Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
401/21.0GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL POR DESISTÊNCIA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
CONTINUAÇÃO DO PROCESSO PARA CONHECIMENTO DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 71.º, 72.º, N.º 1, ALÍNEA B), 84.º E 377.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA 3/2002
Sumário: I - As razões constantes do AFJ 3/2002, que decidiu que o procedimento criminal extinto por prescrição, depois de proferido o despacho referido no artigo 311.º do C.P.P. e antes do julgamento, prossegue para conhecimento do pedido de indemnização civil que haja sido deduzido, são transponíveis para a situação em que o procedimento criminal se extingue por desistência de queixa, devendo, também aqui, o processo prosseguir para conhecer do pedido civil deduzido.

II - Os fundamentos que justificam o princípio da adesão não têm de ser afastados quando vicissitudes processuais fazem extinguir o procedimento criminal antes do julgamento.

III - Todo o processo existe para resolver os problemas concretos que o desencadeiam e que nele se expõem, pelo que a partir do momento em que no processo é admitida a participação e pretensão de um lesado nada deve acontecer como se essa intervenção não existisse.

Decisão Texto Integral:

            Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

            I.

            No processo comum singular que, com o nº 401/21.0GCVIS, corre termos pelo juízo local criminal de Viseu, após homologação da desistência de queixa apresentada pelo ofendido contra os arguidos … e na falta de acordo entre demandante e demandados quanto ao pedido civil deduzido pela Unidade Local de Saúde …, veio esta requerer o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido que, oportunamente, deduzira.

            Tal requerimento foi indeferido.

            Inconformada, interpôs recurso a demandante …, concluindo-o assim (transcrição):

1ª. No concreto caso, a recorrente apresentou pedido de reembolso dos valores em dívida por despesas respeitantes ao tratamento médico ao aqui ofendido , sendo que este, por razões que são totalmente alheias àquela, veio a desistir da queixa por si apresentada, o que levou a recorrente a requerer o prosseguimento dos autos.

2ª. Na sequência disto, o tribunal recorrido proferiu despacho que declarou “extinta a instância no que concerne ao pedido cível deduzido pela demandante por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, alínea e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal.”

Ora,

3ª. Do princípio da adesão, implicando, a maior das vezes, dedução pelo ofendido de pedido de indemnização na ação penal, sob pena de, não o fazendo, se extinguir o direito de queixa, emanam razões de economia e celeridade processual, as quais serão de observar também em relação ao lesado.

4ª. O Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência, por Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2002, de 5 de Março, qual expressamente consagra que o processo prossegue mesmo quando o procedimento criminal se extinga por força da prescrição.

5ª. A instância penal mantém-se também nos casos em que o facto é descriminalizado ou o crime amnistiado, e até mesmo em caso de sentença absolutória.

6ª. Por analogia e maioria da razão com as situações supra, também a extinção do procedimento criminal, por desistência de queixa pelo ofendido não impede o prosseguimento do processo para apreciação do pedido, até porque é a solução jurídica mais adequada e célere, dando cumprimento ao princípio de adesão.

7ª. Por tudo o que ficou exposto, infere-se que, extinto o procedimento criminal, por desistência, no decurso da audiência de discussão e julgamento, o processo deverá prosseguir para Apreciação do pedido de indemnização civil e da responsabilidade a si adstrita.

Normas violadas: 71º, 74º nº 1, 277º, alínea e) e 377.º/1 do Código de Processo Penal.


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            Respondeu ao recurso o Ministério Público, defendendo a manutenção da decisão.

                                                                       *

            Idêntica posição manifestaram os arguidos,

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            Remetidos os autos a este tribunal o Ministério Público elencando as questões doutrinais e jurisprudenciais que a matéria em apreciação levanta, conclui pelo entendimento de que é aplicável à situação dos autos a jurisprudência fixada pelo acórdão 3/2002 publicado no DR, I, de 05 de março de 2002,         


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            Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).

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            Após os vistos, foram os autos à conferência.

                                                                       *

            II.

Como é jurisprudência pacífica, são as conclusões de recurso que delimitam a apreciação a fazer - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e delas resulta como única questão a decidir a de saber se, após homologação da desistência de queixa, o processo deve prosseguir para apreciação do pedido civil, oportunamente, deduzido nos autos.


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            É a seguinte a decisão recorrida (transcrição):

            A demandante «Unidade Local de Saúde … deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos/demandados …, peticionando a sua condenação solidária no pagamento da quantia de 6.312,17€, acrescida de juros desde a condenação até integral e efectivo pagamento (fls. 242 a 246).

Ora, considerando a desistência de queixa por parte do ofendido, homologada por decisão proferida em 27.02.2025, com consequente extinção do procedimento criminal, legalmente impossível se torna apreciar o pedido cível deduzido pela demandante, já que em face do princípio da adesão plasmado no artigo 71.º do Código de Processo Penal, desaparecendo o crime, desaparece o fundamento do pedido de indemnização cível.

            Em face do exposto, declaro extinta a instância no que concerne ao pedido cível deduzido pela demandante «Unidade Local de Saúde …», por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º, alínea e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal.

            Sem custas cíveis (por não se poder concluir que alguma das partes tenha dado causa à acção).

            Notifique.


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            Apreciação do recurso.

            Como se percebe das diversas tomadas de posição expostas nos autos a questão que é trazida à decisão deste Tribunal não é nova e tem alimentado ao longo dos tempos abundante controvérsia doutrinária e jurisprudencial.

            Não era assim no CPP de 1929. Nessa altura, a redação da lei, no artigo 33º, não deixava margem para dúvidas: “A extinção da ação penal antes do julgamento impedirá que o tribunal continue a conhecer da ação por perdas e danos, a qual todavia poderá ser proposta no tribunal civil”.

            O atual código não dispõe de uma norma que, de forma semelhante, dissipe dúvidas e, nessa ausência, começaram a aparecer dois entendimentos: o de quem entende que, extinta a ação criminal, se extingue igualmente a ação civil enxertada; e o entendimento de quem, sublinhando essencialmente razões de economia processual, defende o prosseguimento do processo para apreciação do pedido civil.

            São conhecidos os argumentos de ambos os lados, desde o tempo em que se discutiam as vantagens e inconvenientes do sistema de adesão. O Professor Vaz Serra (Cfr. BMJ, 91, pág. 156, citando C. Gonçalves, Tratado dir. civ.,XII, 1912) condensou-os em linguagem inequívoca do seguinte modo:

            “a) a acumulação tem a vantagem da economia processual;

            b) a indemnização serve como adjuvante da pena criminal;

            c) a parte lesada, intervindo no processo penal, pode auxiliar a ação do tribunal criminal;

            d) o juiz civil não está muitas vezes em tão boas condições para avaliar o dano moral como o juiz criminal, perante o qual o delito aparece com toda a sua veemência;

            e) muitos lesados não têm meios para demandar a indemnização no juízo civil;

            f) o processo criminal é simples, rápido e mais inacessível a tricas forenses.

            Em contrário observa-se:

 a) duas responsabilidades têm fundamentos diferentes;

            b) os critérios para apreciação da responsabilidade são também diversos, dado que, na responsabilidade criminal, é precisa a imputabilidade moral do delinquente, coisa que, na responsabilidade civil, não tem a mesma importância;

            c) o objeto das sentenças é distinto, pois na sentença criminal pune-se o delinquente na sua pessoa e, na sentença civil, é ele condenado a indemnizar com os seus bens;

 d) a ação penal compete ao M.P. (ação pública), sendo dispensável que o lesado se constitua parte acusadora, ao passo que a ação civil tem que ser intentada pelo lesado;

 e) a ação penal só pode ser movida contra o réu, enquanto que a ação civil tem natureza patrimonial, podendo a obrigação ser exigida aos herdeiros e a condevedores solidários sem responsabilidade criminal;

 f) a ação penal, com o seu ambiente sentimental pode perturbar a serena apreciação dos factos;

 g) se o lesado se contenta com a indemnização, não há necessidade de o obrigar a colaborar com o MP na acusação, ou a acusar um crime particular”.

Estes argumentos, foram ponderados no Ac.FJ 3/2002 que veio a fixar jurisprudência nos seguintes termos: “Extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311º do Código de Processo Penal, mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste”.

            A questão que agora se coloca é, então, essencialmente, a de saber se as razões que levaram à referida fixação da jurisprudência são transponíveis para a situação nos autos, - uma vez que ali estava em causa a extinção do processo por prescrição e aqui por desistência da queixa - porque se o forem, então, não há razão para divergir da jurisprudência fixada e a solução está encontrada.

            E a primeira constatação com que nos deparamos é a de que as normas legais que regulam a matéria não se alteraram no que para agora importa.

            São elas, essencialmente, os artigos 71º e 72º, nº 1, alínea b) e, bem assim, os art. 84º e 377º do CPP.

            No artigo 71º (“o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”), encontra-se a formulação do chamado princípio de adesão (por contraposição aos princípios da identidade e da independência absoluta) que, aliás, se mantém idêntico na sua formulação e propósitos já desde o Código de 29  (artigo 29), pelo entendimento de que a duplicação do processo “representaria, em regra, perda de tempo, despesas inúteis e a possibilidade de vexames dispensáveis e decisões judiciais que expressa ou implicitamente estivessem em contradição” (Vaz Serra in BMJ, 91, pág. 155).

            Os artigos 84 e 377, também idênticos na sua essência, pressupõem a realização de julgamento razão pela qual para a situação que nos ocupa não relevam.

            Na alínea b) do nº 1 do artigo 72º do CPP (este artigo 72º fixa taxativamente as situações de exceção ao princípio de adesão) prevê-se que o pedido civil possa ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando o processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento.

            A lei dá, portanto, ao lesado a possibilidade de optar pelo foro civil. Mas o facto de a lei dar tal possibilidade não significa que a imponha.

            É certo que há quem entenda que o vocábulo “pode” significa uma faculdade, sem alternativa, de o lesado, perante a impossibilidade de obter a indemnização no processo penal, recorrer à ação civil (cfr. Ac.RL 13.4.99 CJ XXIV, II, 147-149). Só que, além de não haver, de facto, uma impossibilidade, estabilizado o processo com a prolação do despacho a que alude o artigo 311º do CPP, não se vê razão para que o lesado, que orientou toda a atividade processual no sentido de ver satisfeita a sua pretensão naqueles autos, venha a ser surpreendido ou confrontado com uma decisão a que é alheio e que o ignora.

            Portanto, os fundamentos que justificam o princípio da adesão não têm de ser afastados quando vicissitudes processuais fazem extinguir o procedimento criminal antes do julgamento. É que, como é dito no parecer do Ministério Público proferido no STJ e que precedeu o AcFJ 3/2002 “(…)à vítima abstrata, extraída da dogmática penal e processual penal, sucede aquela vítima concreta impregnada de realidade material. A um princípio de economia processual marcado por razões adjetivas e estruturado em torno do interesse do próprio processo, há-de suceder uma exigência de economia processual radicada no interesse daquele lesado concreto, sendo que é nestes lesados e nestas vítimas que deve personificar-se a razão de ser do próprio princípio da celeridade processual”.

Por outro lado, tendo em conta os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias, - também citado no referido AFJ, ao referir-se às vantagens do princípio de adesão que diz corresponder “a uma certa tradição e a um sentimento jurídico já de certo modo ancorado na comunidade (…) que o torna um instrumento indispensável em qualquer estado de direito social dos nossos dias, reside em permitir uma realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização”-, não deverá esquecer-se que todo e qualquer processo existe para resolver os problemas concretos que o desencadeiam e que nele se expõem. O processo não é um fim em si mesmo, mas apenas o meio que a sociedade encontra de fazer face a conflitualidade não resolúvel de outro modo. Assim, a partir do momento em que no processo é admitida a participação e pretensão de um lesado, além do arguido e da vítima, como foi o caso, não se vê como tudo se possa passar como se o lesado não tivesse sido admitido a intervir nos autos.

            Mas mais: quando a lei fala em extinção do procedimento criminal não distingue causas de extinção. Não distingue a lei, mas também não as distinguem a jurisprudência ou a doutrina. Como é dito por Costa Pimenta in CPP anot, 1987, 324 “A extinção do procedimento criminal (não do processo penal, que é coisa diferente) pode dar-se por efeito da prescrição (artigo 117 e ss do Código Penal), morte do arguido ( art. 125º do Código Penal), amnistia (art. 126º do Código Penal), desistência da queixa ou da acusação (artigos 114º e 116º do Código Penal) e revogação da norma incriminadora. Em todas estas hipóteses só se constitui o direito de opção se o procedimento criminal se tiver extinguido antes do trânsito em julgado da sentença (ou acórdão). Mesmo quando o procedimento criminal se extingue, se o pedido de indemnização civil já houver sido deduzido, o processo penal prosseguirá para julgamento desse pedido, a menos que os lesados intentem - como podem -, acção cível em separado. (No mesmo sentido Maia Gonçalves in nota 3 ao artigo 72 do CPP anot, 5ª edição, página 157).

Assim sendo, ter-se-á de concluir que as razões que determinaram a referida fixação de jurisprudência quando o processo se extingue por prescrição depois de proferido o despacho do artigo 311º do CPP, mas antes do julgamento, são transponíveis para a situação em que o procedimento criminal se extingue por desistência de queixa, o que vale por dizer que o processo deve prosseguir para conhecer do pedido civil deduzido nos autos.

           

Este não só foi o entendimento do Ac. FJ 3/2002 que serve de referência para a decisão a proferir nestes autos, como já foi, em situação idêntica, o entendimento desta Relação de Coimbra no Ac. de 27.06.2018, proferido no processo 88/13.4TAMBR.C2, a que o recorrente faz referência.

Portanto, a lesada e demandante cível tem direito a ser ressarcida dos danos sofridos (artigos 74º e 75º do CPP e artigo 495º, nº 2 do Código Civil) que têm origem no ilícito criminal participado, apresentou nos autos o pedido correspondente, o qual foi recebido, requereu o prosseguimento do processo para apreciação do seu pedido, razão pela qual não poderia, sem mais, o tribunal deixar de apreciar a ação cível que ao abrigo do princípio da adesão foi intentada, pelo que não poderá manter-se o despacho recorrido.


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            III.

            DECISÃO.

            Em face do exposto, decide-se julgar procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido formulado pela recorrente.

            Sem custas.

            Notifique.


Coimbra, 10 de dezembro de 2025

Maria Teresa Coimbra

Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro

Maria José Guerra