Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6342/08.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: FALTA DE CONTESTAÇÃO
FORÇA EXECUTIVA
ACÇÃO
CUMPRIMENTO
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL N.º 269/98 DE 1 DE SET.
Sumário: Na acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, a que respeita o DL n.º 269/98 de 1.9, em que o réu não contestou, pode ser recusada força executiva à parte do pedido com fundamento na doutrina do Acórdão Unificador de Jurisprudência, no caso do AUJ n.º 7/2009 de 5.5.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            1. Relatório

            O “A...”, em 20.11.08, propos contra B... e marido C...acção com forma de processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos do DL n.º 269/98 de 1.9, pedindo a sua condenação solidária destes no pagamento da importância de € 5.348,71, acrescida de € 1.352,48 de juros vencidos até 20.11.08 e de € 54,10 de imposto de selo sobre estes juros e ainda os juros que sobre aquela quantia de € 5.348,71 se vencerem à taxa anual de 21,12% desde 21.11.08 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que à taxa de 4% sobre estes juros recair.

            Alegou para tanto, em síntese, que no exercício da sua actividade comercial emprestou à R., com vista à aquisição de um veículo automóvel (crédito ao consumo) a quantia de € 8.575,00, com juros à taxa nominal de 17,12% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, a comissão de gestão e o imposto de selo de abertura de crédito ser pagos em 72 prestações mensais e sucessivas, no valor, cada, de € 197,91, com vencimento, a 1.ª, em 10.5.04 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.

            Fora acordado que a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicaria o vencimento imediato de todas as demais.

            Foi ainda acordado que em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada, de 17,12%, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 21,12%.

            O R. não pagou a prestação 41.ª e ss, vencida, essa, em 10.9.07, vencendo-se, assim, todas as demais em falta, tendo, no entanto pago a 42.ª, 43.ª, 47.ª e 48.ª prestações, vencidas em 10.10 e 10.11.07 e 10.3 e 10.4.08, respectivamente, tendo ainda entregue a quantia de € 192,77.

            Regularmente citados, os RR. não contestaram.

            Foi proferida sentença que, considerando ser o pedido manifestamente improcedente na parte relativa aos juros remuneratórios incorporados na prestação conforme o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 7/2009 de 25.3.09, conferiu força executiva à petição, com excepção da parte relativa aos juros remuneratórios, parte do pedido de que absolveu os RR.

            Inconformados com o assim decidido, recorreu o A., em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:

a) – Atenta a natureza do processo em causa – processo especial – e o facto de os RR. regularmente citados não terem contestado, deveria o Senhor o Juiz a quo ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo, assim, necessidade, sequer, de se pronunciar sobre quaisquer outras questões;

b) – Nesse sentido se pronunciou o Ac. da Relação de Lisboa, proferido no Proc. n.º 153/08.0TBLSB-L1, onde se referiu que “não tendo o apelado (…) contestado, apesar de citado pessoalmente, o tribunal recorrido deveria limitar-se a conferir força executiva à petição, nos termos do art.º 2.º do Regime dos Procedimentos a que se refere o art.º 1.º do diploma preambular do DL n.º 269/98 de 1.9 e não a analisar, quanto a um dos RR., da viabilidade do pedido, uma vez que este não era manifestamente improcedente (isto é, ostensiva, indiscutível, irrefutável)”, concluindo que, “nos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00, se o R., citado pessoalmente, não contestar, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição, para além da verificação evidente de excepções dilatórias, quando a falta de fundamento do pedido for manifesta, por não ser possível nenhuma outra construção jurídica”;

c) – Deve ser concedido provimento ao recurso e revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que condene os RR. recorridos na totalidade do pedido.  

Não houve lugar a resposta por parte dos RR.

Cumpre apreciar, sendo questão única a decidir:

- Se, face à ausência de contestação dos R., na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, a sentença deveria ter-se limitado a conferir força executiva à totalidade da petição inicial, ou poderia ter em conta a doutrina do Acórdão Unificador de Jurisprudência n.º 7/2009 de 5.5.09 para recusar a executoriedade a parte do pedido.


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2. Fundamentação

            2.1. De facto

A factualidade relevante é a constante do ponto 1 do antecedente relatório e que, brevitatis causa, aqui se dá por reproduzido.


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2. 2. De direito

            A questão enunciada tem vindo a ser diversamente tratada pelas várias Relações, apontando uns que a jurisprudência uniformizadora não releva para concluir pela manifesta improcedência da pretensão (como o demonstram os Acs. e decisões sumárias juntas pelo recorrente) e concluindo outros em sentido contrário.[1]   

            Cremos ser esta a posição a sufragar.

            O art.º 2.º do anexo ao DL n.º 269/96 de 1.9 ao dispor que, “se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente”, configura uma situação sui generis de cominatório semi-pleno, uma vez que, não obstante a falta de contestação, não há lugar à confissão dos factos alegados pelo autor, sempre ao tribunal cabendo a análise da factualidade alegada com vista a concluir por qualquer das situações obstativas à conferência de força executiva à petição, ou seja, de matéria de excepção dilatória ou de onde possa concluir-se pela manifesta improcedência do pedido.[2]

            No dizer de Salvador da Costa[3] a pretensão formulada pelo autor é manifestamente improcedente ou inviável quando a lei a não comporta ou quando os factos a não justificam, face ao direito vigente.

            Após a instauração da acção o STJ fixou jurisprudência[4] no sentido de “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781.º do Cód. Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados”.

            É sabido que os AUJ não têm carácter geral e abstracto e limitam a sua força vinculativa aos processos onde forma proferidos.

            Todavia, constituem precedentes judiciais qualificados e o facto de o seu não acatamento poder suscitar sempre (independentemente do valor da causa ou da sucumbência) a possibilidade de recurso (n.º 2, alín. c) do art.º 678.º do CPC), no dizer de Abrantes Geraldes[5], “constitui um fortíssimo factor de redução da margem de incerteza e de insegurança quanto à resposta a determinadas questões jurídicas, ante a mais que provável revogação da decisão se acaso for interposto recurso. Assinalando a posição assumida pelo órgão de cúpula da ordem jurisdicional relativamente a determinada questão, o acórdão de uniformização implica uma natural adesão dos demais órgãos jurisdicionais (efeito persuasivo) e do próprio Supremo se e enquanto a respectiva doutrina não caducar por via da modificação legislativa ou por elaboração de outro acórdão da mesma natureza”.

            A interpretação uniforme do direito constitui um dos vectores por que se tutela a certeza e a segurança jurídica, bem como a igualdade de tratamento postulada no princípio da confiança.[6]

            Ora, não estando, é certo, no plano dos princípios, desde logo constitucionais (art.º 203.º da CRP), qualquer tribunal obrigado a decidir no sentido indicado por um AUJ, podendo o STJ alterar, ele mesmo, essa jurisprudência, não poderá, contudo, deixar de a ela se atender dada a sua novidade e inalterabilidade dos pressupostos em que foi gizada.

            Quer dizer, o juiz ao decidir situação igual à que a determinou, não pode pura e simplesmente ignorá-la. Nem o juiz nem a parte, se desde logo quiser obter ganho de causa, em última instância com recurso ao órgão com poder para a ditar.

            A não ser assim, qual a utilidade visada pelo legislador com os AUJ?

            A decisão recorrida, ao não reconhecer força executiva à petição e consequentemente ao absolver os RR. da parte do pedido correspondente aos juros remuneratórios incorporados nas prestações vencidas por antecipação, com base no Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2009 concluiu com acerto pela manifesta improcedência dessa parte do pedido, dando cabal cumprimento ao art.º 2.º do citado DL n.º 269/98 de 1.9.

            Em suma:

            - Na acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, a que respeita o DL n.º 269/98 de 1.9, em que o réu não contestou, pode ser recusada força executiva à parte do pedido com fundamento na doutrina do Acórdão Unificador de Jurisprudência, no caso do AUJ n.º 7/2009 de 5.5.


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3. Decisão

Face a todo o exposto e soçobrando as conclusões do recurso, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelo apelante.


[1] V. g., Ac. RC de 11.5.10/ITIJ e RL de 22.4.10/ITIJ.
[2] V. Salvador da Costa, “A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, 6.ª ed., pág. 101.
[3] Idem, pág. 105.
[4] Ac. n.º 7/2009 de 25.3.09, DR-I-A , de 5.5.09.
[5] “Recursos em Processo Civil”, 2.ª ed., pág. 366.
[6] Karl Larenz, “Metodologia da Ciência do Direito”, Gulbenkian, pág. 502 e 504, sustenta que “por detrás do critério da uniformidade está o postulado de justiça, que consiste em decidir o que é idêntico de modo idêntico” e que “por princípio da confiança entendo o princípio seguindo o qual os tribunais não podem iludir a confiança que o público deposita na continuação de uma jurisprudência que tenha por fundamento uma convicção jurídica geral”.