Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
204/22.5T8SCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
SEGURO OBRIGATÓRIO DE ACIDENTES DE TRABALHO
PRESTAÇÃO DA SEGURADORA
OBRIGAÇÃO INEXISTENTE
REPETIÇÃO DO INDEVIDO
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, N.ºS 1 E 2, 473.º, N.ºS 1 E 2, 476.º, N.º 1, 479.º DO CÓDIGO CIVIL E 130.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
I – A responsabilidade por acidente de trabalho é uma responsabilidade objectiva pelo risco, que recai sobre o empregador que a deve, obrigatoriamente, transferir para um segurador.

II – No contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho – que é um seguro de responsabilidade civil – o risco consiste na constituição no património do empregador, tomador, de uma obrigação de indemnizar terceiro – o trabalhador – ou, de modo mais perifrástico, na emergência inesperada para o tomador de uma obrigação de indemnizar, em espécie ou por equivalente pecuniário, proveniente de uma responsabilidade extracontratual pelo risco juridicamente imputável ao empregador;

III – De harmonia as condições gerais da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, o pagamento de indemnizações ou outras despesas não impede o segurador de posteriormente recusar a responsabilidade relativa ao acidente quando circunstâncias supervenientemente reconhecidas o justifique, caso em que lhe assiste o direito de reaver tudo o que houver pago.

IV – A repetição do indevido implica, sempre, a realização voluntária de uma prestação e requer um elemento subjectivo por parte daquele que presta – a intenção de cumprir uma obrigação, pelo que o enriquecimento stricto sensu é puramente objectivo – e pressupõe um elemento objectivo – a não existência da obrigação no momento da prestação - e conduz a uma pura e simples restituição da prestação – repetição - do que decorre que o enriquecimento é sempre calculado em abstracto, portanto, com inteira indiferença pelas suas projecções, tanto na esfera do empobrecido, como na do enriquecido.

V – A aplicação da condictio indebiti, na variante de indevido objectivo, reclama apenas a demonstração, pelo que se diz empobrecido, de que realizou a prestação com intenção de cumprir – animus solvendi – e de que não existe uma obrigação subjacente a essa prestação, havendo lugar à repetição desta, ainda que o receptor esteja de boa fé;

VI – A actuação pela Relação dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto do Tribunal da 1. ª instância, encontra-se subordinada ao princípio da economia processual que, no plano individual, i.e., no plano de cada acto processual, proíbe a prática de actos objectiva ou subjectivamente inúteis.

VII – Ao segurador que realiza prestações reparadoras de danos sofridos por trabalhador relativamente aos quais se apura, ulteriormente, que são recidiva das lesões sofridas em anterior acidente de trabalho, facto que ignorava no momento em que as realizou, assiste o direito à sua repetição, com fundamento no enriquecimento sine causa, dado que as prestações foram realizadas para solver, com o animus correspondente, uma obrigação inexistente.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Relator: Henrique Antunes
1.ª Adjunta: Cristina Neves
2.º Adjunto: Pires Robalo

                                                                                                       Proc. n.º 204/22.5T8SCD.C1

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O réu, AA apelou da sentença da Sra. Juíza de Direito, Estagiária, do Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, que, a pedido da autora, A..., SA, com fundamento no enriquecimento sem causa, o condenou a pagar-lhe a quantia de € 9 209, 37, acrescida de juros de mora civis, desde a citação até pagamento.

O apelante – que pede no recurso a revogação desta sentença e a sua substituição por outra que o absolva do pedido – rematou a sua alegação com estas conclusões:

(…).

Na resposta a apelada concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Matéria de facto.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos:

2.1. Factos provados.

1. A Autora é uma pessoa coletiva, constituída sob o tipo de Sociedade Anónima, com o objeto social de exploração da indústria de seguros do Ramo Vida e Não Vida e da indústria de resseguros, com autorização da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões para exercer a atividade seguradora no Ramo Vida e no Ramo Não Vida.

2. No exercício da sua actividade, no âmbito do Ramo Não Vida, a Autora celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com B..., Lda., empresa 100% detida pelo Réu, com a apólice n.º ...56, relativo a acidentes de trabalho, subscrito na modalidade prémio fixo, onde consta:

a. “Cláusula 25º - Obrigações do tomador de seguro em caso de ocorrência de acidente de trabalho

1. Em caso de ocorrência de um acidente de trabalho, o tomador do seguro obriga-se:

a) A preencher a participação de acidente de trabalho prevista legalmente e a enviá-la ao segurador no prazo de 24 horas, a partir do respetivo conhecimento; (…)

c) A fazer apresentar sem demora o sinistrado ao médico do segurador, salvo se tal não for possível e a necessidade urgente de socorros impuser o recurso a outro médico.

2. As comunicações previstas nas alíneas a) e b) do número anterior são efetuadas por meio informático…”.

b. “Cláusula 31ª

1. A prestação de socorros urgentes, ou a comunicação do acidente de trabalho às entidades competentes, não significa reconhecimento da responsabilidade pelo segurador.

2. O pagamento de indemnizações ou outras despesas não impede o segurador de, posteriormente, recusar a responsabilidade relativa ao acidente quando circunstâncias supervenientemente reconhecidas o justifiquem, caso em que lhe assiste o direito a reaver tudo o que houver pago”.

3. No dia 12 de novembro de 2018, o Réu participou à ora Autora, a ocorrência de um acidente de trabalho, ocorrido no dia 31 de Outubro de 2018, pelas 09h30, no qual havia sido interveniente o Réu.

4. No dia 31/10/2018, pelas 09:30 horas, o Réu, que exerce a sua profissão na área da indústria metalúrgica e metalomecânica, encontrava-se em período laboral, onde executava a desmontagem de uma grua, propriedade da empresa C..., Lda. numa obra sita na Rua ..., ..., União das freguesias ..., ..., ... e ..., concelho ... e distrito ..., quando sofreu uma queda.

5. Na sequência da desmontagem da grua referida, o Réu caiu de uma altura de cerca de 60 centímetros, apoiando de forma irregular a perna direita no chão, tendo de seguida ido para casa, o que deu origem a uma hérnia na zona lombar.

6. No entanto, mais tarde, depois do acidente, o Réu procedeu à conclusão da desmontagem da grua.

7. Após a receção da participação de acidente de trabalho, o Réu através dos serviços da Autora, iniciou o acompanhamento clínico necessário à sua recuperação.

8. O Réu deslocou-se ao Hospital ..., em ..., no dia 1 de Novembro de 2018, dando entrada no mesmo sob o nº de episódio de urgência ...05.

9. O Réu apresentava dores na anca e na perna direita desde o dia 29 de Outubro de 2018.

10. Em simultâneo com a prestação dos cuidados de saúde, a Autora requereu, em 11/12/2018, a averiguação do alegado acidente de trabalho, por forma a tomar conhecimento pormenorizado das causas e circunstâncias que estiveram na sua origem.

11. O averiguador da Autora reuniu com o Réu pelo menos por duas vezes.

12. O Réu sofreu no dia 06 de Outubro de 2010 um acidente de trabalho resultante de um mau jeito ao levantar uma peça de uma grua o que deu origem a uma hérnia discal.

13. No âmbito do referido sinistro, correu termos no Tribunal do Trabalho ..., ... Juízo, o processo judicial nº 255/11...., tendo sido na fase conciliatória do mesmo atribuída ao sinistrado uma Incapacidade Parcial Permanente de 23.1760%, em resultado de avaliação e exame por junta médica.

14. Proferiu decisão o douto Tribunal, atribuindo assim uma Incapacidade Parcial Permanente ao ora Réu de 10% e condenando a D... – Companhia de Seguros, S.A., ao pagamento do capital de remissão de uma pensão anual vitalícia, no valor de 970,70€, bem como ao pagamento de despesas de transporte no valor de 180.00€.

15. No seguimento do sinistro ocorrido no ano de 2010, o Réu foi submetido a uma intervenção cirúrgica a uma hérnia discal.

16. A Autora despendeu no decurso de todo o processo, os seguintes montantes:

a. 3.636,12€ (três mil seiscentos e trinta e seis euros e doze cêntimos), a título de salários, sendo certo que montante indicado foi liquidado ao Réu, a título de indeminização pelas incapacidades temporárias para o trabalho sofridas, com início a 12/11/2018 e fim a 15/04/2019.

b. 120€ (cento e vinte euros), a título despesas médicas e medicamentosas, liquidados à empresa E....

c. 1.830€ (mil oitocentos e trinta euros) a título despesas médicas e medicamentosas, liquidados à ..., F..., Lda.

d. 2.051€ (dois mil e cinquenta e um euros), a título despesas médicas e medicamentosas, liquidados à empresa G..., Lda.

e. 110€ (cento e dez euros), a título despesas médicas e medicamentosas, liquidados à empresa H....

f. 70€ (setenta euros) a título de despesas médicas e medicamentosas, liquidadas à empresa I..., Lda.

g. 51€ (cinquenta e um euros), a título despesas médicas e medicamentosas, liquidados ao J..., E.P.E.

h. 58,34€ (cinquenta e oito euros e trinta e quatro cêntimos), a título despesas médicas e medicamentosas, liquidados à Farmácia ....

i. 282,90€ (duzentos e oitenta e dois euros e noventa cêntimos) a título de gastos de gestão.

17. A Autora enviou uma carta à Tomadora de seguro - B... LDA -, no dia 27.02.2019 onde consta: “Junto envio relatório completo do episódio de urgência, que não está de acordo com as declarações do sinistrado. O acidente foi participado como tendo ocorrido no dia 31.10.2019, e a 1ª assistência 3 dias depois. De acordo com o documento em anexo, o sinistrado recorreu a assistência médica no dia 01.11.2018, tendo referido que a dor sentida iniciou na segunda feira anterior, ou seja, 29.11.2018. Agradeço novas diligências junto do sinistrado no sentido de esclarecer as incongruências identificadas.”.

18. Em 01-04-2019, a Autora uma carta ao Réu, na qual consta o seguinte: “Exmos. Senhores, Na sequência da análise do sinistro acima identificado, participado ao abrigo da apólice de Acidentes de Trabalho, vimos por este meio informar que, de acordo com os elementos em nosso poder, concluímos que a lesão apresentada pelo sinistrado não resulta do acidente participado. Por este facto, lamentamos informar não nos ser possível assumir qualquer responsabilidade pela sua reparação.”.

19. No dia 16 de maio de 2019, a Autora enviou uma carta ao Réu onde consta: “Na sequência da nossa carta de 01.04.2019, cuja cópia se junta à presente, vimos solicitar o reembolso das despesas suportadas com o presente processo, no valor de EUR 8.209,37. O reembolso poderá ser efetuado por cheque ou por transferência para o NIB da A...:  ...97.”.

20. O sinistro ocorrido em 31 de outubro de 2018 foi uma recidiva do acidente de trabalho ocorrido em 06 de Outubro de 2010.

21. Foram os serviços médicos da Autora que medicaram e ministraram tratamentos.

2. Factos não Provados.

A. Foi a Autora quem informou o Réu da assunção de responsabilidade pelo sinistro ocorrido.

Não se demonstraram outros factos com interesse para a decisão da causa, tendo sido considerada não escrita a matéria de Direito, conclusiva, argumentativa e irrelevante para a decisão de mérito.

2.3. Motivação.

(…).

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

 O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, expressa ou tacitamente, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º nºs 2, 1.ª parte, e 3 a 5, do CPC).

A sentença impugnada, com fundamento no enriquecimento sine causa, invocado pela apelada como causa petendi, condenou o apelante a restituir-lhe tudo o que prestou em cumprimento da obrigação que contratualmente assumiu com o empregador daquele por força do contrato de seguro de acidentes de trabalho que concluiu com o último – obrigação de prestar a que, afinal, se não mostrava adstrita, uma vez que os danos que reparou não emergem de acidente de trabalho relativamente ao qual tenha assumido, por virtude daquele contrato, a responsabilidade pela sua reparação - mas antes de um acidente de trabalho anterior pelo qual é, contratualmente, irresponsável.

O apelante, evidentemente, mostra-se hostil a este julgamento desde logo por virtude do error in iudicando, por erro na avaliação ou apreciação da prova testemunhal em que incorreu a Sra. Juíza de Direito. No seu ver, numa sã e prudente avaliação da prova, devem julgar-se provados todo um conjunto de factos que, de modo genérico, foram considerados não provados.

Maneira que, tendo em conta os parâmetros da competência funcional ou decisória desta Relação, delimitados pelo modo indicado, a questão concreta controversa colocada à sua atenção é a de saber se a Sra. Juíza de Direito incorreu, no julgamento da quaestio facti, num error in iudicando, por equívoco na avaliação ou apreciação das provas, o que vincula, desde logo, à aquisição dos parâmetros dos poderes de correcção daquela decisão que a lei reconhece a esta Relação.

O sentido da decisão, da acção ou do recurso, do tribunal depende, obviamente, dos factos adquiridos para o processo e da análise do cumprimento do ónus da prova (art.º 414.º do CPC e 346.º, 2.ª parte, do Código Civil): se todos os factos que conduzem à aplicação de uma norma jurídica estiverem adquiridos para o processo, o tribunal pode proferir uma decisão favorável à parte onerada com a prova, designadamente uma decisão de mérito; se isso se não se verificar, o tribunal deve proferir uma decisão contra a parte onerada com a prova.

Importa, portanto, desde logo, verificar que factos é que devem ser adquiridos para o processo e sobre que parte é que recai o encargo da sua prova, indagação que importa a análise das normas substantivas que permitem o proferimento de uma decisão de procedência ou de improcedência do recurso: as relativas à responsabilidade do segurador de acidentes de trabalho e, evidentemente, aos pressupostos do enriquecimento sine causa.

3.2. O contrato de seguro de acidentes de trabalho.

De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que é acidente de trabalho, aquele que se verifica no local e no tempo de trabalho e produz, directa ou indirectamente, lesão corporal, funcional ou doença, de que resulte redução na capacidade de trabalho, ou a morte (art.º 8.º da LAT, aprovada pela Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro). O acidente de trabalho é, pois, recortado por um critério subjectivo, um critério geográfico e um critério temporal.

Verificado o acidente, constitui-se, a favor do sinistrado, desde logo o direito a cuidados de primeiros socorros – em todos os casos, incluindo as situações de exclusão da responsabilidade - e o direito à reparação, que compreende prestações em espécie – de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e outra, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento da sua saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho e à sua recuperação para a vida activa – ou pecuniárias: indemnizações, pensões, prestações e subsídios (art.ºs 283.º, n.º 1, do Código do Trabalho, 15.º, 16.º, 23.º e 26.º da LAT). No caso de recidiva ou agravamento, o sinistrado mantém o direito às prestações em espécie após a alta e abrange as doenças relacionadas com as consequências do acidente e, bem assim, o direito à indemnização por incapacidade, absoluta ou parcial, para o trabalho (art.º 24.º, n.ºs 1 e 2, da LAT).

A tutela acidentária laboral mostrou-se, desde os seus primórdios, ligada ao instituto da responsabilidade civil. E culminando uma evolução, complexa e longa, o modelo actual de enquadramento da tutela por acidente de trabalho é o da responsabilidade extracontratual pelo risco: a responsabilidade do empregador pelos danos decorrentes de acidente de trabalho não pressupõe a culpa, antes é justificada pela ideia de risco da actividade laboral de que o empregador beneficia, enquanto credor da prestação. A responsabilidade por acidente de trabalho é, pois, uma responsabilidade objectiva pelo risco, que recai sobre o empregador, embora a lei não deixe de atender ao elemento subjectivo da culpa para efeitos de conformação concreta da reparação devida pelo facto do acidente. Assim, a culpa do trabalhador ou de terceiro pode actuar como causa de exclusão ou de redução da responsabilidade do empregador; a culpa deste último justifica um agravamento da sua responsabilidade (art.ºs 14.º, 17.º e 18.º da LAT).

O empregador deve, porém, transferir aquela sua responsabilidade objectiva para um segurador (art.º 283.º, n.º 5, do Código do Trabalho, 79.º, n.º 1 da LAT e 1.º da Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho, que aprovou a parte uniforme das condições gerais da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, bem como as respectivas condições especiais uniformes).

Diz-se contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro, a que assume esse risco e percebe a remuneração – prémio – diz-se segurador; o dano eventual é o sinistro; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida é o segurado – que pode ou não coincidir com o tomador do seguro (artºs 1.º, 16.º, n.º 1, e 24.º n.º 1, da LCS, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril).

Enquanto o segurador e o tomador do seguro assumem, por definição, a posição de partes num contrato de seguro, outras pessoas podem ocupar a posição de parte ou de terceiro nesse mesmo contrato. Entre estas avulta, evidentemente, a figura do segurado – o sujeito que se situa dentro da esfera de protecção directa e não meramente reflexa do seguro, de quem pode afirmar-se que está coberto pelo seguro. O segurado é, portanto, aquele por conta de quem o tomador celebra o seguro. Nos casos subjectivamente mais simples, o segurado será o próprio tomador do seguro, o tomador-segurado; nos demais casos, estar-se-á face a um ou mais terceiros-segurados. Numa palavra: o segurado não é, necessariamente, quem contrata o seguro, mas sim quem por ele fica coberto.

O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco. O sinistro, por seu lado, corresponde à verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador. O universo de factos possíveis, previstos no contrato de seguro, cuja verificação determinará a realização da prestação por parte do segurador, representa a cobertura-objecto do contrato; o estado de vinculação do segurador, durante o período convencionado no contrato, conducente à constituição de uma obrigação de prestar, em caso de ocorrência daqueles factos, representa a cobertura-garantia.

A delimitação daquele universo de factos – que compõem a cobertura-objecto – é feita, em regra, segundo a técnica da definição primária da chamada cobertura de base e da subsequente descrição de sucessivos níveis de exclusões. No caso por exemplo, dos seguros de responsabilidade civil, pode delimitar-se o âmbito de cobertura a partir de uma pessoa – v.g., responsabilidade civil geral – de uma coisa – v.g., um automóvel. Mas essa delimitação pode não se ficar por aí: após a fixação da pessoa ou da coisa que servirá de ponto de referência ao seguro, bem como os interesses que se cobrem, podem seguir-se outros níveis, sucessivamente mais precisos, de delimitação. Assim pode, por exemplo, descrever-se as circunstâncias em que poderá ocorrer o dano, v.g., a actividade profissional desenvolvida pelo segurado.

Estas exclusões não são, em princípio, cláusulas de exclusão da responsabilidade – mas regras que definem o âmbito de cobertura do seguro. Essa delimitação pode ser feita positiva e negativamente, e dentro da delimitação negativa, através de exclusões objectivas – v.g., guerra – ou subjectivas, como por exemplo, o sinistro deliberadamente provocado. O que não é lícito é, através das exclusões, desvirtuar o objecto do contrato, i.e., modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado[1].

O Código Comercial falava em seguros contra riscos. Mas esta expressão devia ser entendida no sentido actual de danos: seguros contra danos. Em sentido amplo e próprio, o risco assumido, pelo contrato de seguro, pelo segurador, é o de qualquer evento futuro, aleatório na sua verificação ou no momento da sua verificação e que obrigue aquele a satisfazer determinada prestação. Verificado o sinistro, o segurador deve pagar ao segurado o capital seguro, até ao limite do dano, ou para usar a linguagem corrente, juridicamente pouco rigorosa, a indemnização.

Descritivamente, o contrato de seguro é oneroso, sinalagmático e aleatório, visto que implica um esforço económico de ambas as partes, a remuneração paga por uma delas liga-se à vantagem proporcionada pela outra e a atribuição dessa vantagem depende de um facto alheio à vontade de qualquer delas. De harmonia com o critério da sua obrigatoriedade, os seguros dizem-se facultativos ou obrigatórios, consoante são celebrados livremente pelo tomador do seguro ou por imposição legal. De acordo com o critério do objecto da prestação do segurador, distinguem-se os seguros de prestações indemnizatórias ou convencionadas, consoante o segurador se obriga a prestar o valor correspondente aos danos resultantes do sinistro ou um valor previamente fixado no contrato.

No caso, em face da respectiva apólice, estamos nitidamente, face a um contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho, no qual a apelada, B..., Lda. e o apelante, figuram, respectivamente, nas qualidades de segurador, tomador do seguro e segurado, através do qual a segunda transferiu para a primeira a sua responsabilidade pela reparação dos danos suportados pelo último em consequência de um evento qualificável, designadamente, como acidente de trabalho.

Segundo se crê, trata-se de um seguro de responsabilidade civil, embora haja quem considere que o seguro de acidentes de trabalho não tem a natureza de seguro de responsabilidade civil, inserindo-se antes nos seguros de acidentes pessoais[2]. Claro que a qualificação depende de saber, em cada contrato de seguro qual é o risco seguro – de danos ou de danos corporais – e, em consequência, quem é o segurado – o empregador ou o trabalhador. Ambas as hipóteses são admissíveis, mas a legislação portuguesa citada aponta para que o seguro obrigatório de acidentes de trabalho tenha geralmente a natureza de seguro de responsabilidade civil, como entende a opinião dominante. Efectivamente, o segurador garante a responsabilidade do tomador do seguro – o empregador – pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras, responsabilidade que, como se observou, é uma responsabilidade puramente objectiva, pelo risco (art.ºs art.º 283.º, n.º 5, do Código do Trabalho, 79.º, n.º 1, da LAT, e cláusula 3.ª, n.º 1, do Anexo da Portaria, n.º 256/2011, de 5 de Julho).

Neste seguro, o risco consiste na constituição no património do empregador, tomador, de uma obrigação de indemnizar terceiro – o trabalhador - ou, de modo mais perifrástico, na emergência inesperada para o tomador de uma obrigação de indemnizar, em espécie ou por equivalente pecuniário, proveniente de uma responsabilidade extracontratual pelo risco juridicamente imputável a esse mesmo tomador – o empregador (art.º 127.º da LCS). O risco é, portanto, em geral, o facto – ou conjunto de factos - determinante da obrigação de indemnizar que venha eventualmente a recair sobre o tomador do seguro. O que significa que a obrigação do segurador só surge – mas surge sempre – se e quando estiverem verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil coberta pelo seguro, incluindo o facto danoso, o dano e a determinação do lesado. A resposta positiva sobre se o sinistro consiste no facto danoso ou se verificou o dano não exclui, evidentemente, a necessidade de apurar se em concreto o tomador do seguro – o empregador - é responsável, requisito necessário, embora possa não ser suficiente para o que o segurador tenha a obrigação de prestar.

De harmonia as condições gerais da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, o pagamento de indemnizações ou outras despesas não impede o segurador de posteriormente recusar a responsabilidade relativa ao acidente quando circunstâncias supervenientemente reconhecidas o justifique, caso em que lhe assiste o direito de reaver tudo o que houver pago (cláusula 31.ª – 2, do Anexo da Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho). Esta condição geral compreende-se, considerando a assimetria informativa do segurador e do tomador do seguro e do segurado, dado que, na generalidade dos casos, a única informação de que o segurador dispõe, num primeiro momento, no tocante ao sinistro e ao seu contexto, é a que lhe é disponibilizada pelo segundo, pelo que só em momento ulterior é que o segurador estará em condições de confirmar a sua fidedignidade ou exactidão. Constatada, pelo segurador, já depois de ter prestado, a sua irresponsabilidade pelo sinistro, assiste-lhe o direito de reaver tudo o que pagou. Reaver como? Através, evidentemente, da repetição das prestações que realizou até ao momento da recusa da responsabilidade. Aquela condição geral da apólice uniforme surge reproduzida, qua tale, na apólice que documenta o contrato de seguro ao abrigo do qual foram realizadas as prestações relativamente às quais a sentença impugnada reconheceu à apelada o direito de repetição (cláusula 31.ª, n.º 2).

3.3.  Pressupostos da constituição do dever de restituir com fundamento no enriquecimento sem causa.

A doutrina e a jurisprudência exigem, una voce, três requisitos para a verificação do enriquecimento sem causa, que, aliás, se compreendem nitidamente na previsão legal: um enriquecimento; um empobrecimento ou dano; a falta de causa desse enriquecimento (artº 473.º, n.º 1, do Código Civil). A estes requisitos deve adicionar-se um outro: o da existência de um nexo entre o enriquecimento e o dano, dado que se exige que o enriquecimento seja feito à custa de outrem.

De modo deliberadamente simplificado, mas sem erro, podemos, pois, assentar em que são três os pressupostos cumulativos constitutivos da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sine causa: a existência de um enriquecimento, sem causa justificativa, à custa de quem requer a restituição (art.º 473.º, n.º 1, do Código Civil)[3]. A falta de causa justificativa resolve-se na falta de norma que legitime a aquisição patrimonial que deve ser restituída e compreende tanto a ausência originária de uma causa, com a sua supressão ulterior (art.º 473.º, n.º 2, do Código Civil). A falta de causa justificativa deve ter-se por verificada sempre que, à luz de uma correcta ordenação jurídica dos bens, não exista um facto ou uma relação que legitime o enriquecimento. Este dá lugar uma obrigação de restituição que compreende tudo aquilo com o que se tenha obtido à custa do empobrecido (art.º 479.º do Código Civil).

Por força do carácter da subsidiariedade que a nossa lei – clara, mas discutivelmente - imprime ao enriquecimento sine causa, a acção de enriquecimento não pode ser utilizada sempre que sejam disponibilizados ao empobrecido outros meios para se defender (art.º 474.º, 1ª parte, do Código Civil).

Um dos pressupostos do enriquecimento é que seja carecido de causa. Neste ponto, a nossa lei exemplifica diversas hipóteses de ausência de causa, individualizando outras tantas modalidades de enriquecimento (art.º 473.º, n.º 2, do Código Civil). Em geral, a ausência de causa ocorre sempre que, originaria ou supervenientemente, falte uma norma jurídica que, a título permissivo ou de obrigação, leve a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, i.e., tolerada ou desejada pelo Direito[4]. Assim, por exemplo, se o enriquecido tiver sido investido num direito subjectivo, faltará a causa quando não tenha ocorrido qualquer forma de constituição ou de transmissão a seu favor do direito em causa.

Uma modalidade de enriquecimento sine causa e a que a nossa lei confere uma grande autonomia é a repetição do indevido, herdeira da condictio indebiti. A repetição do indevido implica, sempre, a realização voluntária de uma prestação e requer um elemento subjectivo por parte daquele que presta – a intenção de cumprir uma obrigação, pelo que o enriquecimento stricto sensu é puramente objectivo – e pressupõe um elemento objectivo – a não existência da obrigação no momento da prestação - e conduz a uma pura e simples restituição da prestação (repetição) do que decorre que o enriquecimento é sempre calculado em abstracto, portanto, com inteira indiferença pelas suas projecções, tanto na esfera do empobrecido, como na do enriquecido  (art.º 476.º, n.º 1, do Código Civil).

No tocante à restituição do indevido, a lei opera um distinguo entre o objectivamente indevido – cumprimento de uma obrigação inexistente; subjectivamente indevido – cumprimento de uma obrigação alheia, na convicção errónea de se tratar de dívida própria; cumprimento de obrigação alheia com a convicção errónea de se estar vinculado perante o devedor ao cumprimento (art.ºs 476.º, 477.º e 478.º do Código Civil).

A lei incluiu também entre as hipóteses típicas de enriquecimento sine causa o caso de alguém ter realizado uma prestação em virtude de uma causa que deixou de existir, assim fazendo compreender a situação tradicional da condictio ob causam finitam. A particularidade deste caso de enriquecimento injustificado reside no facto de no momento em que a prestação foi realizada existir, efectivamente, uma causa jurídica subjacente, mas posteriormente, se dar o desaparecimento dessa causa jurídica, em termos que legitimam o surgimento de uma pretensão dirigida à restituição do enriquecimento[5]. É o que sucede, por exemplo, nos casos em que a comunhão de vida entre duas pessoas, não ligadas entre si pelo vínculo jurídico do casamento, e a expectativa da permanência dessa comunhão constitui a causa jurídica da realização de uma atribuição patrimonial e, ulteriormente, essa comunhão se extingue, com a consequente cessação daquela causa: o desaparecimento desta causa permite a aplicação da condictio ob causam finitam.

Regressando à condictio indebiti, o seu primeiro pressuposto é que tenha sido realizada uma prestação com intenção de cumprir uma obrigação, exigindo-se, portanto, uma intenção solutória específica, sem a qual não será possível falar em pagamento indevido. Existência de uma intenção solutória específica que autoriza que se exclua a condictio indebiti, quando o solvens realiza a prestação conhecendo a inexistência do débito. Realmente, embora a lei não exija o erro do solvens como pressuposto da repetição, julga-se evidente que nos casos em que conheça a inexistência da dívida, não se verifica a intenção de cumprir uma obrigação e, logo, a condictio indebiti não é aplicável. Esta solução justifica-se dado que a exigência da restituição da prestação, realizada no conhecimento de que não existia a dívida constituiria um venire contra factum proprium. Por via disso, face ao princípio da boa fé, considera-se merecedora de maior protecção a confiança do accipiens na realização da prestação, que naturalmente, tenderá a presumir que o pagamento é devido a uma causa jurídica distinta e que o solvens não modificará as suas intenções.

Depois, apenas há lugar à repetição se a prestação, realizada com intenção de cumprir uma obrigação, não existir no momento da prestação – indevido objectivo. Exige-se, pois, que quando o solvens realiza a prestação, a dívida que visava solver não exista efectivamente, quer porque não se chegou a constituir, quer porque já se mostrava extinta. É indubitável, face ao confronto do indevido objectivo com o indevido subjectivo que não se exige, no primeiro, um erro como pressuposto da repetição que tenha de ser provado pelo autor: o prestante está dispensado de provar a existência de erro, tendo apenas que demonstrar que efectuou a prestação com intenção de cumprir a obrigação e que esta não existia. Ao receptor cabe, portanto, demonstrar o conhecimento da inexistência da dívida, como facto impeditivo da verificação de uma intenção solutória e a presumível atribuição de outra causa jurídica à prestação. Demonstrado pelo receptor o conhecimento pelo solvens da inexistência da obrigação, o prestante só pode ilidir a presunção de atribuição de outra causa jurídica à prestação se demonstrar que efectuou o pagamento sob reserva da existência da dívida, o que terá de ser demonstrado por ele (art.º 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil):

Portanto, a aplicação da condictio indebiti, na variante de indevido objectivo, reclama apenas a demonstração, pelo que se diz empobrecido, de que realizou a prestação com intenção de cumprir – animus solvendi – e de que não existe uma obrigação subjacente a essa prestação. Nesta hipótese de enriquecimento não se exige que a realização da prestação tenha sido determinada por um erro – e por um erro desculpável do solvens, como se não reclama também a má fé do receptor da prestação, i.e., o conhecimento por este da falta de causa jurídica da prestação nem, muito menos, que tenha sido ele, de boa ou má fé, a inculcar no prestador a convicção da existência da obrigação de prestar, sendo também indiferente a sua boa fé, i.e., a ignorância de que a prestação que lhe foi feita se mostrava, afinal, desprovida de causa jurídica. 

Na espécie do recurso, a apelada procedeu à reparação de todo um conjunto de danos suportados pelo apelado, na convicção de que emergiam de um sinistro que vitimou o último em consequência de uma queda que sofreu no dia 31 de Outubro de 2018, quando procedia à desmontagem de uma grua; verificou-se, porém, posteriormente, que a lesão corporal sofrida pelo apelante é uma mera sequela ou recidiva de acidente de trabalho, de que foi vítima, ocorrido em 6 de Outubro de 2010, cujas consequências foram, na altura, reparadas por um outro segurador.

O que, em todo o caso, se tem por certo é que as prestações realizadas pela apelada – ao contrário do que sustenta na sua alegação e decorre também da sentença impugnada – não têm por causa próxima os primeiros socorros, i.e., os socorros médicos e farmacêuticos que o empregador, ou quem o represente na direcção ou fiscalização do trabalho, deve assegurar imediatamente, logo que tenha conhecimento do acidente e que devem ser prestados, independentemente de qualquer apreciação das condições legais de reparação. A obrigação de prestação dos primeiros socorros ao sinistrado, independentemente da verificação dos condicionalismos legais do direito à reparação compreende-se dada a situação de urgência da prestação dos cuidados, que, comprovadamente, se não compadece com a muitas vezes demorada averiguação sobre a verificação dos pressupostos do direito à reparação. Patentemente, porém – de harmonia com a matéria de facto incontroversamente adquirida para o processo – na sequência do evento ocorrido no dia 31 de Outubro de 2018, pelas 09.30 horas, não foram imediatamente prestados ao recorrente quaisquer cuidados daquela espécie: o apelante só no dia 1 de Novembro é que se deslocou a um equipamento público de saúde, queixando-se de doras na anca e na perna direita desde 29 de Outubro, portanto, originadas por uma patologia clínica anterior, mesmo, àquele evento.

A sentença apelada concluiu ser evidente a ausência de causa justificativa para o alegado enriquecimento do ora Réu, pois à Autora seguradora, definido que foi o não enquadramento do evento ocorrido com natureza infortunística, susceptível de ser considerado como acidente de trabalho, não pode ser exigível o assumir, a título de definitivo, de uma responsabilidade que se reconheceu não a onerar, pelo que, procedendo à correcta ordenação jurídica dos bens em equação, não pode deixar-se de concluir pela ausência de causa justificativa no enriquecimento do Réu, pois tais quantias devem antes pertencer ao património da Autora empobrecida, inexistindo qualquer fundamento legal para o seu definitivo radicar no activo patrimonial daquele, aqui se mantendo sem causa justificativa e, em coerência, reconheceu à apelada o direito de repetir a prestação.

Mas isso deve-se, clama o apelante, ao error in iudicando, por erro sobre provas, em que a Sra. Juíza de Direito incorreu ao não considerar provado que a Autora assumiu a responsabilidade pelo sinistro ocorrido e, além disso, que a. Foram os representantes da A., serviços médicos da A. quem assumiram o acidente como de trabalho; b. Logo, foi a seguradora aqui A., quem demonstrou ao R da assunção de responsabilidade pelo sinistro ocorrido; c. Foi a A quem avaliou e encaminhou o Réu para tratamentos e acompanhamentos médicos e consultas; d. Nunca o R escolheu, solicitou ou rogou qualquer tratamento; e. Foram os serviços médicos da A quem medicou o A e lhe ministrou tratamentos e decidiu a intervenção cirúrgica; f. Nunca o R ocultou ou adulterou qualquer informação; g. Agiu sempre o R de boa-fé e sem qualquer tipo de dolo; h. A razão do pedido de reembolso ao Réu deveu-se, única e exclusivamente, a eventuais erros de avaliação do sinistro, possíveis erros dos serviços clínicos e médicos, que só poderão, naturalmente, serem imputados à Autora – afirmações de facto que, com excepção, talvez, da primeira, partilham uma característica comum, que consiste em não terem sido julgados não provados de modo especificado ou individualizado, tendo, inversamente, sido objecto de um julgamento genérico e indiscriminado – e com uma motivação também ela puramente genérica: o seu desinteresse para a decisão da causa.

Seja como for, a resolução deste problema vincula, em princípio, à ponderação dos poderes de controlo da correcção da decisão de facto de que esta Relação dispõe. Diz-se, em princípio, dado que, no caso, o exercício daquela competência se deve ter excluído por força do princípio da economia processual que, no plano individual, i.e., no plano de cada acto processual, proíbe a prática de actos inúteis, tanto objectiva, como subjectivamente (art.º 130.º do CPC)

3.4. Inutilidade da reponderação da correcção do julgamento da matéria de facto da 1.ª instância.

O exercício pela Relação dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. Se o facto ou factos que se reputam de mal julgados não se mostrarem relevantes segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção, a reponderação deve ter-se - por aplicação do princípio da utilidade a que deve subordinar-se toda a actividade jurisdicional - mesmo por proibida (art.º 130.º do CPC)[6]. É o que sucederá sempre que, mesmo que a impugnação deduzida pelo recorrente se deva ter por procedente, ainda assim a solução jurídica da controvérsia permanece inalterada porque, por exemplo, já estão incontroversamente adquiridos para o processo factos que, segundo a previsão da norma substantiva aplicável, permitem o proferimento consciencioso de uma decisão desfavorável ao impugnante. Nesta hipótese, a actuação dos poderes de correcção da decisão da matéria de facto é subjectivamente inútil, dado que nada acrescenta de relevante ao que já está adquirido para o processo e, portanto, pode, com correcção, ter-se por supérflua.

Ora, no caso que constitui o universo das nossas preocupações, é claro e indubitável que a apelada assumiu a responsabilidade pela reparação, dado que realizou as prestações a que, por força do contrato de seguro se vinculou, mas essa assunção, nos termos convencionados – que, de resto, reproduzem as disposições da apólice uniforme aprovada por regulamento – é sempre feita sob reserva, dado que lhe permite o recesso, i.e., a declinação da sua responsabilidade quando circunstâncias supervenientemente reconhecidas o justifiquem, maxime, quando conclua, fundadamente, que, afinal, não se mostra constituída naquele dever de prestar, o  que sucederá, evidentemente, nos casos em que não se verificou o sinistro, o mesmo é dizer, a ocorrência, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco que contratualmente assumiu.

Aliás, por definição, a repetição do indevido implica, sempre, a realização voluntária de uma prestação e que a prestação tenha sido realizada com intenção de cumprir uma obrigação, portanto, na convicção de que essa obrigação existe e, consequentemente, que se é devedor dela, sendo irrelevante, que o equívoco sobre o dever de prestar seja imputável ao solvens ou ao accipiens – ou aos dois. A boa fé do receptor é, pois, para o caso, desinteressante: poderá, talvez, fundamentar pretensões de outra índole, mas não é apta a servir de motivo para recusar a repetição de uma prestação de uma obrigação inexistente.  Tenha ou não o apelante agido de boa fé, a iniludível verdade é que, apesar alegar que o sinistro ocorreu em 31 de Outubro de 2018, quando se deslocou, no dia 1 de Novembro do mesmo ano, a estabelecimento hospitalar público, queixou-se de dores na anca e na perna direita desde 29 de Outubro, circunstância incongruente que, aliás, despertou a atenção da apelada e a colocou de sobreaviso sobre realidade do sinistro e, consequentemente, sobre a sua responsabilidade e, portanto, sobre a existência do seu dever de prestar.

Estas considerações são suficientes para justificar a correcção da conclusão de que a aferição da correcção do julgamento da matéria de facto, no segmento em que é impugnado pelo recorrente não é, pois, útil, dado que os factos objecto da impugnação em nada concorrem para a modificação do enquadramento jurídico do objecto do processo, considerada a sua inidoneidade para alterar a decisão de procedência do pedido da apelada, contida na sentença impugnada.

3.5. Concretização.

Como linearmente decorre da matéria de facto – incontroversamente – adquirida para o processo, as lesões no corpo e na saúde do apelante, para a reparação das quais a apelante realizou prestações pecuniárias, são uma sequela ou uma recidiva de um sinistro que sofreu em Outubro de 2010, da responsabilidade de um outro segurador que, aliás, o indemnizou sob a forma de pensão. A afectação do corpo e da saúde do apelante não decorrem, assim, de um sinistro, i.e., de um facto que se compreenda no risco, contratualmente assumido, pela apelada. Ergo, as prestações realizadas pela recorrida – efectuadas com o nítido propósito de cumprir a obrigação correspondente – foram-no no cumprimento de uma obrigação que, no momento da sua realização, realmente, não existia. Tanto basta para que se deva reconhecer à apelada o direito de, com fundamento no enriquecimento sine causa, as repetir. E como o enriquecimento que é aqui calculado em abstracto, portanto, com inteira indiferença das repercussões, tanto no património do enriquecido, como do empobrecido, do que decorre a absoluta simetria do valor do empobrecimento e do enriquecimento, o apelante deve restituir à apelada exactamente aquilo que aquela prestou, como se decidiu na sentença impugnada que, assim, se tem por correcta.

O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento. Face à falta da sua bondade só resta uma saída: julgá-lo improcedente.

Do percurso argumentativo percorrido extraem-se, como proposições conclusivas mais conspícuas, as seguintes:

(…).

O apelante sucumbe no recurso, decaimento que o torna objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo apelante.

                                                                                                                      2024.04.19




[1] Os casos de exclusão da cobertura são factos impeditivos do direito do segurado à indemnização, competindo, por isso, ao segurador, o ónus da sua alegação e da sua prova (art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil): Ac. do STJ de 13.10.2013, www.dgsi.pt.
[2] Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra, 2010, págs. 839 e ss.
[3] Assim, v.g., na jurisprudência, o Ac. do STJ de 04.07.2019 (2048/15.1T8STS.P1.S1), e na doutrina, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 423.
[4] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, AAFDL, 1980, págs. 55 e 56.
[5] Menezes Leitão, O Enriquecimento sem causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, (176), Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1996, pág. 504; Ac. da RL de 19.12.2017 (1920/16.6T8FNC.L1-2) e do STJ de 04.07.2019 (2048/15.1T8STS.P1.S1).
[6] Acs. do STJ 09.02.2021 (26069/18.3T8PRT.P1.S1), 30.09.2020 (4420/18.6T8GMR.G2.S1) e 14.03.2019 (8765/16.1T8LSB.L1.S2).