Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/20.2T8AGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
NOMEAÇÃO DE CABEÇA DE CASAL
REQUISITOS
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2080.º; 2083.º E 2086.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 293.º, N.º 3, DO CPC
Sumário: I - A lei, com vista a um inventário célere e equitativo, pretende que seja nomeado cabeça de casal a pessoa que melhor conhecimento tenha do de cujus, do seu património e da organização/administração do mesmo, refletindo o artº 2080º do CPC uma hierarquia, por ordem decrescente, nesse sentido.
II - Assim, a parte final do nº3 de tal preceito deve ser objeto de uma interpretação declarativa lata ou até extensiva, no sentido de ele abarcar a pessoa, que mesmo não vivendo sob o mesmo teto com o falecido, tenha tido uma relação vivencial de proximidade com o mesmo que lhe confira os aludidos conhecimentos, tudo com vista à consecução dos mencionados fitos; e preferindo pois, nestas condições, ao parente do mesmo grau, mesmo que este seja mais velho, mas que não tem tais conhecimentos.
Decisão Texto Integral: Relator:
Carlos Moreira
Adjuntos:
João Moreira do Carmo
Rui Moura

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

No processo de inventário em epígrafe em que são  interessados AA, BB e CC, foi proferido o seguinte despacho:

«Nos presentes autos de inventário por óbito de DD, foi nomeada cabeça-de-casal EE.

Comprovado que foi o respectivo óbito, foi nomeado cabeça-de-casal CC, por ser o filho mais velho do inventariado.

Citados para os termos do presente Inventário, os interessados AA e BB vieram impugnar a competência do cabeça-de-casal requerendo a nomeação do interessado AA para exercer tais funções.

Invocaram, para o efeito, que: com o falecimento do cônjuge sobrevivo, os Interessados, na qualidade de filhos do Inventariado, são todos descendentes em igualdade de grau, pelo que beneficiam, em princípio, da mesma proximidade derivada do grau de parentesco; refere a lei que havendo o mesmo grau de parentesco, “preferem” os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte, e se todos se encontrarem em iguais circunstâncias, “prefere” o herdeiro mais velho; no presente inventário nenhum dos Interessados vivia no mesmo domicílio do Autor da Herança, mas há circunstâncias que importam ter em consideração: o Interessado, agora nomeado Cabeça de Casal, apesar de ser filho do Inventariado, nunca teve qualquer contacto ou relacionamento com o pai ou com a família do pai; os interessados AA e BB, só tiveram conhecimento da existência deste irmão, após a morte do Inventariado; aquele nunca esteve presente em qualquer momento (bom ou mau) da vida do falecido seu pai, não o visitou aquando da sua doença que o hospitalizou no período que precedeu a sua morte, nem tentou saber do seu estado de saúde, nem mesmo esteve presente no seu funeral; foram sempre os interessados AA e BB que estiveram presentes na vida do Inventariado; embora não habitando na mesma casa, o Interessado AA vive a poucos metros da casa onde o Autor da herança, seu pai, viveu os últimos anos da sua vida, e onde diariamente se deslocava para em conjunto com este, o auxiliar na sua vida diária; era o Interessado AA quem auxiliava o seu pai nas deslocações ao supermercado, nas idas ao médico, quem supervisionava a toma da medicação quando esta era necessária, sendo frequente a realização de refeições em conjunto; foi o Interessado AA, quem esteve presente quando o seu pai foi hospitalizado, e quem diariamente o visitou e auxiliou nos últimos dias de vida, levando para junto de si a sua mãe, para que esta não ficasse sozinha; é o ora Interessado AA quem se encontra em melhores condições para exercer e desempenhar as funções de Cabeça de Casal; tem sido o Interessado AA, inicialmente coadjuvando a sua mãe e agora sozinho, quem após o falecimento do Inventariado tem vindo a actuar sobre o património, garantindo o pontual cumprimento das obrigações da herança aberta por óbito do seu pai, em suma, quem tem sempre exercido o cabeçalato de facto, por força da proximidade estabelecida; o Interessado AA, por sempre ter estado presente na vida do Inventariado, tem o maior conhecimento da realidade da vida do autor da herança e do património e responsabilidades que este deixou.

Notificado o cabeça-de-casal para, em 10 dias, contestar, querendo, o incidente, o mesmo nada disse.

Cumpre decidir.

Nos termos do art. 2086.o do Código Civil, o cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem, se: dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes; se não administrar o património hereditário; se não cumprir no inventário os deveres que a lei do processo lhe impuser; ou se revelar incompetência para o cargo…

Cumpre, desde logo referir que o interessado CC foi nomeado cabeça-de-casal em cumprimento da escala hierarquizada estabelecida no art. 2080o do Código Civil segundo a qual se defere ex lege o cargo de cabeça-de-casal. O mesmo é herdeiro legal do falecido, os demais herdeiros legais têm o mesmo grau de parentesco e, em igualdade de de circunstâncias, é o mais velho dos três.

Por outro lado, os requerentes não invocam que qualquer deles vivesse “com o falecido há pelo menos um ano à data da morte”, conforme prevê o art. 2080o, n.o 3 do Código Civil. Pelo contrário, afirmam que “no presente inventário nenhum dos Interessados vivia no mesmo domicílio do Autor da Herança”.

Não cumpre aferir, a priori e em abstracto, se o  cabeça-de-casal legalmente indicado é a pessoa que está em melhores condições para exercer as referidas funções.

Conforme salienta Capelo de Sousa “Esta instituição legal permanece, nos termos do art. 2082o, mesmo que o indigitado seja incapaz, só que então exercerá as funções de cabeça-de-casal o seu representante legal” – Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Ed., 2002, p. 43.

Assim, exceptuado o caso previsto no art.o 2083.o do C. Civil, o juiz não pode subverter a ordem estabelecida no art. 2080.o do Código Civil, nomeando pessoa diversa daquela que dessa ordem resulta. E nomeado o interessado a quem o cargo couber, para além do seu decesso, o mesmo só pode ser removido do cargo nos casos estabelecidos pelo art.o 2086.o do C. Civil.

Contudo, a factualidade invocada pelos interessados requerentes não se subsume a qualquer dos mencionados fundamentos, termos em que se indefere a requerida remoção das funções do cabeça-de-casal.

Custas pelos requerentes do incidente com 1 UC de taxa de justiça, cada um.»

2.

Inconformados recorreram os interessados AA e BB.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A - O presente Recurso de Apelação, tem por objeto a Decisão proferida pela Meritíssima Juiz do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., que indeferiu o Incidente de Impugnação das Competências do Cabeça-de-Casal requerida pelos ora Recorrentes;

B – Impugna-se tal Decisão na medida em que esta padece de vício notório na apreciação dos factos e consequentemente no direito aplicado.

 Senão vejamos:

C - Entendeu a Mma Juiz a quo que:

“No caso dos autos, os interessados AA e BB vieram impugnar a competência do cabeça-de-casal requerendo a nomeação do interessado AA para exercer tais funções. Cumpre, desde logo referir que o interessado CC foi nomeado cabeça-de-casal em cumprimento da escala hierarquizada estabelecida no art. 2080º do Código Civil segundo a qual se defere ex lege o cargo de cabeça de casal. O mesmo é herdeiro legal do falecido, os demais herdeiros legais têm o mesmo grau de parentesco e, em igualdade de circunstâncias, é o mais velho dos três. Por outro lado, os requerentes não invocam que qualquer deles vivesse “com o falecido há pelo menos um ano há data da morte”, conforme prevê o art. 2080º, nº 3 do Código Civil. Pelo contrário, afirmam que “no presente inventário nenhum dos Interessados vivia no mesmo domicílio do Autor da Herança.” Não cumpre aferir, a priori e em abstracto, se o cabeça-de-casal legalmente indicado é a pessoa que está em melhores condições para exercer as referidas funções. Conforme salienta Capelo de Sousa “Esta instituição legal permanece, nos termos do art. 2082º, mesmo que o indigitado seja incapaz, só que então exercerá as funções de cabeça-de-casal o seu representante legal” – Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Ed., 2002, p. 43. Assim, exceptuado o caso previsto no art. 2083º do C. Civil, o juiz não pode subverter a ordem estabelecida no art. 2080º do Código Civil, nomeando pessoa diversa daquela que dessa ordem resulta. E nomeado o interessado a quem o cargo couber, para além do seu decesso, o mesmo só pode ser removido do cargo nos casos estabelecidos pelo art. 2086º do C. Civil. Contudo, a factualidade invocada pelos interessados requerentes não se subsume a qualquer dos mencionados fundamentos, termos em que se indefere a requerida remoção das funções do cabeça-de-casal”

D - E para formar a sua Decisão a Mma Juiz a quo teve em consideração, entre outra a seguinte factualidade:

“o Interessado, agora nomeado Cabeça de Casal, apesar de ser filho do Inventariado, nunca teve qualquer contacto ou relacionamento com o pai ou com a família do pai; os Interessados AA e BB, só tiveram conhecimento da existência deste irmão, após a morte do Inventariado; aquele nunca esteve presente em qualquer momento (bom ou mau) da vida do falecido seu pai, não o visitou aquando da sai doença que o hospitalizou no período que precedeu a sua morte, nem tentou saber do seu estado de saúde, nem mesmo este presente no seu funeral; foram sempre os Interessados AA e BB que estiveram presentes na vida do Inventariado; embora não habitando na mesma casa, o Interessado AA vive a poucos metros da casa onde o Autor da herança, seu pai, viveu os últimos anos da sua vida, e onde diariamente se deslocava para em conjunto com este, o auxiliar na sua vida diária; era o Interessado AA quem auxiliava o seu pai nas deslocações ao supermercado, nas idas ao médico, quem supervisionava a toma da medicação quando esta era necessária, sendo frequente a realização de refeições me conjunto; foi o Interessado AA, quem esteve presente quando o seu pai foi hospitalizado, e quem diariamente o visitou e auxiliou nos últimos dias de vida. Levando para junto de si a sua mãe, para eu esta não ficasse sozinha; é o ora Interessado AA quem se encontra em melhores condições para exercer e desempenhar as funções de Cabeça de Casal; tem sido o Interessado AA, inicialmente coadjuvando a sua mãe e agora sozinho, quem após o falecimento do Inventariado tem vindo a actuar sobre o património, garantido o pontual cumprimento das obrigações da herança aberta por óbito de seu pai, em suma, quem tem sempre exercido o cabecelato de facto, por força da proximidade estabelecida; o Interessado AA, por sempre ter estado presente na vida do Inventariado tem o maior conhecimento da vido do autor da herança e do património e responsabilidades que este deixou.” (O sublinhado é nosso)

E – A Mma Juiz a quo considerou estes factos porque notificado o cabeça-de casal para, em 10 dias, contestar, querendo, o incidente, o mesmo nada disse.

F - Ora, dispõe o Artigo 293.º do Código de Processo Civil que, no requerimento em que se suscite o incidente e na respetiva oposição, “devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”, havendo um prazo de 10 dias para dedução da referida oposição, cuja falta “determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere”.

G - Assim sendo, perante o silêncio do cabeça de casal, regularmente citado para o efeito, deveria a Mma Juiz a quo, não só ter dado como assentes os factos aduzidos pelos Interessados, ora Recorrentes, mas também julgado procedente a invocada incompetência do cabeça de casal nomeado.

A isto acresce que:

H - Nos autos em apreço, os Recorrentes impugnaram a competência do cabeça de casal nomeado ao abrigo do disposto no artigo 1104º, nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil, por entenderem que in casu e por maioria de razão, se deve aplicar a regra estatuída no nº 3 do artigo 2080º do Código Civil.

I - Com o devido respeito que é muito, mal andou a Mma Juiz a quo ao Decidir que “a factualidade invocada pelos interessados requerentes não se subsume a qualquer dos fundamentos, termos em que se indefere a requerida remoção das funções do cabeça-de-casal” - Porque não fez uma correcta análise da factualidade invocada pelos Interessados, ora Recorrentes.

J - Face à factualidade, que a Mma Juiz a quo considerou para formar a sua Decisão, é imperioso concluir que ainda que não tivessem vivido na mesma casa, o Interessado AA e o autor da herança tinham uma convivência diária, quotidiana, reportando-se esta convivência não só ao último ano (o que bastaria para justificar a sua preferência) mas aos últimos anos de vida do de cujus.

K - Neste sentido veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 15-12-2021 (relator: Aristides Rodrigues de Almeida), proferido no processo nº 959/21.4T8VNG-A.P1 (disponível em www.dgsi.pt): « (…) o critério do nº 3 nada tem a ver com o conceito de domicilio e muito menos com o conceito de domicilio voluntário. O critério é apenas o de haver entre o inventariado e o herdeiro uma relação de vida em comum. Não é necessário, porque a norma não o exige, que estejamos perante uma vida em economia comum, basta que estejamos perante uma vida na mesma habitação, no mesmo espaço, no fundo uma situação de convivência diária, quotidiana, normal, na medida em que essa convivência permite a partilha de informações que agilizarão o exercício do cargo.» (O sublinhado é nosso)

L - Ou seja, na atribuição de preferência aos herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, a lei exige mais que a mera coabitação, o domicílio comum. Como refere Augusto Lopes Cardoso em “Partilhas Litigiosas”, volume I, Almedina, 7ª edição, págs 448 e 449 e conforme Jurisprudência do STJ o termo “viver com” tem implícita a ideia de vivencia em comum, de comunhão de vida mais ou menos intensa e duradoura, ainda que sem (inter)dependência económica”

M- Desta forma, e por estarem preenchidos os requisitos de preferência preconizados no nº 3 do Artigo 2080º do Código Civil, a Mma Juiz a quo devia ter investido o Interessado (ora Recorrente) AA no cargo de Cabeça de Casal.

N - Do interessado CC sobra apenas a sua idade como presunção de que se encontra em melhores condições para exercer o cargo. Uma presunção que não é inilidível em face da supletividade do artigo 2080º do Código Civil, que deve ser afastada ao concluir-se (como concluiu a Mma Juiz a quo) que não mantinha (nem nunca manteve) qualquer relação de proximidade com o autor da herança _ exactamente por isso é que prefere o que “vivia” com o de cujus há pelo menos um ano

O - Portanto, o Interessado que neste momento está em melhores condições para bem administrar e gerir o acervo até à sua partilha, nos termos do artigo 2080º, nº 1 al. c) e nº 3 do Código Civil, é o AA, que dessa forma deve ser investido no cargo, revogando-se a Decisão Recorrida. Assim sendo:

P – Violou a Decisão Recorrida o disposto nos artigos 292º a 295º, 293º e 549º, nº 1 do Código de Processo Civil, e o artigo 2080º do Código Civil.

Contra alegou o recorrido pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é  a seguinte:

Ilegalidade da decisão que nomeou cabeça de casal CC, por ser o filho mais velho do inventariado.

5.

Apreciando.

Estatui o Artigo 2080.º do C. Civil:

1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:

a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;

b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;

c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;

d) Aos herdeiros testamentários.

2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.

3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.

4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.

E prescreve o artigo 2086.º:

1 - O cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem:

a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;

b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;

c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser;

d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.

Desde logo cumpre assinalar que a decisão parece partir de uma petição de princípio.

Entende a julgadora que:

 «exceptuado o caso previsto no art.o 2083.o do C. Civil, o juiz não pode subverter a ordem estabelecida no art. 2080.o do Código Civil, nomeando pessoa diversa daquela que dessa ordem resulta. E nomeado o interessado a quem o cargo couber, para além do seu decesso, o mesmo só pode ser removido do cargo nos casos estabelecidos pelo art.o 2086.o do C. Civil.».

Mas não é assim.

Estamos ainda e apenas em sede de nomeação do CC, nos termos do artº 2080º,  e não já a averiguar da bondade, ou não, da sua atuação, em termos tais – se a atuação não for adequada -  que podem levar à sua remoção nos termos do artº 2086º.

Na verdade:

«Em processo de inventário, tendo sido impugnada a competência do cabeça de casal ao abrigo do disposto no artigo 1104.º, n.º 1, alínea c), do CPC, cumpre averiguar a quem incumbe o cargo, nos termos previstos no artigo 2080.º do CC, não estando em causa apreciar a verificação de algum fundamento que imponha a remoção do cabeça de casal nomeado, nos termos previstos no artigo 2086.º do CC.» - Ac. da RE de 22.04.2022, p. 4674/20.8T8STB-A.E1.

Por conseguinte, a dilucidação do caso tem de ser efetivada apenas por reporte ao disposto no artº 2080º, rectius o seu nº3.

Nesta única vertente urge atentar que a ratio e teleologia que preside à nomeação do cabeça de casal prende-se com o fito de se pretender que a pessoa que assuma tal cargo encerre um conjunto de qualidades e conhecimentos que lhe permitam tramitar o processo de um modo mais escorreito, célere e equitativo.

Para tal presume-se que tais qualidades se atêm não apenas ao conhecimento e relacionamento pessoal que o cabeça de casal tenha tido com o de cujus, como também ao conhecimento da sua vida e património.

As pessoas que hierarquicamente são referidas no artº 2080º assumem -  ou é presumido pelo legislador que assumam -, por ordem decrescente, maiores e melhores  qualidades e conhecimentos com vista à consecução no inventário dos aludidos desideratos.

A assim ser, a parte final do nº3 de tal preceito não deve ser interpretada com o rigor decorrente dos seus exatos termos - «viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte» -  com o significado de que apenas preferem os herdeiros que habitavam a mesma casa do de cujus.

Mas antes deve  ser objeto de uma interpretação declarativa lata, ou até extensiva, no sentido de também abarcar os herdeiros que, apesar de não viverem com o  falecido sob o mesmo teto, com ele conviviam em termos tais que lhe proporcionavam um conhecimento do mesmo como pessoa, do seu modus vivendi e da  existência e organização/administração dos seus bens e do seu  património em geral.

No caso vertente.

Tal como alegam os recorrentes, não tendo o recorrido contestado os teor do seu  requerimento incidental, os factos  nele constantes devem ter-se por assentes por confissão ficta – artº 293º nº3 do CPC.

Ora perante tais factos é meridianamente evidente que quem está em melhores condições para  conduzir mais adequadamente o inventário não é o cabeça de casal nomeado, mas antes o interessado AA.

Efetivamente e algo repetitivamente há a considerar que:

«o Interessado, agora nomeado Cabeça de Casal, apesar de ser filho do Inventariado, nunca teve qualquer contacto ou relacionamento com o pai ou com a família do pai; …nunca esteve presente em qualquer momento (bom ou mau) da vida do falecido seu pai, não o visitou aquando da sua doença que o hospitalizou no período que precedeu a sua morte, nem tentou saber do seu estado de saúde, nem mesmo este presente no seu funeral»

Inversamente:

«… foram sempre os Interessados AA e BB que estiveram presentes na vida do Inventariado; embora não habitando na mesma casa, o Interessado AA vive a poucos metros da casa onde o Autor da herança, seu pai, viveu os últimos anos da sua vida, e onde diariamente se deslocava para em conjunto com este, o auxiliar na sua vida diária; era o Interessado AA quem auxiliava o seu pai nas deslocações ao supermercado, nas idas ao médico, quem supervisionava a toma da medicação quando esta era necessária, sendo frequente a realização de refeições me conjunto; foi o Interessado AA, quem esteve presente quando o seu pai foi hospitalizado, e quem diariamente o visitou e auxiliou nos últimos dias de vida. Levando para junto de si a sua mãe, para eu esta não ficasse sozinha; tem sido o Interessado AA, inicialmente coadjuvando a sua mãe e agora sozinho, quem após o falecimento do Inventariado tem vindo a actuar sobre o património, garantido o pontual cumprimento das obrigações da herança aberta por óbito de seu pai… tem o maior conhecimento da vido do autor da herança e do património e responsabilidades que este deixou.»

Por conseguinte, estando, reitera-se, nós ainda na fase de nomeação do cabeça de casal, e não na fase da sua remoção, a conclusão final a retirar é que o cabeçalato deve ser conferido não ao interessado CC, mas antes ao interessado AA.

Procede, brevitatis causa, o recurso.

(…)

 

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a decisão e nomear cabeça de casal o interessado AA.

Custas recursivas pelo recorrido.

Coimbra, 2023.11.07.

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