Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
54/14.2T8SAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PRÉDIO URBANO
PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
POSSE
ACESSÃO DA POSSE
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - SÁTÃO - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.204, 394, 1251, 1256, 1263, 1265, 1267, 1287, 1298, 1299, 1316 CC
Sumário: 1. - A doutrina e a jurisprudência vêm acolhendo uma interpretação algo flexível da norma proibitiva do art.º 394.º, n.º 2, do CCiv., defendendo a admissibilidade, em matéria de acordo simulatório, da prova testemunhal corroborante, isto é, desde que assente em base documental que constitua começo de prova (documentos fundantes de uma primeira convicção, uma possibilidade séria de simulação, a confirmar, ou não, com os depoimentos testemunhais).

2. - Tal base documental pode traduzir-se em documento assinado pelos simuladores ou algum deles ou resultar da conjugação de diversos documentos relevantes.

3. - O ónus da prova dos factos integrantes dos pressupostos da simulação – intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, acordo simulatório e intuito de enganar terceiros – cabe a quem a invoca.

4. - Se num imóvel com descrição registal e matricial como prédio rústico foi edificada uma casa de habitação – construção com incorporação no solo e autonomia económica –, sem alteração do registo, ocorre divergência entre a realidade jurídica, por se tratar de prédio urbano à luz do disposto no art.º 204.º, n.º 2, do CCiv., e a situação matricial e registal.

5. - Sendo esse prédio objeto de doação, com identificação na respetiva escritura pública como prédio rústico, por referência àquela situação matricial e registal, é de interpretar a declaração de doação no sentido de ter sido querido doar o prédio tal como se encontrava ao tempo da doação, posto que as partes bem o conheciam fisicamente e nada declararam excluir do negócio, o qual não padece de invalidade reportada ao seu objeto.

6. - Os requisitos da usucapião, como pressupostos de procedência de pedido da ação, têm de ser demonstrados pelo autor.

7. - Com a transmissão, por doação, do direito de propriedade ocorre a transferência, solo consensu, da posse para o donatário, novo proprietário, com a consequente perda pelo transmitente, que, continuando em contacto com o bem, pode passar a mero detentor (em nome de outrem).

8. - A acessão da posse, pressupondo que alguém haja sucedido, de forma titulada, na posse de outrem, implica a junção de posses sucessivas (que sejam contíguas e ininterruptas), sendo imprescindível um ato translativo da posse, pelo qual se opere a transmissão de um possuidor para o outro.

9. - Sendo o caso de inversão do título de posse, em que falta aquela transmissão entre possuidores, fica sempre afastada a acessão da posse obtida pelo oponente à posse daquele em cujo nome possuía.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

A (…) com os sinais dos autos,

intentou ([1]) ação declarativa, com processo comum, contra

S (…)  e mulher, M (…) também com os sinais dos autos,

pedindo que sejam os RR. condenados a:

“a) Verem declarada a nulidade da escritura de doação realizada em 07 de Março de 2006 no Cartório Notarial de Penalva do Castelo, exarada a fls. 73 a 74 do livro 81-E, pela qual o autor e M (…) declaram doar ao réu S (…) os prédios identificados nas alíneas a) e c) do anterior artigo 1.º” (da petição inicial);

“b) Ordenado o cancelamento na Conservatória do Registo Predial do registo de aquisição por doação a favor do réu, efetuado através da ap. 3 de 2006/03/08, dos prédios descritos sob os números 370 e 2400 da freguesia de (...) , concelho de Penalva do Castelo”;

a título subsidiário,

“c) Reconhecerem que inexiste qualquer documento válido de transmissão a seu favor do prédio urbano identificado nos artigos 22.º e 28º” (da petição inicial);

“d) Reconhecerem que o prédio identificado nos artigos 22.º e 28º, pertence em propriedade plena e exclusiva ao autor e M (…);

e) Ordenado o cancelamento na Conservatória do Registo Predial do registo de aquisição a favor do réu do prédio urbano identificado nos artigos 22.º e 28º, descrito sob o número 2400 da freguesia de (...) , concelho de Penalva do Castelo, nomeadamente do averbamento de alteração efetuado através da ap. 222 de 2013/12/16”.

Para tanto, alegou, em síntese, que o A. e M (…)– cuja intervenção requereu, como sua associada, por via de litisconsórcio necessário ativo – apesar de terem declarado doar, por escritura pública de 07/03/2006, três prédios (um rústico e dois urbanos) ao R. S (…), seu filho, não o quiseram fazer quanto a dois deles (o rústico e um dos urbanos), tendo tal negócio sido realizado com a finalidade de o demandante se eximir de uma execução fiscal, pondo a salvo o seu património, invocando ainda o Demandante a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre a casa de habitação construída em um de tais prédios (aquele rústico).

Contestaram os RR., impugnando diversa factualidade alegada pelo A., defendendo que a doação (dos três prédios) se destinou a compensar o R. marido por mais de uma década de trabalho para o A., seu pai, sem remuneração, e concluindo pela total improcedência da ação.

Admitida a intervenção principal provocada de M (…) (mãe do R. marido e ex-cônjuge do A.), com os sinais dos autos, apresentou esta o seu articulado, afirmando a total correspondência entre a vontade declarada na escritura de doação e a vontade real das partes e pugnando pela completa improcedência da ação.

O A., no exercício do contraditório, veio insistir na procedência da ação e pugnar pela condenação dos RR. e Interveniente, como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a favor do Demandante, esta no montante de € 2.500,00 pelos RR. e outro tanto pela Interveniente, pretensão incidental a que se opôs aquela Interveniente.

Proferido despacho saneador, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, foi depois realizada a audiência final, seguida de prolação de sentença, julgando a ação improcedente, com a consequente absolvição total dos RR..

De tal sentença vem o A. interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões

(…)


***

Apenas a Chamada/Interveniente contra-alegou, pugnando pelo bem fundado da decisão em crise e pela improcedência do recurso.

***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([2]) –, cabe saber ([3]):

a) Se ocorre erro de julgamento em sede de decisão da matéria de facto, obrigando à alteração do decidido (al.ªs A) a E) dos factos considerados não provados, a merecerem julgamento de “provado”, e pontos 25 e 26 da factualidade julgada provada, a deverem ser agora objeto de diverso julgamento, com alteração de substância);

b) Se, por força da alteração da decisão de facto, devem considerar-se verificados os requisitos da simulação e decorrente nulidade contratual;

c) Subsidiariamente, se estão preenchidos os requisitos de procedência dos pedidos referentes à invalidade da transmissão e ao reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel onde foi edificada casa de habitação.


***

III – Fundamentação

         A) Da impugnação da decisão de facto

O Apelante começa por manifestar inconformismo com a decisão da matéria de facto, pretendendo, desde logo, que, diversamente do decidido na 1.ª instância, seja julgada provada a matéria constante das al.ªs A) a E) dos factos considerados não provados (núcleo fáctico tendente a demonstrar a invocada doação simulada de dois imóveis).

Esperava-se, por isso, que o Recorrente, ao pretender impugnar a decisão de facto, esclarecesse/concretizasse, não só qual a factologia que, na sua ótica, o julgador julgou erradamente, como ainda quais as provas que, uma vez criticamente analisadas/valoradas, obrigavam a uma decisão diversa da adotada em sede de decisão de facto, no sentido de delimitar, de forma motivada, o âmbito probatório da impugnação de facto, sem deixar de sinalizar qual o sentido da decisão a ser proferido pelo Tribunal de recurso (cfr. art.º 640.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Ora, tendo os Recorrentes observado suficientemente esses ónus a seu cargo – se é certo que não concretizaram nas suas conclusões de recurso as provas em que baseiam a impugnação, nem indicaram as passagens da gravação em que se fundam, tal concretização/indicação consta, porém, da antecedente alegação da apelação, o que basta, à luz da atual jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça ([4]), para admissão da impugnação –, cumpre apreciar a sua impugnação no plano fáctico, a qual se mostra delimitada nas suas conclusões de recurso.

Vejamos, então.

É a seguinte a matéria das aludidas al.ªs A) a E), que o Apelante pretende ver julgada como provada:

«A. Os doadores não quiseram doar ao donatário os prédios identificados nas alíneas a) e c) do ponto 1).

B. Como o réu também não quis receber em doação esses imóveis.

C. A escritura pública que titula o aludido acordo denominado doação, quanto aos prédios identificados nas alíneas a) e c), foi celebrada com o intuito, comum a todos os intervenientes, e em execução de acordo previamente celebrado entre eles, de enganar e prejudicar os credores do autor e da então sua cônjuge M (...) .

D. Com receio que fosse proferida decisão de reversão e penhorado e vendido o seu património pessoal, procurando obstar a tal, em conluio com o réu S (...) , seu filho e de seu ex-cônjuge, o autor e a chamada decidiram transferir o seu património para nome deste.

E. Quanto aos prédios referidos no ponto A), ficou acordado com os réus que, quando lhes fosse solicitado, transfeririam a propriedade dos prédios identificados para o autor e seu cônjuge ou para quem estes indicassem.».

O Tribunal a quo fundamentou assim a sua convicção negativa nesta parte:

«Da leitura conjugadas das disposições constantes nos n.ºs 1 e 2 do artigo 394.º do Código Civil alcança-se que, sempre que o acordo simulatório for invocado pelos simuladores - como sucede na situação presente, em que o mesmo é invocado pelo autor - e conste de documento autêntico - como é o caso, em que foi outorgada escritura pública (artigo 363.º/2 do Código Civil) -, se afigura inadmissível para a prova do mesmo a produção de prova testemunhal.

A título preliminar, há que frisar que, mesmo em documentos autênticos com força probatória plena, é admissível prova testemunhal para precisar o sentido e o contexto da declaração negocial (artigo 393.º/3 do Código Civil).

Ora, (…) haverá que interpretar restritivamente o aludido n.º 2 do artigo 394.º do Código Civil, admitindo-se a produção de prova testemunhal desde que o acordo simulatório contenha um mínimo de prova, um começo de prova de natureza documental.

Pergunta-se: no caso decidendo, o invocado acordo entre autor, chamada e réu para forjar uma doação de dois prédios para eximir o património pessoal do primeiro de uma execução fiscal em curso apresenta arrimo em alguma prova de natureza documental?

A resposta não poderá deixar de ser negativa. Com efeito, não obstante constar dos autos uma declaração de fls. 61/62, assinada pelo advogado do autor, que alude ao caráter simulado da doação em crise com o fito de evitar a perda do património do demandante no processo fiscal, é para nós tido como certo que o documento apto a abrir a porta à produção de prova testemunhal complementar acerca do acordo simulatório deverá ser um documento que, constituindo um início de prova da invocada simulação, seja “proveniente [total ou parcialmente] daquele contra quem a simulação era invocada”4, “in casu”, o réu. Cremos, assim, que tal documento não poderá deixar de contar com a participação do simulador contra quem é invocada a simulação; de contrário, bastaria ao simulador que invoca a simulação elaborar um documento, da sua lavra, sem qualquer intervenção da contraparte, para contornar as restrições probatórias legalmente estipuladas nesta matéria.

Flui, pois, do exposto, que a prova testemunhal produzida em sede de audiência final se mostra, no caso vertente, inadmissível à demonstração da realidade do acordo simulatório invocado pelo autor.

Mas não apenas isso: igualmente a prova por presunções judiciais - em que o juiz, partindo de factos-base conhecidos, por dedução e apoiando-se num juízo de normalidade do acontecer, afirma factos desconhecidos - se afigura inadmissível no ajuizado caso, já que tais presunções só se mostram admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do Código Civil).

Neste conspecto, e ante a inexistência de prova documental, resta concluir que, para demonstrar o alegado acordo simulatório, sobraria ao autor a prova por confissão. Ora, nem os réus nem a chamada admitiram, em termos confessórios, a existência de tal pacto simulatório, afiançando, ao invés, desconhecerem a execução fiscal de que foi alvo o autor e reafirmando que a outorga da escritura de doação sob escrutínio correspondia à sua vontade real. Daí ter-se considerado como não provada a facticidade descrita nos pontos C a E.

Neste quadro, e sob outro prisma, o Tribunal permaneceu em dúvida quanto à divergência entre a vontade real e a vontade declarada pelas partes na escritura celebrada em março de 2006 - matéria essa em relação à qual não se verificam as sobreditas restrições probatórias -, não obstante as testemunhas (…) terem referido que o réu lhes havia dito que a casa onde os pais moravam estava em nome dele, mas pertencia aos progenitores. A dúvida em relação a tal matéria, como não poderia deixar de ser, foi resolvida em sentido desfavorável ao autor, parte a quem tais factos aproveitariam (cfr. artigo 414.º do Código de Processo Civil) - pontos A e B.».

Argumenta o A./Apelante que o Julgador errou ao excluir a valoração da prova testemunhal e que esta, uma vez admitida e valorada, é elemento essencial à pretendida convicção positiva em matéria de acordo simulatório.

A primeira questão a decidir é, pois, a de saber se, no caso, é de admitir a prova testemunhal e, do mesmo modo, a prova por presunções judiciais.

Desde logo, dir-se-á que se concorda – posição assumida pelo Tribunal recorrido e pelo Apelante – que a proibição de prova testemunhal nesta matéria não é absoluta, havendo de interpretar-se cum grano salis o disposto no art.º 394.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv., na dimensão normativa aqui relevante.

Na verdade, a jurisprudência dos Tribunais superiores vem-se inclinando, desde há muito, para uma interpretação algo flexível do preceituado naquele dispositivo legal, em matéria de acordo simulatório, pugnando pela admissibilidade da prova testemunhal corroborante, isto é, desde que assente em base documental que constitua começo/princípio de prova (prova documental indiciária bastante no sentido desse acordo) ([5]).

Assim, já no Ac. STJ de 15/12/1998 ([6]) se entendia que a proibição de prova do art.º 394.º, n.º 2, do CCiv. “respeita, apenas, ao recurso à prova testemunhal, ou por presunções judiciais, do artigo 351 daquele diploma substantivo, como meio de prova exclusivo, do acordo simulatório”, admitindo-se “a prova testemunhal como prova complementar, sobretudo da prova documental, que aquele preceito não afasta” (itálico aditado).

Defendendo-se, em consonância, que, se houver “um princípio de prova por escrito, ou se demonstrar ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita ou em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova, podem os simuladores recorrer à prova testemunhal do acordo simulatório e do negócio dissimulado” ([7]).

Como explicitado no Ac. do STJ de 15/05/2013 ([8]), remetendo para o ensinamento de Antunes Varela, “a ratio da proibição estatuída no referido nº 2 do art. 394º assenta na falibilidade e insegurança da prova testemunhal, que assim se tornaria um meio fácil de destruir a eficácia da prova documental”, sendo, porém, que “o facto de estar estabelecida a autenticidade de um documento, seja ele autêntico ou particular, não equivale a considerar verdadeiras e sinceras as declarações que deles constam”.

E acrescenta este aresto que:

«(…) a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que apesar da aparente formulação irrestrita, para afastar a iniquidade da aparência criada pela simulação, deixando um simulador à mercê do outro, deve ser aliviada tal proibição se a prova testemunhal funcionar como meio complementar de prova da simulação, primariamente fundada em documentos, pois ela radica muitas vezes, em indícios e ilações baseados em factos que à luz da experiência comum podem revelar a existência da mesma.

Nestes casos, é admissível prova testemunhal, se os factos a provar “aparecerem” com alguma verosimilhança, em provas escritas. Então, complementarmente, é admissível tal tipo de prova» ([9]).

Importa, então, verificar se, no caso dos autos, existem documentos que, de per se ou conjugadamente com outros, revelem aparência de prova acerca de qualquer simulação (na escritura de doação em causa, quanto, apenas, aos dois imóveis discutidos), para o que melhor haverá de caracterizar-se em que se traduz aquele “princípio de prova” (ou “começo de prova”).

Sobre esta caracterização, socorremo-nos do recente Ac. do STJ de 07/02/2017 ([10]), segundo o qual:

«O conceito só pode ter correspondência no de “fumus bonni juris”, ou prova indiciária, sobretudo elaborado em sede de procedimentos cautelares.

A assim não se entender caímos nos princípios de experiência geral, de verosimilhança que a nada mais conduzem do que a presunções simples, judiciais ou de experiência (cf. Profs. Pires de Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, I, 3.ª ed., 310; Prof. A. Varela, in “Manual de Processo Civil”, 1984, 486; e Prof. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 191).

Ora, já deixámos dito que, inadmitida a prova testemunhal não são de admitir presunções judiciais (artigo 351.º do Código Civil).

Daí que o tal “princípio de prova” só poderia ser constituído por qualquer dos documentos a que se refere o n.º 1 do artigo 394.º que, se não unívocos, só poderão tornar-se completos se conjugados com a prova secundária (que, então, se concede ser testemunhal), complementar ou, com rigor, meramente residual, e só por si sem valor autónomo, por não lho permiti o n.º 2 do artigo 394.º.

De todo o modo, não repugna aderir à interpretação menos restritiva, desde que o “princípio de prova” seja um documento que não integre facto – base de presunção judicial pois sendo-o o n.º 2 do artigo 394.º poderia entrar em colisão com o citado artigo 351.º CC.

Daí que, adicionando esse documento a existência de acordo simulatório ou um negócio dissimulado se possa lançar mão da prova testemunhal para confirmar ou infirmar, tornando-se, então, o primeiro elemento de prova e sem que colida com o citado n.º 2 do artigo 394.º (v.g. os Acórdãos do STJ de17.6.2003 -03A1565; de 5.6.2007 -Pº 7A1364; Pº 758/06.3TBCBR-BP1.S1; e de 9.7.2014 -5944/07.6TBVNG.P1:S1)».

Invoca o ora Recorrente, em abono da sua posição, a conjugação de diversos documentos, esgrimindo assim:

«Se atentarmos na sequência temporal da documentação junta aos autos, analisarmos criticamente a mesma, decorre desta a existência de indícios seguros e convincentes (…), como se demonstra:

. 10.02.2006: notificação do despacho da Administração Tributária / Serviço de Finanças de Gaia 3 a determinar a preparação do processo para efeitos de reversão das execuções fiscais contra o recorrido, no montante de € 1.727.363,49.

. 02.03.2006: apresentação de defesa escrita pelo recorrente no processo de execução fiscal.

. 07.03.2006: outorga de escritura de “doação” no Cartório Notarial de Penalva do Castelo. – Doc. 1 da petição inicial.

. 06.03.2006: outorga de escritura de compra e venda no Cartório Notarial de Mangualde. – Doc. n.º 1 da resposta.

. 05.05.2006: despacho da Administração Tributária / Serviço de Finanças de Gaia – 3 a determinar a extinção da reversão contra o recorrente.

. 02.06.2010: outorga da escritura de doação no Cartório Notarial de Penalva do Castelo dos recorridos a favor do recorrente e seu cônjuge, dos prédios constantes na escritura de compra e venda de 06.03.2006. – Docs. 1 e 2 resposta.

. 04.11.2013: proferimento de sentença a decretar o divórcio a celebrar entre recorrente e seu cônjuge.

. 30.04.2014: carta do recorrente ao recorrido invocando a simulação da doação (prédios alíneas a) e c)) e solicitando a transferência da propriedade a seu favor e de seu ex-cônjuge.».

Ora, a premência, em fevereiro/março de 2006, do processo fiscal e decorrente ameaça patrimonial – invocadas notificação de despacho tendente à reversão e apresentação de defesa – são compatíveis, à partida, com uma transmissão/dissipação patrimonial, de molde a transferir efetivamente o património em perigo para a esfera do filho (futuro herdeiro dos seus pais/transmitentes), notando-se que falta, desde logo, um documento, assinado pelos RR., no qual estes reconhecessem ou admitissem, de algum modo, a natureza parcialmente fictícia/simulada da doação ([11]).

Por isso, desses documentos (notificação de despacho e apresentação de defesa), de per se, não pode retirar-se um princípio de prova de simulação (absoluta), pelo que se fica sem luzes sobre se em 07/03/2006 se quis outorgar escritura parcialmente fictícia de “doação” no Cartório Notarial de Penalva do Castelo e, no dia anterior (em 06/03/2006), outorgar escritura, também fictícia, de “compra e venda”, no Cartório Notarial de Mangualde, ficando a dúvida quanto aos motivos da inclusão dos dois imóveis em causa na escritura de doação e não na anterior escritura de compra e venda.

Na verdade, do invocado “Doc. n.º 1 da resposta” (cfr. fls. 330 e segs. dos autos em suporte de papel) retira-se que foi outorgada, em 06/03/2006, escritura de “compra e venda”, pela qual o A. e o seu então cônjuge (a aqui Interveniente) declararam vender ao R. (seu filho) três prédios (lotes), com declaração de consentimento da restante filha (e genro) dos declarantes vendedores.

Continuando a resenha documental, se, como apurado, em 05/05/2006 foi decidida a extinção da reversão, e se, 02/06/2010, foi outorgada escritura de doação, no Cartório Notarial de Penalva do Castelo, dos Recorridos a favor do Recorrente e seu então cônjuge, dos prédios constantes na escritura de compra e venda (a de 06/03/2006), fica a dúvida quanto às razões de não terem sido englobados nessa doação os dois imóveis em causa nestes autos, para que logo voltassem a integrar o património do A. e então esposa.

Se a transmissão (para o R.) havia sido simulada, era tempo de todos esses bens voltarem ao património destes (A. e mulher), não se descortinando razões – a não ser que se tivesse mesmo querido doá-los ao filho, como assevera a Interveniente – para a permanência da transferência fictícia em vez da resolução completa do problema, através de uma única escritura pública.

O divórcio entre o A. e a Interveniente (decretado em 04/11/2013) também nada mostra quanto a qualquer anterior intuito simulatório, muito menos em termos de tal resultar plasmado em prova documental.

E, como dito na sentença, a carta de 30/04/2014, enviada por mandatário do A., invocando perante o R. a simulação da doação (quanto a dois dos três prédios declarados doar) e solicitando a transferência da propriedade, também não constitui, para o fim que nos ocupa, princípio de prova, pois que, doutro modo, bastaria a elaboração, para o efeito, e entrega de uma carta (pelo simulador ou por seu mandatário) para se admitir a prova testemunhal e por presunções judiciais, contornando a proibição legal do art.º 394.º, n.º 2, do CCiv..

Assim sendo, e salvo o devido respeito por diverso entendimento, nenhum dos documentos aludidos, em que se ancora o Recorrente, configura – de per se ou em leitura conjugada – o aludido princípio de prova que permitisse a convocação da prova testemunhal corroborante.

Ao contrário, o que permanece, em face da prova documental, é sempre a dúvida razoável sobre o que realmente se passou, sendo de salientar, por não negligenciáveis, algumas notas marcadamente dissonantes em relação à tese do A./Apelante (acordo simulatório).

Assim, tal tese é perentoriamente contraditada nos autos pela outra doadora (ex-cônjuge e Interveniente), afirmando, invariavelmente, que ambos quiseram – tal como o R. donatário –, efetivamente, a doação dos três imóveis (e não apenas de um deles).

A situação do processo é, como o A. logo indicou na p. i. (art.ºs 38.º e segs.) e foi reconhecido no despacho de admissão da intervenção principal provocada, de litisconsórcio necessário ativo dos (ex-cônjuges) conjuntos declarantes doadores – cfr. Ac. STJ de 15/05/2013, Proc. 279/10.0TBMIR.C1.S1 (Cons. Lopes do Rego), em www.dgsi.pt, aludindo a “situação de litisconsórcio necessário activo dos cônjuges que invocam o vício do negócio”.

Pediu, pois, o A. a intervenção da outra declarante doadora como “sua associada” (sua consorte na lide), a qual, porém, intervindo, tomou posição oposta à sua, afirmando que quis (e que ambos os doadores quiseram) verdadeiramente doar os três imóveis, o que, no mínimo, fragiliza seriamente, com consequências também no plano probatório, a posição do A./Apelante.

Acresce que, se a compra e venda e a doação foram formalizadas em dois dias seguidos (06 e 07/03/2006), determinando a transferência dos bens para os Recorridos, porque não foram os dois bens aqui em causa, a haver intuitos simulatórios, incluídos na escritura de compra e venda, em vez de na de doação (já que nesta era negociado outro imóvel, que se queria realmente doar)?

E se a doação (pelos Recorridos) dos bens objeto desta compra e venda é de 02/06/2010, quando estava por demais ultrapassado o problema da repercussão do processo fiscal ([12]), porquê só “reverter” para o A./Apelante e então cônjuge os bens objeto da declarada compra e venda e não também os dois objeto da fictícia doação?

Se o motivo da transferência pelo A. (por declaradas doação e/ou compra e venda) era o de evitar o perigo da perda dos bens para o credor fiscal, ultrapassado esse risco/receio (desde maio de 2006), não se justificaria a permanência dos bens no património dos RR., fossem os declarados doar ou os declarados vender.

Assim, o normal, nesta perspetiva, seria a transferência conjunta/simultânea ou contemporânea de todos esses bens, também os declarados doar.

Porquê, então, resolver em 2010 apenas parte do problema (bens declarados vender), deixando por solucionar a situação dos bens objeto destes autos (os declarados doar)?

Na sua petição inicial, o A. omite a dita escritura de compra e venda e o posterior regresso dos bens em 2010, apenas alegando que, apesar da evolução favorável do processo fiscal (extinção da reversão), confiou na honestidade e seriedade dos RR., levando a que os prédios doados continuassem em nome destes (art.º 15.º), só após o divórcio (ocorrido em novembro de 2013), em cujo âmbito os RR. apoiaram a aqui Interveniente, solicitando a transferência de bens doados (art.ºs 17.º a 19.º).

O que deixa margem para se questionar dos motivos pelos quais confiou quanto a uns bens (os declarados doar) e não quanto a outros (os declarados vender).

Será que nem todos os imóveis foram transmitidos em 2010 por persistir a intenção de doar os aqui em causa? Apenas tendo mudado a disposição do A. por causa da conduta dos RR. no âmbito do processo de divórcio?

Se o objetivo era a transferência fictícia de dois dos três prédios declarados doar e dos imóveis declarados vender, para quê separar tais prédios em duas escrituras (uma de doação e outra de venda) e depois só reverter essa transmissão quanto aos declarados vender, quando os declarados doar deveriam seguir o mesmo destino?

Porquê não proceder em simultâneo – de molde a solucionar todo o problema –, através de um mesmo instrumento de transmissão, mediante título de doação (a dita escritura de 02/06/2010) ou outro, reduzindo custos escriturais?

Ora, se a Relação apenas deve alterar a decisão de facto no caso de os factos assentes ou os dados probatórios disponíveis imporem decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.), também parece certo que inexiste nos autos documento que constitua princípio de prova do acordo/intuito simulatório, o que impede, neste âmbito, a admissão de prova testemunhal, que teria de ser meramente corroborante, ou por presunção judicial.

Chegando-se, pois, nesta parte, à mesma conclusão da sentença (afirmação da inadmissibilidade de prova testemunhal a que alude o n.º 2 do art.º 394.º do CCiv.), resta dizer que, ante as dúvidas suscitadas, não resolvidas pelas provas invocadas ([13]), não logra estabelecer-se uma convicção probatória diversa daquela a que chegou a 1.ª instância.

Permanecendo, assim, a dúvida, a qual prejudica o A./Apelante, onerado com o respetivo ónus probatório na ação de invalidade (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), nada haverá a alterar nesta parte da decisão de facto, improcedendo as conclusões do Recorrente em contrário.

Resta, então, a impugnação quanto aos pontos 25 e 26 aludidos, a que foi respondido assim:

(…)

B) Da Matéria de facto

Atenta a alteração operada pela Relação, é a seguinte a factualidade provada a considerar para a decisão:

«1) No dia 07 de Março de 2006 no Cartório Notarial de Penalva de Castelo o autor, M (…) e o réu S (…) outorgaram escritura, cuja certidão consta de fls. 19 e seguintes dos autos e cujo teor aqui integralmente se reproduz, na qual os primeiros declaram doar ao réu os seguintes prédios:

 “a) Rústico, composto de pinhal e mato, sito em Chã, freguesia de (...) , concelho de Penalva do Castelo, inscrito na matriz sob o artigo 413, com o valor patrimonial de IMI de €16,82 e atribuído de €121,76;

b) Urbano, composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, jardim, garagem e dependência, sito no lugar de (...) , freguesia de (...) , concelho de Penalva do Castelo, inscrito na matriz sob o artigo 1230, com o valor patrimonial e atribuído de €3.831,53;

c) Urbano, composto de palheira com lage anexa e logradouro, sito no lugar de (...) , freguesia de (...) , concelho de Penalva do Castelo, inscrito na matriz sob o artigo 1298, com o valor patrimonial e atribuído de €89,08, todos descritos na Conservatória do Registo Predial de Penalva do Castelo, respetivamente sob os números 370, 2169 e 2400, freguesia de (...) e lá registados a seu favor.”

2) O autor A (…) era sócio gerente da sociedade (…), Limitada, contribuinte n.º 501 382 658.

3) Em 21.02.2006 o autor recebeu ofício do serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 3, contendo notificação, do despacho de 10.02.2006, de audição prévia para efeitos de avaliação de prossecução do direito de reversão, enquanto responsável subsidiário de dívida em cobrança coerciva da devedora principal (…), Lda., no proc. (...) e aps. no valor de € 1.727.363,49.

4) Em 02.03.2006 o autor apresentou defesa escrita no identificado processo fiscal opondo-se a reversão com fundamento no facto de não ter exercido de facto as funções de gerente e não lhe poder ser imputada culpa nos factos que determinaram as dívidas tributárias e coimas fiscais.

5) O réu S (…) é filho do autor e de seu ex-cônjuge, a chamada M (…).

6) Relativamente ao prédio identificado na alínea b) do anterior artigo 1º, o declarado correspondeu à vontade das partes, cumprindo intenção anteriormente manifestada de doarem tal prédio ao filho para neste residir com a esposa, ora ré, e filhos.

7) O réu S (…) e família desde data anterior à doação, após esta e até à presente que habitam no prédio identificado no artigo 1º alínea b).

8) O autor e seu ex-cônjuge M (…), não obstante terem outorgado a escritura que denominaram de doação, continuaram, pelo menos até à data de interposição da presente ação, a 02.12.2014, na posse dos prédios identificados na alínea a) e c) do ponto 1), utilizando-o como casa de habitação, a palheira como arrumo de produção agrícola e para convívio com amigos e explorando o prédio rústico, nomeadamente com cultura de vinha, que cuidavam e da qual recolhiam a produção.

9) Por despacho de 05.05.2006, proferido no identificado processo fiscal, foi sido decidido que: “Assim e porque não ficou provado perante o Tribunal que A (…) exerceu efectivamente as funções de gerência da devedora originária (…) e face ao disposto no n.º 2 do art.º 23º da LGT e na alínea b) do n.º 2 do art.º 153.º do CPPT, DETERMINO A EXTINÇÃO DA REVERSÃO CONTRA A (…) prosseguindo contra o outro responsável subsidiário (…) nos termos do artigo 23º da LGT e 153º do CPPT.”

10) Em data não concretamente apurada, M (…) instaurou contra o autor no Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde ação de divórcio litigioso, que correu termos sob o n.º 167/13.8TBMGL do 1º juízo desse Tribunal.

11) Naquele processo foi, em 04 de novembro de 2013, proferida sentença a decretar o divórcio entre M (...) e o autor, transitada em julgado na mesma data.

12) Na pendência do divórcio os réus apoiaram M (…), depondo em audiência de julgamento como testemunhas indicadas por esta.

13) Em setembro de 2013, o autor solicitou ao réu que transferisse para si e para a chamada os prédios identificados nas alíneas a) e c) do anterior artigo primeiro, o que fez verbalmente, pelo menos uma vez, e por carta de 30.04.2014, enviada pelo seu mandatário (…), recebida pela ré em 02.05.2014.

14) O réu exigiu para outorgar a escritura referida que fosse doada a sua irmã I (…), filha do autor e de M (…), um prédio não concretamente apurado.

15) O autor recusou tal pretensão o que determinou que os réus se recusassem a outorgar a escritura dos prédios em causa.

16) No prédio rústico identificado na alínea a) do anterior ponto 1), o autor e ex-cônjuge M (…)procederam à construção de uma casa de habitação de rés-do-chão, com a superfície coberta de 147 m2 e jardim anexo com 100 m2.

17) O projeto de construção foi elaborado por eng. (…) em outubro de 1999, tendo sido apresentado na Câmara Municipal de Penalva do Castelo em 21.09.1999 em nome do autor.

18) O projeto de construção foi deferido por despacho do Presidente da Câmara Municipal de Penalva do Castelo em 17.02.2000 e concedido ao autor o alvará de licença de construção n.º 173/2000.

19) A edificação da habitação teve início em finais de setembro de 1999, tendo o autor trabalhado na sua edificação.

20) O custo com projeto de construção, licença e da edificação foram suportadas pelo autor e seu ex-cônjuge, nomeadamente materiais de construção civil e mão da obra.

21) Por despacho do Presidente da Câmara Municipal de Penalva do Castelo, datado de 12.06.2002, foi emitido alvará de licença de utilização relativamente a tal prédio.

22) O referido prédio encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (...) , concelho de Penalva do Castelo, desde 14.11.2013, sob o artigo 2173.

23) Em 14.11.2013 o réu apresentou no Serviço de Finanças de Penalva do Castelo declaração de IMI para inscrição de prédio urbano na matriz (modelo 1) na qual declarou que o prédio era sua propriedade.

24) Desde a data de construção e até à data da interposição da presente ação, 02.12.2014, o autor e a chamada, em conjunto ou singularmente, têm andado na posse do prédio identificado na alínea a) do ponto 1), com a casa de habitação aí construída e referida no ponto 16), à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ignorando que lesavam o direito de outrem, ininterruptamente, habitando neste, tratando da vinha e pagando o IMI relativo aos anos de 2007 (liquidado a 30.09.2008) e 2009 (liquidado a 30.04.2010 e a 30.09.2010)1, na convicção de exercerem direito próprio.

25) Mostra-se atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Penalva do Castelo sob o n.º 370/19880819, freguesia de (...) , o prédio urbano situado na Rua (...) , composto de casa de habitação e rés-do-chão, inscrito na matriz respetiva sob o n.º 2173-P, com inscrição de aquisição (“Ap. 3 de 2006/03/08”), por doação, a favor R. marido, casado com a R. mulher, no regime de comunhão de adquiridos.

26) Em 16/12/2013, através da “Ap. 222”, foi efetuado averbamento de alteração à respetiva descrição predial, com o seguinte conteúdo: prédio “Rústico”, situado em “ (...) , “área descoberta: 4200 M2”, inscrito na “matriz n.º 413”, composto de “Pinhal e mato”.

27) Dessa descrição predial consta também anterior inscrição “Ap. 3” de 08/03/2006, referente a aquisição, por doação, a favor do R. marido, casado com aquela R. no regime de comunhão de adquiridos, tendo como sujeitos passivos o A. e a Chamada.».

E resulta julgado não provado:

«A. Os doadores não quiseram doar ao donatário os prédios identificados nas alíneas a) e c) do ponto 1).

B. Como o réu também não quis receber em doação esses imóveis.

C. A escritura pública que titula o aludido acordo denominado doação, quanto aos prédios identificados nas alíneas a) e c), foi celebrada com o intuito, comum a todos os intervenientes, e em execução de acordo previamente celebrado entre eles, de enganar e prejudicar os credores do autor e da então sua cônjuge M (…)

D. Com receio que fosse proferida decisão de reversão e penhorado e vendido o seu património pessoal, procurando obstar a tal, em conluio com o réu S (…) seu filho e de seu ex-cônjuge, o autor e a chamada decidiram transferir o seu património para nome deste.

E. Quanto aos prédios referidos no ponto A), ficou acordado com os réus que, quando lhes fosse solicitado, transfeririam a propriedade dos prédios identificados para o autor e seu cônjuge ou para quem estes indicassem.

F. As partes outorgaram o acordo referido no ponto 1) para compensar o réu por mais de uma década de trabalho para o autor sem obter qualquer remuneração.

G. O autor e a chamada habitavam o prédio referido na alínea a) do ponto 1) porque o réu lhes permitia.».


***

C) O Direito

1. - Da (não) verificação dos requisitos da simulação

Em matéria de direito, começa o Apelante por pugnar, de acordo com o seu pedido principal da ação, e alicerçado na procedência da impugnação da decisão de facto, pela verificação de todos os requisitos da simulação e decorrente nulidade contratual.

É por demais sabido quais os requisitos da simulação absoluta, impondo-se “a verificação simultânea de três requisitos: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar)”, sendo também incontroverso que o “ónus da prova dos factos integradores de tais requisitos (os elementos que constituem o instituto jurídico da simulação), porque constitutivos do respectivo direito, cabe, segundo as regras gerais nesta matéria, a quem invoca a simulação” ([14]).

Ora, como visto, a empreendida impugnação da decisão de facto não logrou proceder nesta parte, mantendo-se não provados os factos das al.ªs A) a E) do quadro factual julgado não provado na 1.ª instância.

Assim, não logrou o A. provar, como lhe competia – por ser seu o ónus probatório e se tratar de factualidade essencial à procedência daquele pedido –, que (i) os doadores não quiseram doar ao donatário os prédios em causa e (ii) este não quis recebê-los em doação, (iii) a escritura pública de doação, quanto a tais prédios, foi celebrada na intenção comum, no âmbito de acordo previamente celebrado entre os outorgantes, de enganar e prejudicar os credores dos declarantes doadores, (iv) evitando a penhora e venda do património pessoal do A. na instância fiscal, e (v) ficando acordada a transferência posterior da propriedade novamente para os declarantes doadores ou para quem estes indicassem.

Tal e quanto basta – ante o quadro fáctico julgado provado e o não provado dos autos – para se dever concluir pela não verificação dos requisitos da invocada simulação (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), impedindo a pretendida declaração consequente de nulidade do negócio (por via desse vício), que se mantém, tal como se terá de manter, nesta parte, a decisão absolutória proferida (pedido principal, corporizado nas al.ªs a) e b) do respetivo petitório).

2. - Da invalidade da transmissão

Resta o petitório subsidiário (al.ªs c) a e) do peticionado pelo A.).

Nesta parte, começa a sentença por explanar:

«Peticionam os autores ([15]) que os réus sejam condenados a reconhecer que inexiste qualquer documento válido de transmissão a seu favor do prédio urbano identificado nos artigos 22.º e 28º da petição inicial.

(…)

Cotejadas as declarações de vontade cristalizadas na escritura pública, alcança-se que as partes declararam tão-só doar um prédio rústico composto de pinhal e mato, omitindo qualquer referência à casa de habitação com a superfície coberta e 147m2 e jardim anexo de 100 m2, cuja construção havia sido iniciada em finais de setembro de 1999 e que já se encontrava edificada à data da outorga da referida escritura.

Todavia, tal omissão de referência deverá ser interpretada como uma imperfeição ou insuficiência na descrição do objeto mediato doado consubstanciado numa coisa imóvel (artigo 204.º/1/a) do Código Civil) – sendo irrelevante, como é consabido, a descrição do prédio (como rústico ou urbano) que as partes hajam levado a cabo.

Numa outra formulação: as partes, na escritura de doação outorgada, não declararam pretender distrair, separar a parte do terreno composto por pinhal e mato, da parte em que se encontrava, já à data, construída uma casa de habitação. Podiam tê-lo feito, através da constituição de um direito de superfície (cfr. artigos 1524.º e seguintes do Código Civil), em que eventualmente os doadores, ora autor e interveniente, reservassem para si o direito de manter, perpétua ou temporariamente, uma obra (“in casu”, a casa de habitação) em terreno alheio, naquele ato doado ao réu. Ora, ante a ausência de declarações de vontade em tal sentido, há que concluir que o “quid” – identificado, em termos não exaustivos ou completos – cujo direito de propriedade o autor e a chamada pretenderam transmitir para o réu coincidiu com a globalidade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Penalva do Castelo sob o número 370, integrando naturalmente o edifício que se encontrava incorporado no seu solo – ainda que ao mesmo não tivesse sido feita referência expressa.

Donde se alcança que a pretensão do autor a este propósito deverá soçobrar.».

Que dizer?

O Apelante esgrime com a omissão de referência na escritura de doação relativamente à casa de habitação que se encontrava já edificada no terreno, complementando que tal casa foi construída por si e pelo seu então cônjuge, o que, em bom rigor, foi admitido e ponderado na sentença.

E, desde logo, dir-se-á que o peticionado pelo A./Apelante só por si é sufragado, faltando o respaldo da outra doadora, que nos autos se lhe opõe em toda a linha.

Quer dizer, o A. peticiona para si e para o ex-cônjuge (a Chamada/Interveniente) direito dominial que este último não admite (cfr. o pedido de reconhecimento do direito de propriedade da al.ª d) do petitório).

Por outro lado, se é certo, por apurado, que ao tempo da outorga da escritura de doação a casa de habitação já se encontrava construída – no terreno do prédio declarado doar –, também resulta claro que, ao tempo dessa escritura, o imóvel estava registado como prédio rústico (correspondente ao art.º matricial 413.º), só tendo sido registado como urbano (ilustrada alteração à descrição) em finais de 2013, altura em que lhe passou a corresponder outro âmbito matricial, o do atual art.º 2173.º-P (urbano).

Daí que se compreenda que a escritura se reportasse à realidade registal então existente – um prédio rústico, posto que, apesar da edificação ali já realizada, não passara ainda à categoria de prédio urbano (em termos registrais e matriciais).

Poderiam os outorgantes ter mencionado nessa escritura que neste imóvel declarado doar se encontrava edificada uma construção? E por que motivo o não fizeram?

A questão é pertinente, não se vendo, prima facie, nem as partes o mostrando, que houvesse impedimento a uma tal eventual menção escritural genérica, mas sendo claro que só tais partes saberão dos motivos que as levaram a agir desse modo, posto que nada se prova neste particular (poderiam ter atualizado a situação registal previamente à escritura).

Ter a casa sido ali construída pelo A. e pelo seu então cônjuge também não constituía, por si, impedimento à declarada doação, posto que o bem/imóvel, com tudo o que o integrasse, estava no domínio e disponibilidade dos declarantes doadores.

A questão a decidir é, assim, a de saber se a declaração de doação do imóvel (identificado como prédio rústico) incluía a construção nele edificada (casa de habitação).

E, aqui chegados, teremos – salvo todo o devido respeito – de concordar com a sentença apelada quando refere que estamos perante questão de interpretação da vontade dos declarantes.

De facto, os declarantes doadores – e o respetivo donatário – nada disseram na escritura quanto à casa de habitação que bem sabiam construída no imóvel declarado doar, termos em que a não excluíram – ao menos, expressamente – do negócio de doação.

Mas importa confrontar a situação registal com a realidade jurídica.

São coisas imóveis os prédios rústicos e urbanos e os direitos inerentes a estes, tal como as partes integrantes dos mesmos (art.º 204.º, n.º 1, al.ªs a), d) e c), do CCiv.).

Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica ([16]), sendo prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (n.º 2 do mesmo art.º 204.º).

No caso dos autos estamos perante edifício ([17]) incorporado no solo, tratando-se de uma construção existente no terreno do dito prédio, mas com autonomia económica (apesar de o imóvel/terreno ter cariz rústico, a construção, sendo uma casa de habitação, tem autonomia económica face àquele).

Por isso, juridicamente o aludido imóvel declarado doar é um prédio urbano, havendo divergência entre a realidade jurídica e a situação matricial e registal.

Quer dizer, apesar daquela realidade jurídica, as partes perspetivavam o imóvel atendendo à sua situação matricial e registal (desatualizada, concluída a construção, por inércia dos aqui A. e Interveniente), posto que a atualização registal apenas ocorreria anos após a escritura de doação.

Relevante, então, ante esta divergência, é estabelecer, por via interpretativa, a vontade das partes em sede de declaração negocial de doação.

Quis-se abranger na declaração de doação tudo o que ao tempo existia no imóvel (terreno e construção) ou apenas o terreno (anterior prédio rústico)?

Ora, já se viu que as partes não atendiam, ao tempo da declaração negocial, à realidade jurídica do imóvel, continuando a mencioná-lo como prédio rústico, em sintonia com a desatualizada situação matricial e registal, muito embora soubessem que ali estava edificada a casa de habitação.

Tendo em conta, perante negócio formal e gratuito, os critérios interpretativos facultados pelos art.ºs 236.º a 238.º do CCiv., parece-nos, de acordo com a ideia de razoabilidade e normalidade dos comportamentos humanos, que as partes, mormente os declarantes doadores, se cingiram, para efeitos escriturais, à dita situação matricial e registal, encarando o imóvel ao tempo existente na sua totalidade, pois que nada excecionaram ou excluíram quanto ao mesmo.

Se assim não fosse, haveriam de procurar restringir/limitar a declaração negocial (pela positiva ou pela negativa), por forma a, se possível, só incluírem na doação parte determinada do todo já existente (ou direito correspondente) ou a dela excluírem algum dos seus elementos, em moldes legalmente admissíveis.

Mas nem o A. pretende que o negócio seja restringido/limitado a uma parte do todo, visto que continua a pretender a sua eliminação (agora, pela via da inexistência de documento válido de transmissão).

Ora, não se vê que, respeitada a forma legal, ocorra qualquer invalidade da declaração negocial ligada ao objeto da doação, objeto este suficientemente identificado na escritura, até por referência à dita situação registal e matricial então existente (desatualizada, é certo, mas por motivo imputável ao próprio A., e não ao respetivo donatário).

Não há dúvidas objetivas, pois, sobre o imóvel que se quis declarar doar, por identificado na escritura, não se vendo, por isso, que esta padeça de nulidade (total), para o que não bastaria, desde logo, a dúvida sobre a inclusão, ou não, da edificação, dúvida essa que, como referido, nem sequer se tem por existente, posto que as partes bem sabiam dessa edificação e não a excluíram da transmissão.

Donde que se concorde nesta parte com a sentença recorrida, improcedendo as conclusões do Apelante em contrário.

3. - Do direito de propriedade sobre o imóvel onde foi edificada casa de habitação

Neste parte, haverá desde logo de assentar-se em que o donatário (R./Apelado) beneficia da transmissão operada e da presunção registal de titularidade do direito de propriedade, alicerçada em factualidade provada e no disposto no art.º 7.º do CRegPredial.

Resta, então, saber se tal presunção foi ilidida.

Ora, se é certo que, como dito na sentença, o A. invocou a usucapião como modo de aquisição originária ([18]), fê-lo, repete-se também aqui, desacompanhado nessa pretensão da Chamada/Interveniente, para a qual aquele também formula o pedido, que a mesma perentoriamente recusa.

Na verdade, quanto à usucapião (cfr. art.ºs 1287.º e 1299.º, ambos do CCiv.), enquanto modo de aquisição originária do direito de propriedade (cfr. art.ºs 1316.º e 1317.º, al.ª c), também do CCiv.) sobre bens imóveis (ou móveis, estes sujeitos ou não a registo), é consabido que este instituto postula, no âmbito dos seus elementos integrantes, uma posse (art.º 1251.º do mesmo Cód.), a qual se traduz num “corpus” – consubstanciado na prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito –, tal como num “animus” – intenção e convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, posse essa que deve ser exercida por um certo lapso de tempo e que deve revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade (cfr. art.ºs 1293.º e segs. e 1298.º e segs. ainda do CCiv.).

Voltemos à fundamentação da sentença, onde se diz, quanto à característica da continuidade da posse e do prazo da usucapião:

«A posse do autor e da chamada correspondente ao direito de propriedade, iniciada no ano de 1999, findou aquando da outorga da escritura de doação, a 07 de Março de 2006, momento a partir do qual se verificou a transmissão do direito de propriedade sobre o prédio para o réu (cfr. artigo 1263.º/c) do Código Civil).

Com efeito, há que mobilizar, nesta sede, a forma de aquisição da posse do constituto possessório, dispondo o n.º 1 do artigo 1264.º do Código Civil que “se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.”

Como realçam PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, tal forma é uma forma de aquisição “solo consensu” de posse, uma aquisição que dispensa a prática de um ato material ou simbólico que a revele. Assim, a circunstância de não haver notícia que um ato de tal índole haja sido praticado no caso “sub judice”, não obsta à aquisição da posse por parte do demandado.

O facto de o autor e a interveniente terem, mesmo após a celebração do aludido negócio translativo da propriedade, permanecido a residir em tal prédio, tratando da vinha e pagando os impostos, poderá equivaler a uma inversão do título da posse (enquanto ato de oposição contra aquele que passou a ser proprietário), nos termos que se passarão a explanar, conducente à aquisição de uma nova posse (cfr. artigo 1263.º/d) do Código Civil), distinta da posse anterior.

Sabendo que o “constituto possessório” dispensa, para a aquisição da posse, a prática de um ato material ou simbólico do réu, constata-se que o primeiro ato que, após a celebração da doação, se poderá considerar como significando a inversão do título da posse por parte do autor e da interveniente coincide com o pagamento do IMI relativo ao ano 2007, liquidado a 30.09.2008, uma vez que tal pagamento é, comummente, assegurado pelo proprietário do prédio.».

Só pode concordar-se com o expendido quanto à figura do constituto possessório (art.ºs 1263.º, al.ª c), e 1264.º, n.º 1, ambos do CCiv.). Por isso, por força da transmissão do direito de propriedade, operada através da escritura pública de doação, ocorreu a transferência da posse (em termos de direito de propriedade) para o R./donatário, novo proprietário. Isto é, a escritura de doação teve o condão de levar, solo consensu, à aquisição da posse por este R., com a consequente perda pelos transmitentes (em 07/03/2006), entre eles o A./Apelante, que passaram de possuidores a meros detentores (em nome de outrem, o novo dono) do bem doado ([19]).

Mesmo que se considerasse que o A. retomou, em nome próprio, a posse logo de seguida, por inversão do título de posse (cfr. art.ºs 1265.º e 1267.º, n.º 1, al.ª d), ambos do CCiv.), nunca teria decorrido o prazo da usucapião (art.º 1296.º do CCiv.) até à data da instauração da ação (ou sequer até ao presente).

Na sentença afastou-se a operância da figura da acessão da posse (cfr. art.º 1256.º do CCiv.), que pressupõe que alguém haja sucedido na posse de outrem, por título diverso da sucessão por morte.

A acessão da posse implica uma junção de posses sucessivas (soma dos respetivos tempos de duração), as quais terão de ser, por isso, contíguas e ininterruptas, sendo ainda “necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse, que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores” ([20]), pela qual se opere a transmissão de um para o outro, apenas se discutindo se essa relação jurídica tem de ser formalmente válida ([21]).

Ora, in casu a única transmissão da posse que ocorreu foi (por constituto possessório) dos doadores para o donatário e não deste para aqueles, que, quanto muito, só a teriam adquirido por inversão do título, a qual, porém, não permite a acessão/soma/junção da posse obtida pelo oponente à posse daquele em cujo nome possuía.

Afastada, pois, a acessão da posse, sempre teria de improceder a invocada aquisição por usucapião, como bem decidido pelo Tribunal recorrido, não se vendo, por outro lado, que a conduta dos RR. possa constituir, de algum modo, abuso do direito, pois que cabia ao Apelante mostrar, com base nos factos provados – e não mostra –, onde os Demandados excederam manifestamente os limites impostos, ao exercício de direitos ou de posições jurídicas, pela boa-fé objetiva, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito ([22]).

O que, finalmente, obriga ainda à improcedência do pedido de cancelamento de registo de aquisição a favor do R. com referência ao mesmo imóvel, no que também deve manter-se a sentença impugnada.

Em suma, improcede o recurso.

                                               ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - A Relação apenas deve alterar a decisão de facto no caso de os factos assentes ou os dados probatórios disponíveis imporem decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

2. - A doutrina e a jurisprudência vêm acolhendo uma interpretação algo flexível da norma proibitiva do art.º 394.º, n.º 2, do CCiv., defendendo a admissibilidade, em matéria de acordo simulatório, da prova testemunhal corroborante, isto é, desde que assente em base documental que constitua começo de prova (documentos fundantes de uma primeira convicção, uma possibilidade séria de simulação, a confirmar, ou não, com os depoimentos testemunhais).

3. - Tal base documental pode traduzir-se em documento assinado pelos simuladores ou algum deles ou resultar da conjugação de diversos documentos relevantes.

4. - O ónus da prova dos factos integrantes dos pressupostos da simulação – intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, acordo simulatório e intuito de enganar terceiros – cabe a quem a invoca.

5. - Se num imóvel com descrição registal e matricial como prédio rústico foi edificada uma casa de habitação – construção com incorporação no solo e autonomia económica –, sem alteração do registo, ocorre divergência entre a realidade jurídica, por se tratar de prédio urbano à luz do disposto no art.º 204.º, n.º 2, do CCiv., e a situação matricial e registal.

6. - Sendo esse prédio objeto de doação, com identificação na respetiva escritura pública como prédio rústico, por referência àquela situação matricial e registal, é de interpretar a declaração de doação no sentido de ter sido querido doar o prédio tal como se encontrava ao tempo da doação, posto que as partes bem o conheciam fisicamente e nada declararam excluir do negócio, o qual não padece de invalidade reportada ao seu objeto.

7. - Os requisitos da usucapião, como pressupostos de procedência de pedido da ação, têm de ser demonstrados pelo autor.

8. - Com a transmissão, por doação, do direito de propriedade ocorre a transferência, solo consensu, da posse para o donatário, novo proprietário, com a consequente perda pelo transmitente, que, continuando em contacto com o bem, pode passar a mero detentor (em nome de outrem).

9. - A acessão da posse, pressupondo que alguém haja sucedido, de forma titulada, na posse de outrem, implica a junção de posses sucessivas (que sejam contíguas e ininterruptas), sendo imprescindível um ato translativo da posse, pelo qual se opere a transmissão de um possuidor para o outro.

10. - Sendo o caso de inversão do título de posse, em que falta aquela transmissão entre possuidores, fica sempre afastada a acessão da posse obtida pelo oponente à posse daquele em cujo nome possuía.

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em manter a sentença absolutória impugnada.

Custas da apelação pelo A./Recorrente.

Escrito e revisto pelo Relator

Elaborado em computador

Assinaturas eletrónicas

Coimbra, 09/05/2017

        

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo (1.º Adjunto)

Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Em 02/12/2014 (cfr. fls. 89 dos autos em suporte de papel).
([2]) Com entrada em vigor em 01/09/2013 (cfr. art.ºs 1.º e 8.º, ambos daquela Lei n.º 41/2013).
([3]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras.
([4]) Veja-se o Ac. STJ de 19/02/2015, Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Cons. Tomé Gomes), disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «(…) 3. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. 4. É em vista dessa função que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC. 5. Nessa conformidade, enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações (…)».
([5]) Neste sentido, o Ac. desta Relação de 15/11/2016, Proc. 394/11.2TBNZR.C1 (Rel. Fonte Ramos), disponível em www.dgsi.pt, em que foi Adjunto o aqui Relator.
([6]) Proc. 98A795 (Cons. Francisco Lourenço), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se ainda: “III - Assim, sempre que haja um documento escrito, ou até confissão, que constitua um começo da prova da existência da simulação, e que torne verosímil aquela, nada impede o recurso à prova testemunhal, como meio adjuvante daquele. IV - Acertado que está a existência da simulação do preço por confissão das partes, nada impede o recurso à prova testemunhal para determinação do preço real, por que vale o negócio, por, então, se sair do campo de previsão daquele artigo 394, n. 2.”.
([7]) Cfr. o sumário do Ac. STJ de 23/09/1999, Proc. 99A593 (Cons. Garcia Marques), em www.dgsi.pt.
([8]) Proc. 279/10.0TBMIR.C1.S1 (Cons. Lopes do Rego), em www.dgsi.pt.
([9]) Seguindo posição doutrinal (de L. Carvalho Fernandes), enuncia-se que “Sempre que, com base em documentos trazidos aos autos, o julgador possa formular uma primeira convicção relativamente à simulação de certo negócio jurídico, é legítimo recorrer-se ao depoimento de testemunhas sobre factos constantes do questionário e relativos a essa matéria com vista a confirmar ou a infirmar essa convicção”. E, acompanhando Mota Pinto, aceita-se dever “ser permitida a prova por testemunhas no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito”.
([10]) Proc. 3071/13.6TJVNF.G1.S1 (Cons. Sebastião Póvoas), em www.dgsi.pt.
([11]) E nem se vê que, aos olhos dos pretensos simuladores, fosse estranho um tal documento de salvaguarda de quem tinha o cuidado de colocar os seus bens a salvo dos credores, que, também por isso, não quereria perdê-los definitivamente ao camuflá-los no património de outrem, caso em que seria normal, a existir acordo simulatório, que tivesse sido previamente pedido aos RR. que subscrevessem um documento de reconhecimento da ficção, sem o que, como seria natural e prudente, não se avançaria para a escrituração da doação.
([12]) Extinção da reversão ocorrido em maio de 2006 (facto 9 do elenco provado).
([13]) Note-se, neste particular, que a transcrição segmentada, a que o A./Apelante procede, do depoimento de parte do R. marido não configura confissão por este quanto à existência de doação fictícia (o transcrito alude a ter esse R. sido ameaçado de morte por seu pai, dizendo-lhe que “se não aparecesse a fazer a escritura, o matava”, sempre insistindo tal R., porém, em que era efetivo donatário e que só se mostrou “disposto a ceder uma coisa que lhe havia sido doada, por não achar correto a irmã estar a ficar sem casa …”.
([14]) Vide, por todos, o já citado Ac. desta Relação e Secção de 15/11/2016 (cujo sumário parcialmente se transcreve).
([15]) A utilização da fórmula plural decorre de manifesto lapso de escrita, pois trata-se de um único A., o ora Apelante, que não é acompanhado pela outra declarante doadora, a Chamada/Interveniente.
([16]) Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “não devem considerar-se prédios urbanos, mas partes componentes dos prédios rústicos, as construções que não tenham autonomia económica, tais como as adegas, os celeiros, as edificações destinadas às alfaias agrícolas, etc., assim como não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos” (cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 196).
([17]) Como também explicam Pires de Lima e Antunes Varela, edifício “é uma construção que pode servir para fins diversos (habitação, actividades comerciais ou industriais, arrecadação de produtos, etc.), constituída necessariamente por paredes que delimitam o solo e o espaço por todos os lados, por uma cobertura superior (telhado ou terraço), normalmente por paredes divisórias interiores e podendo ter um ou vários pisos” (cfr. op. cit., p. 195).
([18]) Este alude, na petição, à (sua) posse – caracterizando os atos materiais de posse (art.º 12.º), mas para evidenciar que houve simulação (art.º 13.º), e aludindo à construção efetuada (art.ºs 22.º e segs.) –, para depois referir que esta perdura desde a data da construção (a partir de 1999), que é pública, pacífica, de boa-fé e exclusiva, bem como atuada na convicção de exercício de um direito próprio, assim invocando a usucapião (art.º 29.º).
([19]) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. cit., vol. III, 2.ª ed., p. 29.
([20]) Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., vol. III, p. 14. 
([21]) Entendendo estes Autores que sim (cfr. op. e loc. cits.).
([22]) Os valores e os princípios jurídicos essenciais, tal como os institutos que os acolhem, com função insubstituível para a perenidade e renovação do sistema e prossecução da justiça material, devem ser preservados, não devendo ser relegados – com todo o respeito pelo Apelante – a meros instrumentos de último recurso em postura de inconsequente inconformismo.