Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
95/09.1T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: CHEQUE
REVOGAÇÃO
RESPONSABILIDADE
BANCO
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV ÍLHAVO JMPIC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 483º Nº 1 DO CC E LHCH
Sumário: Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29° da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador responde por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

A..., L.da, com sede na (...) - Aveiro, instaurou acção declarativa sumária contra B... Bank, PLC, com sede na Rua (...) em Lisboa, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 10.251,81, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde 31/5/2006 até efectivo e integral pagamento.

Alegou, para tanto, em resumo, que apresentou a pagamento no banco ora réu, um cheque de que era portadora, daquele valor de € 10.251,81, dentro do prazo de oito dias após a sua emissão, cheque esse que lhe havia sido entregue por C..., L.da para pagamento de produtos alimentares que esta lhe havia adquirido, e que o réu não procedeu ao seu pagamento, com fundamento em revogação do cheque pela referida sacadora, facto que lhe causou danos.

O réu deduziu oposição alegando que o cheque em causa era pré-datado, tendo a ordem de revogação ocorrido antes da data da emissão constante do dito cheque, concluindo pela improcedência da acção.

E, no mesmo articulado, requereu a intervenção acessória daquela sociedade C (...) , Lda., intervenção que foi admitida.

A autora respondeu, nos termos constantes de fls 40 e segs dos autos.

A chamada foi citada editalmente e encontra-se representada em juízo pelo Ministério Público.

Foi elaborado despacho saneador, com dispensa da fixação da base instrutória.

Instruídos os autos, foi designado dia para a audiência de discussão e julgamento.

Realizado este e respondida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu «o réu B (...) Bank PLC e a chamada C (...) , L.da do pedido».

 Inconformada, a autora interpôs a presente apelação cuja alegação conclui sustentando, em resumo, a revogação da sentença recorrida, por erro de julgamento, e a sua substituição por outra que julgue a acção procedente.

 Contra-alegou apenas o Ministério Público em representação da ausente C (...) , L.da, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Cumpre agora apreciar e decidir.

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Os Factos

O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

1) A autora é portadora do cheque n.°6718847234, no montante de 10.251,81€, com a data de 28/5/2006, sacado sobre a conta n.°00202253347 do banco réu, aberta na agência de Paranhos, pela sociedade " C (...) , Lda.";

2) O qual foi emitido pela sacadora, titular da conta, que lhe procedeu à sua entrega;

3) O referido cheque destinava-se a pagar os produtos alimentares vendidos pela autora à sociedade " C (...) , Lda." discriminados na factura n.°20061808, que esta recebeu, sem apresentar qualquer reclamação;

4) Em 30 de Maio de 2006, o cheque foi apresentado pela autora a pagamento na compensação, mediante depósito na conta de que é titular na agência de Ílhavo do "Banco D..., S.A.".

5) Em 31 de Maio de 2006, o cheque foi devolvido na compensação do "Banco de Portugal", por mandato do banco sacado, com o fundamento-motivo "falta vício formação de vontade".

6) A autora não recebeu o montante titulado pelo cheque.

7) Por fax datado de 26/5/2006, a sociedade " C (...) , Lda." solicitou à ré que procedesse à revogação do cheque, alegando que o portador faltou ao acordo com ela celebrado.

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                   O Direito

                   Como é sabido são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso [art.ºs 684º n.º 3 e 685º-A n.º 1 e 3 e 685-C nº 2 al. b) todos do C. P. Civil], não podendo o Tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Assim, a única questão a apreciar consiste em determinar se há erro de julgamento, por os factos provados, ao invés do decidido, imporem a procedência da acção.

 A sentença sob recurso, considerando embora que «não obstante a menção de "falta vício formação de vontade" aposta no cheque devolvido na compensação do "Banco de Portugal", atendendo à real razão da recusa do pagamento - a ordem dada à ré para não proceder ao pagamento com fundamento no facto de o portador ter faltado ao acordo com ela celebrado (facto vertido em 7.) -, é de tratar esta recusa como uma situação de revogação» e que, por essa razão, tinha «plena aplicação o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência», de 28 de Fevereiro de 2008, nº 04 /2008, julgou, no entanto, improcedente a acção por entender que «a autora não logrou alegar provar factos bastantes e que por isso, em concreto, não se verifica o pressuposto essencial da responsabilidade civil, isto é, a verificação de um dano». E isto, também ainda, porque  «Mesmo que o portador não tenha obtido o pagamento pela apresentação do cheque, continua a ser titular de um direito de crédito, emergente da relação subjacente, para além do direito cambiário que mantém, enquanto portador do cheque não pago, tal como previsto pelo art. 40.° da LUCH, o qual constitui um activo patrimonial da autora, pois mesmo contabilisticamente é tomado como um activo. Assim, a mera privação da quantia titulada pelo cheque não é um dano, ou melhor, pode sê-lo, mas é necessário prová-lo».

O mencionado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 04/2008, publicado no Diário da República 1ª série, de 04 de Abril de 2008, veio, efectivamente, uniformizar a divergente jurisprudência sobre matéria, nos seguintes termos:

«Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29° da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artigo 32° do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque nos termos previstos nos artigos 14°, 2ªparte, do Decreto n.° 13 004 e 483°, n.° 1, do Código Civil».

Ora, sendo embora inquestionável que declarada primeiramente a inconstitucionalidade, pelo Ac. do T. Const. nº 743/96 de 28/5, in D.R. I-A de 18/7/96, e abolida depois, pelo art.º 4º do Dec. Lei nº 329-A/95, de 12-12-95, a figura dos Assentos, os Tribunais hoje, nas suas decisões, apenas estão sujeitos à lei (art.º 203º da Const. R. Portuguesa).

Não se pode, porém, esquecer que, apesar de não terem (diferentemente dos abolidos Assentos) força obrigatória geral, os actuais acórdãos uniformizadores de jurisprudência, são tirados com o voto de, pelo menos, ¾ dos Juízes Conselheiros em exercício nas secções cíveis, traduzindo, por isso, o entendimento dominante do nosso mais alto Tribunal, são obrigatoriamente publicados na I série do D.R. e, das decisões contrárias aos mesmos, é sempre admissível recurso [art.ºs 770º nº 1, 732º-B nºs 4 e 5 do C.P. Civil e 677º nº 2 al. c) todos do C. P. Civil].

  Estes requisitos, que não deixarão certamente de ter a ver com a segurança e certeza do direito, aconselham, por isso, ao acatamento dos ditos arestos por todos os tribunais, salvo perante novas e ponderosas razões neles não ajuizadas.

Ora, como igualmente naquele acórdão uniformizador se afirma:

«…um Banco que recusa o pagamento de um cheque revogado determina que, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, o tomador se veja privado do respectivo montante. Da revogação resulta normalmente o afastamento do pagamento voluntário por parte do sacador e é utópico presumir-se que este disponha de outros bens acessíveis que garantam solvabilidade (se a ordem de revogação visa evitar o pagamento de um cheque validamente emitido e detido pelo tomador, naturalmente que o sacador procurará evitar outras vias de cobrança, designadamente a executiva).

Temos, então, que o Banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos.

Podia dizer-se, em contrário do supra-exposto que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento.

Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento, uma vez que do contrato de cheque resulta apenas para o Banco a obrigação de pagar cheques regularmente emitidos e desde que a conta se encontre provisionada».

 No caso sub judice está provado que o aludido cheque destinava-se a pagar os produtos alimentares vendidos pela autora à sociedade C (...) , L.da discriminados na factura n.°20061808, que esta recebeu, sem apresentar qualquer reclamação; e que a ora autora não recebeu o montante titulado pelo cheque, em virtude do seu pagamento ter sido recusado pelo banco ora recorrido, com fundamento em "falta vício formação de vontade" daquela sacadora C (...) , L.da, ou seja, como nesta parte bem decidiu o tribunal recorrido, com fundamento em ordem de revogação.

Parece-nos assim, em face de tal factualidade e ao invés do entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, que não será ousado concluir-se que a autora apelante se viu privada, por virtude do não pagamento do cheque, do preço das mercadorias fornecidas, isto é, que teve um prejuízo de montante igual, pelo menos, ao valor do cheque emitido para pagamento das mesmas. E que - usando a expressão do citado aresto - será utópico presumir-se que a referida sacadora " C (...) , L.da dispõe de outros bens acessíveis que garantam solvabilidade da dívida, tanto mais que, como dos elementos recolhidos nos autos para a sua citação resulta, ela já nem sequer funciona, por ter falecido, em 21-11-2008, o seu único sócio Hélio Manuel Oliveira dos Reis e Sousa, razão por que a acção prosseguiu à sua revelia e se mostra representada pelo Ministério Público.

    Entendemos, deste modo, que sendo de acatar a orientação fixada no citado acórdão uniformizador de jurisprudência, não poderá manter-se a decisão recorrida quando conclui pela falta da verificação do apontado pressuposto da responsabilidade civil extracontratual e, consequentemente, pela improcedência da acção.

Decisão

Nos termos expostos, acordam em:

1- julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida;

2- julgar procedente a acção, condenando o réu B (...) Bank, PLC a pagar à autora a quantia pedida de € 10.251,81, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 31 de Maio de 2006 até efectivo e  integral pagamento.

Custa, em ambas as instâncias, pelo banco réu.


Nunes Ribeiro (Relator)
Hélder Almeida
Francisco Caetano