de créditos.

Da validade da sentença de 22.06.06

Resulta do artº 613º, nº 1, do CPC que proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz que a profere, pelo que não pode, em regra, rever essa decisão. No entanto, acrescenta o nº 2, desse mesmo preceito, pode o juiz, para além de rectificar erros materiais também suprir nulidades, previstos nos artigos seguintes[3].

De entre as nulidades previstas no artº 615º do CPC, a falta de fundamentos de facto e de direito da sentença, o vício apontado nos vários requerimentos de interposição de recurso e que levou à decisão de 22.06,.2020.

O prof. Alberto dos Reis, em anotação ao artº 666º do anterior CPC[4], pronunciando-se quanto ao alcance e a justificação do poder jurisdicional, entende que tal significa que o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível, ficando assim para ele intangível, mas chamando a atenção para a expressão “quanto à matéria da causa” que marca o sentido dessa enunciação.

Já então, o princípio do esgotamento do poder jurisdição sofria as limitações decorrentes dos artºs 667º a 670º do CPC então em vigor, para suprir nulidades, uma delas a constante no artº 668º, 2º, ocorria quando a sentença não especificava os fundamentos de factos e de direito que justificam a decisão. Essa falta, que tem de ser absoluta, exerce uma influência decisiva, por se tratar de um elemento essencial, compromete a validade da decisão[5].

Permanecem hoje praticamente inalteráveis tal orientação e fundamentação doutrinárias, e muito especialmente no aspecto que aqui nos interessa e tem a ver com a não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, um vício previsto no artº 615º, nº 1, b), e que o configura como nulidade.    

Era essa a situação da sentença proferida em 05.02.2020, não continha qualquer fundamentação de facto, e até de Direito, e que a sentença proferida em 22.06.2020 procurou corrigir, enunciando então uma e outra.

Sendo a arguição atendida, como foi o caso,” a decisão que a deferir (e que pode revestir diversas formas, consoante a natureza da nulidade invocada) passa a fazer parte integrante da sentença, a menos que o juiz prefira, sendo caso disso, redigir esta de novo, corrigindo a nulidade[6]”, passando a constituir esta última, nos termos do nº 2 do artº 617º do CPC o objecto do recurso interposto.

Foi, parece-nos, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, o que aconteceu. O Sr. Juiz, dando procedência às invocadas nulidades, elaborou que uma nova sentença, um procedimento que não podemos deixar de concordar e aceitar, não tanto pela própria apresentação dessa peça final - algo de positivo sobretudo quando tem reflexo na organização e compreensão do processo, das suas vicissitudes e decisões – mas porque seria essa, desde sempre, a forma e conteúdo correcto tendo em atenção os preceitos já mencionados, mas também os artº 154º, 607º e 608º, ainda do CPC e 205º, nº 1, da CRP

Com efeito, a corecção feita pelo Sr. Juiz após a procedência da nulidade, não podia bastar-se com a simples colocação mecânica dos factos dados como provados e a sua fundamentação no lugar que lhes corresponderia, para depois, no final, reproduzir e manter a mesma decisão.

Se assim fosse, poder-se-ia suprir uma nulidade, a prevista na alínea b) do nº 1 do artº 615º do CPC, para incorrer numa outra, a prevista na alínea c) deste preceito, caso os facto dados como provados e o correspondente enquadramento jurídico ficassem em oposição à decisão anterior que deveria subsistir e manter-se tal qual.

Ao enunciar a matéria de factos há que lhe conferir o correspondente Direito aplicável, para concluir então com a decisão, formando um silogismo consequente e harmonioso entre as premissas e a conclusão, a decisão final[7]. Eram pois estes os imperativos que a decisão proferida em 22.06 tinha de respeitar, e foi o que fez, e não reproduzir o mesmo segmento decisório da sentença anterior.

Não houve portanto, a nosso ver, qualquer violação ao princípio do esgotamernto do poder jurisdicional, posto que a nova sentença surgiu como decorrência de uma das excepções a tal princípio, prevista nos artºs 613º, nº 1; 615º, nº 1, b); 617º, nºs 1 e 2 do CPC.

Quanto à segunda decisão proferida em 05.10.2020, pelas mesmas razões enunciadas acima, confere-se desta vez razão à apelante, porém, sublinhe-se, naquilo que tem a ver com o pronunciamento feito no final desse despacho fazendo-o parte integrante da mencionada decisão proferida em 22.06.2020.

É de resto neste concreto segmento da decisão, parece-nos, que a apelante faz incidir a sua discordância e o seu discurso argumentativo, segmento que, a nosso ver, diferencia-se do conteúdo em si, a anulação dos actos praticados depois da sentença de 22.05.2020, entre os quais a sentença homologatória do plano de recuperação proferido em 22.04.2020.

Essa declaração de nulidade, recorde-se, foi requerida pela “L..., Lda.” em 24.07.2020.

Ora, conforme foi dito acima, as nulidade que podem ser supridas pelo juiz depois de proferida a sentença são aquelas que têm a ver com vícios específicos da sentença, são nulidades da própria decisão, e não as nulidade processuais que cabem já no âmbito das elencadas no artº 195º do CPC[8].

A declaração de nulidade dos actos subsequentes à decisão de 05.02.2020, por via da procedência da nulidade julgada em 22.06.2020 e que faz integrar a decisão de 05.10.20 naquela anterior, de 22.06.202, o que por sua vez faria também integrar naquela primeira de 05.02.2020, não tem nada ver com qualquer vício de que padecia tal sentença de 22.06.2020, pelo que não pode, consequentemente, dela fazer parte por estar já esgotado o poder jurisdicional do juiz.

Compreende-se naturalmente a razão e o alcance da declaração de nulidade feita em 05.10.2020 pela repercussão que a decisão de 22.06.2020 terá no quórum de votação do plano de votação, mas esse é um efeito que decorre da decisão, é já externo, não tem a ver com a apreciação de uma nulidade ou qualquer outro vício ou irregularidade da sentença que permita a sua integração na sentença anterior.

Não se coloca em causa, portanto, o pronunciamento em sí, a nossa discordância tem unicamente a ver com a incorporação que se pretende fazer na decisão de 22.06.2020, da qual não faz manifestamente parte. Aliás, a própria “L..., Lda” deu o enquadramento correcto, depois seguido pelo Sr. Juiz, de que se tratava aqui apenas e tão só de uma nulidade processual tal como a define o artº 195º do CPC como também mencionam que terá repercussão na composição da assembleia de credores e no resultado da votação do plano de revitalização, atento ao disposto nos artºs 17º-D, nºs 3 e 4, 17º-F, nº 5, e 212º, nº 1, do DL nº 53/2004, de 18.03, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, CIRE.

Não podia ser de outra maneira, já que a lista definitiva de créditos tem força de caso julgado meramente formal, posto que tem como finalidade não a fixação definitiva dos débitos da requerente do PER, mas a participação nas negociações e aprovação do plano, não mais que isso[9]. Tal lista é a que resulta agora da decisão de 22.06, diversa daquela que emerge da decisão de 05.02.

Finalizando, o despacho proferido em 05.10.2020, não pode pois fazer parte integrante da decisão anterior, de 22.06, porquanto, com relação a esta. não tendo em vista rectificar erros materiais, suprir qualquer nulidades, nem a reformar tal sentença nos termos dos artºs 614, 615º e 616º, do CPC, estava então esgotado o poder jurisdicional do Juiz conforme dispõe o artº 613º do mesmo diploma.

Esse despacho de 05.10.2020 vale por si só, tem o valor da decisão quanto a uma questão suscitada pela mencionada “L...” em 24.07, ou seja, não fazendo parte integrante da sentença de 22.06.2020, vale como decisão depois de apreciar uma questão colocada por uma credora relativamente a uma nulidade processual.

Não podemos deixar de sublinhar que não foi apresentada qualquer resposta ao pedido de declaração de nulidade mencionado, nem a apelante nas suas alegações se pronuncia sobre essa mesma nulidade, o seu conteúdo e procedência, apenas, como se disse, quanto à incorporação de decisão na sentença de 22.06.2020.

A procedência do recurso, nesta parte, e consequente revogação da decisão de 05.10.20, só incidirá pois no que diz respeito à inclusão/integração naquela mencionada sentença, prevalecendo o mais decidido no despacho de 05.10.2020.

III – DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes, na 1ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Coimbra, decidem,

1 - Julgar parcialmente procedente o recurso interposto quanto à decisão de 22 de Junho de 2020, procedendo-se à alteração da matéria de facto, dando-se como não provados factos constantes dos pontos 40 e 41 e, consequentemente, julgar improcedente a reclamação de créditos apresentada pela sociedade “S..., Ldª”, mantendo-se o mais decidido nessa mesma sentença.

2 – Julgar parcialmente procedente o recurso interposto quanto à decisão proferia em 05 de Outubro de 2020 que, embora mantendo-a, não deve ser tida como parte integrante da sentença mencionada no ponto anterior, de 22.06.2020, mas como um despacho processual que conheceu e decidiu uma nulidade processual.    

Custas pela apelante na proporção de 1/2

Coimbra, 09/03/2021

Sumário ( artº 663º, 7, do CPC )

- No âmbito do PER, dada a restrição probatória decorrente das exigências de celeridade, basicamente documental, a prova de um crédito resultante de cheque, letra ou livrança, bem como a qualidade de portador, deve ser feita através da apresentação do respectivo título de crédito.

- Decidida a procedência de uma nulidade da sentença por absoluta falta de fundamentação nos termos dos artºs 613º, 615º, nº 1, b) e 617º, nº 2, do CPC, o novo pronunciamento decisório deve ser o resultado da matéria de facto dada como provada e do enquadramento de Direito feito agora, e não a mera reprodução da decisão anterior.

- A decisão de anular a sentença homologatória do plano de recuperação subsequente a uma nova sentença que dá outra expressão à lista definitiva de credores, com repercussão na participação das negociações e no quórum de decisão do plano de revitalização, não faz parte desta outra/nova sentença, mas decorre dos seus efeitos e constitui por isso pronunciamento sobre uma nulidade processual.     


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[1] Abel Pereira Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, 4ª ed., pgs 88-95: França Pitão, Letras e Livranças, 4ª ed., pg 122.
[2] Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., Pg 448, e a jurisprudência citada na referência 1410
 [3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 4ªed., pgs 728/729, ponto 2 
[4] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, Reimpressão, 1981, pg 126
[5]  Prof. Alberto dos Reis, ob. Cit., pgs 139/140
[6]  Antunes Varela , J. Miguel Bezerra,  Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 1984, pg.675; José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ªed., pgs 704, ponto 3: António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, , “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ªed., pgs 766.
[7] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, ob. cit., pgs 712, ponto 4. 

[8] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. Cit., pg 730; José Augusto Pais de Amaral, “Direito Processual Civil, 6ª ed., pg 359.
[9] Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., pg 443, e Ac. Rl Guimarães, de02.05.2013 aí mencionado.