Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1362/22.4T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: SEGURO DE INCÊNDIO
REQUISITOS DA CONFISSÃO
LIQUIDAÇÃO DOS DANOS
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DAS CALDAS DA RAÍNHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 609.º, 2, DO CPC
ARTIGOS 238.º E 357.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A confissão deve ser inequívoca.
II - O declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, terá em consideração o contexto negocial da declaração.

III - A opção pela posterior liquidação dos danos depende do juízo que se formar, em face das circunstâncias concretas de cada caso, sobre a possibilidade de determinação do valor exato dos mesmos.

Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., Lda., intentou ação contra Banco 1..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe €13.558,43, correspondente ao preço de custo da mercadoria perdida no incêndio e a condenação no pagamento de €5.423,37, a título de lucros cessantes, a que acrescem juros de mora desde a instauração da acção até integral e efetivo pagamento.

Para tanto, a Autora alega, em síntese:

Em maio de 2020, devido à pandemia Covid-19, colocou os seus trabalhadores em layoff; por essa razão, no dia 08.05.2020 solicitou à ré o cancelamento do débito em conta da apólice ...89 respeitante a seguro de acidentes de trabalho; no dia 04.06.2021 deflagrou um incêndio no armazém onde guardava produtos do seu comércio o que causou a perda da mercadoria aí depositada; a funcionária da autora comunicou a ocorrência do sinistro ao gestor de seguros que a informou que o seguro multiriscos não existia porque a autorização de débito se encontrava inativa; o gestor da ré ao invés de cancelar apenas o débito inerente ao seguro de acidentes de trabalho que havia sido solicitado procedeu também ao cancelamento do débito do seguro multiriscos, o que originou o cancelamento dessa apólice contra a vontade da autora; a ré apenas aceitou uma quota parte dessa responsabilidade; não foi notificada pela seguradora para a liquidação do valor em falta respeitante ao prémio daquele seguro multiriscos nem da resolução desse seguro; não solicitou o cancelamento do respetivo débito direto e sabia que a conta se encontrava aprovisionada para o débito da quantia do prémio do seguro multiriscos.

Contestou o Réu, em síntese:

A autora solicitou o cancelamento do débito em conta da apólice ...89 e, nessa altura, por lapso operativo, cancelou também a autorização de débito em conta associado à apólice ...68; esse lapso operativo não teve como consequência o cancelamento dessa apólice de seguro, pois tal sucedeu por inação da autora perante as diversas comunicações da seguradora B... de tal cancelamento; os danos invocados pela autora, atenta a atuação da mesma, nunca poderiam ser imputados na sua totalidade à ré; no mais, impugnou a factualidade vertida na petição inicial.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré Banco 1..., S.A, dos pedidos contra si formulados pela autora A..., Lda.


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           Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

A) Impugnam-se, da decisão sobre a matéria de facto, os pontos a), b), d), e), f) e g), dos factos não provados, atenta a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, a prova documental junta aos autos e a contradição entre alguns dos pontos provados, devendo os mesmos serem considerados provados;

B) No que respeita ao ponto a) dos factos não provados, impunha-se que tal facto tivesse sido dado como provado, porquanto se encontra em clara contradição quer com a prova testemunhal gravada e constante dos autos, quer com a matéria de facto provada, nomeadamente, nos pontos 6 e 7.

C) Encontra-se provado (facto provado 6) “Em Maio de 2020, em consequência do estado de emergência decretado na decorrência da pandemia Covid19, a autora colocou todos os seus trabalhadores em layoff;”(facto provado 7). “Estando os trabalhadores da autora em layoff e para poupar os inerentes custos, a autora cancelou o seguro de acidentes de trabalho com a apólice ...89 que havia contratado com a companhia de seguros B...;

D) As testemunhas AA – depoimento gravado entre as 11h43 e as 12h30, min. 19:38 - e BB depoimento gravado entre as 10H38 e as 11H43, min 33:16 da prova gravada referiram que o seguro de acidentes de trabalho foi cancelado por

todos os trabalhadores se encontrarem em layoff.

E) Estando a empresa em layoff, com todos os trabalhadores com suspensão dos contratos de trabalho e não lhe sendo permitido legalmente ter qualquer actividade, impunha-se que o douto Tribunal a quo desse como provado o ponto a), isto é “que devido ao layoff as instalações da autora encontravam-se sem quaisquer assalariados e sem nenhuma actividade.”

F) Ponto b) dos factos não provados “Que em plena pandemia e com todos os seus

funcionários em layoff, a autora nunca poderia receber qualquer comunicação por não se encontrar ninguém nas suas instalações”

G) Aqui igualmente se remete para o que as mesmas testemunhas referiram acerca do facto não provado a), simplesmente porque, não se encontrando ninguém a trabalhar nas instalações, ninguém poderia receber as comunicações que eventualmente fossem enviadas.

H) Por esse motivo, mal andou o douto Tribunal a quo porquanto, outrossim, impunha-se dar como provado “Que em plena pandemia e com todos os seus funcionários em layoff, a autora nunca poderia receber qualquer comunicação por não se encontrar ninguém nas suas instalações”.

I) Ponto d) dos factos não provados “Que o incêndio supra referido em 14. causou danos não só em bens da autora como também em bens das outras duas sociedades supra

referidas em 13 dos factos provados; encontrando-se este facto dado como não provado em contradição com o facto dado como provado no ponto 13.

J) Na motivação, o douto Tribunal faz referência à testemunha CC, militar da GNR que, confrontado com o teor do relatório de serviço de fls 12 e 13, confirmou o seu teor e referiu que no mesmo local laboravam 3 empresas.

K) Esta testemunha – com depoimento gravado entre as 10h00 e as 10h13 - referiu ao min. 4:50 do seu depoimento que “tanto quanto viu estava tudo a arder (…) a parte da

cosmética e da estrutura estava tudo a arder (…) seriam paletes, cartões, frascos, boiões e por aí fora”.

L) DD, bombeira, - com depoimento gravados entre as 10h13 e as 10h38 – referiu, ao min. 4.00 do seu depoimento “ a estrutura não ficou muito danificada tanto quanto percebemos, o que ficou foi mesmo a mercadoria que estava dentro do armazém assim como alguns equipamentos de embalagens penso eu” a ao min 10:00 referiu que os

artigos eram “perfumes, cosméticos, não sei se era desinfetante, se era álcool gel e ao 19 min 10:54 referiu “que a área que ardeu corresponde a metade ou mais de metade do armazém” tendo ao min 18h17 adiantado em termos de percentagem “70% foi mercadoria que ardeu e 30% terá ficado intacta.”

M) Ora, dando como provado no ponto 13 que nesse armazém funcionavam aquelas empresas, e tendo presente os testemunhos supra referidos, impunha-se dar como

provado o ponto d) dos factos não provados.

N) No que respeita aos pontos e), f) e g), e) Que a autora com o incêndio supra referido em 14. perdeu artigos de perfumaria e de cosmética; f) Que com o incêndio supra

referido em 14., a autora perdeu mercadoria no valor total de €13.558,43; g) Que o preço de custo da mercadoria que a autora perdeu com o incêndio se cifra em €13.558,43;

O) Resulta dos depoimentos - supra referidos e ali identificados os min dos seus depoimentos - das testemunhas CC e DD que algumas das mercadoria se tratavam de cosméticos, perfumes, boiões, bem como tal resulta do depoimento da testemunha BB min 18:32 a 23:14

P) Resulta dos factos provados, no ponto 28. uma confissão extrajudicial - expressa - tendo o R. aceitado o valor dos danos reclamados e informado que aceitava proceder ao pagamento de 50% desse valor ou seja 6.779,20€, através de e-mail enviado à A. tendo o douto Tribunal a quo desconsiderado por completo este documento.

Q) Resultou também provado - ponto 35 – “A ré assumindo o lapso operativo dos seus serviços que esteve na origem do cancelamento do débito direto, dispôs-se a pagar à

autora parte dos danos, decisão comercial que pretendia permitir a manutenção da boa relação existente com a autora” , sendo que a este respeito sempre se dirá que não podia o Tribunal a quo dar como provado que tal se deveu a decisão comercial que pretendia permitir a manutenção da boa relação existente com a autora” uma vez que contradiz, com diamantina clareza, o último parágrafo do referido e-mail de 31 de Março, que se trata de um documento escrito pelo R. à A. e não do depoimento de funcionários do R. que, como é bom de ver, têm interesse indireto na decisão da causa.

R) O Recorrido confessou – expressamente através do e-mail de 31 de Março de 2022 – entendeu o Banco assumir a sua quota de responsabilidade nesta situação, assumindo 50% do valor reclamado (6.779,20€) referente ao sinistro declinado pela Seguradora.

S) Reconheceu, sem qualquer reserva, o Recorrido, o valor total dos danos reclamados em sede extrajudicial no montante de 13.558,43€, assumindo a sua quota de responsabilidade na proporção de metade, pelo que se impunha decisão diferente dando-se como provados os factos e), f) e g) dos factos não provados.

T) Devia o Tribunal a quo ter dado como não provado a parte final do ponto 35 dos factos provados, “a decisão comercial que pretendia permitir a manutenção da boa relação existente com a autora” uma vez que está em contradição directa com o escrito no e-mail referido no ponto 28 dos factos provados.

U) Harmonizando quer a prova testemunhal supra transcrita, com a restante matéria de facto provada e não provada, requer que sejam dados como provados os factos que o Tribunal considerou não provados nas alíneas a), b), d), e), f) e g);

V) E dar como não provado, parcialmente o ponto 35, in fine, ou seja a frase “decisão comercial que pretendia permitir a manutenção da boa relação existente com a autora”

W) Andou mal o Tribunal a quo ao desvalorizar totalmente a confissão extrajudicial do R. Recorrido quanto ao computo dos danos sofridos pela A.

X) O R. recorrido não impugnou, nem colocou em causa a autenticidade do documento constante do ponto 28 dos factos provados, muito pelo contrário, admitiu a sua existência, tendo a A. aqui recorrente expressamente aceitado a sua confissão em requerimento junto aos autos a 17 de Outubro de 2022.

Y) Nenhuma das testemunhas veio colocar em causa o teor daquele documento, sendo que o facto de se alegar que se tratou de uma decisão meramente comercial (o que não consta do referido documento) totalmente irrelevante, não excluindo a validade da confissão ali inserta.

Z) No documento o R. confessa-se responsável e devedor de metade dos danos – que aceitou, sem quaisquer reservas, extrajudicialmente, por documento dirigido à A. – pelo que tal documento constitui uma dupla confissão - da responsabilidade do R. e bem

assim - uma aceitação, sem reservas, do valor reclamado a título de danos pela A.

AA) O Recorrido confessou extrajudicialmente, em documento particular dirigido à Recorrente, a sua responsabilidade, documento que tem força probatória plena, inexistindo lugar quer à discussão da responsabilidade quer ao âmbito e avaliação dos danos a ressarcir, devendo ser considerados os que constam daquela confissão.

BB) A douta sentença de que se recorre viola o disposto nos arts. 352º e 358º do

Código Civil.


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            O Recorrido contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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            Questões a decidir:

           A reapreciação da matéria de facto, com a consideração da pretensa confissão extrajudicial do valor dos danos;

As consequências jurídicas da referida reapreciação.


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A reapreciação da matéria de facto impugnada, com a consideração da pretensa confissão extrajudicial do valor dos danos.

Está essencialmente em causa apurar o valor dos danos da Autora, sendo certo que já não se discute que a responsabilidade é do Réu.

A absolvição deste decorreu da consideração de “que a autora, diversamente do que havia alegado, não logrou demonstrar a existência de dano, prova que lhe cabia, pelo que, não o tendo feito, e sendo os requisitos da responsabilidade civil cumulativos, falhando um deles, não pode a pretensão da autora ter provimento.”

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do CPC).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados.

Os elementos probatórios apresentados e disponíveis para a concreta reapreciação estão sujeitos à livre apreciação do julgador, pese embora se discuta o valor e a interpretação a dar à comunicação do Réu, de 31.03.2022.

Lembremos também que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respectiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.

Ora, reapreciadas as provas documental e testemunhal indicadas, a nossa convicção vai no seguinte sentido:

Comecemos pela pretensa confissão extrajudicial do Réu.

Num breve enquadramento, podemos afirmar que a lei nos diz que a confissão deve ser inequívoca. (art.357, nº 1, do Código Civil (CC).

Nos negócios formais, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. Mas, esse sentido pode valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade. (art.238 do CC.)

Por fim, não podemos deixar de reconhecer que o declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, terá sempre em consideração o contexto negocial da declaração, ou seja, o seu enquadramento.

Analisando a declaração em causa, e sem prejuízo dos depoimentos de EE e FF, resulta dela que o Réu entendeu que a “responsabilidade do cancelamento desta apólice não é da exclusiva responsabilidade do Banco, mas principalmente da empresa, que não efetuou qualquer diligência/ação no seguimento do aviso recebido para a liquidação do valor que estaria em falta, nem na sequência da carta de resolução do contrato”.

Em face desta negação ou imputação, a aceitação de um valor de 50% do reclamado tem o significado de uma proposta para acordo, para evitar as vias judiciais.

Não podemos aceitar o entendimento de que o Réu reconheceu os danos concretos, não só porque apresentados genericamente, mas também porque, como se vê da ação, afinal não seriam todos os danos, pois a Autora incluiu outros (lucros cessantes).

Depois, com o apoio das testemunhas referidas, percebemos que o Réu estava a tomar uma decisão comercial, em que se propôs pagar 50% dos prejuízos alegados, de modo a encerrar o assunto e manter a relação comercial que tinha com a Autora, tanto mais que entendia existir responsabilidade desta.

Sem uma análise cuidada ou pericial dos danos alegados, nem o pedido de informação e documentação adicional, comprovativa de tais danos, a Ré aceita os 50%; porém, se o acordo não fosse possível, naturalmente a posição das partes seria expressa completamente nos articulados do processo.

Neste, cabia a Autora demonstrar os danos.

Em conclusão, não existe uma confissão dos danos, expressos naquele valor.

Vejamos então cada um dos factos impugnados:

Considera a Recorrente que o Tribunal deveria ter dado como provado: “Que devido ao layoff as instalações da autora encontravam-se sem quaisquer assalariados e sem nenhuma atividade” e “Que em plena pandemia e com todos os seus funcionários em layoff, a autora nunca poderia receber qualquer comunicação por não se encontrar ninguém nas suas instalações.”

Este facto perdeu relevância face ao objeto do recurso. De qualquer maneira, não tem razão a Recorrente, pois que o depoimento de BB certifica outra coisa, ao declarar que, eventualmente, havia lá mais pessoas, havia de estar lá mais alguém, e que era ela quem recebia a correspondência e abria o correio.

Em conclusão, não se certifica que nas instalações da Autora, durante a pandemia, não se encontrava ninguém e que a empresa estava sem qualquer atividade.

E o facto fixado em 6 não contradiz esta conclusão.

Continuando:

A sentença entendeu dar como não provado que o incêndio causou danos em bens da autora. Esclarece o Tribunal, na respetiva motivação, que “verifica-se que a autora em momento algum cuidou de indicar com precisão a concreta mercadoria perdida e, bem assim, a sua quantidade…”; “Por outro lado, a autora limitou-se a aludir ao valor total da mercadoria pretensamente perdida desconhecendo o Tribunal se esse valor se reporta apenas a mercadoria da autora é que, note-se, conforme explicado pelas testemunhas CC, DD e GG naquele local laboraram três empresas - a autora, A..., Lda.; a empresa C..., Lda. e a empresa D... - e questionadas essas testemunhas acerca dos bens que pertenciam a cada uma dessas empresas  -ambos asseveraram que  no local não existia qualquer separação física da mercadoria que indicasse a qual delas pertencia a mercadoria.”

Consideremos:

Os depoimentos das testemunhas CC, DD e BB certificam o incêndio que destruiu parte substancial do conteúdo do armazém utilizado por 3 empresas. Ver ainda factos 14 e 19, não impugnados.

O depoimento da última, sem infirmação, expressa que foram as colegas HH e II a inventariar tudo, tendo feito a destrinça do que pertencia a uma empresa e do que pertencia às outras.

É verdade que as identificadas HH e II não foram ouvidas, mas essa dificuldade, para prova do valor concreto, não afasta a prova da destruição.

Por seu lado, não pode ser desconsiderado que o Réu aceitava parte da responsabilidade, no pressuposto básico do dano resultante do incêndio. A dificuldade que restou para a Autora foi a demonstração do concreto dano.

Neste contexto, a nossa convicção é a de que o incêndio causou danos em bens da Autora, perdendo-se artigos de perfumaria e de cosmética.

Fica por demonstrar que a Autora perdeu mercadoria no valor total de €13.558,43.

Por fim, quanto ao facto fixado em 35, reitera-se tudo o que se disse acerca da comunicação datada de 31 de março de 2022, não se encontrando razões para alterar o fixado.

Pelo exposto, julgamos a impugnação parcialmente procedente, mantendo a matéria de facto como já decidido, com o aditamento de que o incêndio causou danos em bens da Autora, perdendo-se artigos de perfumaria e de cosmética, do seguinte modo:

Factos provados:

1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, exportação e importação de artigos de cerâmica, vidro, têxteis, cortiça e outros produtos;

2. A ré é uma sociedade comercial que se dedica à actividade bancária;

3. No âmbito das respectivas atividades, a autora abriu a conta de depósito à ordem com o n.º ...05 e com o IBAN  ...05, junto do balcão da ré de ...;

4. O funcionário da ré JJ é o gestor de cliente da autora e quem trata todos os assuntos inerentes à conta bancária referida em 3.;

5. A autora tem diversas autorizações de débito na conta referida em 3, designadamente e, entre outras, as decorrentes dos pagamentos dos seguros com as apólices ...68, respeitante a um seguro multiriscos e a apólice ...89, respeitante a um seguro de acidentes de trabalho, contratados com seguradora B..., S.A;

6. Em maio de 2020, em consequência do estado de emergência decretado na decorrência da pandemia Covid19, a autora colocou todos os seus trabalhadores em layoff;

7. Estando os trabalhadores da autora em layoff e para poupar os inerentes custos, a autora cancelou o seguro de acidentes de trabalho com a apólice ...89 que havia contratado com a companhia de seguros B...;

8. A gestão dos seguros da autora está a cargo da agência de mediação de seguros E..., Lda., tendo sido o consultor AA quem tratou do pedido de cancelamento do seguro de acidentes de trabalho;

9. No dia 8 de maio de 2020, a autora enviou ao gestor da ré JJ, através do endereço de e-mail “...@....pt” uma carta a solicitar o cancelamento do débito em conta da respectiva apólice ...89 com o seguinte teor: “..., 08 de maio de 2020, Assunto: Cancelamento de Débito em conta. Exmos. Senhores. Pelo presente solicitamos procedam ao cancelamento do débito em conta de: •

apólice ...89, Entidade Credora: B... SA.”; podendo ainda ler-se no corpo do e-mail: “Boa tarde Sr. JJ. Pelo presente solicito o cancelamento do débito direto da apólice ...89. Segue carta em anexo”;

10. A ré recebeu, na pessoa do seu colaborador JJ, a missiva da autora datada de 08 de maio de 2020 a solicitar o cancelamento do débito em conta da apólice ...89;

11. Nessa sequência, a ré, no dia 15 de maio de 2020, procedeu ao cancelamento do débito em conta associado à apólice ...89;

12. Na mesma altura e por lapso operativo dos serviços da ré foi cancelada também a autorização de débito em conta associada à apólice ...68;

13. As instalações da autora correspondem à sua sede e compreendem uma área de escritórios e outra de armazém, locais onde também operam as sociedades comerciais A..., Lda. pessoa colectiva com o NIPC ...25 e a D..., Lda., pessoa colectiva com o NIPC ...54, sociedades que têm em comum os sócios maioritários;

14. No dia 4 de junho de 2021, cerca das 16:00 horas, deflagrou um incêndio no armazém onde a autora guardava produtos do seu comércio grossista e que tinha adquirido para revenda;

15. BB encontrava-se a trabalhar no escritório da autora quando recebeu uma notificação, no seu telemóvel, do alarme do armazém a relatar um corte de energia do quadro elétrico;

16. Na sequência desse alarme, BB deslocou-se ao armazém, onde constatou que o mesmo se encontrava em chamas tendo de imediato ligado para o 112 a comunicar o incêndio;

17. No local do incêndio esteve presente o serviço de patrulha às ocorrências do posto territorial de ..., do destacamento territorial de ..., do comando territorial de ... da Guarda Nacional Republicana, os guardas CC e KK;

18. O incêndio foi combatido por oito viaturas e vinte e sete elementos dos Bombeiros Voluntários ..., das ..., do ... e de ..., tendo sido extinto pelas 17:22 horas do mesmo dia;

19. No mesmo dia do incêndio, a funcionária da autora BB, contactou telefonicamente o gestor dos seguros, AA, para relatar o ocorrido e solicitar indicações sobre a forma de participar o sinistro, tendo em conta que o mesmo envolvia três sociedades comerciais diferentes com danos nas respectivas mercadorias e com apólices distintas;

20. No dia 07 de junho de 2021, AA telefonou para BB dando-lhe nota de que não existia o seguro multiriscos da autora, tendo esta referido que isso era impossível uma vez que não tinham procedido a nenhum cancelamento, o que o gestor confirmou;

21. Após essa informação, BB procedeu à pesquisa, nos extratos bancários da autora, dos débitos em conta do referido seguro tendo constatado que o mesmo não era debitado desde o mês de maio de 2020;

22. Constado o referido em 21, no dia 08 de junho de 2020, BB enviou uma mensagem de correio eletrónico ao gestor da ré, JJ, a solicitar informação sobre o motivo de ter deixado de haver débito na conta da autora do referido seguro multiriscos;

23. O gestor JJ remeteu o assunto para a empresa mediadora de seguros;

24. No dia 28.06.2021, a ré informou a autora que “O pedido foi encerrado com a seguinte nota: Boa Tarde, recibo não cobrado pelo seguinte motivo: Autorização de Débito Inativada.”;

25. Perante a referida informação, a autora solicitou à ré esclarecimentos sobre o sucedido tendo recebido a informação de que a autorização de débito fora cancelada por ordem do gestor JJ;

26. O gestor JJ ao invés de proceder somente ao cancelamento do débito inerente ao seguro de acidentes de trabalho, conforme solicitado pela autora, procedeu, também, ao cancelamento do débito do seguro multiriscos;

27. O cancelamento do débito do seguro multiriscos originou o cancelamento da

respectiva apólice de seguro contra a vontade da autora;

28. No dia 31 de março de 2022, a ré enviou à autora uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte teor: “(…). Analisada a situação que trouxeram ao nosso conhecimento, cumpre-nos informar que a ADC nº ...47 correspondente à apólice ...68, foi cancelada no dia 15 de maio de 2020, devido a um lapso operativo dos nossos serviços, conforme já transmitido a V. Exas., facto que, desde já, lamentamos. Não obstante o lapso ocorrido por parte do Banco, e conforme referido pela Seguradora, foi enviada documentação para V. Exas. a informar que a apólice tinha um valor por liquidar, através do “Aviso por Falta de pagamento” de 26 de maio de 2020, dando várias alternativas para a liquidação do mesmo. Não tendo este valor sido liquidado por V. Exas., dentro do período estabelecido para o efeito, procedeu a Seguradora ao envio de uma carta datada de 8 de agosto de 2020 com o assunto “Resolução de apólice por Falta de pagamento”. Ambas as cartas foram enviadas para a morada abaixo, que não regista qualquer tipo de devolução de correspondência: Rua ... .... Face ao acima exposto, entendemos que a responsabilidade do cancelamento desta apólice, não é da exclusiva responsabilidade do Banco, mas principalmente da empresa, que não efetuou qualquer diligência/ação no seguimento do aviso recebido para a liquidação do valor que estaria em falta, nem na sequência da carta de resolução do contrato. Neste sentido, entendeu o Banco assumir a sua quota parte de responsabilidade nesta situação, assumindo 50% do valor reclamado (6.779,20€), referente ao sinistro declinado pela Seguradora. (…)”;

29. A apólice ...68, respeitante ao seguro multiriscos, foi cancelada sem

qualquer conhecimento da autora e contra a sua vontade;

30. A autora não solicitou o cancelamento do débito direto da apólice ...68;

31. A autora sabia que a sua conta bancária se encontrava provisionada para que se pudesse proceder ao débito direto da quantia respeitante ao prémio do seguro multiriscos;

32. A autora confiou nos serviços da ré, bem como confiou que o seguro multiriscos estaria pago e em dia;

33. A seguradora B... enviou para a sede da autora uma carta datada de 26 de maio de 2020 a comunicar que não havia sido possível efetuar a cobrança da prestação associada à apólice atenta a “Autorização de Débito Inativada” concedendo-lhe até ao dia 10 de Junho de 2020 para a regularização do montante em falta sob pena de cancelamento da apólice;

34. A seguradora B... enviou uma carta à autora, datada de 08 de agosto de 2020, a comunicar que “(…) por falta de pagamento do prémio, o seu contrato de seguro foi resolvido, com efeitos a partir de 19.05.2020.”.

35. A ré assumindo o lapso operativo dos seus serviços que esteve na origem do cancelamento do débito direto, dispôs-se a pagar à autora parte dos danos, decisão comercial que pretendia permitir a manutenção da boa relação existente com a autora.

36. Só por causa do cancelamento do débito direto veio a verificar-se o cancelamento do seguro;

37. A falta de pagamento por “Autorização de Débito Inativada” por acto praticado pelo gestor da ré foi causa directa e adequada do cancelamento do seguro.

38 (Aditado). O incêndio referido causou danos em bens da Autora, perdendo-se artigos de perfumaria e de cosmética.


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            Como assinalado, a improcedência da ação decorreu apenas de se ter considerado que a Autora não fez prova do dano, já que, quanto à responsabilidade pelo facto, a mesma foi imputada integralmente ao Banco Réu.

           Este não recorreu, não colocando qualquer questão ou exceção à sua responsabilidade.

A Autora perdeu a protecção do seguro que tinha porque o Réu anulou indevidamente o débito direto a que procedia regularmente, levando à anulação do seguro.

           Na reapreciação da matéria de facto, verificamos que a Autora teve danos decorrentes do incêndio, perdendo artigos de perfumaria e de cosmética.

           A Autora, apesar de apresentar o testemunho de BB, não conseguiu demonstrar o valor daquela perda. Mas, por isso, não deve perder por completo.

            Entendemos ser caso de dar uma nova oportunidade de prova à Autora, sendo até certo que o Réu estava disposto a liquidar parte do dano. (Cfr. art. 609, nº 2, do Código de Processo Civil.)

Não se pretendendo incentivar a arbitrariedade ou discricionariedade, o recurso à equidade, nesta fase, só deve ocorrer, em regra, quando os elementos dos autos possam auxiliar o julgador na determinação de um valor que se não afaste muito da verosimilhança ou probabilidade e que reflita a ponderação de critérios de justiça relativa.

Quando não disponha de dados suficientes que lhe permitam concretizar a justiça do caso, a equidade só se mostrará desadequada se for previsível, face à situação concreta, que a sua quantificação se torne possível no âmbito de posterior liquidação.

Sendo certo que os tribunais não devem arrastar a solução dos litígios, recomeçando na liquidação o que devia ter acabado na ação declarativa, a opção por uma ou outra daquelas soluções depende do juízo que se formar, em face das circunstâncias concretas de cada caso, sobre a possibilidade de determinação do valor exato do dano.

Ora, no caso, resulta do depoimento de BB que outras duas pessoas identificadas fizeram o inventário do prejuízo, destrinçando o que pertencia a uma e outras das sociedades. Referiu que uma plataforma informática permitia diferenciar o que pertence a cada uma das sociedades envolvidas.

Assim, parece ainda ser possível quantificar o dano genericamente provado, o que se fará em liquidação posterior.

Por fim, note-se que o recurso limitou os danos ao valor de €13.558,43 (valor das mercadorias destruídas), “desistindo” da discussão relativa aos “lucros cessantes”.


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            Decisão.

           Julga-se o recurso parcialmente procedente e, mantendo o demais decidido, condena-se o Banco Réu, “Banco 1...”, a pagar à Autora,A..., Lda., o valor correspondente ao preço de custo da mercadoria perdida pela Autora no incêndio, até ao limite de €13.558,43, a que acrescerão os juros de mora desde a instauração da ação até integral e efetivo pagamento.

           As custas, em ambas as instâncias, ficam por ora a cargo das partes em partes iguais, proporção que será ajustada quando a liquidação estiver finalizada.

2024-01-23


(Fernando Monteiro)

(Vítor Amaral)

(Fonte Ramos)