Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
207-B/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
PROMESSA DE LIBERAÇÃO
Data do Acordão: 09/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 443º, NºS 1 E 3, DO CC; 46º E 55º DO CPC
Sumário: I – A “promessa de liberação” consiste numa convenção entre o devedor (promissário) e um terceiro (promitente) mediante a qual este se obriga para com aquele a pagar uma dívida.

II – O primitivo devedor continua obrigado para com o credor; mas, por convenção entre o devedor e um terceiro este obriga-se a pagar a dívida – contrato a favor de terceiro estranho ao negócio.

III – Esta convenção não produz, em princípio, senão efeitos nas relações entre devedor e terceiro, sendo a ela estranho o credor.

IV – Sendo assim, o promitente não fica devedor do credor, mas apenas obrigado para com o devedor a pagar a dívida deste; caso o devedor pague, poderá depois exigir o reembolso ao dito terceiro promitente.

V – Assim, o promissário deverá ter-se como credor até ao momento de adesão do terceiro, podendo, até esse momento, agir contra o promitente para o obrigar a cumprir em benefício desse terceiro, assim actuando no seu próprio interesse, que é o de assegurar o cumprimento a favor do terceiro.

VI – Não sofre dúvida que a promessa de liberação permite ao beneficiário/promissário exigir o cumprimento da obrigação por parte do “promitente”, nos termos do artº 444º, nº 3, CC, isto é, a prestação convencionada a favor de terceiro, exigindo a este o pagamento das dívidas acordadas (o beneficiário não é credor directo de qualquer obrigação pecuniária).

VII – De acordo com o artº 46º do CPC (na redacção anterior ao DL nº 38/2003, de 8/03), à execução apenas podem servir de base os títulos mencionados nas suas alíneas, sendo que por força do estatuído no artº 55º do CPC, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.

VIII – Logo, ao dito beneficiário/promissário está vedado recorrer à execução para pagamento de quantia certa – não dispõe de título executivo.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

 

Relatório

No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, A..., Lda., entretanto declarada insolvente, instaurou execução para pagamento de quantia certa contra B..., C...., D..., E... e F..., fundada em acordo homologado por sentença, alegando que os executados se obrigaram ao pagamento de dívidas da exequente contraídas entre 1994 e 1999, aqui se incluindo impostos, prestações à segurança social e ainda dívidas a fornecedores; a exequente procedeu ao pagamento de dívidas à Segurança Social no montante de € 26.052,37, à G..., S.A. no montante de € 667,29, à I... no montante de € 580,45, à H..., Lda. no montante de € 2.613,71 e ainda à Segurança Social no montante de € 53.617,22.

Por despacho de fls. 200 a 203 o Tribunal proferiu a seguinte decisão: “Face a tudo quanto ficou agora exposto, nos termos das disposições acima referidas, decide-se rejeitar a presente execução, por manifesta falta do título executivo.”.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a exequente, concluindo que:

[…]

… …

Nas contra alegações os recorridos sustentaram que:

[…]

Colhidos os vistos , cumpre decidir.

… …

Fundamentação

Os factos que servem a decisão são os constantes do relatório razão pela qual não se vê necessidade de serem repetidos, sem embargo de os mesmos serem expressamente referidos na medida em que a exposição decisória o determinar.

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts.684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil) e que não visam criar decisões sobre matéria nova, a questão suscitada é a de saber se, na execução existe ou não título executivo.

A exequente, ora recorrente, para accionar os executados apresentou como título executivo um acordo homologado por sentença e que consta, como documento de fls. 18 a 20.

Nesse acordo, estabelecido em 5 de Dezembro de 2000, em audiência de julgamento, ficou exarado que todos os aí réus

“(…) 3º Reconhecem como suas e da sua inteira responsabilidade todas as dívidas contraídas a partir de 14 de Fevereiro de 1994 e até 2 de Julho de 1999 (…)

4º Dívidas que correspondem nomeadamente à falta de pagamento das prestações devidas ao I.R.S., desde Fevereiro de 1996 a Abril de 1999, ao Imposto de Selo desde Janeiro de 1996 até Maio de 1999 e I.V.A. desde Dezembro de 1997 a Março de 1999.

5º Reconhecem ainda como suas e da sua inteira responsabilidade as dívidas e todos os impostos da Firma A..., Lda., contraídas desde Janeiro de 1999 até 2 de Junho de 1999, a que deram lugar, a fornecedores desde a data de 14 de Fevereiro de 1994 até esta data de 2 de Junho de 1999.

6º Os Réus obrigam-se solidariamente, por esta transacção, a efectuar os pagamentos às entidades supra referidas nas cláusulas n.º 3, 4 e 5, no prazo de 60 dias, em relação às entidades oficiais credores e 30 dias (nomeadamente Estado e Segurança Social), em relação às entidades particulares de matérias e serviços, contando-se este prazo de 30 dias, a partir da data de notificação escrita que aos Réus se faça da dívida e quantitativo e do credor, para a seguinte direcção dos Réus: X... freguesia de ..., concelho e Comarca de ... (…)

As obrigações inerentes a este articulado, ficam sujeitas ao disposto no art. 837º do Código Civil (dação em cumprimento), dando desde já, a Autora o seu assentimento, bem como à sub-rogação do artigo 589º do Código Civil, para todos os legais efeitos (…)”

É na interpretação destas cláusulas que o tribunal recorrido veio a proferir decisão considerando não existir título executivo e isto porque “Apesar de não ser determinável do acordo plasmado qual a quantia a que se obrigaram os ora executados e então Réus, a verdade é que estes se obrigaram a pagamentos ao Estado, à Segurança Social e a entidades particulares e fornecedores, mas não à exequente A..., Lda.

O documento apresentado como título executivo constitui uma promessa de pagamento pelos ora executados de uma quantia indeterminada relativa a dívidas da exequente A..., Lda. a terceiros que não foram intervenientes nem se encontram sequer identificados no acordo consignado no que respeita aos credores particulares que não o Estado ou a Segurança Social.

Depois, não obstante a ora exequente declarar que dá o seu assentimento para a dação em cumprimento ou para a sub-rogação, cumpre dizer mais uma vez que a exequente não é a credora para dar tal assentimento, mas sim o Estado, a Segurança Social e as entidades particulares, não constando do documento dado à execução como título executivo o assentimento de qualquer credor.

Finalmente, não resulta do documento dado à execução como título executivo que os executados são responsáveis pelas concretas dívidas apresentadas pela ora exequente ou que as mesmas foram pagas pela exequente, necessitando tais factos da competente produção de prova.”.

Para sustentar o contrário a recorrente apelida de “errónea” e “peregrina” a configuração da situação jurídica como é formulada na decisão e afirma que, na esteira do ac. da RP de 16/11/1992, tirado em caso idêntico, uma promessa de liberação em que os executados assumiram por acordo homologado judicialmente o pagamento de dívidas da sociedade exequente, esta pode exigir àqueles o cumprimento da obrigação proveniente dessa promessa.

Apreciando a situação existente nos autos, verificamos que através do acordo homologado por sentença os ora executados assumiram a responsabilidade de todas as dívidas contraídas pela sociedade A..., Lda., a partir de 14 de Fevereiro de 1994 e até 2 de Julho de 1999 nomeadamente as que expressamente referiram.

Os sujeitos desse negócio de assunção de tais dívidas são, por um lado, a entidade que vai transferir as suas dívidas e, por outro lado, as pessoas que as assumem e, de acordo com o acórdão citado pela exequente, pode configurar-se o mesmo como “uma promessa de liberação a que também se dá o nome de assunção de cumprimento ou assunção interna de dívida que se distingue da figura prevista no art. 595 do CC por não concorrerem os pressupostos legais do instituto da transmissão singular de dívidas previsto na al. b) do nº1 do mencionado preceito”.

E na análise deste negócio, o prof. Vaz Serra[1] afirma que a promessa de liberação “consiste numa convenção entre o devedor e um terceiro mediante a qual este se obriga para com aquele a pagar a dívida. O primitivo devedor continua obrigado para com o credor; mas, por convenção, entre o devedor e um terceiro este obriga-se a pagar a dívida. Esta convenção não produz em princípio, senão efeitos nas relações entre devedor e terceiro, sendo a ela estranho o credor.

Sendo assim, o promitente não fica devedor do credor mas apenas obrigado para com o devedor a pagar a dívida deste de sorte quem se acaso o devedor pagar, poderá este depois exigir o reembolso. Da convenção o que resulta é um crédito do devedor para com o terceiro no sentido de que este o liberta da obrigação”.

Neste mesmo sentido também o STJ entendeu estas hipótese como genericamente reguladas pelo instituto do de contrato a favor de terceiro, regulado no art. 443º nº1 do C. Civil[2], segundo o qual “por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.”.

Conclui-se assim que o promissário e o terceiro (salvo o caso especial do nºº3) se tornam titulares de um direito de conteúdo igual direccionado à mesma finalidade: a prestação ao terceiro[3]. O crédito do promissário passa a só poder ser utilizado com vista a assegurar a finalidade da prestação ao terceiro beneficiário.

Como assim, o promissário deverá ter-se como credor até ao momento de adesão do terceiro, podendo, até esse "momentum" agir contra o promitente para o obrigar a cumprir em benefício desse terceiro, assim actuando no seu próprio interesse, que é o de (na circunstância) assegurar o cumprimento a favor do terceiro. Pelo que disporá assim o promissário - até ao momento da adesão - de meios coercitivos, como seja o de exigir o cumprimento da obrigação para com o terceiro[4].

O que acabamos de afirmar, e que constitui a súmula do acórdão em que a recorrente firma o seu agravo, não resolve ainda a questão de saber se existe título executivo ou não mas apenas explica a natureza do negócio jurídico que o acordo judicial contém, nem sequer a essa questão essa decisão se refere.

Não sofre dúvida que a promessa de liberação permite ao beneficiário, neste caso a recorrente, exigir o cumprimento dessa obrigação por parte dos executados nos termos dos arts. 444 nº3 do CC[5], porém, se o pode fazer através de execução, apresentando como título executivo o documento em que consta esse negócio é matéria que não coincide com o facto de se saber que é permitido ao promissário obter do promitente o cumprimento da obrigação de pagar em que se constituiu. E é assim que o acórdão citado pela recorrente se refere a um caso em que numa acção declarativa, e não executiva, o promissário da liberação foi contra os promitentes exigir o cumprimento da promessa, não aludindo sequer à possibilidade de ele servir de titulo a qualquer execução.

Quanto a esta questão, de acordo com o art. 46º do CPC (na redacção anterior ao DL 38/2003 de 8/3), à execução apenas podem servir de base, os títulos mencionados nas suas alíneas, sendo que por força do estatuído no art. 55º do CPC, “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.

Ora, como se disse, a exequente, como outorgante do acordo citado, apenas pode exigir o cumprimento da promessa, isto é, a prestação convencionada a favor de terceiro, exigindo aos executados o pagamento das dívidas. Eles não são credores directos de qualquer obrigação pecuniária. Está-lhe por isso vedado recorrer à execução para pagamento da quantia certa porque “não se está propriamente perante a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art. 805º (simples cálculo aritmético) ou de obrigação de entrega de coisa móveis ou de prestação de facto para usar a fórmula legal.

(…) E uma vez que o terceiro não pode exigir o cumprimento da promessa cfr. art. 444º, nºs. 1 e 3 do C. Civil), temos de concluir que o documento que serviu de base à execução não possui virtualidade para servir de título exequível.  Restará, deste modo, aos exequentes o recurso à acção declarativa com vista a obter sentença condenatória que possa servir de título executivo e servir de fundamento à instauração de execução contra os executados. ” [6].

Não esquecendo que o título executivo a que se referia a hipótese estudada nesse acórdão do STJ era um documento particular (e não um acordo homologado por sentença), cremos que a solução não sofre desvio uma vez que, objectivamente, o teor das cláusulas e a natureza da obrigação é a mesma em ambas as situações, subscrevendo nós também esse entendimento segundo o qual, nesse tipo de negócio, o documento em que figura a obrigação não vale como título executivo porque o promissário não é, por força desse negócio, credor directo de qualquer obrigação pecuniária.

… …

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao Agravo e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Agravante.

Coimbra, 14 de Setembro de 2010.
Relator: Manuel Capelo;
J.A.: Sr. Des. Jacinto Meca
J.A.: Sr. Des. Falcão de Magalhães

[1] In BMJ 72, p.83.
[2] Vd. ac STJ de 1-7-2004 no proc. 04B1845, relator. Cons. Ferreira de Almeida, in dgsi.pt
[3] Vd. Diogo Leite Campos, in "Do Contrato a Favor de Terceiro", Livraria Almedina, 1980, pág. 86 e ss
[4] cfr. Diogo Leite Campos, in ob. cit., pág 89.
[5] Vd. neste sentido Antunes Varela Das Obrigações 5ª ed. vol.II p. 361; Almeida Costa Direito das obrigações 5ª ed. P. 692; Mora Pinto Cessão da Posição Contratual, p. 115.
[6] Vd. ac. STJ de 1-7-2004 citado.