Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE ARCANJO | ||
Descritores: | CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS RESPONSABILIDADE TRANSPORTADOR ACÇÃO DIRECTA SUBTRANSPORTADOR | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 02/25/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM – 2º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTº 800º, Nº 1 DO C. CIVIL. DL Nº 239/2003 DE 4/10. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1.- No contrato de transporte de mercadorias verifica-se o incumprimento contratual por parte do transportador sempre que ocorra perda total ou parcial das coisas transportadas, designadamente por incêndio, sendo que o transportador responde ainda pela actuação dos seus agentes, auxiliares ou “outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato”, como o subtransportador. 2.- A responsabilidade do transportador por actos dos seus auxiliares decorre ainda do regime geral do art. 800º, nº 1 do CC, cuja norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor. 3. - A acção directa, como excepção ao princípio da relatividade dos contratos, enquadra-se no âmbito da “teoria do grupo de contratos”, e traduz-se no benefício concedido a certos credores de demandarem directamente os devedores dos seus devedores imediatos. 4.- O expedidor e/ou destinatário não pode exercer a acção directa contra o terceiro subcontratado para a execução do serviço de transporte (subtransportador), reclamando o valor da mercadoria perdida. 5.- A responsabilidade do terceiro pela lesão do direito de crédito só pode ser subjectiva, delitual ou aquiliana, e não meramente objectiva, exigindo-se até uma interferência dolosa, e não apenas negligente. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I - RELATÓRIO 1.1.- A Autora – N…, Lda. instaurou acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré - T…, Lda. Alegou, em resumo: A autora é uma sociedade que integra o Grupo Contro… e que, enquanto operador logístico, se dedica a actividades de manipulação, gestão de stocks e de distribuição de publicações periódicas e não periódicas; A autora solicitou à firma H…, Ldª “... uma carga na Vasp, Venda da Seca, dia 20 de Fevereiro pelas 10h30m com descarga na NDMaia ”, que por sua vez subcontratou a Ré para efectuar essa carga; No dia 20.02.2010, a Ré enviou o conjunto constituído pelo tractor …MC e pelo semi-reboque …, conduzidos pelo seu motorista … às instalações da Vasp na Venda da Seca, Cacém a fim de proceder à carga da mercadoria, constituída por sobras da revista Evasões e por sobras de “sub-produtos” tais como brindes, suplementos editoriais, livros, caixas de ferramentas, cursos de línguas, e DVDs, que haviam sido distribuídos com os jornais 24 Horas, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e com a revista Evasões. Acontece que no decurso da viagem, na estrada, na zona da Batalha, o semi-reboque, onde se encontrava a mercadoria, incendiou-se. A N… – Publicações, S.A. ficou assim sem a mercadoria e como tal viu-se impedida de a voltar a pôr no mercado para nova comercialização. O valor da mercadoria destruída no acidente sofrido pela R. ascendia a € 82.399,99 (oitenta e dois mil trezentos e noventa e nove euros e noventa e nove cêntimos). A N… – Publicações, S.A., privada deste valor em virtude da destruição total da mercadoria, debitou-o à aqui autora, a quem tinha contratado os inerentes serviços de logística e distribuição, mediante emissão das facturas nºs 723013226, 723013227, 500000090 e 723013246, objecto de posterior acerto por meio das notas de crédito nºs 723304023 e 723304024. A facturação da mercadoria destruída no sinistro, já com IVA, e depois de deduzido o valor das notas de crédito referidas no artigo anterior, ascendeu assim a € 92.417,87 (noventa e dois mil quatrocentos e dezassete euros e oitenta e sete cêntimos), quantia que a autora teve por conseguinte que pagar à N... Assim, em consequência do sinistro, a autora sofreu prejuízos no valor total de € 92.417,87 (noventa e dois mil quatrocentos e dezassete euros e oitenta e sete cêntimos). É certo nenhum vínculo contratual foi estabelecido entre a autora e a ré, mas esta ainda assim deve responder perante a autora pelos danos que lhe causou nos termos do art. 503º do Código Civil, sendo, porém, certo que a ré omitiu pelo menos o dever de se certificar que o veículo se encontrava em perfeitas condições para circular na via pública. Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 92.417,87 € (noventa e dois mil quatrocentos e dezassete euros e oitenta e sete cêntimos) acrescida de juros, desde a data da citação, até integral e efectivo pagamento. Contestou a Ré( fls. 25 e segs.) defendendo-se, em síntese: O incêndio, segundo as declarações do motorista, terá tido origem no turbo do motor, mas tanto o tractor …MC, como o semi-reboque estavam em condições para circularem. A ré foi sub-contratada e se soubesse que a carga eram devoluções, não teria aceite o frete, pois sabia que esse tipo de transporte lhe traria problemas com a sua seguradora, em face da exclusão da cobertura do contrato de seguro que tem com a companhia de seguros F…, quanto a mercadorias que tenham sido objecto de devolução. Acresce que estas revistas e brindes que integravam a carga eram para serem vendidos à consignação, sendo que quando devolvidas são sobras sem qualquer valor comercial. Concluiu pela improcedência da acção e alegando a existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil do transportador rodoviário nacional de mercadorias titulado pela apólice … e com inclusão do veículo aderente, no caso o reboque …, com o capital seguro de € 100.000,00, deduziu incidente de intervenção principal provocada da F…, S.A.. Por despacho de 3/2/2011 admitiu-se o incidente mas como de intervenção acessória. Contestou a chamada F…, SA, defendendo-se, em resumo: Os objectos que estavam a ser transportados e que arderam, eram mercadorias que já não tinham venda, por que já não tinham procura por parte do consumidor, constituindo aquilo que a gíria comercial apelida de “monos”, objectos sem valor a que por vezes os comerciantes não sabem o que deles fazer. A perda de valor destas mercadorias, que se transformaram em “sobras e subprodutos”, faz com que os seus proprietários se afastem dos normais, naturais e diligentes cuidados no manuseamento das mesmas. Ora, eis a razão por que o contrato de seguro de responsabilidade civil do transportador rodoviário nacional de mercadorias, exclui das garantias da cobertura da apólice, os danos ou perdas que decorram de mercadorias usadas, de toda e qualquer espécie, bem como das que sejam objecto de devolução. Concluindo, o sinistro em causa foi declinado pela ora interveniente, com base nas Condições Gerais da Apólice por se tratar de mercadoria sujeita a devolução, integrando assim uma situação ou causa de exclusão das garantias de cobertura, exclusão essa que se invoca para todos os legais efeitos. Acresce ainda por dizer, o que não é de somenos importância, que atento o exposto, jamais se justifica que a autora esteja a reclamar da ré o valor dos objectos/mercadorias, usando como bitola indemnizatória, o valor de aquisição, em novo, de cada um dos produtos que arderam. Nestes termos a acção deve ser julgada improcedente e não provada e a ré absolvida do pedido que vem formulado e tudo sob as legais consequências, mormente para a ora chamada/interveniente. Concluiu pela improcedência da acção. Replicou a Autora. No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância. 1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção procedente e condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 92.417,87, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento. 1.3. - Recurso da Ré T…, Lda. – Conclusões: … 1.4. - Recurso da interveniente F…, SA – Conclusões: … 1.5. - Contra-alegou a Autora no sentido da improcedência do recurso. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. - Delimitação do objecto dos recursos A contradição de facto (quesitos 10º e 11º); A alteração de facto (quesito 9º); A responsabilidade da Ré (o contrato de transporte rodoviário de mercadorias, acção directa do expedidor/destinatário contra o subtransportador, a responsabilidade civil do terceiro pela lesão do direito de crédito); A responsabilidade objectiva da Ré (acidente de viação e o incêndio); O valor da indemnização e a prova do desembolso. 2.2. - Contradição das respostas aos quesitos. A Apelante arguiu a contradição entre si das respostas aos quesitos 10º e 11º, susceptível de induzir a anulação do julgamento. Alegou, para tanto, que as notas de crédito juntas (doc.s nº 9 e 10) sendo dedutíveis nos valores facturados pela N…, reduziriam sempre, após acerto, o valor final do pretenso débito da Autora e jamais poderia aumentá-lo. Para efeitos do disposto nos arts.712 nº4 e 653 nº4 do CPC só releva a contradição insanável que pressupõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis entre a mesma questão de facto. A colisão deverá ocorrer entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto de outra ou então com a factualidade provada no seu conjunto, de tal modo que uma delas seja o contrário da outra. Só há contradição entre os factos provados quando estes sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir uns com os outros. Contrariamente à pretensão da Apelante, as respostas, tal como foram dadas pela 1ª instância, não são incompatíveis entre si, e a confusão poderá eventualmente resultar do erro de cálculo. Na verdade, a soma das facturas mencionadas na resposta ao quesito 10º totalizam o montante de € 83.489,84 (sem IVA) e de € 93.562,16 (com IVA). Refere-se que foram objecto de posterior acerto por meio das notas de crédito nºs 723304023 e 723304024, e estas totalizam € 1.144,29. Subtraindo-se este valor à importância de € 93.562,16, resulta o montante de € 92.417,87, o mencionado na resposta ao quesito 11º. 2.3. A impugnação de facto … 2.4. – Os factos provados … 2.5. – A responsabilidade da Ré (o contrato de transporte rodoviário de mercadorias, acção directa do expedidor/destinatário contra o subtransportador, a responsabilidade civil do terceiro pela lesão do direito de crédito) A sentença recorrida julgou procedente a acção com base nos seguintes tópicos retórico-argumentativos: A Autora, em 20/2/2010, celebrou com a H…, Lda um contrato de transporte rodoviário de mercadorias (regulado pelo DL nº 239/2003 de 4/10) com descarga na Maia, sendo as mercadorias propriedade da N… –Publicações, SA.; A H…, Lda (transportadora) subcontratou a Ré para a execução do serviço; Durante a efectivação do transporte perdeu-se a mercadoria, devido a um incêndio ocorrido no semi-reboque, configurando tal situação como acidente de viação, por o incêndio se inserir no núcleo de riscos próprios da viatura, mas, por ausência de culpa, trata-se de responsabilidade pelo risco; Não se estabelecendo uma relação jurídica entre Autora e Ré (subtransportadora) a acção directa apenas é admissível desde que se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual; No caso dos autos, comprovando-se uma situação de responsabilidade objectiva da Ré (subtransportadora) assiste à Autora (expedidora/destinatária) o direito à acção directa, para obter a indemnização correspondente ao montante que a Notícias… lhe debitou (€ 92.417,87). Em contrapartida, objectam as Apelantes dizendo, em síntese, não ser legalmente admissível a acção directa da Autora contra a Ré, e ainda que se aceite, não abrangeria a responsabilidade objectiva. Coloca-se a questão de saber (sendo este o enfoque essencial dos recursos) se o expedidor e/ou destinatário pode exercer a acção directa contra o terceiro subcontratado para a execução do serviço de transporte (subtransportador), reclamando o valor da mercadoria perdida. O contrato de transporte de mercadorias é definido como sendo aquele em que uma as partes (o carregador) encarrega outra (o transportador) que a tal se obriga a deslocar determinadas pessoas ou coisas de um local para outro, e de os entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição. Tem sido qualificado como contrato comercial, bilateral, oneroso, consensual e de resultado, actualmente regulado pelo DL nº 239/2003, de 4/10, ao estabelecer um novo regime jurídico para o contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias (cf., por ex., FRANCISCO DA ROCHA, O Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, pág.55 e segs.; ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos Contratos Comerciais, pág. 725 e segs.). O contrato de transporte não se esgota na deslocação de pessoas ou coisas, abrangendo todo o período que decorre desde o momento em que o transportador as recebe até à entrega no local convencionado, compreendendo as chamadas “operações de manuseamento de carga”, como o carregamento, descarga, armazenamento e a guarda. Perante a factualidade apurada, foi a Autora quem solicitou o transporte da mercadoria, assumindo, assim, a posição de carregador ou expedidor, e simultaneamente de destinatária. Como se sabe, o expedidor é o que intervém na celebração do contrato (não sendo necessário que participe na operação material de entrega da mercadoria) e pode coincidir com a pessoa do destinatário. A firma H… adquire a posição de transportadora, pois foi quem se obrigou a deslocar a mercadoria, sendo irrelevante que seja o transportador a realizar ele próprio o transporte. A Notícias… é a proprietária da mercadoria, mas não é sequer sujeito do contrato de transporte, logo dele não resultam para ela quaisquer direitos ou obrigações de natureza contratual, podendo, no entanto, servir-se dos meios normais de defesa da propriedade, sendo legítimo demandar o transportardor por danos na mercadoria com base na responsabilidade civil extra-contratual. Não sendo o contrato de transporte um contrato real, mas meramente obrigacional, dele emergem, numa relação complexiva, direitos e obrigações recíprocos. Para além dos deveres nucleares de deslocação e de pagamento do serviço, assume especial relevância o direito do destinatário à entrega das coisas, com tradução positiva no art. 12º do DL nº 239/2003. Existe incumprimento contratual por parte do transportador sempre que ocorra perda total ou parcial das coisas transportadas, designadamente por incêndio, sendo que o transportador responde ainda pela actuação dos seus agentes, auxiliares ou “outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato”, como o subtransportador (cf. art.17º DL nº 239/2003). De resto, a responsabilidade do transportador por actos dos seus auxiliares decorre ainda do regime geral do art. 800 nº 1 do CC, cuja norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor. Com efeito, fora dos contratos cuja tipicidade implica a entrega temporária de bens (por ex., locação, comodato, depósito), há situações em que a execução do contrato envolve a transmissão temporária do domínio de facto sobre a coisa, a implicar os deveres laterais de conduta, como os de custódia e protecção, visando preservar a integridade dos bens. Por isso, se o devedor tiver a obrigação de guardar e preservar a coisa também responderá pelo facto dos auxiliares a quem ela foi entregue, já que o “cumprimento” referido no art. 800 nº 1 do CC, vai para além da mera execução da prestação a que o devedor se vinculou, abrangendo os deveres laterais de conduta que integram a relação obrigacional complexa, onde se incluem os deveres de protecção (cf., neste sentido, CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Protecção, pág.209 e segs.). A acção directa, como excepção ao princípio da relatividade dos contratos, situa-se no âmbito da “teoria do grupo de contratos”, pela sua íntima conexão, e traduz-se no benefício concedido a certos credores permitindo que demandem directamente os devedores dos seus devedores imediatos. Nem sempre tem consagração juspositiva, ficando dependente da construção doutrinária e jurisprudencial, como por exemplo nos casos da acção directa do subempreiteiro para com o dono da obra (cf. por ex., Ac RL de 16/12/03, Ac RC de 31/5/05, disponíveis em www dgsi.pt), mas, por vezes, é a própria lei que a vem regulamentar expressamente (cf., por exemplo, a propósito a responsabilidade do produtor, o art. 6º do DL 67/2003 de 8/4). 4.- O expedidor e/ou destinatário não pode exercer a acção directa contra o terceiro subcontratado para a execução do serviço de transporte (subtransportador), reclamando o valor da mercadoria perdida. III – DECISÃO Pelo exposto, decidem:1) Julgar procedentes as apelações e revogar a sentença recorrida.2) Julgar a acção improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido.3) Condenar a Autora nas custas, em ambas as instâncias.Coimbra, 25 de Fevereiro de 2014. ( Jorge Arcanjo ) ( Teles Pereira ) ( Manuel Capelo ) |