Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
903/09.7PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 2º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 287º CPP
Sumário: Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente que seja totalmente omisso quanto a elementos subjetivos dos crimes imputados e que não contém uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados pelos arguidos que possam integrar os seus elementos objetivos
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra




Por despacho proferido nos autos supra identificados, decidiu o tribunal rejeitar, por inadmissibilidade, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente A....

Inconformado com o decidido, o assistente interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“10.1 O douto despacho ora recorrido não é, com o devido respeito, um bom exemplo de boa justiça.
10.2 Consta dos autos a identificação completa dos arguidos
10.3 É contra estes que correu inquérito e, como tal foram constituídos arguidos.
10.4 Consta do pedido de abertura de instrução que se acusem os arguidos pela prática dos crimes de usurpação de coisa imóvel, de dano e de introdução do escritório do queixoso, previstos, respectivamente nos artigos 215º, 212º e 191º do Código Penal.
10.5 Os factos descritos e a sua narração constantes dos "item" 7.1,.2,7.3,7.4,7.5,7.6,7.7,7.8,8,8.1,8.2,8.3,8.4,,9, 9.1, 10, 10.1, 10.3, 10.4, 11, 11.1, 11.3, 11.4, 12, 12.2, 13, 13.1, 13.1.1, 13.2, 13.3, 13.4, 14, 15, 15.1, 15.2, 15.3, 15.4, estão em perfeito respeito, e concordância com o disposto no n° 2 do artigo 287º do C.P.P.
10.6 Os quais contêm factos e razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação.
10.7 É nesta lógica silogística que se conclui, perante tais factos haverem os arguidos cometidos os crimes referidos.
10.8 O requerente alegou, para além de outros, os factos constantes dos números 7.1, 7.2, 7.3, 7.4, 7.5, 7.6, 7.7 e 7.8 do requerimento com remissão para o inquérito.
10.9 Tendo sido referidas as páginas e depoimentos constantes desse inquérito.
11. E concretizadas nos números 8.1, 8.2, 8.3, 8.4, 9, 9.1, 10, 10.1, 10.2,10.3,10.4,11,11.1,11.2,11.3,11.4,13,13.1,13.1.1, 13.2, 15.4, 17 e 17.1 do requerimento de abertura de instrução.
11.1 O requerimento a pedir a abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal.
11.2 No próprio despacho ora recorrido se admite ter-se procedido a uma inconsistente descrição da conduta ilícita imputada à arguida.
11.4 O douto despacho recorrido apenas se preocupou embora, indevidamente, pela verdade formal.
11.5 Não foram tidos em conta os documento juntos com o requerimento nem, tão-pouco, os depoimentos das testemunhas já ouvidas e as que foram arroladas.
11.6 A douta decisão recorrida violou o disposto no n° 2 do artigo 410º do C.P.P e os artigos 283º e 287º do C.P.P.
Termos em que deve o presente recurso proceder e, consequentemente, ser o douto despacho recorrido substituído por outro que ordene o prosseguimento da instrução, assim se fazendo justiça.”

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.


O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.


Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.


No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o recorrente nada disse.


Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.


Cumpre conhecer do recurso


Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.


É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).


Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[ “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, in www.dgsi.pt)].

Questão a decidir: - Admissibilidade do requerimento para abertura da instrução

O requerimento para abertura de instrução tem o seguinte teor:

“7. (…) além do mais, constam dos autos os seguintes factos:
7.1 Que o arguido B... tinha conhecimento de que o queixoso era arrendatário do escritório destinado a profissão liberal, instalado no primeiro andar esquerdo, frente, composto de duas salas, sito no prédio de que o arguido é proprietário. - Cfr. auto de inquirição de folhas 67 dos autos.
7.2 Que o mesmo arguido e mulher recebiam, normalmente, a correspondente renda. - Cfr. documentos de folhas 101, 102 e 103 dos autos.
7.3 Que foi o próprio arguido que, por ser conhecedor deste arrendamento, comunicou ao queixoso, por carta datada de 16 de Outubro de 2006, o montante que este deveria pagar e a conta em que a mesma deveria ser depositada, e da qual aquele era titular. - Cfr. documento de folhas 97 dos autos.
7.4 Que sabiam ambos os arguidos que o queixoso lhes entregou uma das salas, a terceira a contar da entrada, por dela não necessitar, a qual se encontrava aberta. - Cfr. carta remetida pelo queixoso ao arguido B..., que ora se junta como documento na 1 e que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos legais.
7.5 Que, pelo teor desta carta, confirma-se saberem os arguidos da posição do queixoso relativamente ao escritório em causa, insistindo o arguido marido, por carta datada de 14 de Novembro de 2006, na menção da renda a pagar pelo queixoso e a conta em que a mesma deveria ser depositada. - Cfr. documento que se junta sob o na 2 e que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos legais.
7.6 Que os arguidos não só sabiam da qualidade do queixoso quanto ao locado como onde o poderiam encontrar, como o encontraram com as cartas que aqueles lhes remeteram.
7.7 Que, como resulta do depoimento do queixoso e das testemunhas, existia e laborava naquele local, a … , e o Gabinete de … do queixoso. - Cfr. documentos de folhas 27 a 32 dos autos.
7.8 Do depoimento da testemunha … , de folhas 31 dos autos, resulta provado que este "deslocava-se àquele local cerca de três dias por semana, para tratar de toda a documentação inerente à actividade desenvolvida ... e era usual, trata também de assuntos relacionados com a actividade que o A...que exercia na área da economia ... e que existia no local, o espólio de Advogado do A…, entre outros".
8. Não deixa de ser relevante o facto de as testemunhas arroladas pelos arguidos nunca se referirem ao escritório do queixoso, mas a um "apartamento".
8.1 Assim o afirma a testemunha … , conforme auto de inquirição de folhas 153 dos autos.
8.2 Assim o afirma a testemunha … , conforme auto de inquirição de folhas 161 dos autos.
8.3 Assim o afirma a testemunha … , conforme auto de inquirição de folhas 162 dos autos.
8.4 Assim o afirma a testemunha … , conforme auto de inquirição de folhas 163 dos autos.
9. É que o que está em causa não é o apartamento ou apartamentos do 1º andar do prédio em questão, mas tão-somente um pequeno escritório que não tem área superior a 12 m2.
9.1 Apartamento em que estava fechado e onde se encontravam não só os objectos, máquinas, livros e documentos que os arguidos dizem ter retirado como aqueles que desapareceram e melhor identificados na participação.
10. Eloquentes, ainda, são as fotografias juntas aos autos como documentos números 1 a 19.
10.1 Primeiramente, porque somente as fotografias juntas como documentos números 12 a 19 reproduzirem o estado do escritório do queixoso.
10.3 De facto, da fotografia junta sob o nº 12, bem se vê que a alcatifa está limpa, apenas se notando alguns "dossiers" no chão, não se sabe porquê. Mas, adivinha-se!...
10.4 Da fotografia junta como documento n° 19, bem resulta que a secretária está ordenada, tal como cadeiras e quadros.
11. É bem de ver que todas as restantes fotografias reproduzem outras divisões do prédio, que nada têm a ver com o escritório do queixoso.
11.1 Não é por acaso, de resto, que, existindo neste andar, onde estava localizado o escritório do queixoso, vários escritórios, os arguidos negociaram a rescisão dos respectivos contratos com os locatários e não negociaram tal rescisão com o ora queixoso, embora ainda o tenham tentado.
11.2 Eloquente, ainda, é o facto de, após as referidas rescisões de contratos, tenham abandonado os respectivos escritórios, que intencionalmente deixaram degradar.
11.3 Eloquente, igualmente, é o facto, como resulta do documento ora junto sob o nº 1, o queixoso ter comunicado aos arguidos que "continuaremos a ocupar as salas relativas ao primitivo escritório, cuja renda é 53,19 Euro, mas necessário se faz fazer o conserto, urgente, do respectivo telhado, com substituição da madeira, já que a mesma se encontra podre, tendo acontecido, já, um desabamento".
11.4 E contrariando a falsa versão dos arguidos de que não conseguiam contactar o queixoso, este, como resulta deste mesmo documento, não só identifica o telemóvel pelo qual o poderiam contactar como apôs o carimbo da Firma " … , Lda".
12. Não é pensável, nem crível, nem verosímil que todos os livros, documentos e objectos constantes da longa lista de folhas 84 a 93 dos autos no escritório se encontrassem se o mesmo estivesse abandonado e de portas abertas.
13. É bem de ver que o que pretendiam os arguidos era obter o locado livre e desocupado para procederem, como procederam, a construção de um novo edifício.
13.1 Tendo mesmo contratado o queixoso para esse fim, sem sucesso, com a recusa deste, como consta da carta registada que o queixoso remeteu aos arguidos em 20/11/2006, cuja cópia, por se encontrar no escritório, não é possível juntar, mas cuja junção se requer seja feita pelos arguidos. - Cfr. documento que se junta sob o n° 3 e que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos legais.
13.1.1 Dessa mesma carta constava que não procedia à entrega do escritório por se encontrar activo, mas que estava receptivo a um eventual acordo de rescisão.
13.2 Todavia, estranha e absurdamente, os arguidos, em lugar de concretizarem esse objectivo pelos meios legais, nomeadamente com a possível rescisão amigável de contrato, ou resolução judicial, recorreram à acção directa.
13.4 Conduta que, estranhamente, teve o beneplácito de quem deve ater-se à lei, com o devido respeito.
14. É que as obrigações impostas ao locador pelo artigo 1037° do Código Civil são imperativas, que prevalecem, nos termos do mesmo preceito, sobre a própria "convenção em contrário".
15. Sendo incontestável, nos termos deste preceito, que ao locatário é expressamente conferida a faculdade de utilizar acções possessórias, é evidente que ao queixoso, na qualidade de detentor do escritório em causa, assiste-lhe o direito de proteger o seu próprio escritório de que era possuidor ou detentor, mercê do contrato de usufruto.
15.1 É que, como ensina o "Comentário Conimbricense do Código Penal", em anotações ao artigo 215° do Código Penal, "não é necessário que a vítima seja proprietária, pode ser qualquer outra pessoa que se encontre legitimamente no imóvel por um qualquer titulo /possuidor ou mesmo detentor".
15.3 O crime do artigo 215°, como resulta da obra citada, "supõe quanto aos elementos do tipo objectivo de ilícito, que o agente actue com dolo (eventual), mas exige, além disso, uma intenção especifica de exercer um qualquer direito real de forma ilegítima, ou seja, arbitrariamente" .
15.4 Não sendo a ocupação por parte dos arguidos nem pacífica, nem tolerada, antes o tendo sido com violência e contra a vontade do queixoso, os arguidos cometeram o crime de usurpação de coisa imóvel, prevista e punida pelo artigo 215º do Código Penal.
16. Como cometeram os arguidos, com o devido respeito pelo douto despacho de arquivamento, o crime de dano previsto e punido pelo artigo 212º do Código Penal.
16.1 É hoje tido como indiscutível que "coisa alheia" inclui os direitos de gozo e fruição, como é o caso.
16.1.1 Veja-se, a propósito, o aresta do S.T.J. de 9.4.97 e o Acórdão da Relação do Porto, de 21.5.86, in B.M.J., 488.
17. Como cometeram os arguidos um crime de introdução em lugar vedado ao público previsto e punido pelo artigo 191º do Código Penal.
17.1 É que, sabendo os arguidos que no local destruído e invadido, funcionava um escritório de Advocacia e economia, mesmo assim nele penetraram, revolveram processos e documentos de natureza confidencial, retiraram-nos, subtraindo-os ao queixoso.
19. Os factos praticados pelos arguidos constituem os crimes referidos nos "itens" 15.4, 16 e 17 deste articulado.
20. Não se compreende que, como justificação do arquivamento dos autos, se refira que, se acha estranho que o queixoso só tenha tido conhecimento dos factos que denunciou em 24.6.2009, quando o prédio foi demolido precisamente em Julho do mesmo ano.
20.1 Como se acha estranho que a Exm.a Senhora Procuradora acredite que o relatório de folhas 84 e seguintes dos autos tenha sido elaborado em 9 de Outubro de 2008, facto que só é conhecido do queixoso posteriormente ao interrogatório do arguido B..., ocorrido em 13/1/2010 e que apenas seja referido por este nesta data da inquirição.
20.2 É bem evidente que, se fosse elaborado na data dele constante, do facto teriam dado conhecimento ao queixoso, contactável, como sempre foi, quando os arguidos o pretendiam e queriam contactar.
Nestes termos, nos mais de direito e, ainda, nos do mui douto suprimento de V.a Ex.a, requer-se:
1. Se digne admitir o queixoso a intervir nos autos como assistente, o que requer em requerimento que se junta.
2. Se digne declarar aberta a instrução.
3. Se digne reavaliar e reapreciar os factos e documentos constantes dos autos de inquérito.
4. Se digne ordenar a inquirição das testemunhas que a seguir se arrolam.
5. Formular, em consequência, despacho da pronúncia que acuse os arguidos pela prática dos crimes de usurpação de coisa imóvel, de dano e de introdução no escritório do queixoso, previstos, respectivamente, nos artigos 215°, 212° e 191 ° do Código Penal.”

Na parte que interessa, o despacho recorrido tem o seguinte teor:

“(…)
O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, e de acordo com o disposto no artigo 287º, n.º 2 do Código do Processo Penal, "deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente a (..) não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar':
Deve ainda o requerimento apresentado pelo assistente obedecer aos requisitos estabelecidos nas alíneas b) e c) do artigo 2830 do Código do Processo Penal para a acusação deduzida pelo Ministério Publico, ou seja, deve conter "a indicação das disposições legais aplicáveis" e "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada':
O requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, em caso de arquivamento pelo Ministério Publico, equivalerá em tudo a uma acusação que nos mesmos termos que a acusação formal (seja pública ou particular) condiciona e limita a actividade da investigação do juiz e a decisão instrutória, como resulta, designadamente, do disposto nos artigos 303°, nº 1 e 309°, nº 1, ambos do Código do Processo Penal (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 111, págs. 125 e segs).
Na decisão instrutória a proferir em instrução requerida pelo assistente (e nos actos a realizar no decurso desta) apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para abertura de instrução (ressalvada a hipótese a que se refere o artigo 303° do Código do Processo Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade: artigo. 309°, n. ° 1, do Código do Processo Penal (traduz este regime legal uma decorrência do principio da estrutura acusatória do processo penal, consagrado no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa).
O requerimento de abertura da instrução tem de conter assim todos os elementos de facto e de direito necessários à aplicação de uma pena ao arguido, sem remissões seja para onde for, designada mente para o despacho de arquivamento do inquérito.
Tal como uma acusação do Ministério Público, não pode ter remissões para a denúncia. O mesmo se passa com o requerimento de abertura de instrução, que fixa o thema decidendum e, por isso, é dele e apenas dele que o arguido tem de se defender atento o Principio Constitucional do Acusatório e ainda o Principio da Auto-Suficiência dos autos. Mas ainda que assim não fosse (e sem qualquer duvida é) o certo é que o arguido não podia defender-se de remissões que do requerimento de abertura da instrução não constam, conquanto pudessem estar no espírito de quem o redigiu.
O requerimento do assistente para a abertura da instrução, para além de conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao a arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; e deve conter ainda a indicação das disposições legais aplicáveis (obedecendo assim à estrutura de uma acusação).
O requerimento que não contenha factos, dos quais se possa concluir que o arguido cometeu um facto ilícito típico, por dele não constarem os elementos objectivos e subjectivos típicos do ilícito é um requerimento que tem de ser rejeitado, entendendo-se que se verifica uma situação de inadmissibilidade legal da instrução - nº 3 do artigo 287º do Código do Processo Penal (neste sentido vide Ac. do TRL de 21.03.2001, in CJ, XXVI, tomo 2, pág. 133).
Nas palavras de Souto de Moura in "Jornadas de Direito Processual Penal" pág. 120: "Se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução «não prossegue» uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do M.º P,º a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que se não compagina com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório. Se o assistente requerer instrução relativa a factos pelos quais o M.P. tenha deduzido acusação já, também se não vê bem, porque é que se solicita a intervenção do juiz de instrução. Note-se que no nosso ponto de vista, a expressão «pelos quais o M.o P,o não tiver deduzido acusação», abrange para além dos factos nem sequer referidos na acusação, todos aqueles aí presentes de modo instrumental. Todos os factos a que o M.P. não deu relevância jurídico-penal, e que o assistente pretende".
Compreende-se que assim seja. Na realidade, o despacho de pronúncia tem de conformar-se com os factos descritos no requerimento de abertura de instrução, que configura uma verdadeira acusação - n.° 1 do artigo 303º do Código do Processo Penal. Se desse requerimento não constam os referidos elementos, o despacho tem de ser, obrigatoriamente, de não pronúncia por não poder o Juiz socorrer-se de factos estranhos aos contidos no dito requerimento, sob pena de violar o princípio constitucional da acusação.
Como resulta da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, constata-se que o mesmo não obedece ao preceituado nos supra citados artigos 287º, n.º 2 e artigo 283°, n,º 3, alínea b) do Código do Processo Penal, uma vez que o requerimento em apreço não contém a narração circunstanciada de factos que possam fundamentar a aplicação à arguida de uma pena ou medida de segurança. O aludido requerimento não contém, desde logo, a narração dos factos e indícios que possam constituir o crime, sendo certo que também se procede a uma inconsistente descrição da concreta conduta ilícita imputada à arguida, limitando-se o assistente a manifestar as suas razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público.
O requerimento revela-se insuficiente, imperfeito, além do mais, no que concerne à descrição dos factos, à narração dos concretos actos ilícitos criminais praticados, ou seja, dos elementos objectivos, bem como, e ainda, no que respeita a descrição de factos constitutivos do crime que, a indiciarem-se, permitissem concluir que o agente actuou com culpa.
Não faz o assistente qualquer referência ao circunstancialismo que caracterizou a conduta mencionada; não faz o assistente qualquer alusão consistente às circunstancias de tempo e lugar e aos concretos actos materiais imputados à arguida. Desta forma, e com base na factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução apresentado, nunca poderia haver uma condenação com base na prova dos factos alegados pelo requerente, nem pode, consequentemente (cfr. artigo. 308°, n.º 1, do Código do Processo Penal) haver lugar a pronúncia por esses factos.
Não poderia, pelas razões supra aduzidas, serem considerados em eventual despacho de pronúncia outros factos que eventualmente resultassem da instrução e que não tivessem sido alegados no requerimento para abertura de instrução apresentado. Com efeito, "(..) se os factos relatados no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não integram qualquer tipo criminal, a inclusão na pronúncia de outros factos que, só por si ou conjugados com aqueles, integrassem um crime equivaleria a pronúncia do arguido por factos que constituiriam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento. É que, se de acordo com a definição do artigo 10, a/. f), do Cód Proc. Penal há alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente quando a nova factualldade tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, por maioria de razão existira alteração substancial dos factos sempre que os descritos naquele requerimento não integrem qualquer crime e os novos, por si só ou conjugados com aqueles, passem a integrá-lo" (Acórdão da Relação do Porto de 23.05.2001, ín CJ, 111,239).
Uma decisão instrutória que considerasse factos não alegados no requerimento para abertura de instrução seria nula (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.11.1993, ín CJ, V, 61 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.05.91, in BMJ, 407, pág. 613), podendo mesmo considerar-se juridicamente inexistente, por inexistente a instrução em consequência da falta de objecto do processo (víde Acórdãos do tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2000, ín CJ, I, pág. 153; do Tribunal da Relação do Porto de 05.05.93, ín CJ, 111, pág. 243 e do Tribunal da Relação de Évora de 14.04.1995, ínCJ, I, pág. 280).
Estabelece o n. ° 3 do artigo 2872 do Código do Processo Penal que “o requerimento [para abertura de instruçãoj só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução':
O requerimento apresentado enferma de nulidade, prevista no artigo 283°, n.º 3 do Código do Processo Penal, para que remete o artigo 287, n.° 2 do referido diploma legal, uma vez que, como já referido, não contém a narração de factos que fundamentem a aplicação à arguida de uma pena ou medida de segurança (artigo 283°, nº 3, aI. b do Código do Processo Penal).
Não se trata de nulidade que possa considerar-se meramente formal, pois dessa nulidade resulta que a instrução a que eventualmente se procedesse com base no requerimento apresentado careceria de objecto e seria por isso inexequível. A nulidade de que enferma o requerimento de abertura de instrução apresentado, importando a inadmissibilidade legal da instrução, é de conhecimento oficioso (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.05.2001, cito Supra).
Outro motivo existe ainda para se concluir pela inadmissibilidade legal da instrução. A instrução terminaria com a pronúncia ou a não pronúncia da arguida. No entanto, pelas razões supra expostas, relativamente ao requerimento em causa, nunca a pronúncia do arguido poderia ter lugar, o que implica que, estando em causa com a instrução requerida a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito, proceder à instrução seria, antes do mais, acto inútil, legalmente inadmissível (cfr. artigo 137° do Código do Processo Civil, aplicável ex ví artigo 4º do Código do Processo Penal).
Ora, do requerimento de abertura de instrução, não consta, designadamente:
A completa identificação da pessoa a submeter a julgamento; o facto naturalístico concretamente imputado ao arguido, isto é, o que fez, quando fez e em que circunstancias o fez, ficando o(s) arguido(s) sem saber do que tem de defender-se, o que não se afigura admissível.
Assim, tanto basta para se poder afirmar que o requerimento de abertura de instrução em causa só poderia conduzir a uma não pronuncia.
Se assim não fosse, o Juiz estaria a violar o principio do acusatório, aditando factos novos, que se traduziriam em alteração substancial dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução, e que são necessários para integração do tipo, o que lhe esta vedado fazer, atento o disposto no artigo 303° do Código do Processo Penal.
Nem se mostra admissivel o convite ao aperfeiçoamento do referido requerimento. Com efeito, uma decisão que convidasse o requerente a apresentar novo requerimento para abertura de instrução contrariaria o principio da estrutura acusatória do processo penal, consagrado no artigo 32°, nº 5, da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2000, in CJ, I, pág. 153, de 03.10.2001 e de 31.01.2001, disponíveis no sítio www.dgsi.pt; cfr. também Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.05.93, cito supra e Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.02, in CJ, II, pág. 147).
Ainda que assim não se entendesse, sempre a apresentação de novo requerimento, corrigido, contenderia com o direito de defesa do arguido no caso de tal requerimento não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
Com efeito, constitui matéria assente que o prazo para requerer a abertura da instrução é um prazo peremptório (cfr. Acórdão Para Fixação de Jurisprudência nº 2/96, de 06.12.1995, in DR-IS-A, de 10.01.1996).
Ora, como esclareceu o Tribunal Constitucional em Acórdão de 30.01.2001 (OR, li-Série, de 23.03. 2001), ti ( •• ) nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente - e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação­não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentaçãd'.
De referir ainda que o STJ, por acórdão de 12 de Maio de 2005, in DR, l-A, de 4 de Novembro de 2005, fixou jurisprudência nos termos seguintes: ''Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido':
Consequentemente, não poderia haver lugar ao convite.
Por todo o exposto, por inadmissibilidade legal da Instrução, rejeito o requerimento apresentado a fls. 190 e segs. pelo assistente.“

Apreciando:

Uma vez que o processo penal se destina a efectivar a responsabilidade penal, apenas faz sentido prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, quando seja possível imputar a uma pessoa factos concretos que constituem crime.
Por isso, sendo a decisão instrutória um marco do prosseguimento do processo para julgamento, determina o artº 287º, nº 2 do Código de Processo Penal[ Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem ], que embora o requerimento para abertura de instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, caso seja apresentado pelo assistente, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação, bem como dos factos que se espera provar, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 283º nº 3, ou seja, o requerimento do assistente para abertura de instrução terá que conter, para além do mais, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.
Este formalismo legal é compreensível e inultrapassável porque, destinando-se o processo penal a efectivar a responsabilidade penal, apenas pode prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, quando é possível imputar a uma concreta pessoa factos que constituem crime.
Por isso, como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Novembro de 2011[ Acessível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não seja localmente indicada], “a exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141).
Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição.
Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução (cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).
Ora, no caso em apreço, basta a simples leitura do requerimento para abertura da instrução para concluir que o mesmo não cumpre minimamente com o determinado por lei.
Vejamos:
Entende o assistente que “os arguidos cometeram o crime de usurpação de coisa imóvel, prevista e punida pelo artigo 215º do Código Penal (…), o crime de dano previsto e punido pelo artigo 212º do Código Penal” e “um crime de introdução em lugar vedado ao público previsto e punido pelo artigo 191º do Código Penal”.
Ora, o requerimento para abertura da instrução identifica os arguidos apenas como “B...” e “a mulher”.
Contudo, uma acusação, e por conseguinte, um requerimento para abertura de instrução do assistente, só não contém a identificação do arguido e deve ser rejeitado nos termos do art.º 311.º, n.ºs 2, al. a. e 3 al. a. quando nele não constam as indicações estabelecidas na al. a., do n.º 2, do art.º 283.º, isto é, a norma apenas impõe que tais indicações sejam conducentes à identificação do arguido e não que a mesma seja exaustiva.
O que a lei pretende é uma identificação que permita ter por garantido que a pessoa acusada, ou contra quem se pretende a pronúncia, é precisamente aquela que o devia ser e não uma qualquer outra(() Neste sentido, entre muitos outros, v. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Março de 2006, processo n.º 1666/06 da 9ª Secção, de 10 de Novembro de 2005, processo n.º 10230/04 9ª Secção e de 20 de Dezembro de 2001, processo n.º 9656/01 9ª Secção (in www.pgdlisboa.pt), do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de Dezembro de 2003, processo n.º 3444/03 e do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Junho de 2005, processo n.º 0540741 (www.dgci.pt)).
É certo que no caso dos autos não se pode dizer que a imposição legal tenha sido cumprida na perfeição. Longe disso. Contudo, também não é menos certo que tendo “B...” sido identificado a fls. 67 e “a mulher” sido constituída arguida a fls. 39/40, prestado TIR a fls. 41 e interrogada a fls. 42, dúvidas não podem restar de que é contra eles que o requerimento para abertura de instrução se dirige e por conseguinte, impõe-se reconhecer que objectivo visado pela lei foi alcançado.
Assim sendo e uma vez que só a ausência total de identificação ou a indicação insuficiente de sinais tendentes ao reconhecimento inequívoco dos arguidos/denunciados no processo teria gerado a nulidade prevista no art.º 283º n.º 3 (ex vi, art.º 285º n.º 2), temos que considerar que neste campo o requerimento atinge o limite mínimo exigido por lei.
Já o mesmo não se pode dizer dos restantes componentes, nomeadamente, os elementos objectivos e subjectivos dos crimes imputados.
Com efeito, para além de ser totalmente omisso quanto a elementos subjectivos dos crimes imputados (de usurpação de coisa imóvel, previsto e punido pelo artigo 215º, de dano previsto e punido pelo artigo 212º e de introdução em lugar vedado ao público previsto e punido pelo artigo 191º), o requerimento para abertura da instrução também não contém uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados pelos arguidos e que possam integrar os seus elementos objectivos.
Por mais atenta que seja a sua leitura, não é possível dele extrair a exigida a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança.
Assim sendo, bem andou o tribunal a quo quando rejeitou o requerimento para abertura da instrução.
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Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso.
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Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça.
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Coimbra, 7 de Março de 2012