Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | RIBEIRO MARTINS | ||
Descritores: | RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO IN DUBIO PRO REO DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE CONSUMO PESSOAL TENTATIVA NÃO PUNÍVEL | ||
Data do Acordão: | 09/08/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | 22º,23º DO CP, 21º,24º,40º DO DEC-LEI Nº 15/93 DE 22 DE JANEIRO; 28º DA LEI N.º30/2000 DE 29/11, 410º,412º,428º E 431º DO CPP | ||
Sumário: | 1.A detenção de produto estupefaciente relativamente à qual se não prove a afectação exclusiva ao consumo, só pode ser considerada como tráfico se não ficarem dúvidas sérias sobre essa afectação ao consumo próprio. 2.O princípio da presunção da inocência (art° 32/2 da CRP) postula que o arguido deve ser tratado como inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória e que esta condenação há-de assentar em provas que não tenham deixado dúvidas sobre os factos e a culpa do agente. 3. No respeito do princípio in dubio pro reo, em todos os casos de persistência de dúvida razoável após a produção da prova o tribunal tem de decidir no sentido mais favorável ao arguido. 4. No recurso sobre a matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da prova que faz, altera a decisão se formar a convicção segura que houve erro de julgamento na 1ª instância. | ||
Decisão Texto Integral: | 1- No processo comum 1161/08 da 1ª Secção da Vara de Competência Mista da comarca de Coimbra, S. foi condenado na pena de 2 anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 25/1 alínea a) do Dec-Lei nº 15/93 de 22/1. 2- O arguido recorre, concluindo – a) O tribunal incorreu em erro de julgamento no que toca à valoração da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento, para efeito da fixação da matéria de facto dada como provada. b) Considera-se incorrectamente julgado dar-se como «provado» o que consta dos n.ºs 1 e 2 dos factos assentes e por «não provados» os factos invocados na contestação constantes a fls. 5/6 do acórdão. c) Impunham decisão diversa os testemunhos de A. (guarda prisional) e de R. (guarda prisional/chefe de sector). d) Estes testemunhos não poderiam ser considerados isentos e credíveis para dar como provado que a encomenda vinha dirigida ao arguido. e) Embora o tribunal tenha decidido bem ao assentar que o arguido não chegou a deter o produto estupefaciente; não se vislumbra com que base probatória assentou a sua convicção para dar como provado o conhecimento da substância que lhe foi enviada. f) O tribunal não podia dar por provado que o arguido tinha conhecimento da natureza do produto enviado; nem tampouco seria possível deduzi-lo face ao que resulta da audiência de julgamento. g) A violação do art.º 410/ 2 do CPP resulta por se constatar uma insuficiência da matéria de facto provada, convertendo-se numa errada qualificação jurídica. h) Ao dar por provado que o arguido visava obter droga, não tendo chegado a detê-la por lhe ter sido vedada tal possibilidade pela guarda prisional, deveria ter equacionado a possibilidade do mesmo almejar a detenção para consumo próprio. Aliás, chega a admiti-lo embora sem que daí retire consequências. i) O tribunal deu por «não provado» que o arguido destinasse a substância estupefaciente à venda no estabelecimento prisional ou que pretendesse disponibilizá-la aos restantes reclusos. j) Todavia, do elenco dos factos «provados» e «não provados» não consta equacionada a destinação do haxixe para consumo, o que leva a concluir que tal facto não foi investigado. k) Esta averiguação decorre da essencialidade da destinação da droga, como resulta do art.º 21º do Dec-Lei nº 15/93, onde se estabelece a proibição de contacto com estupefacientes fora das situações de consumo a que se refere o art.º 40, revogado pelo legislador mas recolocado em vigor pela jurisprudência uniformizadora do STJ ( Ac 8/2008 de 25/6/2008). l) Pelo exposto deve ser reenviado o processo para novo julgamento com vista à averiguação da destinação do produto apreendido. 3- Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido pelo infundado do recurso; no que foi apoiado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto. 4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir! II - 1- Decisão de facto constante do acórdão recorrido - A) Factos provados - *1) No dia 13/…/2008, cerca das 15h30, vinha dirigida ao arguido, no Estabelecimento Prisional de Coimbra, onde se encontrava a cumprir pena, uma encomenda contendo um saco plástico com flocos muesli que tinha no seu interior, dissimulados entre os cereais, vários pedaços de haxixe, num total de 19,56 gramas. *2) O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo bem a natureza e características da substância estupefaciente que lhe fora enviada. *3) Bem sabia igualmente que esta conduta era proibida e punida pela lei penal. 4) O arguido é oriundo de família numerosa, de etnia cigana. 5) Tem um filho, actualmente de 16 anos de idade, fruta da relação com uma ex-companheira, vivendo com esta. 6) Não frequentou a escola e trabalhou na agricultura e na venda ambulante. 7) Apresenta um percurso institucional instável, com reduzido investimento no aumento de competências pessoais e profissionais, evidenciando grandes fragilidades e dificuldade em cumprir regras. 8) No exterior, beneficia do apoio da sua família de origem. 9) Por decisão de 17-…1999, transitada em julgado em 11-11-1999, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3/2 do DL 2/98 de 3/1, em pena de multa; 10) Por decisão de 18-…-2002, transitada em julgado em 30-10-2003, foi condenado pela prática, em 28-7-2000, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21/1 e 24 alínea i) do DL 15/93, na pena de 5 anos e 4 meses de prisão; 11) Por decisão de 23-…-2002, transitada em julgado em 7-11-2002, foi condenado pela prática, em 20-11-99, de 1 crime de receptação p. e p. pelo art. 231 do CP, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €5; 12) Por decisão de 29-…2003, transitada em julgado em 14-5-2003, foi condenado pela prática, em 12-3-2000, dum crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 204 do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e por decisão de 27-9-2004, por crime idêntico, condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão e 100 dias de multa, à taxa diária de €5; 13) Por decisão de 27-..-2003, transitada em julgado em 15-12-2003, foi condenado pela prática, em 6-3-97, de 1 crime de passagem de moeda falsa, p. e p. pelo artigo 265/1 alínea a) do CP, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses, pena esta julgada extinta por decisão de 17-1-2008; 14) Por decisão de 26-..-2004, transitada em julgado em 10-8-2004, foi condenado pela prática, em Setembro de 2003, de 2 crimes de furto qualificado p. e p. pelo art° 204 do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; 15) Por decisão de 20-…2004, transitada em julgado em 4-11-2004, foi condenado pela prática, em 17-6-2002, dum crime de ameaças p. e p. pelo artigo 153° do CP, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €5 e por crime idêntico na pena única de 160 dias de multa à taxa diária de €5; 16) Por decisão de 6-…-2008, transitada em julgado em 10-12-2008, foi condenado pela prática, em 27-3.2007, dum crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86 da Lei 5/2006 de 23/2, na pena de 4 meses de prisão. B) Factos não provados - a) Que o arguido tivesse chegado a receber e a deter o produto estupefaciente que vinha na encomenda b) Que o arguido destinasse a substância estupefaciente à venda naquele estabelecimento prisional a outros reclusos ou que pretendesse disponibilizá-la aos restantes reclusos. *c) Que a encomenda se não destinasse ao arguido e que o remetente da mesma não viesse preenchido; *d) Que o arguido recusasse o seu recebimento, que se negasse a assinar o livro de encomendas e que nunca tivesse reconhecido que a mesma lhe era destinada. C) Fundamentação - Embora o arguido tivesse negado que a encomenda lhe era destinada, o depoimento da testemunha A guarda prisional encarregada de registo e entrega de encomendas foi concludente no sentido de que efectivamente a encomenda se destinava ao arguido. Começou por referir que chamou o arguido para o recebimento, tendo desde logo o arguido assinado o seu recebimento e tendo visto o remetente, que efectivamente existia, sem fazer qualquer comentário. A encomenda foi aberta na presença do arguido, e constatado o seu conteúdo também na sua presença, sendo certo que na altura o arguido disse nada ter a ver com o haxixe que continha e acabou por não efectuar o recebimento efectivo, por disso ter sido impedido pela guarda prisional. Mas de modo algum recusou recebê-la, tendo-lhe mesmo pedido, ao constatar que seria impedido de a receber, que ao menos lhe dispensasse uma "pedra" para matar o vício, dizendo ainda que quem mandou a encomenda não soube fazer as coisas. O número de registo da encomenda consta do livro respectivo e o remetente era uma tal AA, do Porto. Além do haxixe, continha outras coisas. O arguido assinou o recebimento, não lhe tendo dito, antes da abertura, que não era para ele. Em suma, esta testemunha sustentou que informou o arguido do remetente, não tendo então ele referido que não aceitava a encomenda, e tendo sido nessa altura, e não mais tarde (já na presença do guarda - chefe) que assinou o livro. A testemunha R -, guarda prisional chefe de sector -, afirmou não ter estado presente na recepção da encomenda, tendo sido a guarda A quem lha veio mostrar. O arguido, na sua presença, não disse que a encomenda não lhe era destinada, apenas tendo dito que a pessoa que a mandou não soube fazer as coisas. Nesta altura do depoimento o arguido referiu ter sido obrigado a assinar, no que foi desmentido pela testemunha, bem como pela testemunha A, entretanto regressada à sala. Perante estes depoimentos, que se mostraram isentos e credíveis, o tribunal não teve dúvidas em considerar que efectivamente a encomendo se destinava ao arguido, do que ele tinha conhecimento, tanto mais que chegou a pedir à guarda prisional que o deixasse ficar com um pedaço de haxixe, para matar o vício, não tendo negado ser-lhe destinada antes da abertura da mesma. Ademais, desabafou que quem a enviou não soube fazer as coisas. No que concerne aos factos não provados relevou o depoimento da testemunha AT, Técnica Superior da E.P. de Coimbra que acompanhou o arguido, que referiu ser o mesmo toxicodependente, não tendo dele a ideia de que andasse o fornecer droga a outros reclusos. Na altura dos factos, o arguido, que frequentava a fase anterior ao 1º ciclo, já conseguia ler, embora com dificuldade, começando a saber juntar as sílabas. As testemunhas J, N. E. e C também reclusos do mesmo Estabelecimento Prisional e consumidores de haxixe, referiram que o arguido nunca lhes forneceu qualquer droga nem consta que alguma vez o tenha feito com quem quer que seja, sendo certo que a última (C) até referiu que o arguido não passa de um pedinte no E.P., pedindo cigarros e dinheiro para café, nunca tendo ouvido dizer que fornecesse estupefaciente. Todavia estas testemunhas também acabaram por ser relevantes no sentido da prova dos factos, especialmente a testemunha N, que afirmou que os reclusos são sempre informados dos remetentes das encomendas, podendo nessa altura recusá-las caso não conheçam o remetente, sem consequências. No que concerne às características do produto encontrado na encomenda foi relevante o exame de fls. 51. Também resulta claro que o arguido não chegou a receber efectivamente, a encomenda, por, obviamente, disso ter sido impedido pela guarda prisional, não tendo assim chegado a deter o produto estupefaciente que lhe foi enviado. Quanto aos factos 4) a 8) relevou o relatório social de fls. 140/142 e quanto aos antecedentes criminais o CRC de fls. 155/161. * 2- Apreciação – 2.1- O arguido discorda da decisão de facto reagindo contra o provado sob os n.ºs 1 e 2 e o ter-se dado por «não provado» que a encomenda se não destinava ao arguido e que dela não constasse o remetente. Estes pontos são os por nós acima deixados assinalados com asterisco. Ora, quanto a estes factos do «não provado» a decisão impugnada colhe aceitação no depoimento da testemunha A (guarda prisional) que procedeu à entrega [parcial] da encomenda ao arguido. Em termos inequívocos a testemunha esclareceu que a encomenda vinha endereçada ao arguido e tinha um nome como remetente com uma morada no Porto. Que o arguido foi previamente informado desse remetente e que não recusou receber a encomenda, assinando no livro próprio. Tanto que tendo a encomenda outras coisas para além do saco com os flocos e as pedras de haxixe, o arguido recebeu-as à excepção óbvia desse saco cuja entrega lhe foi negada. Careceria até de qualquer lógica que o arguido fosse chamado a receber uma encomenda que não fosse a si endereçada pelo remetente. Quanto ao «provado» sob o n.º1, também tem pleno cabimento no depoimento da A conjugado com o depoimento de R (guarda prisional/chefe de sector) esclarecedor do procedimento seguido na recepção das encomendas enviadas pelo correio e na sua entrega aos reclusos delas destinatários. Mas já o provado sob os n.ºs 2) e 3) causa alguma perplexidade. Efectivamente, no n.º2) o tribunal afirma que “O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente”, sem esclarecer a que comportamento do arguido se reporta. Note-se que a acusação referia que o arguido recebeu uma encomenda no EP contendo num saco plástico com pedaços de haxixe dissimulados entre flocos de cereais que destinava à venda a reclusos. Nesta formulação estava implícito o comprometimento do arguido com o envio da encomenda cujo conteúdo em droga seria por si conhecido e expectável. Mas no acórdão alterou-se esta formulação, dando-se tão só por provado que vinha dirigida ao arguido uma encomenda contendo um saco plástico com pedaços de haxixe dissimulados entre flocos de cereais. Deu-se por «não provado» que o arguido destinasse o estupefaciente à cedência a outros reclusos. E como «provado» que “O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo a natureza e características da substância estupefaciente que lhe fora enviada”. Fica assim por se esclarecer inequivocamente a que comportamento do arguido se refere o tribunal quando afirma que este “agiu livre e conscientemente, sabendo da natureza do produto e da punibilidade da sua conduta”. 2.2- Também nos parece que o recorrente tem razão ao invocar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Efectivamente, ao dar por «não provado» “Que o arguido destinasse a substância estupefaciente à venda naquele estabelecimento prisional a outros reclusos ou que pretendesse disponibilizá-la aos restantes reclusos”, o tribunal omite na decisão de facto qualquer juízo sobre a toxicodependência do arguido e a possibilidade de destinação, total ou parcial, do produto ao consumo próprio. Ora, não se duvida que a mera detenção de drogas sem a demonstração da sua afectação ao consumo do agente constitua crime de tráfico de estupefacientes. Comprovada a detenção não autorizada de produto estupefaciente – uma das modalidades da acção típica – fica preenchido o tipo objectivo de ilícito de tráfico desde que tal detenção não seja para consumo próprio (art.º 21 do Dec-Lei nº 15/93 de 22/1e art.º 25 cuja matriz é a mesma). Assim, a conclusão de que a detenção de droga relativamente à qual não se prove a afectação exclusiva ao consumo tem o sentido de tráfico só é jurídico/processualmente correcta se não ficarem dúvidas sobre essa afectação ao consumo próprio. Esta é uma matéria a que não pode ser alheia a decisão de facto. O elemento típico do crime [mera detenção de haxixe na indicada quantidade] não está naturalmente subtraído ao princípio da presunção de inocência sob pena de violação do princípio da culpa. Tanto que o tribunal refere na fundamentação da decisão de facto que a testemunha A afirmou que o arguido era toxicodependente Igualmente referenciado no relatório social a fls. 142. e na fundamentação de direito também afirmou no acórdão não se ter apurado risco de distribuição do produto por outros reclusos (fls. 7 e 10). Mas omite por completo uma referência ao consumo de drogas pelo arguido, havendo elementos probatórios que o indicam. Por outro lado, ao ter de equacionar se o apreendido não seria para o consumo próprio do arguido deveria, na falta de prova em contrário, decidir a favor deste na base do princípio «in dubio pro reo». O princípio da presunção da inocência (art° 32/2 da CRP) postula que o arguido deve ser tratado como inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória e que esta condenação há-de assentar em provas que não tenham deixado dúvidas sobre os factos e a culpa do agente. A livre apreciação não é arbítrio e tem como limite o princípio do «in dubio pro reo» -, uma das vertentes da presunção de inocência na medida em que impõe que no caso de dúvida sobre os factos a situação se resolva a favor do arguido. Relativamente ao feito sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem limitações e portanto não apenas quanto aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação mas também quanto às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa, da exclusão da pena, bem como a todas as circunstâncias atenuantes sejam modificativas ou simplesmente gerais. Em todos os casos de persistência de dúvida razoável após a produção da prova o tribunal tem de decidir no sentido mais favorável ao arguido (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, pp. 215). Ora, o arguido vinha acusado de deter a droga para a vender a terceiros. Mas o tribunal não deu como provada essa finalidade e/ou a de cedência por qualquer modo a outros reclusos, como resultado da ponderação dos depoimentos prestados, designadamente por A, J, N, E e C -, a primeira guarda prisional e os restantes reclusos no EP. Ou seja, o tribunal deixou-se na dúvida qual afinal o destino da droga pretendido pelo arguido. E este dado negativo afirmado pelo tribunal é por si incongruente com a afirmação do tribunal tecida nas suas considerações de direito que «a quantidade em causa é incompatível com o mero consumo pessoal» -, afirmação que por não estar justificada aumenta a nossa perplexidade e justifica um juízo de contradição insanável entre as asserções produzidas no acórdão. O que essencialmente o recorrente contesta é que face a uma situação de relativa «obscuridade» em que o tribunal deixou a decisão de facto, quanto ao direito tenha optado pela solução jurídica mais gravosa para o arguido, com desrespeito do princípio da presunção de inocência. E neste inconformismo parece-nos ter alguma razão face a essa «obscuridade factual». 2.3- Mas examinada a prova, nomeadamente ouvida toda a gravação não nos parece que o tribunal recorrido possa efectuar melhor indagação da que já foi por si efectuada. A nosso ver o tribunal de recurso só poderia ordenar o reenvio do processo para novo julgamento se houvesse outros esclarecimentos probatórios a efectuar -, o que não nos parece ser o caso pois é evidente pelos depoimentos prestados que as testemunhas relataram tudo o que sabiam sobre o objecto do processo. Ou seja, parece-nos que a causa terá de ser decidida com base na prova produzida e documentada, o que impõe que seja este tribunal a reapreciá-la à luz da competência que lhe assiste para decidir de facto e de direito e em conformidade com os mesmos princípios probatórios a que se encontrava adstrito o tribunal recorrido. 2.3.1- Nestas circunstâncias e em reapreciação probatória, este tribunal tem por provado que – 1) O arguido era à data referida em 2) toxicodependente, sendo consumidor de todo o tipo de drogas; 2) No dia 13/…/2008, cerca das 15h30, vinha dirigida ao arguido, no Estabelecimento Prisional de Coimbra onde se encontrava a cumprir pena, uma encomenda contendo, além do mais, um saco plástico com flocos muesli e pedaços de haxixe, num total de 19,56 gramas, dissimulados entre os flocos. 3) O arguido prontificou-se a receber todo o conteúdo da encomenda, mesmo depois de saber do contido no referido saco plástico; 4) Saco cuja entrega lhe foi recusada pela guarda prisional A, na ocasião incumbida da entrega da encomenda ao arguido; 5) Chegando ele a dizer perante esta testemunha e a testemunha R (guarda prisional/chefe de sector) que “quem enviou a encomenda não soube fazer as coisas”; 6) Já depois de face à recusa de entrega pela A o arguido ter-lhe pedido a entrega de “uma pedrinha” -, reportando-se aos pedaços dissimulados de haxixe; 7) Sendo a entrega de toda a encomenda por si desejada com vista ao consumo por si do haxixe contido no saco; 8) Sabendo que a sua detenção era proibida e punível. 9) O arguido é oriundo de família numerosa, de etnia cigana. 10) Tem um filho, actualmente de 16 anos de idade, fruta da relação com uma ex-companheira, vivendo com esta. 11) Não frequentou a escola e trabalhou na agricultura e na venda ambulante. 12) Apresenta um percurso institucional instável, com reduzido investimento no aumento de competências pessoais e profissionais, evidenciando grandes fragilidades e dificuldade em cumprir regras. 13) No exterior, beneficia do apoio da sua família de origem. 14) Por decisão de 17-..1999, transitada em julgado em 11-11-1999, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3/2 do DL 2/98 de 3/1, em pena de multa; 15) Por decisão de 18-..-2002, transitada em julgado em 30-10-2003, foi condenado pela prática, em 28-7-2000, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21/1 e 24 alínea i) do DL 15/93, na pena de 5 anos e 4 meses de prisão; 16) Por decisão de 23-..-2002, transitada em julgado em 7-11-2002, foi condenado pela prática, em 20-11-99, de 1 crime de receptação p. e p. pelo art. 231 do CP, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €5; 17) Por decisão de 29-.. 2003, transitada em julgado em 14-5-2003, foi condenado pela prática, em 12-3-2000, dum crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 204 do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e por decisão de 27-9-2004, por crime idêntico, condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão e 100 dias de multa, à taxa diária de €5; 18) Por decisão de 27---2003, transitada em julgado em 15-12-2003, foi condenado pela prática, em 6-3-97, de 1 crime de passagem de moeda falsa, p. e p. pelo artigo 265/1 alínea a) do CP, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses, pena esta julgada extinta por decisão de 17-1-2008; 19) Por decisão de 26-..-2004, transitada em julgado em 10-8-2004, foi condenado pela prática, em Setembro de 2003, de 2 crimes de furto qualificado p. e p. pelo art° 204 do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; 20) Por decisão de 20-..-2004, transitada em julgado em 4-11-2004, foi condenado pela prática, em 17-6-2002, dum crime de ameaças p. e p. pelo artigo 153° do CP, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €5 e por crime idêntico na pena única de 160 dias de multa à taxa diária de €5; 21) Por decisão de 6----2008, transitada em julgado em 10-12-2008, foi condenado pela prática, em 27-3.2007, dum crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86 da Lei 5/2006 de 23/2, na pena de 4 meses de prisão. E tem por «não provado» o que como tal já consta do acórdão recorrido, a saber, que - a) O arguido tivesse chegado a receber e a deter o produto estupefaciente que vinha na encomenda; b) O arguido destinasse a substância estupefaciente à venda naquele estabelecimento prisional a outros reclusos ou que pretendesse disponibilizá-la aos restantes reclusos; c) A encomenda se não destinasse ao arguido e que o remetente da mesma não viesse preenchido; d) O arguido recusasse o seu recebimento, que se negasse a assinar o livro de encomendas e que nunca tivesse reconhecido que a mesma lhe era destinada. A fundamentação do não provado é a já constante do acórdão recorrido. O mesmo quanto aos factos provados que já constavam do dito acórdão e que aqui como tal ficaram reproduzidos. Quanto ao mais tido agora por provado, fundamenta-o este tribunal do seguinte modo – - O n.º1 no depoimento da testemunha AT em conjugação com o que consta do relatório social de fls. 140/142; - Os n.ºs 3) a 6) nos depoimentos das testemunhas A e R, guardas que tiveram intervenção no caso e cujos depoimentos mereceram quer ao tribunal recorrido quer a nós toda a credibilidade; - O n.º 7) na circunstância provada do arguido ser toxicodependente e desta outra de não se ter provado que o arguido destinasse a substância estupefaciente à venda ou à cedência por qualquer meio a outros reclusos conjugada com o princípio probatório «in dúbio pro reo», não se antevendo que outra destinação pudesse o arguido pretender dar ao apreendido; - O n.º8 por o arguido ficar a saber pela boca da guarda A do conteúdo da saco conjugado com o conhecimento que já tinha do carácter proibido do produto face aos seus antecedentes criminais. Efectivamente o arguido já fora julgado por tráfico de droga, donde, de acordo com as regras da experiência, não poderia deixar de saber que a detenção de haxixe era proibido e punível. 2.3.2- Não daremos cumprimento ao que se dispõe no n.º3 do art.º 424º do Código de Processo Penal por, como abaixo veremos, se impor a absolvição do arguido/recorrente, o que torna despiciendo tal formalismo. 2.3.3- Face ao provado não pode o arguido ser condenado pela prática do crime de tráfico em qualquer das modalidades enunciadas nos art.ºs 21, 25 ou 26 do Dec-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro. O art.º 28º da Lei n.º30/2000 de 29/11, lei que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica, estatui que «São revogados o art.º 40, excepto quanto ao cultivo, e o art.º 41 do Dec-Lei nº n.º15/93 de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime». Esta norma revogatória do art.º 40 do Dec-Lei nº 15/93 veio instalar a discussão sobre o tratamento jurídico a dar às situações em que se prove ser o agente detentor de droga para consumo mas em quantidade superior à média individual para dez dias (cfr. art.º2/2 da Lei 30/200, art.º 9º da Portaria 94/96 de 26/3 e mapa anexo). Contudo, o Ac do STJ uniformizador de jurisprudência publicado no DR I-A de 5/8/2008 sob o n.º 8/2008 veio estabelecer, com a força vinculativa que lhe é própria, que «Não obstante a derrogação operada pelo art.º 28 da Lei n.º 30/2000 de 29/11, o art.º 40/2 do Dec-Lei nº 15/93 de 22/1 manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo como relativamente à detenção ou aquisição, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias». Sendo a pena de detenção para consumo próprio de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias, logo se vê face ao estatuído no art.º 23/1 do Código Penal da não punibilidade da tentativa em causa. Efectivamente, como refere o acórdão recorrido, tudo não passou duma tentativa de detenção, estatuindo o falado n.º1 do art.º 23 do Código Penal que «Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a três anos de prisão». III- Decisão – Termos em que, dando-se procedência ao recurso, se altera a decisão de facto para os termos que ficaram expressos em II/2.3.1); se absolve o arguido do crime de tráfico e se declara não punível a sua tentativa de detenção do referido produto estupefaciente. Sem custas. Coim |