Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/20.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: SEGURO DE DANOS
SEGURO AUTOMÓVEL COM COBERTURA (FACULTATIVA) DE DANOS
PAGAMENTO DA INDEMNIZAÇÃO COM PREJUÍZO DE TERCEIRO QUE BENEFICIA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR FALTA DE PAGAMENTO DO PREÇO
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 405.º, 1; 409.º, 1; 796.º; 874.º E 879, A), DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 43.º, 1 E 2, DA LCS
ARTIGO103.º DO RJCS
Sumário: 1. - No seguro facultativo de danos, o interesse no seguro respeita à conservação ou à integridade da coisa, direito ou património seguros, relevando a relação económica existente entre uma pessoa e um bem exposto ao risco, tal como transposta para o âmbito do contrato, na esfera de segurador e tomador do seguro e segurado.
2. - Porém, no âmbito de um seguro automóvel com cobertura (facultativa) de danos próprios, o pagamento de indemnização, por danos no veículo automóvel a que se reporta o contrato, efetuado em prejuízo de direitos de terceiro (identificado no contrato e ali beneficiário de cláusula especial protetiva), de que o segurador tenha conhecimento, não o exonera perante esse terceiro (cfr. art.º 103.º do RJCS), obrigando-o a nova prestação, o que vale, entre outras, para situações de reserva de propriedade.
3. - Assim, sendo esse terceiro o vendedor do veículo com reserva de propriedade, o pagamento de indemnização por danos no veículo, pelo segurador, ao comprador e respetivo tomador do seguro, sem observância daquela cláusula especial protetiva, não libera o segurador perante o terceiro/vendedor, num caso em que o contrato de alienação foi resolvido por falta de pagamento do preço (este sujeito a plano prestacional incumprido) e o veículo foi apreendido a favor do alienante, mas danificado, por o adquirente/tomador não ter usado o montante da indemnização recebida para o fim a que era destinada (a reparação da viatura).
Decisão Texto Integral: ***
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Por decisão sumária – datada de 10/07/2023 (com Ref. 10926293) – proferida pelo Relator ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., foi decidido «a) Revoga[r] o segmento absolutório da sentença recorrida referente à 1.ª R./Apelada (seguradora), a qual vai condenada, na parcial procedência da ação quanto a ela, a pagar à A./Apelante, no regime de solidariedade peticionado, a quantia de € 21.014,15 (…); // b) Mantendo-se no mais objeto de impugnação a decisão apelada», nos seguintes termos:

I – Relatório

A..., LDA.”, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa condenatória, com processo comum, contra

1.ª - “B..., S. A.”,

2.ª - “C... UNIPESSOAL, LDA.”,

3.ª - AA e

4.º - BB,

todos estes também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação dos RR., solidariamente, a pagar-lhe a quantia de € 25.247,40, respeitante ao valor entregue pela 1.ª R. aos demais RR., a fim de estes procederem à reparação do veículo automóvel de matrícula «..-VD-..» (trator de mercadorias), sobre o qual a A. detém a reserva de propriedade.

Para tanto, alegou, em síntese:

- sendo a A. uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de viaturas novas e usadas, e a 2.ª R., por sua vez, uma sociedade comercial que tem como objeto social, para além do mais, o transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias por conta de outrem – tendo esta sido declarada insolvente no dia 10/09/2019 –, a A. vendeu à 2.ª R., entre outros veículos, aquele trator de mercadorias «..-VD-..», mediante contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade, celebrado a 08/08/2018, pelo preço de € 64.944,00, sendo os 3.º e 4.º RR. demandados como fiadores;

- a 2.ª R. não cumpriu a sua obrigação de pagar o preço à A. nos termos contratados, tendo a A. intentado contra tal R. uma providência cautelar para a apreensão dos veículos, a qual foi decretada a 21/10/2019, verificando-se que o veículo «..-VD-..» se encontrava acidentado/danificado nas oficinas da «...» em ..., tendo sido apreendido e a A. constituída depositária;

- esse veículo «estava segurado pelo contrato de seguro celebrado entre a A. e a 1.ª R.», titulado «pela Apólice n.º ...01» (cfr. art.ºs 28.º e 29.º da petição), sendo que, aquando da respetiva apreensão, teve a A. conhecimento de que a 1.ª R. havia entregue aos 2.ª, 3.ª e 4.º RR. o montante de € 25.247,40, com referência ao valor do orçamento elaborado para reparação do veículo, reparação essa a que aqueles não procederam;

- a 1.ª R. sabia, tal como os demais R.R., que a A. tinha registado a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo, pelo que aquela 1.ª R., antes de proceder à entrega do valor de € 25.247,40 para a reparação do veículo aos demais R.R., deveria ter dado conhecimento à A. de tal facto;

- tendo em conta o disposto no art.º 103.º do DLei n.º 72/2008, de 16/04 (RJCS), a 1.ª R. (seguradora), sabendo que a A. era credora preferente, devia ter solicitado a aceitação ou autorização da titular da reserva de propriedade sobre o veículo, para proceder ao pagamento da indemnização devida, sob pena de não ficar liberada do cumprimento da sua obrigação;

- em face de tal conduta da 1.ª R. – violadora do princípio da boa-fé – de entrega do valor sem comunicar à A. e sem pagar diretamente à oficina, o veículo nunca foi reparado, encontrando-se muito danificado, com o consequente prejuízo para a A., por que devem responder todos os RR., solidariamente.

Contestou a 1.ª R. (seguradora), impugnando diversa factualidade alegada pela A. e afirmando que o contrato de seguro invocado foi celebrado entre si e a R. «C...», tendo esta (tomadora do seguro) participado à aqui contestante um sinistro ocorrido em 25/05/2019, determinando-se que o montante necessário para a reparação ascendia a € 21.614,15, pelo que, deduzida a franquia contratual de € 600,00, resultou no valor de € 21.014,14, que a R. seguradora entregou aos demais RR., com o consentimento destes, que se comprometeram a realizar a reparação;

- os direitos ressalvados de terceiros reportam-se apenas a situações de perda total, o que não era o caso, pelo que a R. seguradora cumpriu a obrigação assumida contratualmente;

- se os demais RR. não ordenaram a reparação da viatura segura, só a eles pode ser imputado tal facto, por já terem recebido o montante necessário para a reparação;

- é certo que a R. seguradora não comunicou à A., uma vez que só o teria de fazer no caso de perda total, termos em que nenhuma responsabilidade lhe pode ser imputada, antes devendo ser absolvida ([1]).

Quanto à 2.ª R. («C...»), atenta a declaração da sua insolvência, foi, por despacho de 06/03/2022, «ao abrigo do disposto no artigo 277.º al. e) do Código de Processo Civil», julgada «parcialmente extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, em relação ao pedido de condenação (…) no pagamento da a quantia de € 25.247,40, respeitante ao valor entregue pela 1ª R. aos demais R.R.».

A 3.ª R. (AA) foi citada editalmente, não tendo sido deduzida contestação.

O 4.º R. não apresentou contestação.

Dispensada a audiência prévia, saneado o processo e fixados o objeto do litígio e os temas da prova, procedeu-se depois à realização da audiência final.

Da sentença – datada de 11/04/2023 – consta o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, o Tribunal decide:

1. Julgar a acção parcialmente procedente e em consequência decide-se:

a) Condenar o réu BB a pagar à A. a quantia de € 25.247,40 (vinte e cinco mil duzentos e quarenta e sete euros e quarenta cêntimos);

b) Absolver os demais Réus do peticionado;

2. Custas da acção em partes iguais na proporção dos respectivos decaimentos.».

Inconformada, vem a A. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([2]):

«1º O Tribunal a quo, formulou a sua convicção e, consequentemente fundamentou a sua decisão para absolver a 1ª R, assente em pressupostos errados, num acórdão que em nada se aplica aos presentes autos.

2º O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

(…)

3º Ora resulta dos factos provados, entre outros que a 2ª R. ressalvou direitos a favor da A.

“33) Constam as seguintes cláusulas especiais: “DIREITOS RESSALVADOS – Neste contrato existem direitos ressalvados a favor de A..., LDA, com sede em ..., ..., ... ..., pelo que, por isso, não se procederá sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do mesmo, nem se pagará nenhuma indemnização directamente ao segurado por danos no veículo seguro. (…)”.

4º Não podendo a 1ª R. proceder ao cancelamento, redução, anulação nem pagar nenhuma indemnização diretamente á 2ª R. por danos no veículo sem o conhecimento da A.

5º Porém, a 1ª R. pagou a quantia de € 25.247,40 (vinte e cinco mil duzentos e quarenta e sete euros e quarenta cêntimos), sem que tivesse dado a conhecer á A. tal facto

6º Ora, nos termos do art. 103º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril (Lei do Contrato de Seguro), “o pagamento efectuado em prejuízo de direitos de terceiros de que o segurador tenha conhecimento, designadamente credores preferentes, não o libera do cumprimento da sua obrigação”.

7º Seria lícita a conduta da seguradora se tivesse informado a A. do pagamento á 2ª R. já que tinha conhecimentos dos direitos reservados a favor desta.

8º Nos termos do nº 2 do artigo 91º DL n.º 72/2008, de 16 de Abril

“2 - O segurador deve comunicar aos terceiros, com direitos ressalvados no contrato e beneficiários do seguro com designação irrevogável, que se encontrem identificados na apólice, as alterações contratuais que os possam prejudicar, se a natureza do contrato ou a modificação não se opuser.”

9º A 1ª R. sabendo que a A. detinha direitos ressalvados, nada comunicou a A. quando sabia que nos termos da apólice não poderia pagar nenhuma indemnização directamente ao segurado por danos no veículo seguro.

10º tê-lo feito, ao ter incumprido com a A. deverá ser condenada a pagar o valor pado à 2ª R.

11º Em face aos direitos ressalvados, não é a 2ª R. titular do direito á indemnização.

12º Em causa está a não comunicação á A. e a violação desse dever a que estava obrigada, pois não o tendo feito, levou a que a 1ª R. tivesse pago indevidamente á 2ª R. ficando a A, prejudicada, quando tinha os seus direitos ressalvados no contrato de seguro.

13º A A. não alegou ser sua pretensão receber o valor, o que a A. alegou, foi que não tendo esta sido notificada do pagamento, detendo reserva de propriedade sobre o veiculo, não teve oportunidade de fiscalizar se o veiculo era ou não objeto de reparação, como não veio a acontecer

14º E a 1ª R. estava obrigada a comunicar, por isso mesmo constava de tal clausula:

“DIREITOS RESSALVADOS – Neste contrato existem direitos ressalvados a favor de A..., LDA, com sede em ..., ..., ... ..., pelo que, por isso, não se procederá sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do mesmo, nem se pagará nenhuma indemnização directamente ao segurado por danos no veículo seguro (sublinhado nosso)

15º Pelo que, deve a sentença que absolveu a 1ª R B..., SA, ser substituída por outra que condene a 1ª R, a pagar á A. o valor entregue a 1ª R. atenta a sua violação da clausula dos direitos ressalvados a favor da A.

Termos em que, deve a presente sentença ser revogada na parte que absolveu a R. B..., SA, ser substituída por outra que condene a 1ª R, a pagar á A. o valor entregue a 2ª R. atenta a sua violação da clausula dos direitos ressalvados a favor da A. e dada como provado no nº 33 dos factos provados.

Custas pela 1ª R.

Assim se fazendo Justiça».

A R./Recorrida seguradora contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem (com manutenção aqui de tal regime e efeito fixados).

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito recursório ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, o thema decidendum, incidindo exclusivamente sobre a decisão da matéria de direito, consiste em saber:

1. - Se estava a R. seguradora contratualmente obrigada a comunicar à A. o acionamento do seguro por danos no veículo, não devendo proceder ao pagamento da indemnização diretamente ao segurado (por via desses danos);

2. - Se o incumprimento dessa obrigação, com pagamento ao segurado, determina o dever de tal R. seguradora pagar à A. o valor entregue à 2.ª R. (atenta a sua violação da cláusula dos direitos ressalvados a favor da A.).


***

III – Fundamentação

A) Matéria de facto

1. - É o seguinte – de forma incontroversa – o quadro fáctico provado a considerar:

«1) A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica ao comércio de combustíveis, oficina de reparações, peças e acessórios, bem como se dedica ao comércio de viaturas novas e usadas.

2) A 2ª R., é uma sociedade comercial por quotas que tem como objecto social o transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias por conta de outrem.

3) A 2ª Ré, por Sentença transitada em julgado no dia 01/10/2019, foi declarada insolvente pelo Juízo de Comércio ... – Juiz ..., no âmbito do Proc. 3695/19...., tendo sido nomeado para Administrador da Insolvência, o Sr. Dr. CC.

4) No âmbito do seu objecto comercial, a Autora vendeu à 2ª R. determinados veículos, que foram titulados pelos seguintes contratos de compra e venda a prestações com reserva de propriedade:

a) Contrato de Compra e Venda a Prestações com Reserva de Prestações, celebrado a 8 de Agosto de 2018;

5) Através da celebração do Contrato de Compra e Venda a Prestações com Reserva de Propriedade, celebrado a 8 de Agosto de 2018, a A. vendeu à 2ª R. o seguinte veículo:

a) Tractor de mercadorias; Marca: ...; Matrícula Portuguesa: ..-VD-..; Modelo: R..0 A 4x2; Quadro: ...; Ano: 2011/02/11; ... Rebocável: 40.000 kgs.

b) Tractor de mercadorias; Marca: ...; Matrícula Portuguesa: ..-VD-..; Modelo: R..0 A 4x2; Quadro: ...; Ano: 2011/02/11; ... Rebocável: 40.000 kgs.

6) O veículo sobredito foi vendido pela Autora à 2ª R. pelo preço de € 64.944,00 (sessenta e quatro mil novecentos e quarenta e quatro euros).

7) Nos termos da cláusula 3.1 do referido contrato, o preço do veículo sobredito, a pagar pela 2ª R. à A. seria pago em 35 prestações.

8) As três prestações iniciais referentes ao preço do referido veículo foram tituladas pelos seguintes cheques:

a) Cheque n.º ...58,, no valor de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), com vencimento a 12/08/2018, sobre B..., balcão de ...;

b) Cheque n.º ...59,, no valor de € 4.000 (quatro mil euros), com vencimento a 12/09/2018, sobre B..., balcão de ...;

c) Cheque n.º ...60,, no valor de € 5.644 (cinco mil seiscentos e quarenta e quatro euros), com vencimento a 12/10/2018, sobre B..., balcão de ....

9) O remanescente do preço do veículo, no montante de € 52.800 (cinquenta e dois mil e oitocentos euros) seria liquidado em 32 prestações mensais e sucessivas, no montante de € 1.650 (mil seiscentos e cinquenta euros).

10) A primeira prestação, respeitante ao remanescente do preço, vencer-se-ia a 15/10/2018 e a última vencer-se-ia em Maio de 2021.

11) O 4º Réu BB, nos termos das cláusulas 11 e 12 do referido contrato celebrado assumiu, na qualidade de fiador, solidariamente com a 2ª Ré o cumprimento escrupuloso de todas as cláusulas do contrato celebrado.

12) A 2ª R. não cumpriu com a sua obrigação de pagar o preço à A. nos termos contratados.

13) A 2ª R. não procedeu ao pagamento das prestações mensais e sucessivas a que estava adstrita por força do contrato de compra e venda a prestações celebrado.

14) As prestações respeitantes aos meses de Agosto e Setembro de 2019 foram tituladas por dois cheques, designadamente:

a) Cheque n.º ...80,, no valor de € 1.650 (mil seiscentos e cinquenta euros), com vencimento a 15/08/2019;

b) Cheque n.º ...81,, no valor de € 1.650 (mil seiscentos e cinquenta euros), com vencimento a 15/09/2019.

15) Contudo, tais cheques, quando colocados a pagamentos pela A., os mesmos vieram devolvidos na compensação do Banco de Portugal por falta de provisão.

16) Além deste contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade, a A. celebrou com a 2ª R. e com o 4º R, na qualidade de fiador, mais dois contratos de compra e venda a prestações, ambos com reserva de propriedade, respeitantes a três veículos, nomeadamente:

a. Contrato de Compra e Venda a Prestações com reserva de Propriedade, celebrado a 25 de Setembro de 2018;

b. Contrato de compra e Venda a Prestações com Reserva de Propriedade, celebrado a 16 de Novembro de 2018.

17) A 2ª R. incumpriu com a sua obrigação principal – pagar o preço dos veículos, exactamente nos moldes acordados nos contratos de compra e venda a prestações sobreditos.

18) Os incumprimentos contratuais por parte da 2ª R., implicaram o vencimento de todas as prestações, pelo que o montante em dívida por esta à A. é de € 96.366 (noventa e seis mil trezentos e sessenta e seis euros).

19) A Autora, em cumprimento do estipulado na cláusula 5ª dos contratos, comunicou à 2ª R. e ao 4º R., a 30 de Setembro de 2019, a sua intenção em rescindir o contrato, em virtude da falta de pagamento das prestações a que estava adstrita, respeitante a cada contrato.

20) Visto que, todas as tentativas prosseguidas pela A. se frustraram, esta intentou contra a 2ª R. uma providência cautelar para a apreensão dos veículos, sobre os quais a ora A. detém a reserva de propriedade, conforme consta dos contratos celebrados.

21) Sucede que, o veículo ..-VD-.., objecto de transacção através do contrato de compra e venda a prestações celebrado a 8 de Agosto de 2018, encontrava-se acidentado nas oficinas da ... em ....

22) Pelo que, através do Auto da PSP com o NPP: .../2019 foi apreendido o veículo de matrícula ..-VD-...

23) O veículo em apreço, mais concretamente o veículo melhor identificado no art. 6º da presente P.I., estava segurado pelo contrato de seguro celebrado entre a A. e a 1ª R.

24) Contrato de seguro esse que titulava o referido veículo pela Apólice n.º ...01.

25) Aquando da apreensão do veículo de matrícula ..-VD-.., que se encontrava sinistrado, nas oficinas da ... em ..., a A. teve conhecimento que, a 1ª R. havia entregue à 2ª R. o valor de € 25.247,40 (vinte e cinco mil euros duzentos e quarenta e sete cêntimos e quarenta cêntimos).

26) Tal montante, entregue pela 1ª R. à 2ª, corresponde ao valor do orçamento elaborado para que a reparação do veículo pudesse ser feita pela ....

27) O capital segurado titulado pela Apólice n.º ...01 era de € 30.000 (trinta mil euros).

28) O valor orçamentado de € 25.247,40 para a reparação cabia, dentro do capital seguro pela apólice.

29) A 2ª R. não procedeu à reparação do veículo, aquando a 1ª R. lhe entregou o montante de € 25.2470,40, destinado para essa finalidade.

30) A 1ª R. sabia, assim como os demais R.R., que a A. tinha registado a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo ..-VD-...

31) Do contrato de seguro automóvel celebrado entre a 1ª e 2ª ré, titulado pela apólice ...60, consta a seguinte a caracterização do risco:

“TIPO DE VEÍCULO – VEÍCULO ARTICULADO – ALUGUER

MARCA ...

MODELO/VERSÃO SÉRIE R TRACTOR (06-) – R ..0 A 4X2

LOTAÇÃO (LUGARES)

VALOR VEÍCULO 30 000.00 EUR

MATRÍCULA ..-VD-..”.

32) Constam as seguintes as coberturas e os capitais seguros:

“(…) CHOQUE, COLISÃO E CAPOTAMENTO – 30 000.00 EUR CAPITAL SEGURO”.

33) Constam as seguintes cláusulas especiais: “DIREITOS RESSALVADOS – Neste contrato existem direitos ressalvados a favor de A..., LDA, com sede em ..., ..., ... ..., pelo que, por isso, não se procederá sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do mesmo, nem se pagará nenhuma indemnização directamente ao segurado por danos no veículo seguro.

(…)”.

34) O Tomador de Seguro participou à 1ª ré a ocorrência de um sinistro ocorrido com o veículo seguro VS.

35) Na sequência dessa participação, procedeu-se à vistoria da viatura, pela UON CONSULTING, SA, tendo-se acordado com a Tomadora do Seguro que o montante necessário para a reparação ascendia a 21.614,15 EUROS.

36) Deduzida a franquia contratual de 600,00 euros, resultou no valor de 21.014,14 euros, que a Ré seguradora entregou à 2ª ré.

37) Este valor era destinado à reparação da viatura segura.

38) E foi com o propósito da reparação da viatura segura a realizar pela 2.º ré que a 1.ª Ré entregou esse montante.

39) Do recibo de indemnização assinada pela Tomadora de Seguro consta o seguinte:

“Declara o signatário pela presente declaração aceitar receber da B..., SA (“B...) a quantia de € 21.014,15 Euros, para ressarcimento total dos danos e/ou prejuízos sofridos pelo Declarante em consequência do sinistro acima referido (…). Mais declara o Signatário que, com o efectivo recebimento da referida importância, 21.014,15 Euros, considera-se integralmente pago, indemnizado e ressarcido de todos os prejuízos e/ou danos passados, presentes ou futuros, de natureza patrimonial e/ou não patrimonial, nada mais lhe sendo devido, por isso, pela B... seja a que título for, pelo que com o efectivo recebimento da referida quantia lhe fica dada quitação total e plena, nada mais podendo reclamar da B.... (…)”.

40) No recibo referido no ponto 40) dos factos provados encontra-se aposto um carimbo com o nome comercial da 2ª ré, encontrando-se ainda aposta a assinatura da sua gente, a aqui 3ª ré.».

2. - E resulta julgado como não provado:

«a) Que na factualidade descrita no ponto 16) dos factos provados o contrato tenha sido celebrado com a 3º R.

b) A providência cautelar referida correu termos no Juízo Central Cível ... – Juiz ..., sob o Proc. 5420/19...., tendo a mesma sido decretada a 21/10/2019.

c) Que, no circunstancialismo vertido no ponto 22) da factualidade dada como provada a A. tenha ficado sua fiel depositária.

d) Que na factualidade vertida no ponto 25) da factualidade dada como provada a autora tenha tido conhecimento que a 2ª R. tenha entregue aos 3ª e 4º réus o valor de € 25.247,40.

e) Que a 1ª ré tenha procedido à entrega do valor de 21.014,14 aos 3.º e 4.º RR.

f) Que os 2.º, 3.º e 4.º RR se comprometeram realizar perante a 1.ª Ré a reparação da viatura.

g) Que tenha sido com o propósito de reparação da viatura segura a realizar pelos 3.º e 4.º RR que a 1.ª Ré entregou esse montante.

h) Aceitando o compromisso firmado pelos 2ª, 3ª e 4º R.R., no sentido de procederem à reparação após o recebimento de tal montante.

i) Aquando do pagamento, a 1ª Ré teve indicação de que o veículo estaria a ser reparado.».


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B) Impugnação de direito

1. - Da obrigação de comunicação (do acionamento do seguro por danos no veículo) e de não pagamento da indemnização diretamente ao segurado

Da factualidade provada resulta que foi celebrado um contrato de seguro referente a um veículo automóvel (trator de mercadorias, de matrícula «..-VD-..»), importando aqui a vertente de seguro facultativo de danos próprios.

Com efeito, vem dado como provado – sem impugnação recursiva – que «o veículo em apreço estava segurado pelo contrato de seguro celebrado entre a A. e a 1.ª R., contrato de seguro esse titulado pela Apólice n.º ...01» (factos 23 e 24 provados).

Todavia, a R. seguradora juntou, com a sua contestação, aquela Apólice n.º ...01, da qual resulta ser «TOMADOR DO SEGURO», não a A. («A...»), mas a 2.ª R., «C... - TRANSPORTES MERCADORIAS UNIPESSOAL, LDA».

Assim, parece ter havido lapso na enunciação fáctica da sentença – aliás, sem impugnação da decisão de facto –, ao aludir-se a um contrato de seguro entre A. (tomadora do seguro) e 1.ª R. (seguradora), quando as evidências documentais dos autos apontam no sentido de a tomadora do seguro (parte contratante) ser, efetivamente, a 2.ª R. [com indicação na apólice de «VEÍCULO ARTICULADO - ALUGUER» ([4])], e não tal A. (embora esta beneficiasse de reserva de propriedade a seu favor).

E isso mesmo é corroborado depois, ainda na factualidade provada, ao dar-se como assente (facto 31) que, o «contrato de seguro automóvel celebrado (…) titulado pela apólice ...60», o foi «entre a 1ª e 2ª ré», pelo que era esta, a 2.ª R., a tomadora do seguro, a que alude o facto provado 34.

Certo é, por outro lado, que a A. (embora sem ser parte no contrato de seguro) tinha o seu direito sobre o veículo (reserva de propriedade), o que lhe permitiu, perante o incumprimento do plano prestacional estabelecido (no âmbito da compra e venda, assim objeto de declaração resolutiva pelo lado da vendedora), obter a apreensão da viatura, que, no entanto, se encontrava sinistrada/danificada, imobilizada em oficinas da ... em ..., certamente com vista à sua reparação, a qual, é também líquido, não veio a ocorrer.

E não veio a ocorrer apesar de, como a A. teve conhecimento (mas só a posteriori), a 1.ª R. (seguradora) ter entregue à 2.ª R. (tomadora do seguro) o valor de € 21.014,15, como resulta manifesto dos factos provados 35, 36 e 39, o qual corresponde ao valor acordado com a tomadora do seguro como necessário para a reparação, após dedução da «franquia contratual de 600,00 euros» [€ 21.614,15 - € 600,00 = € 21.014,15] ([5]).

Dúvidas não restam de que o capital seguro titulado pela Apólice n.º ...01 era de € 30.000,00 (facto 27), nele cabendo, pois, o valor orçamentado de € 25.247,40 (facto 28), tal como o valor efetivamente entregue – e é este que importa, vista a economia da ação –, de € 21.014,15.

Acontece que, recebida pela 2.ª R. a prestação da seguradora (valor final de € 21.014,15), tal R. tomadora não procedeu à reparação do veículo (facto 29), com o inerente prejuízo para a A., enquanto titular da reserva de propriedade.

A 1.ª R. sabia, assim como os demais RR., que a A. tinha registado a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo (facto 30).

E embora não resulte que a A. fosse, como dito, a verdadeira tomadora do seguro facultativo de danos próprios, também não restam dúvidas (facto 31) de constar do contrato de seguro automóvel celebrado (entre a 1.ª e 2.ª RR.) cláusula especial de pendor protetivo da A..

Assim (facto 33), «Constam as seguintes cláusulas especiais: “DIREITOS RESSALVADOS – Neste contrato existem direitos ressalvados a favor de A..., LDA, com sede em ..., ..., ... ..., pelo que, por isso, não se procederá sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do mesmo, nem se pagará nenhuma indemnização directamente ao segurado por danos no veículo seguro.» (destaques aditados).

E compreende-se que assim tivesse sido estipulado no contrato de seguro, embora a A. fosse um terceiro perante o mesmo ([6]).

Na verdade, a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (art.º 874.º do CCiv.), razão pela qual um dos efeitos essenciais do contrato é a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito [art.º 897.º, al.ª a), do mesmo Cód.].

Tal, porém, não impede, no âmbito da liberdade contratual (art.º 405.º, n.º 1, do CCiv.), que as partes na compra e venda estabeleçam uma cláusula de reserva de propriedade.

Assim, dispõe o art.º 409.º, n.º 1, do CCiv. que, nos contratos de alienação, é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento (total ou parcial) das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.

Foi o que, in casu, fez a ora A./Recorrente, que vendeu o veículo à 2.ª R., mas reservando para si a propriedade da coisa até ao cumprimento (pagamento do preço, já que este estava sujeito a prazo prestacional dilatado).

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, havendo pactum reservati dominii, «o negócio é realizado sob condição suspensiva, quanto à transferência da propriedade» ([7]).

E refere Antunes Varela ([8]):

«A reserva da propriedade, prevista no artigo 409.º (cfr. art. 934.º, quanto à reserva na venda a prestações), consiste na possibilidade, conferida ao alienante de coisa determinada, de reservar para si o domínio da coisa até ao cumprimento (total ou parcial) das obrigações que recaem sobre a outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. Trata-se de uma cláusula que naturalmente há-de convir, por excelência, às vendas a prestações e às vendas com espera de preço.» ([9]).

No mesmo sentido se perfila Nuno Manuel Pinto Oliveira, considerando que estamos perante uma «condição suspensiva do efeito real – e só do efeito real – do contrato de compra e venda» ([10]).

Em suma, no caso dos autos, a A./Apelante (vendedora) reservou para si o domínio da coisa/veículo até ao cumprimento das obrigações a cargo da outra parte (2.ª R./compradora), ou seja, quanto ao pagamento do preço em prestações.

Mas não se ficou por aqui, no intuito de salvaguardar os seus interesses, logrando fazer constar do contrato de seguro facultativo de danos próprios, celebrado entre compradora e seguradora, uma cláusula contratual a seu favor, a dita cláusula especial/protetiva, deixando os seus direitos ressalvados, mediante proibição de se proceder, sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do contrato, ou ao pagamento de qualquer indemnização diretamente ao segurado por danos no veículo seguro.

Ora, é sabido que, no âmbito do pagamento pelo segurador, em caso de sinistro, da prestação convencionada a seu cargo (tal como estabelecida no contrato de seguro celebrado), não deve esquecer-se o disposto no art.º 103.º do RJCS ([11]), segundo o qual:

«O pagamento efectuado em prejuízo de direitos de terceiros de que o segurador tenha conhecimento, designadamente credores preferentes, não o libera do cumprimento da obrigação.».

Como, a este propósito, refere José Alves de Brito ([12]), o «pagamento efectuado em prejuízo de direitos de terceiros, de que o segurador tenha conhecimento, não o exonera perante terceiros, obrigando-o a nova prestação. A lei alude aos credores preferentes (…) mas vai-se mais longe, abrangendo também outras situações como a reserva de propriedade (…).». E, quanto ao modo de levar o conhecimento ao segurador, enfatiza que as «hipóteses mais comuns redundarão (…) em ressalva expressa no texto da apólice (nomeadamente, cláusulas de interesse de credor hipotecário).» (destaque aditado).

No caso, é inequívoco – reitera-se – que do texto da apólice consta cláusula especial que ressalva, expressamente, o interesse do vendedor com reserva de propriedade (a A.).

Por isso, dúvidas não restam de que o segurador (1.ª R./Apelada) estava obrigado a cumprir essa cláusula especial de proteção de terceiro (a A./Recorrente).

Isto é, a seguradora (1.ª R.) não podia indemnizar a tomadora do seguro e segurada (a 2.ª R.) sem conhecimento da A./vendedora: proibição, sem o conhecimento desta, de pagamento de qualquer indemnização diretamente ao segurado por danos no veículo seguro ([13]).

Esgrime a R./Apelada que esta cláusula especial só colheria aplicação em caso de perda total do veículo, o que não era o caso.

Todavia, não lhe assiste razão.

Salvo o devido respeito, a cláusula em causa não consente tal interpretação restritiva.

Com efeito, constando da mesma – de forma textualmente expressa – que, neste contrato, existem direitos ressalvados a favor da ora A., pelo que, por isso, não se procederá sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do mesmo, nem se pagará nenhuma indemnização diretamente ao segurado por danos no veículo seguro, só pode concluir-se por estarmos perante um enunciado claro e perentório, impedindo o pagamento de qualquer prestação (não se pagará nenhuma indemnização) diretamente ao segurado – por danos no veículo seguro – sem o conhecimento do terceiro, aquela A..

Assim, não pode proceder a interpretação no sentido de que, onde se refere «não se pagará nenhuma indemnização», as partes quiseram estabelecer, apenas, não se pagará indemnização por (no caso de) perda total do veículo.

A tal se opõe – fortemente –, desde logo, a letra da cláusula em questão.

Mas também a razão de ser da dita cláusula especial, de feição protetiva da A., num contexto de venda com reserva de propriedade, em que estava em causa a garantia do interesse desta quanto ao cumprimento do contrato, na vertente do pagamento do preço em prestações, âmbito em que a proteção tanto era importante no caso de danos que implicassem a perda total do veículo ou apenas a afetação/destruição parcial, como in casu, em que o custo da reparação dos danos na viatura ascende a valor (consideravelmente elevado) superior a € 20.000,00.

Acresce que, em caso de dúvidas – que aqui, manifestamente, não existem –, deveria prevalecer o “princípio in dubio contra stipulatorem”:  sabido que os contratos de seguro são redigidos com recurso a clausulado contratual geral, predisposto pelo segurador, as dúvidas emergentes de tal clausulado, por via de texto dúbio ou incompleto, imputáveis a quem o redigiu e o impôs à contraparte, devem merecer interpretação contra o predisponente e não contra o aderente ou o terceiro cujos direitos são objeto de proteção ([14]).

2. - Do incumprimento da R./seguradora e decorrente dever de pagamento à A.

Já se viu que a 1.ª R./seguradora sabia (tal como os demais RR.) que a A. tinha registado a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo (facto 30).

E também é fora de dúvidas que tal seguradora conhecia a aludida cláusula especial protetiva da A., posto ter sido inserida no contrato de seguro pela própria seguradora/predisponente.

E é ainda líquido que a mesma seguradora não deu conhecimento à A., contrariamente ao que lhe era imposto pela dita cláusula especial: como ela própria reconheceu no articulado de contestação, não comunicou à A., no pressuposto – erróneo – de que só o teria de fazer no caso de perda total.

Assim, ao indemnizar diretamente a 2.ª R. sem dar qualquer conhecimento à A., é manifesto que a seguradora deixou inobservada a dita cláusula especial protetiva, com o inerente prejuízo para a A., que, embora obtendo a apreensão do veículo – uma vez declarada a resolução do contrato de compra e venda –, tal apreensão incidiu sobre viatura danificada (ocorreu sem reparação dos respetivos danos, posto a tomadora/segurada, tendo recebido a indemnização, não ter procedido à reparação a que aquela se destinava) ([15]).

Ora, aqui chegados, concorda-se com Pedro Romano Martinez e outros quando deixam expresso, com fundamento no aludido art.º 103.º do RJCS, que o pagamento efetuado em prejuízo de direitos de terceiro, de que o segurador tenha conhecimento, não o exonera perante tal terceiro, obrigando-o a nova prestação, o que vale para situações de reserva de propriedade.

Em suma, a 1.ª R./seguradora não pode ter-se, neste horizonte, como exonerada perante a A./Apelante, estando obrigada a nova prestação (agora a favor desta, apesar do anteriormente prestado à tomadora/segurada, mas em prejuízo, então, dos direitos contratualmente previstos da demandante).

Todavia, o montante da nova prestação restringe-se aos aludidos € 21.014,15, efetivamente prestados, e não aos € 25.247,40 peticionados.

Termos em que em parte haverá de proceder a apelação, devendo a 1.ª R. ser condenada no pagamento à A./Recorrente daquela quantia – na modalidade de solidariedade peticionada e sem prejuízo da parte não impugnada do dispositivo da sentença, que nesse particular transitou em julgado.

(…)

***
V – Decisão
Pelo exposto, julga-se em parte procedente a apelação e, em consequência:
a) Revoga-se o segmento absolutório da sentença recorrida referente à 1.ª R./Apelada (seguradora), a qual vai condenada, na parcial procedência da ação quanto a ela, a pagar à A./Apelante, no regime de solidariedade peticionado, a quantia de € 21.014,15 (vinte e um mil e catorze euros e quinze cêntimos);
b) Mantendo-se no mais objeto de impugnação a decisão apelada.

As custas do recurso – e da ação quanto a A. e 1.ª R. (sem prejuízo da responsabilidade tributária do 4.º R., parte em que a sentença transitou em julgado) – serão suportadas por A./Apelante e 1.ª R./Apelada na proporção do respetivo decaimento, dependente de simples cálculo aritmético (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.)..

II - Discordando do assim decidido, vem a 1.ª R./Apelada reclamar para a Conferência, ao abrigo do disposto no art.º 652.º, n.º 3, do NCPCiv., para que sobre a matéria da decisão singular proferida recaia acórdão deste Tribunal da Relação, concluindo, nesta ótica, pela recursiva prolação de distinto veredicto, por “entender que a decisão proferida pela 1.ª Instância procedeu a uma correta e ponderada aplicação do direito aos factos provados e é, s.m.o., imerecedora de qualquer censura”.

A contraparte veio, em resposta, tomar posição no sentido do naufrágio da reclamação.

III - Apreciando

Não tem razão – salvo sempre o devido respeito – a parte Reclamante/ Recorrida.

A qual vem oferecer as seguintes linhas de argumentação:

a) Seguindo o Ac. TRP de 26-09-2022, Proc. 366/17.3T8STST.P1, em www.dgsi.pt, na senda da esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência publicada, à luz do disposto nos art.ºs 796.º do CCiv. e 43.º, n.ºs 1 e 2, da Lei do Contrato de Seguro, no caso de venda com reserva da propriedade e entrega da coisa alienada ao comprador, o risco corre por conta do comprador, pelo que «a segurada é titular do direito a ser indemnizada pela seguradora de danos próprios, mesmo quando se verifique uma situação de perda total»;

b) Tendo sido «celebrado um contrato de seguro por danos próprios pela compradora, sem que tenha havido qualquer ressalva de direitos de terceiros e, especialmente, sem que resulte que tal seguro foi celebrado por conta de outrem, titular do direito de indemnização é a compradora do veículo, ainda que com reserva de propriedade, já que o veículo lhe foi entregue» (destaques aditados);

c) Doutro modo, «fazendo antes a entrega à autora, (…) tal entrega não teria causa jurídica que a suporte já que a entidade financiadora não era beneficiária do contrato de seguro de danos próprios celebrado pela recorrida, ficando em tal eventualidade antes a ré seguradora obrigada a restituir à sua segurada, aqui 2.ª ré, o montante que viesse a entregar à autora, assim esta lho exigisse»;

d)«a aqui contestante não comunicou à autora, porquanto só o teria de fazer no caso de perda total».

Vejamos, então.

1. - A parte ora Reclamante começa por suscitar questão que se prende com invocada doutrina e jurisprudência que teria recorte e sentido dissonantes em relação ao entendimento adotado na decisão singular objeto de reclamação.

Para tanto, esgrime a Recorrida/Reclamante com o Ac. TRP de 26-09-2022, Proc. 366/17.3T8STST.P1 (Rel. Carlos Gil), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:

«I - O seguro celebrado para cobertura de danos próprios pela adquirente e beneficiária da entrega do veículo segurado que cobre o risco de perda do veículo adquirido com reserva de propriedade a favor da entidade financiadora da compra, na falta de indicação de beneficiário diverso da tomadora do seguro é um seguro por conta própria.

II - Quer pela letra da lei (artigo 409º, nº 1, do Código Civil), quer pela violação das regras da tipicidade na constituição de direitos reais, quer ainda pela possibilidade de constituição de garantia real que tutela a posição creditória da financiadora, é nula a reserva de propriedade estabelecida em favor do financiador da compra do veículo sobre o qual incide a reserva e que nunca foi dono desse veículo.

III - À luz do disposto no artigo 796º do Código Civil, no caso de venda com reserva da propriedade e entrega da coisa alienada ao comprador, o risco corre por conta do comprador.

IV - A compradora de veículo com reserva de propriedade a quem o mesmo foi entregue e que celebrou um contrato de seguro para cobertura do risco de perecimento do mesmo veículo tem um interesse digno de proteção legal relativamente a esse risco (artigo 43º, nº 1, da Lei do Contrato de Seguro), pois que, no seguro de danos, como sucede nesse caso, o interesse respeita à conservação ou à integridade da coisa segurada (artigo 43º, nº 2, da Lei do Contrato de Seguro), sendo por isso titular do direito a ser indemnizada pela seguradora de danos próprios, na hipótese de verificação daquele sinistro.».

Todavia, a contraparte, discordando, refere que aquele aresto não tem qualquer aplicação ao caso aqui em apreço, por no contrato de seguro sub judice haver «cláusulas especiais: “DIREITOS RESSALVADOS”», isto é, «existem direitos ressalvados a favor» da aqui A., pelo que «não se procederá sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do mesmo, nem se pagará nenhuma indemnização directamente ao segurado por danos no veículo seguro». Direitos ressalvados esses a que a R./Reclamante não deu observância.

Ora, lido o dito aresto do TRP, logo se verifica que, efetivamente, no caso concreto ali apreciado não existia qualquer cláusula de direitos ressalvados a favor de terceiro (designadamente, um financiador com reserva de propriedade).

Concordar-se-á, em geral, como dito na fundamentação daquele aresto, que, «correndo o risco da perda da coisa por conta da compradora, ainda que com reserva da propriedade e tendo sido celebrado um contrato de seguro por danos próprios pela compradora, sem que tenha havido qualquer ressalva de direitos de terceiros e, especialmente, sem que resulte que tal seguro foi celebrado por conta de outrem, titular do direito de indemnização é a compradora do veículo, ainda que com reserva de propriedade, já que o veículo lhe foi entregue».

Porém, no caso que nos ocupa existia, no contrato de seguro, expressa e efetiva cláusula especial de pendor protetivo da A. – cláusula de direitos ressalvados a favor de terceiro –, a qual (A.), por outro lado, ao contrário do caso sobre que recaiu o citado aresto do TRP, não é uma mera financiadora (que nunca houvesse sido proprietária da coisa/bem), mas a própria vendedora do bem/veículo, a que se refere a reserva de propriedade.

Portanto, in casu, a reserva de propriedade funciona a favor da proprietária/vendedora (não de uma simples financiadora, que nunca houvesse sido a proprietária), a aqui A., a qual, ademais, beneficia, no âmbito do seguro, da dita cláusula especial de pendor protetivo, uma cláusula de direitos ressalvados a favor de terceiro, aquela mesma demandante.

Termos em que tem razão a A./Recorrente quando esgrime que o caso dos autos não tem paralelismo relevante com o caso a que se reporta o dito aresto do TRP.

2. - Também não assiste razão à parte Reclamante/ Recorrida quando afirma que inexiste, no caso, qualquer ressalva de direitos de terceiros.

Como enfatizado na decisão singular objeto de reclamação, a A./Apelante (vendedora) reservou para si o domínio da coisa/veículo até ao cumprimento das obrigações a cargo da outra parte (2.ª R./compradora), ou seja, quanto ao pagamento do preço em prestações.

Mas não se ficou por aqui, no intuito de salvaguardar os seus interesses, logrando fazer constar do contrato de seguro facultativo de danos próprios, celebrado entre compradora e seguradora, uma cláusula contratual a seu favor, a dita cláusula especial/protetiva, deixando os seus direitos ressalvados, mediante proibição de se proceder, sem o seu conhecimento, a qualquer redução ou anulação do contrato, ou ao pagamento de qualquer indemnização diretamente ao segurado por danos no veículo seguro.

Ora, não podia ignorar o segurador, em caso de sinistro, o disposto no art.º 103.º do RJCS, estabelecendo que «O pagamento efectuado em prejuízo de direitos de terceiros de que o segurador tenha conhecimento, designadamente credores preferentes, não o libera do cumprimento da obrigação».

Assim, reitera-se que o pagamento efetuado em prejuízo de direitos de terceiros, de que o segurador tenha conhecimento, não o exonera perante terceiros, obrigando-o a nova prestação.

No caso, é patente que do texto da apólice consta cláusula especial que ressalva, expressamente, o interesse do vendedor com reserva de propriedade (a A.), dúvidas não podendo restar de estar o segurador (1.ª R./Apelada) obrigado ao cumprimento desse clausulado especial de proteção de terceiro (a A./Recorrente).

Assim sendo, não podia o segurador (1.ª R.) indemnizar a tomadora do seguro e segurada (a 2.ª R.) sem conhecimento da A./vendedora – proibição, sem o conhecimento desta, de pagamento de qualquer indemnização diretamente ao segurado por (quaisquer) danos no veículo seguro.

3. – O interesse protegido em causa era o da utilização da indemnização para reparação efetiva do veículo, o que, no caso, não veio a ocorrer, em prejuízo do terceiro (a ora A.) que se visava assim proteger.

Donde que também deva improceder o argumento reportado a uma alegada falta de causa (justificativa) que suportasse a prestação em benefício da titular da reserva de propriedade e, a um tempo, beneficiária da cláusula protetiva, funcionalmente inserida no contrato de seguro.

4. – Não releva nem procede, por fim, a invocação da R./Reclamante no sentido de não ter comunicado à A. por somente o ter de fazer no caso de perda total.

Como já referido na decisão sob reclamação – e aqui se reafirma –, o contrato de seguro não fazia a distinção entre perda total e outro tipo de danos, não consentindo a cláusula em causa a pretendida interpretação restritiva.

Referindo o clausulado que existem direitos ressalvados a favor da ora A., nos moldes expostos, não se pagando, por isso, sem o seu conhecimento, nenhuma indemnização diretamente ao segurado por danos no veículo seguro, só pode concluir-se, perante um enunciado tão claro e perentório, pela proibição de pagamento da prestação indemnizatória diretamente ao segurado nos termos em que tal veio comprovadamente a ocorrer, tudo sem prejuízo da demais argumentação vertida a respeito na decisão sumária sob reclamação, para cuja fundamentação se remete.

Em suma, e salvo sempre o respeito devido, a reclamação tem de improceder.

(…)

V - Decisão

Termos em que se decide, em Conferência, indeferir a reclamação, mantendo, no seu preciso teor, a decisão sumária em apreço, com procedência em parte da apelação e decorrente alteração da decisão recorrida nos moldes (revogatórios e condenatórios) ali expressos, aqui dados por integralmente reproduzidos.

Custas pela Reclamante/Apelante.

Coimbra, 26/09/2023

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

João Moreira do Carmo (1.º Adjunto)

Rui Moura (2.º Adjunto)


([1]) Só por lapso manifesto concluiu que «a ação, no que respeita à Ré contestante, deve ser julgada procedente por provada, com as legais consequências.».
([2]) Cujo teor, no relevante, se deixa transcrito (destaques retirados).
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Embora se tratasse, na realidade, de contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade (não de locação).
([5]) O que logo afasta o montante peticionado de € 25.247,40, correspondente ao orçamentado para reparação na «...», que, na tese da A., teria sido prestado pela seguradora, mas que não corresponde ao efetivamente prestado, que se situou nos referidos € 21.014,15.
([6]) Não pode acompanhar-se, pois, a fundamentação jurídica da sentença em crise quando, enfatizando que, celebrado um contrato de seguro por danos próprios pela compradora (com o que, obviamente, se concorda), acaba por chegar à conclusão de que tal ocorreu «sem que tenha havido qualquer ressalva de direitos de terceiros».
([7]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 376.
([8]) Na sua obra Das Obrigações em Geral, vol. I, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1991, p. 308, comungando da tese que defende que estamos perante uma condição suspensiva (não uma condição resolutiva).
([9]) Acrescenta o Autor que «só mediante esta cláusula ou a reserva da resolução do contrato o vendedor poderá recuperar o domínio da coisa vendida, depois de efectuada a entrega dela, com fundamento na falta de pagamento do preço, dada a disposição excepcional do artigo 886.º».
([10]) Cfr. Contrato de Compra e Venda, Almedina, Coimbra, 2007, p. 51. O Autor enfatiza ainda que a «função típica da cláusula de reserva de propriedade consiste na garantia do direito (de crédito) do alienante (vendedor) no pagamento do preço» (p. 53).
([11]) Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04, e aqui aplicável.
([12]) Em anotação na obra Lei do Contrato de Seguro Anotada, da autoria de Pedro Romano Martinez e outros, Almedina, Coimbra, 2009, p. 323.
([13]) Com alguma similitude, veja-se o Ac. TRC de 14/10/2014, Proc. 397/11.7TBPMS.C1 (Rel. Maria Inês Moura), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «1. O artº 103 da Lei do Contrato de Seguro vai no sentido de proteger os direitos de terceiros, nomeadamente de credores preferentes, visando não só as situações em que o segurador aceitou ressalvar direitos de terceiro nas condições particulares da apólice, mas também os casos em que venha ao conhecimento do segurador a existência de credores preferentes. // 2. É lícita a conduta do segurador quando solicita a aceitação ou autorização do titular da reserva de propriedade sobre o veículo, para proceder ao pagamento da indemnização devida pela perda total do mesmo, já que, de outra forma, não se exonera da sua obrigação, nos termos da norma referida, se tem conhecimento da existência de tal credor. // 3. Ainda que seja nula a cláusula da reserva de propriedade atribuída no âmbito de um contrato de mútuo, não pode exigir-se o conhecimento de tal invalidade a terceiro que faz fé no registo da reserva de propriedade do veículo, e actua por isso sem culpa ao fazer depender o pagamento da indemnização devida da aceitação do titular da reserva de propriedade.».
([14]) Com efeito, deve o contrato de seguro ser interpretado, na dúvida, contra a parte que o redigiu e enunciou as respetivas cláusulas, mormente cláusulas contratuais gerais, valendo, neste âmbito, o aludido princípio in dubio contra stipulatorum, como salientado nos Acs. TRC de 08/09/2009, Proc. 165/06.8TBGVA.C1 (Rel. Teles Pereira), e de 23/01/2018, Proc. 4285/15.0T8CBR.C1 (Rel. Vítor Amaral), ambos em www.dgsi.pt, podendo ler-se no sumário deste último que, redigindo o segurador/predisponente (um profissional, parte apetrechada na contratação de seguros) o contrato de seguro, designadamente quanto ao seu âmbito de cobertura/garantia, com recurso a cláusulas contratuais gerais, deve o enunciado predisposto do contrato ser interpretado, na dúvida, contra a parte que o redigiu e fixou as respetivas cláusulas. Também no Ac. STJ de 08/09/2016, Proc. 1311/11.5TJVNF.G1.S1 (Cons. Orlando Afonso), em www.dgsi.pt, foi entendido que, perante cláusulas contratuais gerais com mais do que um sentido possível, «prevalecerá o sentido que lhes atribuiria um contraente indeterminado normal (segundo o brocardo “ambiguitas contra stipolutarum”) e, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente (n.ºs 1 e 2 do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25-10), o que constitui um afloramento do princípio da protecção do contraente mais débil, desta feita assente na concepção de que o risco assumido pelo predisponente dessas cláusulas deve reverter contra este se nelas fizer uso de disposições desprovidas de clareza e de inteligibilidade».
([15]) Ou seja, a compradora e tomadora/segurada, não cumprindo o contrato de alienação – incumpriu a obrigação de pagamento do preço –, acabou por receber/fazer sua a indemnização, que se destinava, à luz da relação contratual de seguro, à reparação dos danos do veículo, ficando a A., por seu lado, com o prejuízo de, não recebendo o preço da venda, reaver, resolvido o respetivo negócio, o veículo com elevados danos. Já a 2.ª R., que utilizou a viatura (beneficiando do respetivo uso), não pagando o respetivo preço e apresentando-a danificada, obteve vantagem ao usufruir do valor prestado pela seguradora e ao não o aplicar na reparação a que se destinava (se teve de abrir mão do veículo, que lhe foi apreendido, por falta de pagamento, mas já danificado, auferiu/beneficiou de um valor superior a € 20.000,00, que “desviou” do fim a que era destinado). Tudo isto, porém, sem esquecer que cabia à tomadora pagar o prémio de seguro (despesa a seu cargo) e que o respetivo contrato tem natureza aleatória. O ponto, todavia, é que a conduta adotada pelas partes no contrato de seguro (aqui interessa a postura da seguradora) deixou frustrado o legítimo interesse da A., precisamente aquele interesse que a cláusula especial/protetiva visava acautelar.