Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
188/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: INVENTÁRIO
LICITAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE OURÉM – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 909º, 1371º E 1340º DO CPC; 9º, Nº 1 DO C. EXPROPRIAÇÕES; 2091º E 2123º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I – De forma deliberadamente descomprometida, a lei limita-se a declarar que a licitação em processo de inventário tem a estrutura de uma arrematação (artº 1371º, nº 1, 1ª parte, do CPC).

II - Dada a feição de arrematação de que se reveste a licitação, segue-se lhe são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as causas de invalidade da venda executiva. Mas nem todas.

III - É claro, por exemplo, que à licitação em processo de inventário, não são aplicáveis, por serem específicas do processo de execução, as causas de invalidade – formal - da venda executiva resultantes da anulação ou da revogação da sentença que serviu de título executivo ou da procedência da oposição à execução ou da anulação de toda a execução por falta ou nulidade da citação do executado (artº 909º, nº 1, a) e b) do CPC).

IV - Também não é aplicável à licitação a causa de invalidade da venda executiva resultante do facto de a coisa alienada não pertencer ao executado e ter sido reivindicada pelo dono, uma vez que para a partilha de bens não pertencentes ao património objecto dessa mesma partilha é disponibilizado, pela lei substantiva, um regime específico (artºs 909º, nº 1, d) e 2123º, nºs 1 e 2 do Código Civil).

V - Em contrapartida, são-lhe inteiramente aplicáveis a invalidade – formal – resultante da anulação do acto da venda, seja pela prática de uma acto que a lei não admita, seja pela omissão de um acto ou de uma formalidade imposta pela lei (artº 909º, nº 1, c) do CPC) e – caso que releva para a economia do recurso – todas as causas de invalidade substancial da venda executiva, respeitantes a aspectos relacionados com a vontade de adquirir o bem.

VI - Assim, tal como sucede com a venda executiva, a formação da vontade do licitante em processo de inventário pode ser afectada por coacção moral, ou por erro sobre os motivos ou sobre o objecto (artºs 255º, 252º e 251º do Código Civil).

VII - Quanto ao erro sobre o objecto, encontra-se no âmbito da venda executiva – e, portanto, também no âmbito do acto de licitação em processo de inventário – um regime especial (artº 908º do CPC).

VII - E este regime é especial não só perante o regime geral do erro sobre o objecto – mas também perante a regulamentação, já em si especial, do erro na venda de coisas oneradas (artºs 247º, 251º, 905º a 912º do Código Civil).

VIII - Portando, ao erro sobre o objecto da licitação, aplicam-se, em primeiro lugar, as regras específicas da venda executiva, depois as regras relativas à venda de coisas oneradas e, finalmente, o regime geral sobre esse erro (artºs 908º do CPC, 905º a 912º, 251º e 247º do Código Civil).

IX - O erro sobre o objecto da licitação verifica-se, por isso, nos casos seguintes:

a) Quando, depois da licitação, se reconhece a existência de um ónus ou limitação que não foi tomada em consideração e que excede os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, i.e., quando sobre o bem recai, por exemplo, um direito real ou pessoal de gozo ou um ónus de que não foi dado conhecimento ao licitante, e que deva subsistir depois da licitação (artº 908º, nº 1, 1ª parte, do CPC).

b) Quando se comprova a falta de conformidade da coisa licitada como o que foi relacionado (artº 908, nº 1, 2ª parte, do CPC).

X - Ao contrário do que sucede no erro sobre o objecto em geral e mesmo na venda de coisas oneradas, o erro sobre o objecto da venda executiva - e por extensão de regime, o erro sobre o objecto da licitação – não requer que o declaratário – o tribunal – conhecesse ou devesse conhecer a essencialidade para o comprador – ou para o licitante – do elemento sobre que incidiu o erro: a venda – o acto de licitação – é anulável, mesmo que o destinatário da declaração desconhecesse que as características do bem constituíram um elemento essencial na formação da vontade do comprador ou do licitante: a especialidade do regime previsto para a venda executiva perante os vários regimes substantivos e a necessidade de proteger o adquirente – o licitante, no caso de licitação – justificam esta solução.

XI - Maneira que, se o acto de declaração de utilidade da expropriação onera os bens imóveis a ela sujeitos, não tem, decerto, por si só, a virtualidade de converter o direito real de propriedade do particular num mero direito de indemnização.

XII - Por força do acto de declaração de utilidade pública, resulta que os bens do particular ficam imediatamente adstritos ao fim específico visado pela expropriação, mas não pode dizer-se, sem erro, que se verifica uma conversão imediata do direito de propriedade do particular num direito de indemnização.

XIII - Nestas condições, todos os interessados no inventário, e não apenas o licitante, o são também para os efeitos do processo de expropriação, aliás, em inteira harmonia com o princípio de que os direitos à herança devem ser exercidos por todos e contra todos os herdeiros (artº 9º, nº 1 do CE e 2091º do Código Civil).

XIV - As operações da partilha não podem, por essa razão, permanecer insensíveis à declaração da utilidade pública da expropriação daquele bem que deve ser partilhado tendo em conta a oneração representada pelo exercício actual, relativamente a ele, do direito potestativo de expropriação.

XV - Todavia, por força do princípio da igualdade e da equidade da partilha, tanto um eventual prejuízo como um eventual lucro dos licitantes, por força da expropriação e da mais que provável conversão do direito real sobre o bem num direito de crédito, não deve ser suportado ou atribuído, respectivamente, apenas a um interessado – mas arcado por todos ou adjudicado a todos.

XVI - O facto da expropriação atingir um bem integrante da herança e, portanto, as vicissitudes decorrentes desse facto – maxime a extinção, ainda que parcial, do direito real sobre o bem, sobretudo se essa extinção ocorrer ainda num contexto de indivisão do património hereditário - devem repercutir-se na posição jurídica de todos os interessados e não apenas na de alguns deles.

XVII - Mas para que isso suceda, é indispensável que o prédio seja relacionado com a expressa menção do ónus da declaração da utilidade pública da expropriação para que a vontade de todos os interessados, nos vários momentos processuais relevantes para a partilha, tenha em consideração a sua existência.

XVIII - A lei disponibiliza um mecanismo apto a tornar patente aquele ónus e a ajustar a descrição da verba indicada à sua verdadeira situação jurídica.

XIX - A lei autoriza qualquer interessado, até ao trânsito em julgado da sentença que julgar a partilha, a arguir qualquer inexactidão na descrição dos bens que figuram no inventário e que releve para a partilha, embora sob a cominação de pena processual de multa, caso o arguente não demonstre que a não pode produzir no momento próprio por facto que não lhe imputável (artº 1340º, nºs 1 e 6 do CPC).

XX- Uma inexactidão que releva para a partilha é decerto o facto de um bem imóvel, integrante da comunhão hereditária, relacionado sem qualquer restrição, ter sido atingido, na pendência dessa comunhão, pela declaração de utilidade pública da sua expropriação.

Decisão Texto Integral: I. Admissão dos recursos.

                Recursos próprios e admitidos com o efeito devido, nenhuma circunstância obstando ao conhecimento do seu objecto (artº 700 nº 1 do CPC).

                II. Forma de julgamento dos recursos.

                Dado que as questões, absolutamente homótropas, objecto de ambos os recursos, não são complexas, declaro que estes serão julgados sumariamente (artºs 700 nº 1 g) e 705 do CPC).

                III. Julgamento dos recursos.

1. Relatório.

No processo de inventário para pôr termo à comunhão do património hereditário de M… e cônjuge, A…, falecidos nos dias 8 de Janeiro de 1999 e 14 de Dezembro de 2000, que sob o nº 188, corre, desde 2001, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém - no qual são interessados, M… e cônjuge, A…, L…, J… e cônjuge, D… – representada pelo Ministério Público - e N… – habilitada por decisões de 4 de Março de 2009 e 15 de Novembro de 2010, primeiro, conjuntamente com a interessada M…, como sucessora da interessado M…, falecido no dia 17 de Outubro de 2007, e, depois, como sucessora de M…, falecida no dia 27 de Julho de 2010 - proferido o despacho determinativo da partilha, lançada no processo informação sob a forma de mapa e reclamadas, pelo respectivo credor, as tornas, a interessada N…, atravessou, no dia 18 de Outubro de 2010, por via electrónica, um requerimento, pedindo:

1 – Que seja eliminada a verba nº 17 da relação de bens uma vez que o imóvel está actualmente em situação física e jurídica muito diferente das que apresentava à data em que foi relacionado.

2 – Que seja aditada à relação de bens uma nova verba, no activo, com a seguinte descrição: Direito à indemnização pela expropriação do prédio rústico e eventual remanescente do terreno de pousio e machoqueiros, sito em …, com a área de 26.000m2, a confrontar do Norte com …, sul com …,  nascente com … e poente com caminho público, inscrito na matriz respectiva sob o artigo …, com o valor patrimonial de cinquenta e oito euros e oitenta e seis cêntimos.

3 – A marcação de conferência de interessados complementar para deliberação acerca do pedido de expropriação total e adjudicação ou licitação da nova verba.

Fundamentou esta pretensão no facto de ter sido notificada pela Brisa, Engenharia e Gestão SA para comparecer na Atouguia, no dia 7 de Outubro de 2010, para a realizar a vistoria ad perpetuam rei memoriam do prédio rústico matricialmente inscrito sob o artigo …, relacionado sob a verba nº 17, que consta, sob o nº …, como prédio a expropriar do despacho nº 7169/2010 do SEAOPC, publicado no DR nº 79 de 23 de Abril de 2010, que autorizou a AELO – Auto-Estradas do Litoral SA, subconcessionário, a tomar posse administrativa da respectiva parcela, de se ter dado consta que a vistoria estava a ser repetida por as pessoas com quem a expropriante até aí contactara – os interessados M… e A… – não terem legitimidade para tal, de a expropriação retirar o terreno da disponibilidade do seu proprietário, ainda que a transmissão da propriedade só venha a acontecer mais tarde, transformando imediatamente o bem expropriado num mero direito de crédito sobre o montante indemnizatório, de aqueles interessados já terem, à data da conferência de interessados, conhecimento da expropriação, não tendo comunicado o facto aos demais herdeiros e ao processo, mantendo a requerente e a sua mãe em erro que viciou as respectivas vontades aquando das licitações e de, mesmo que assim não fosse, a sentença a proferir, sem referência à expropriação, estar desactualizada e desadequada dos fins que se prosseguem no inventário, só sendo o equilíbrio entre herdeiros alcançado, até à fixação definitiva do valor da expropriação, através da adjudicação do direito de crédito na proporção de 1/4 pelos interessados, devendo a opção pela dedução do pedido de expropriação total ser efectuada em conferência de interessados.

A interessada L… – única que respondeu ao requerimento - opôs-se, alegando que há muito foi apresentada a relação de bens e os interessados notificados para reclamarem contra ela, que quanto à verba nº 17 nada foi dito, tendo sido acordado por todos os interessados que deveria integrar os bens a partilhar, que era na conferência que cabia decidir a composição dos quinhões e dos respectivos valores, que aquela verba foi licitada pela interessada R…, que naquela data a verba era e é bem imóvel da herança pelo que não existe nem existiu qualquer erro, que já se efectuou o mapa informativo e foi proferido o despacho determinativo da partilha, pelo que é infundada e intempestiva a pretensão da requerente e não foram alegados por esta, como lhe competia, os elementos essenciais para se determinar a anulação do negócio nem foi junta prova dos factos alegados.

A Sra. Juíza de Direito, por despacho de 13 de Janeiro de 2011 – depois de declarar que a interessada N… requereu a anulação da licitação da verba nº 17 e de se observar que dúvidas inexistem que nenhuma das causas ínsitas no artº 909º do CPC que permitia dar sem efeito a licitação está verificada, mesmo no que tange à al. d) do nº 1 do sobredito normativo legal, em face do alegado pela não licitante da verba nº 17 e do documento junto, a única situação que se vislumbra é que a posse de tal verba é administrativa desde 23/04/2010 (sublinhe-se, em data posterior à conferência de interessados), contudo a propriedade da mesma é sem sombra de dúvida do acervo hereditário – indeferiu o requerimento.

A interessada N… logo impugnou esta decisão por recurso ordinário de agravo – admitido para subir com o primeiro recurso que, depois de ele interposto, houvesse de subir imediatamente, com efeito meramente devolutivo – tendo extraído da sua alegação estas conclusões:

Na resposta, L… – único interessado que respondeu ao recurso – concluiu pela sua improcedência.

A agravante impugnou também, por recurso ordinário de apelação, a sentença homologatória da partilha, tendo condensado na sua alegação estas conclusões:

...

                A interessada L… – único interessado que respondeu também a este recurso – concluiu, igualmente, pela improcedência dele.

2.Factos provados.

Embora não surjam individualizados nem especificados na decisão recorrida, os factos que relevam para o conhecimento do objecto dos recursos e que devem considerar-se assentes por virtude da prova documental produzida, única prova disponível, são os seguintes:

                3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do âmbito dos recursos.

                Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

No caso, são impugnadas através dos recursos ordinários de agravo e de apelação, a decisão que indeferiu o requerimento da recorrente de eliminação da verba nº 17 e de aditamento, à relação de bens que devem figurar no inventário, de uma nova verba – o direito à indemnização pela expropriação do prédio rústico, objecto daquela verba – e a sentença que julgou a partilha, respectivamente.

Todavia, é clara, em face do conteúdo das alegações de ambas as partes, a fundamental homotropia do objecto de ambos os recursos, o que, decerto se explica, pelo facto de a impugnação da sentença homologatória da partilha ter por finalidade conspícua assegurar a expedição, para o tribunal ad quem, do recurso de agravo objecto de retenção.

Apesar disso, deve respeitar-se a ordem de conhecimento representada pela prioridade de interposição e, consequentemente, apreciar em primeiro lugar o recurso de agravo (artº 752 nº 2 do CPC).

Todavia, da homogeneidade de ambos os recursos decorre, como corolário que não pode ser recusado, esta consequência: se o recurso de agravo proceder, a procedência do recurso de apelação é uma fatalidade inevitável. Mas o inverso também é verdadeiro: se se negar provimento ao recurso de agravo, a improcedência do recurso de apelação é meramente consequencial[1].

Para pedir a eliminação, da relação de bens, da verba nº 17 e a adição a essa relação daquela outra nova verba, a recorrente adiantou três fundamentos: a conversão imediata, por força da declaração de utilidade pública da expropriação, do direito real de propriedade relativo àquela bem imóvel, num mero direito de indemnização; o erro, que inquinou a sua vontade, e a vontade da sua antecessora, no acto de licitação; o desequilíbrio entre os herdeiros - o mesmo é dizer, a violação do princípio da igualdade e da equidade da partilha – resultante da adjudicação, a um deles, de um bem diverso do relacionado.

A decisão impugnada, porém, de um aspecto, não julgou verificada qualquer causa de invalidade do acto de licitação, e de outro, concluiu pela permanência, no relictum, do direito real de propriedade sobre o bem imóvel, objecto da declaração de utilidade pública.

Nestas condições, tendo em conta os parâmetros de delimitação da competência decisória deste Tribunal representados pelo conteúdo das decisões impugnadas e das alegações da recorrente e da recorrida, a questão concreta controversa que há que resolver é só uma: a de saber se a decisão que indeferiu o requerimento de supressão da verba nº 17 e a adição, à relação de uma nova verba representada pelo direito de crédito resultante da expropriação do bem descrito naquela verba deve ser revogada e substituída por outra que elimine aquela primeira verba e adite esta última.

A resolução deste problema vincula, evidentemente, ao exame das causas de invalidade do acto de licitação e dos efeitos do acto administrativo declarativo da utilidade pública da expropriação, e à ponderação do conteúdo do princípio da igualdade e da equidade da partilha.

Os elementos assim obtidos, permitirão depois regressar à espécie objecto do recurso e proceder à aferição da exactidão da decisão impugnada.

                3.2. Causas de invalidade da licitação.

De forma deliberadamente descomprometida, a lei limita-se a declarar que a licitação[2] em processo de inventário tem a estrutura de uma arrematação[3] (artº 1371 nº 1, 1ª parte, do CPC).

Dada a feição de arrematação de que se reveste a licitação, segue-se lhe são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as causas de invalidade da venda executiva[4]. Mas nem todas.

É claro, por exemplo, que à licitação em processo de inventário, não são aplicáveis, por serem específicas do processo de execução, as causas de invalidade – formal - da venda executiva resultantes da anulação ou da revogação da sentença que serviu de título executivo ou da procedência da oposição à execução ou da anulação de toda a execução por falta ou nulidade da citação do executado (artº 909 nº 1 a) e b) do CPC). Também não é aplicável à licitação a causa de invalidade da venda executiva resultante do facto de a coisa alienada não pertencer ao executado e ter sido reivindicada pelo dono, uma vez que para a partilha de bens não pertencentes ao património objecto dessa mesma partilha é disponibilizado, pela lei substantiva, um regime específico (artºs 909 nº 1 d) e 2123 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Em contrapartida, são-lhe inteiramente aplicáveis a invalidade – formal – resultante da anulação do acto da venda, seja pela prática de uma acto que a lei não admita, seja pela omissão de um acto ou de uma formalidade imposta pela lei (artº 909 nº 1 c) do CPC) e – caso que releva para a economia do recurso – todas as causas de invalidade substancial da venda executiva, respeitantes a aspectos relacionados com a vontade de adquirir o bem.

Assim, tal como sucede com a venda executiva, a formação da vontade do licitante em processo de inventário pode ser afectada por coacção moral, ou por erro sobre os motivos ou sobre o objecto (artºs 255, 252 e 251 do Código Civil). Quanto ao erro sobre o objecto, encontra-se no âmbito da venda executiva – e, portanto, também no âmbito do acto de licitação em processo de inventário – um regime especial (artº 908 do CPC).

E este regime é especial não só perante o regime geral do erro sobre o objecto – mas também perante a regulamentação, já em si especial, do erro na venda de coisas oneradas (artºs 247, 251, 905 a 912 do Código Civil). Portando, ao erro sobre o objecto da licitação, aplicam-se, em primeiro lugar, as regras específicas da venda executiva, depois as regras relativas à venda de coisas oneradas e, finalmente, o regime geral sobre esse erro (artºs 908 do CPC, 905 a 912, 251 e 247 do Código Civil).

O erro sobre o objecto da licitação verifica-se, por isso, nos casos seguintes:

a) Quando, depois da licitação, se reconhece a existência de um ónus ou limitação que não foi tomada em consideração e que excede os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, i.e., quando sobre o bem recai, por exemplo, um direito real ou pessoal de gozo ou um ónus de que não foi dado conhecimento ao licitante, e que deva subsistir depois da licitação (artº 908 nº 1ª parte, do CPC).

b) Quando se comprova a falta de conformidade da coisa licitada como o que foi relacionado (artº 908, nº 1, 2ª parte, do CPC).

É igualmente possível que a licitação seja inválida com base numa divergência entre a vontade real e a declarada, decorrente quer da falta de consciência da declaração ou de coacção física quer de erro na declaração (artºs 246 e 247 do Código Civil). Apesar da falta de previsão específica sobre estas situações, estas não podem deixar de ser relevantes na venda executiva e, por extensão de regime, na licitação em processo de inventário.

Ao contrário do que sucede no erro sobre o objecto em geral e mesmo na venda de coisas oneradas, o erro sobre o objecto da venda executiva - e por extensão de regime, o erro sobre o objecto da licitação – não requer que o declaratário – o tribunal – conhecesse ou devesse conhecer a essencialidade para o comprador – ou para o licitante – do elemento sobre que incidiu o erro: a venda – o acto de licitação – é anulável, mesmo que o destinatário da declaração desconhecesse que as características do bem constituíram um elemento essencial na formação da vontade do comprador ou do licitante: a especialidade do regime previsto para a venda executiva perante os vários regimes substantivos e a necessidade de proteger o adquirente – o licitante, no caso de licitação – justificam esta solução[5].

Sem risco de desacerto, bem pode dizer-se que o erro-vício consiste na ignorância ou na falsa representação de uma realidade que poderia ter intervindo entre os motivos da declaração negocial.

Mas só há erro quando falta um elemento ou a representação está em desacordo com a realidade existente no momento da formação do negócio jurídico. Se o caso consiste na falsa representação de uma realidade futura, que se não se chega a verificar, o caso - muitas vezes impropriamente chamado de error in futurum - não é de erro, mas de falsa ou deficiente previsão (artº 437 do Código Civil).

O erro tem de respeitar a circunstâncias passadas ou presentes. Quando respeita a circunstâncias ou factos futuros, não há qualquer erro em sentido técnico-jurídico, dado que se não desconhece a realidade nem se faz dela uma falsa ou deficiente representação – e só nesse caso é que haverá erro, é que a vontade estará viciada por ele.

                Se se licita um bem no convencimento, por exemplo, de que tal bem não será objecto de expropriação e esse bem vem a ser atingido pela expropriação poderá dizer-se que se erra, sim, mas quanto ao futuro, mas isso não é um erro em sentido próprio - é uma falha na previsão, é uma falsa ou deficiente previsão, cujo enquadramento adequado é o instituto da alteração das circunstâncias (artº 437 do Código Civil).

                E face à consagração clara deste último instituto, não se mostra necessário recorrer actualmente ao error in futurum: uma deficiente previsão do evoluir das circunstâncias – um error in futurum – releva se, e na medida, em que se verifique os requisitos da alteração das circunstâncias; não é um caso de erro nem tem autonomia em face do instituto apontado.

                Na verdade – insiste-se – o erro-vício consiste no desconhecimento ou numa falsa representação da realidade; se, pelo contrário, a falsa representação se reportar ao futuro, é a previsão que falha ou o quadro de acontecimentos pressuposto que não se verifica ou evolui em termos diferentes do previsto, caso em que será de recorrer ao instituto da alteração das circunstâncias e verificar se essa falsa representação reúne os pressupostos reclamados para que aquele instituto seja aplicável.

                O parecer de que o erro se reporta ao presente ou ao passado, ao passo que a pressuposição se refere ao futuro corresponde, aliás, à doutrina dominante[6]. E a afirmação de que o erro tem a ver com ignorância ou falsa representação da realidade, portanto, de factos ou circunstâncias já ocorridas, no passado ou no presente, e de que, por sua vez, a pressuposição se reporta ao futuro, tendo a ver com a convicção determinante, da vontade de contratar, de que as circunstâncias se manterão no futuro ou evoluirão em certo sentido ou de certa maneira, constitui também jurisprudência corrente[7].

Na espécie, a recorrente alegou que a sua vontade e a da sua antecessora foi viciada por erro, erro esse não foi causa de uma divergência não intencional entre a vontade e a declaraçãoerro-obstáculo ou erro na declaração – antes constitui um verdadeiro vício na vontade – o erro-vício (artºs 247, 251 e 252 do Código Civil).

E um tal erro refere-se patentemente ao objecto do negócio (artº 251 do Código Civil): no acto de licitação - diz a recorrente – eu e a minha imediata antecessora ignorávamos que tinha sido declarada a utilidade pública e a urgência da expropriação de um dos bens licitados, ainda que por outro co-interessado.

Abstraindo do facto de o erro alegado se referir a um singular acto de licitação e a um acto de licitação praticado, não pela recorrente ou pela sua antecessora – mas por outros interessados e, portanto, de rigorosamente o acto inválido consistir não na licitação mas na não licitação, a verdade é que não se verifica, no caso, um tal erro. Patentemente, tanto a recorrente como sua antecessora não ignoravam nem representaram falsamente quaisquer circunstâncias passadas ou presentes, i.e., a situação existente no momento da realização do acto de licitação.

                Como se notou, o erro, como falsa representação da realidade, só se pode referir a circunstâncias contemporâneas da conclusão do negócio ou do acto jurídico e, por isso, não se está em erro sobre o futuro. Pode-se falhar uma previsão, mas quando se prevê não se versa ainda em erro, pois, não há nenhuma representação sem correspondência na realidade.

No caso do recurso, o acto de licitação teve lugar na conferência de interessados realizada no dia 4 de Março de 2010 e a utilidade pública da expropriação de um dos bens licitados – não pela recorrente ou pela sua imediata antecessora - foi declarada por despacho de 14 de Abril de 2010, publicado no DR no dia 23 de Abril do mesmo ano – data em que o acto administrativo da declaração de utilidade pública produziu os seus efeitos (artºs 17 nº 1 e 90 do Código das Expropriações, aprovado pelo DL nº 168/99, de 18 de Setembro (CE) e 130 nº 2 do Código de Procedimento Administrativo).

Ora, como o facto sobre o qual, segundo a alegação da recorrente, incidiu o erro, é de verificação objectivamente posterior à do acto supostamente inquinado por ele, é claro que não a mínima razão para que se conclua que a vontade da recorrente e da sua antecessora tenha sido viciada por tal erro. Nem sequer há motivo para que se decida que aquelas vontades se formaram num contexto de uma falsa ou deficiente previsão quanto ao evoluir das coisas, dado que não foi sequer alegado que o acto de licitação foi praticado num contexto de falsa representação de uma realidade futura: a de que nenhum dos bens objecto da licitação seria atingido pelo acto expropriativo.

Não são necessárias mais nem melhores considerações para mostrar que, realmente, não há razão para, com fundamento num erro-vício sobre o objecto, se ter por inválido o acto de licitação e, por esse motivo, para suprimir a verba nº 17 e adicionar à relação de bens uma nova verba tendo por objecto o direito de indemnização devido pela expropriação.

Todavia, há uma realidade indiscutível: a de que posteriormente à realização do acto de licitação, um dos bens sobre que recaiu foi objecto, ainda na pendência da indivisão do património hereditário, de declaração de expropriação por utilidade pública.

A recorrente acha que essa declaração transformou o bem expropriado num mero direito de crédito sobre o montante indemnizatório. A decisão recorrida, porém, teve aquele facto por irrelevante, dado que, no seu ver, apesar daquele acto ablativo, a propriedade daquela verba é sem sombra de dúvida do acervo hereditário.

Decididamente, a razão está, também neste ponto, do lado da decisão impugnada. O detalhe da exactidão desta proposição exige, naturalmente, o exame da eficácia do acto declarativo da utilidade pública da expropriação.

3.3. Eficácia do acto declarativo de utilidade pública.

A expropriação por utilidade pública consiste, na sua essência, na privação ou na ablação, por acto de autoridade pública e por motivo de utilidade pública, da propriedade de imóveis e dos direitos a ela inerentes (artº 1 do Código das Expropriações, aprovado pelo DL nº 168/99, de 18 de Setembro).

                A natureza jurídica do acto expropriativo tem sido objecto de discussão: uma posição clássica, já ultrapassada, entendia a expropriação como uma venda forçada; correspondentemente assinalava-se à indemnização a natureza de um preço. Esta construção não dispõe, porém, de uma base dogmática estável: o contrato de compra e venda tem como signo distintivo a sua sujeição à autonomia privada. Na expropriação, contudo, falta, por definição, autonomia privada surpreendendo-se, inversamente, na relação jurídica correspondente, a sujeição do sujeito passivo ao sujeito activo, que se apresenta investido em poderes de autoridade, ius imperii.

                Domina, hoje, a concepção da expropriação como um instituto de direito público. Esta construção, todavia, não é unitária, comportando duas variantes: para uma a expropriação, não obstante a natureza pública do acto que lhe dá origem, implicaria uma transmissão do direito para a entidade expropriante, a título derivado - a expropriação não implicaria a extinção do direito mas a mera transferência dele da esfera jurídica do expropriado para a da expropriante; para outra, que deve de reputar-se de maioritária, a expropriação constitui um modo de extinção de direitos da titularidade do expropriado e a sua constituição, ex-novo, na esfera jurídica do ente expropriante[8].

                 Realmente, a expropriação por utilidade pública é o evento jurídico pelo qual se extinguem direitos reais sobre imóveis, constituindo-se, concomitantemente, novos direitos na titularidade das pessoas que se entende prosseguirem o interesse público, mediante o pagamento de justa indemnização (artºs 1308 e 1310 do Código Civil e 62 nº 2 da Constituição da República Portuguesa). Expropriar, significa, etimologicamente, tirar a propriedade, referindo-se o acto ablativo ao direito de propriedade e não à detenção material.

A sujeição à expropriação constitui uma situação jurídica passiva que se inclui no conteúdo de qualquer direito real. A actuação do direito potestativo correspondente não tem, porém, uma eficácia transmissiva – mas uma eficácia verdadeiramente extintiva[9].

A utilidade pública legitimadora de uma expropriação concreta é, na expropriação administrativa, objecto de um acto formal – o acto de declaração de utilidade pública – emanado da autoridade administrativa a quem a lei atribui competência para expropriar. O acto de declaração de utilidade pública tem, portanto, um duplo significado: declaração da utilidade pública do fim concreto da expropriação e indicação do bem ou bens objecto desta (artºs 12 e 13 do CE).

Resta, porém, saber qual é o valor desse acto, qual é o lugar que ocupa dentro do procedimento expropriativo e a sua exacta eficácia.

A declaração de utilidade pública da expropriação – acto administrativo pelo qual se reconhece serem determinados bens necessários à realização de um fim de utilidade pública mais importante que o destino a que estão afectados – constitui o acto constitutivo da relação ou da situação jurídica da expropriação.

O acto declarativo da utilidade pública é, portanto, o acto constitutivo da expropriação[10], o acto final do procedimento expropriatório, o acto que se mostra irremissivelmente ordenado para o sacrifício do direito de propriedade do particular. O acto de declaração da utilidade pública constitui, por outro lado, título suficiente para que a entidade expropriante se apodere dos bens, v.g., através da promoção da chamada posse administrativa, que deve ser documentada em auto (artºs 19 a 22 do CE).

Todavia, não é o acto de declaração de utilidade pública que provoca a extinção do direito real de propriedade do particular e a sua concomitante aquisição – originária – pelo ente expropriante: aquela extinção e esta aquisição do direito real de propriedade têm lugar, no caso de expropriação litigiosa, num momento posterior e por acto judicial (artº 51 nº 5 do CE)[11].

Decerto que esse acto judicial de investidura na propriedade não tem efeito constitutivo da expropriação. O acto de adjudicação da propriedade – e da posse, se esta não tiver sido tomada administrativamente, com base na autorização concedida pelo autor do administrativo declaratório da utilidade pública da expropriação - embora da competência do juiz, e do tribunal comum, não é, realmente, do ponto de vista material, um acto judicial, dado que aquele magistrado não tem qualquer poder de julgamento ou de apreciação da legalidade ou ilegalidade da expropriação, nem – muito menos - da sua conveniência ou oportunidade: o juiz realiza apenas um acto de controlo preventivo, puramente extrínseco e sumário, verificando tão só a regularidade formal dos actos do procedimento expropriatório, limitando-se a emitir um visto[12].

Todavia, não sendo este acto judicial o acto constitutivo da expropriação é, seguramente, aquele que desencadeia a eficácia do acto de declaração de utilidade pública, designadamente, o efeito extintivo - do direito real do particular – e o aquisitivo, pelo expropriante, de novo direito real referido ao mesmo bem.

A declaração de utilidade da expropriação constitui, pois, um acto administrativo de execução continuada, já que se alguns dos seus efeitos se produzem com a respectiva publicação, outros, são, pela lei, diferidos para momento posterior a essa publicação: estão nestas condições, a extinção do direito real do expropriado e a sua aquisição pela entidade expropriante, que só operam com a conclusão do contrato, no caso de expropriação amigável, ou no caso de expropriação litigiosa, com o acto judicial de adjudicação (artºs 33 e 37 e 51 nº 5 do CE)[13].

Maneira que, se o acto de declaração de utilidade da expropriação onera os bens imóveis a ela sujeitos, não tem, decerto, por si só, a virtualidade de converter o direito real de propriedade do particular num mero direito de indemnização[14].

Em absoluto remate: por força do acto de declaração de utilidade pública, resulta que os bens do particular ficam imediatamente adstritos ao fim específico visado pela expropriação, mas não pode dizer-se, sem erro, como sustenta a recorrente, que se verifica uma conversão imediata do direito de propriedade do particular num direito de indemnização.

Ora, na espécie do recurso, sendo irrecusável que foi declarada a utilidade pública da expropriação do bem imóvel relacionado sob a verba nº 17, não está demonstrado – por não se mostrar adquirido para o processo o indispensável documento – nem a investidura da expropriante na posse administrativa daquele bem nem, muito menos – por nem sequer ter sido alegado – o facto da adjudicação à expropriante do direito real de propriedade sobre ele.

Portanto, a afirmação de que a propriedade do bem inscrito naquela verba é do acervo hereditário é, em face dos elementos de facto disponíveis, inteiramente exacta.

Por este lado, o recurso não tem, também, bom fundamento.

Sustenta, por último, a recorrente que manutenção, na relação de bens, daquela verba, apesar da declaração de utilidade pública da sua expropriação, rompe o equilíbrio e a igualdade entre os herdeiros.

E, realmente, há boas razões para que o argumento – que se prende com o princípio da igualdade e da equidade da partilha – se deva ter por procedente.

3.4. O princípio da igualdade e da equidade da partilha.

Se considerarmos o fim a que se destina, o processo de inventário é um processo divisório, tem por objectivo a partilha de uma massa de bens pelos respectivos titulares; relacionam-se bens com vista à preparação da partilha (artº 1326 nº 1 do CPC)[15].

Portanto, o inventário exerce uma função estritamente divisória: dissolve uma universalidade, substituindo-lhe a formação de quinhões ou quotas individuais e concretizadas.

Tendo em conta a sua finalidade, o processo de inventário é orientado por um princípio de igualdade e de equidade: a repartição dos bens pelos vários interessados deve ser, tanto quanto possível, igualitária e equitativa (artº 1353 nº 2, in fine, 1374 b) e 1377 nºs 1, 2 e 4 do CPC).

A licitação não deixa, em certa medida, de prosseguir um tal princípio: àparte a circunstância de permitir a atribuição aos herdeiros com maior capacidade económica dos melhores bens da herança, obrigando os outros a uma espécie de venda forçada, a licitação tem a vantagem de favorecer uma partilha mais igualitária, dado que obsta à álea do sorteio, aproxima o valor dos bens do seu valor real, evita as despesas e as demoras da avaliação, corrige a deficiência dessa avaliação e aumenta o valor do património partilhável.

A lei não estabelece qualquer limite para a licitação. Mas fiel ao princípio da igualdade e da equidade da partilha – que impõe que todos os herdeiros devem, sempre que possível, ser inteirados em bens da mesma espécie e natureza – permite, por exemplo, ao não licitante a quem caibam bens de natureza diferentes dos licitados, requerer a sua composição em dinheiro, pelo produto da sua venda judicial, ou que os bens licitado em excesso lhe sejam adjudicados, até ao limite do seu quinhão, pelo valor resultante do acto de licitação (artº 1374 b) e 1377 nº 2 do CPC).

Seja como for, segundo a recorrente é este princípio da igualdade e da equidade que sai violado com a manutenção no inventário daquela verba tal como foi relacionada, i.e., com inteira indiferença pela declaração da utilidade pública da sua expropriação.

Já se notou que, apesar da declaração de utilidade da expropriação do bem imóvel sob a verba 17, tal bem continua integrada no património hereditário.

Todavia, a declaração da utilidade pública da sua expropriação trouxe consigo uma alteração significativa da sua situação jurídica.

Nos termos gerais, aquele direito real de propriedade estava limitado pela sujeição à expropriação, imposta genericamente a todo o direito real sobre imóveis, e por efeito da qual aquele direito podia ser expropriado quando surgisse uma causa de utilidade pública prevista na lei.

E essa restrição preexistente foi concretizada ou actuada através da declaração de utilidade pública da expropriação num momento que o direito real de propriedade se integrava, indubitavelmente, no património hereditário e não, evidentemente, no património dos licitantes, declaração aquela que, se não tem a virtualidade de converter imediatamente o direito real de propriedade do particular num mero direito de indemnização, representa, decerto, uma oneração grave daquele direito.

Realmente, os licitantes não adquirem, pelos simples facto da licitação, o direito real de propriedade sobre o bem licitado: essa aquisição apenas se dá com o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha constante do mapa – embora retroaja ao momento da abertura da herança (artºs 677 e 1382 do CPC e 2119 do Código Civil). Pela licitação, o licitante adquire apenas um direito à adjudicação – que, aliás, não é absoluto – não entrando então nem sequer, em princípio, na administração e no gozo dos bens licitados, que continua a cargo do cabeça-de-casal, pertencendo os respectivos frutos, até à ultimação da partilha, à herança (artºs 1374 b), in fine, 1377 nº 2, 1389 e 1399 do CPC e 2079, 2092 e 2093 do Código Civil).

Nestas condições, todos os interessados no inventário, e não apenas o licitante, o são também para os efeitos do processo de expropriação, aliás, em inteira harmonia com o princípio de que os direitos à herança devem ser exercidos por todos e contra todos os herdeiros (artº 9 nº 1 do CE e 2091 do Código Civil).

As operações da partilha não podem, por essa razão, permanecer insensíveis à declaração da utilidade pública da expropriação daquele bem que deve ser partilhado tendo em conta a oneração representada pelo exercício actual, relativamente a ele, do direito potestativo de expropriação.

De harmonia com regras de experiência e critérios sociais, não é razoável supor que a recorrente esteja preocupada com o sacrifício patrimonial decorrente para os licitantes da extinção do direito real de propriedade sobre o referido bem imóvel – que só adquiririam com o trânsito em julgado da sentença que julgar a partilha - e da sua conversão num direito de indemnização de valor inferior ao da licitação, sendo mais natural assumir que a impugnante tenha em vista obstar a um hipotético enriquecimento dos licitantes, por força da eventualidade do percebimento de um valor indemnizatório superior ao valor por que o bem foi licitado (artº 349 do Código Civil).

Todavia, por força do princípio da igualdade e da equidade da partilha, tanto um eventual prejuízo como um eventual lucro dos licitantes, por força da expropriação e da mais que provável conversão do direito real sobre o bem num direito de crédito, não deve ser suportado ou atribuído, respectivamente, apenas a um interessado – mas arcado por todos ou adjudicado a todos. O facto da expropriação atingiu um bem integrante da herança e, portanto, as vicissitudes decorrentes desse facto – maxime a extinção, ainda que parcial, do direito real sobre o bem, sobretudo se essa extinção ocorrer ainda num contexto de indivisão do património hereditário - devem repercutir-se na posição jurídica de todos os interessados e não apenas na de alguns deles

Mas para que isso suceda, é indispensável que o prédio seja relacionado com a expressa menção do ónus da declaração da utilidade pública da expropriação para que a vontade de todos os interessados, nos vários momentos processuais relevantes para a partilha, tenha em consideração a sua existência.

E a lei disponibiliza um mecanismo apto a tornar patente aquele ónus e a ajustar a descrição da verba indicada à sua verdadeira situação jurídica.

A lei autoriza qualquer interessado, até ao trânsito em julgado da sentença que julgar a partilha, a arguir qualquer inexactidão na descrição dos bens que figuram no inventário e que releve para a partilha, embora sob a cominação de pena processual de multa, caso o arguente não demonstre que a não pode produzir no momento próprio por facto que não lhe imputável (artº 1340 nºs 1 e 6 do CPC)[16].

E uma inexactidão que releva para a partilha é decerto o facto de um bem imóvel, integrante da comunhão hereditária, relacionado sem qualquer restrição, ter sido atingido, na pendência dessa comunhão, pela declaração de utilidade pública da sua expropriação.

Portanto, à recorrente era lícito acusar a inexactidão da descrição da apontada verba, resultante do facto superveniente da declaração de utilidade pública da sua expropriação, e pedir a sua correcção de modo a que passasse a patentear tal facto, sendo certo que, por esse facto ser de verificação objectivamente posterior mesmo relativamente à conferência de interessados nem sequer ficou incursa em pena processual de multa pela arguição tardia. E a correcção dessa inexactidão traz implícito este efeito: a caducidade do acto da sua licitação.

O que não há, por certo, é motivo – pelas razões já apontadas - para suprimir aquela verba e para aditar à relação uma nova verba, tendo por objecto o direito à indemnização devida pela expropriação.

Um dos pressupostos da legitimidade da expropriação é representado pelo princípio da proporcionalidade, que se desdobra, entre outros, no princípio da necessidade, que, na sua vertente territorial, vincula a que, se o fim da expropriação puder ser atingido com a ablação de uma parte de um prédio – não deve ser expropriada a totalidade dele – salvo se o proprietário requerer a expropriação total, faculdade que tem, patentemente, por finalidade a protecção dos interesses do expropriado (artº 3 nºs 1 e 2 do CE).

Esta vertente do princípio da necessidade foi observada no caso, dado que, por força da declaração de utilidade da expropriação, esta é meramente parcial, posto que incide apenas sobre uma parte do prédio.

E sendo a expropriação meramente parcial – e enquanto não for decretada a expropriação total – aquela verba sempre deve permanecer relacionada, embora com a menção de que foi declarada a utilidade pública da sua expropriação parcial, e sem prejuízo, evidentemente, da ulterior correcção da sua descrição, em função das vicissitudes decorrentes do procedimento de expropriação – v.g., a amputação decorrente da extinção, por força da eventual adjudicação à expropriante do direito real de propriedade sobre a parte atingida pelo acto expropriativo.

O recurso de agravo, deve pois, nestes termos proceder. E em face da bondade, ainda que meramente parcial, do recurso de agravo é meramente consequencial a procedência, também meramente parcial, do recurso de apelação.

                Dado que tanto a recorrente como a recorrida sucumbem, reciprocamente, em ambos os recursos, deverão, ambas, satisfazer as custas deles (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se parcialmente provimento a ambos os recursos, e consequentemente:

a) Revogam-se as decisões recorridas - a sentença homologatória da partilha apenas na parte em que foi objecto de impugnação;

b) Determina-se a correcção da descrição da verba nº 17 de que modo a que dela passe a constar também o conteúdo do despacho que declarou a utilidade pública da sua expropriação parcial, e a convocação da conferência de interessados para se deliberar sobre a adjudicação daquela verba e o valor pelo qual deve ser adjudicada, a que se seguirá, caso não haja acordo, o acto de licitação.

Custas dos recursos pela recorrente e pela recorrida, na proporção de 1/3 para a primeira e de 2/3 para a segunda.

                              
Henrique Antunes (Relator)


[1][1] Ac. da RC de 07.11.06, www.dgsi.pt.

[2] Acto pelo qual algum dos interessados na partilha oferece pelos bens da herança um preço superior ao da avaliação para serem imputados no seu quinhão: Ac. da RL de 28.05.76, BMJ nº 259, pág. 261.
[3] Mas não tem a mesma natureza nem visa o mesmo fim: Ac. do STJ de 19.12.78, BMJ nº 282, pág. 146.
[4] Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume II, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 312 e o Ac. desta Relação de 07.11.06, www.dgsi.pt. Note-se que esta conclusão permanece exacta ainda que, com a Reforma do Código de Processo Civil de 1995/1996, a venda judicial tenha passado a ser realizada mediante propostas em carta fechada e não por arrematação em hasta pública (artºs 886 nº 2 e 889 nº 1 do CPC). O novo regime da venda, apenas vale para venda que envolva terceiros, que não para a licitação limitada aos interessados no inventário, que é realizada através de leilão, no qual oral e abertamente, os objectos são adquiridos por quem oferecer mais dinheiro, a partir de um preço fixado previamente. Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume II, 3ª edição, renovada, Coimbra, 2002, pág. 103 e nota 287.
[5] Lebre de Freitas, A Acção Executiva, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª edição, Coimbra Editora, 2004, pág. 344, e Remédio Marques, Curso de Processo de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Almedina, Coimbra, 2000, pág. 419; contra Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 1977, pág. 236.
[6] Cfr., por todos, António Pinto Monteiro, Erro e Vinculação Negocial, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 18 a 20.
[7] V.g., Acs. do STJ de 10.12.74, BMJ nº 242, pág. 254, da RP de 09.02.93, CJ, XVIII, I, pág. 227  e da RC de 01.03.95, CJ, XX, II, pág. 5
[8] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 1980, págs. 1020 e 1021, e, “Em torno do conceito de expropriação por utilidade pública”, in, O Direito, nº LXXXI, Lisboa, 1949, pág. 212.
[9] Oliveira Ascensão, Direitos Civil, Reais, 4ª edição, Coimbra, 1983, pág. 313, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra, 2008, pág. 333 e Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2ª edição, Quid Iuris, Lisboa, 1997, pág. 194.
[10] Marcello Caetano, Estudos de Direito Administrativo, Lisboa, 1974, págs. 172 a 174, Marques Guedes, “Natureza jurídica do acto de declaração de utilidade pública ou equivalente”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano VI, págs. 343 e 344.
[11] Ac. da RC de 14.03.06, www.dgsi.pt.
[12] Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, volume, II, Almedina Coimbra, 2010, págs. 391 e 392 e As Garantias do Particular Na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra, 1982, págs. 114 e 116; Acs. da RC de 29.02.00, CJ, XXV, I, pág. 36 e da RL de 15.05.07 e de 17.04.08, www.dgsi.pt.
[13] Pedro Elias da Costa, Guia das Expropriações por Utilidade Pública, Coimbra, 2003, págs. 83 e 84, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 260, e Salvador da Costa, Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, Almedina, Coimbra, pág. 86; Ac. da RE de 29.05.08, CJ, XXXIII, III, pág. 239.
[14] Carla Vicente, A Urgência da Expropriação, Algumas Questões, Lisboa, 2008, págs. 14 a 16, e José de Oliveira Ascensão, O Urbanismo e o Direito de Propriedade, INA, 1989, pág. 332 e José Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa, 1997, pág. 331.
[15] Alberto dos Reis, Processos Especiais, Coimbra, 1982, vol. II, págs. 355 e 356.
[16] Acs. da RP de 17.03.83, BMJ nº 325, pág. 606, da RC de 03.11.81, BMJ nº 317, pág. 377, da RL de 20.01.00, www.dgsi.pt, e do STJ de 28.02.99, BMJ nº 489, pág. 280 e 28.10.99, www.dgsi.pt. Já assim, também o Ac. do STJ de 03.11.44 – Bol. Of., nº 4, pág. 577 - de harmonia com o qual, movida uma acção de expropriação por utilidade pública depois da abertura da herança, afectando parte de um dos prédios, tal facto deve ser tomado em consideração na descrição desse prédio, sendo oportuna a reclamação mesmo no acto de licitações.