Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/09.0TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO
CONCORRÊNCIA DE RESPONSABILIDADES
DIREITO DE REGRESSO
SUB-ROGAÇÃO LEGAL
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 04/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 100/97 DE 13/9, ARTS. 523, 592, 593 CC
Sumário: 1. No regime de concorrência de responsabilidades por acidente de viação e de trabalho prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal, assumindo esta última um carácter subsidiário ou residual.
2. Neste regime de concorrência de responsabilidades, no quadro das relações externas o lesado pode exigir a reparação dos danos causados pelo acidente quer da entidade patronal, quer do condutor ou detentor do veículo; mas se é o condutor ou detentor do veículo quem paga a indemnização devida, não lhe assiste nenhum direito em relação à entidade patronal; já se a indemnização for paga, no todo ou em parte, pela entidade patronal, esta fica sub-rogada nos direitos do sinistrado.

3. Mas o “direito de regresso” previsto no nº4 do art. 31º da Lei nº 100/97 de 13.09., que tem características de sub-rogação legal (sucessão da entidade patronal ou respectiva seguradora nos direitos do sinistrado contra o “causador” do acidente), tinha e tem como destinatários apenas "os responsáveis referidos no nº1” do mesmo normativo, ou seja, outros trabalhadores ou terceiros que tiverem “causado” o acidente.

4. Não pode qualificar-se o Fundo de Garantia Automóvel como “causador” do acidente de viação que simultaneamente se configura como acidente laboral, na medida em que a sua obrigação de ressarcir o sinistrado não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, antes no dever legal de ressarcimento, emergente do propósito de fazer assumir pela colectividade os riscos mais gravosos, ligados aos acidentes estradais, nos casos em que foi inviável fazê-los incluir no âmbito do pilar/seguro obrigatório.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

A autora “A.... SEGUROS, S.A.” deduziu a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário, contra os réus FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, HERANÇA JACENTE DE MJ (…); FF (…), MF (…), JF (…), SB (…); MF (…), OF (…), FC (…), FB (…), BS (…)., alegando, em suma, que no exercício da sua actividade seguradora, e em cumprimento de um contrato de seguro de acidentes de trabalho, indemnizou os danos sofridos por J (…)em consequência do acidente de viação por este sofrido no dia 10 de Setembro de 1999, pelas 13 horas e 40 minutos, no IP 5, ao km. 117,64, concelho de Mangualde; que nesse acidente de viação estiveram envolvidos o veículo automóvel com a matrícula (...)JJ, conduzido pelo sinistrado J (…), ao serviço da sua entidade empregadora “H (…) Lda.”, e o veículo automóvel com a matrícula (...)DX, pertencente a MJ (…) e conduzido por FC (…) que tal acidente desencadeou-se unicamente por força da conduta inconsiderada e negligente do aludido FC (…), que seguia em excesso de velocidade e invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária, causando danos ao sinistrado J (…); danos esses que a autora indemnizou e continua a suportar, pagando ao referido J (…) as quantias de € 8.662,63, a título de indemnização por incapacidade temporária, e de € 45.908,54, a título de pensões, estando obrigada ao pagamento de uma pensão, e tendo constituído para o efeito uma provisão matemática de € 36.087,63; que além disso, a autora suportou a quantia global de € 24.572,81, a título de despesas médicas e medicamentosas realizadas para tratamento das lesões sofridas pelo dito sinistrado em consequência do acidente de viação em apreço; e que como o responsável pela reparação é o causador do acidente, e a viatura por este conduzida não dispunha de seguro automóvel, a autora, exercendo o direito de regresso de que se afirma titular, pretende a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia global de € 72.143,98, e da quantia que se vier a apurar em sede de execução de sentença referente aos pagamentos que venha a realizar após a instauração da acção, tudo acrescido dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.

                                                           *

Citados pessoal e regularmente para o efeito, todos os réus contestaram, em tempo útil.

O réu Fundo de Garantia Automóvel contestou por via de excepção, afirmando a prescrição do direito de crédito reclamado pela autora, e impugnou a factualidade alegada pela autora. Terminou este réu solicitando a sua absolvição do pedido.

Os restantes réus invocaram a excepção de ilegitimidade passiva da ré B (…), por não ser herdeira do falecido FC (…), e afirmaram que os falecidos MJ (…) e FC (…) não deixaram qualquer herança ou bem, pelo que os patrimónios pessoais dos seus herdeiros não podem ser responsabilizados pelo pagamento peticionado. Daí que estes réus solicitem a absolvição da instância da ré B (…), e a absolvição do pedido dos restantes.

                                                           *

Replicou a autora, negando a prescrição do direito de crédito que exercita nesta acção, e solicitando a intervenção principal provocada de J (…), por eventualmente ter de a reembolsar dos montantes que já pagou, caso os venha a obter de terceiro.

                                                           *

Admitida a intervenção requerida, por despacho, e ordenada a citação do chamado J (…), este apresentou tempestivamente o seu articulado, no qual invocou a excepção de prescrição do direito de crédito reclamado pela autora, e impugnou a factualidade por esta alegada, solicitando a final a sua absolvição do pedido.

                                                           *

Notificada deste derradeiro articulado, a autora reafirmou o referido na réplica.

*

Findos os articulados, e dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, absolvendo-se a ré B (…) da instância, por constituir parte ilegítima, e afirmando-se a validade e regularidade da demais instância.

Relegando-se para momento ulterior a apreciação da invocada excepção peremptória de prescrição, seleccionaram-se os factos assentes e elaborou-se base instrutória, actividade que não mereceu reclamação.

*

Apresentou então o réu Fundo de Garantia Automóvel articulado superveniente, em que afirma que na sequência do trânsito em julgado da decisão final proferida na acção declarativa, com forma de processo ordinário, nº 10/2001, deste 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde, procedeu ao pagamento directamente ao sinistrado J (…) das indemnizações devidas por danos patrimoniais futuros e incapacidades temporárias, no montante global de € 135.686,16, sem qualquer desconto (designadamente das quantias por ele recebidas da aqui autora, e reclamadas nestes autos). Daí que este réu conclua que não pode ser condenado no pagamento da mesma indemnização por duas vezes.

Admitido liminarmente o articulado superveniente, e notificada a autora para lhe responder, esta nada veio dizer em tempo útil.

Por despacho, foi determinado o aditamento de dois factos ora alegados aos factos assentes, sem reclamação das partes.

*

Procedeu-se a julgamento, o qual decorreu com observância de todo o legal formalismo como resulta da respectiva acta, o qual culminou nas respostas à base instrutória que constam do despacho de fls. 392, o qual não foi alvo de qualquer reclamação.

            Na sentença, considerou-se, em suma, que se impunha a absolvição do pedido dos réus Herança Jacente de MJ (…), FF (…), MF (…) e JF (…) , que no quadro legal aplicável ao caso (art. 31º da Lei nº 100/97 de 13.09.) o que estava consagrado era o reembolso directo do sinistrado à seguradora laboral, face ao que a acção improcedia nessa parte, acrescendo que a A. estava a accionar o direito de regresso relativamente a alguns parciais que, por não serem “indemnização”, nunca seria devido o seu reembolso, e bem assim que relativamente ao interveniente/sinistrado J (…)seria competente para o reembolso impetrado pela A. o Tribunal de Trabalho, face ao que se revelava a total improcedência da acção, sendo desnecessária a apreciação da questão da invocada prescrição do direito da A., termos em que se finalizou com o seguinte concreto dispositivo:

«Pelo exposto, julgo improcedente a presente acção, e, em consequência, absolvo os réus Fundo de Garantia Automóvel, Herança Jacente de MJ (…); FF (…), MF (…), JF (…), SB (…), MF (…), OF (…), FC (…) FB (…),e o interveniente J (…) do pedido formulado pela autora “ A (...) Seguros, S.A.”

                                                                       *

Inconformada, apresentou a A. recurso de apelação, que finalizou com as seguintes conclusões:

«A. A douta sentença proferida pelo MM.º Juiz do Tribunal “a quo” contraria a prova produzida, violando as disposições legais constantes do artigo 31º da Lei 100/97, 13.09, dos artigos 592º, 593º e 583º do Código Civil;

B. Em acidentes simultaneamente de viação e de trabalho, o sinistrado pode exigir a indemnização da entidade patronal, ou respectiva seguradora, ou do terceiro responsável pelo acidente;

C. As indemnizações não podem cumular-se, apenas se complementando até integral ressarcimento do dano;

D. A Recorrente efectuou o pagamento ao sinistrado J (…) de acordo com a decisão judicial proferida no foro laboral;

E. Não existe qualquer prevalência da responsabilidade subjectiva de terceiro sobre a responsabilidade objectiva da entidade empregadora e/ou da sua seguradora;

F. Face a uma duplicação indemnizatória, ou a obrigação de indemnização civil se fixa antes de o sinistrado ter recebido a indemnização laboral pelos mesmos danos e a seguradora laboral fica desonerada, ou se fixa depois e, recebida que for pelo sinistrado a dupla indemnização, nasce na esfera da seguradora do trabalho o direito ao reembolso das prestações pagas e depois duplicadas;

G. Os créditos consagrados no regime jurídico dos acidentes de trabalho constituem direitos indisponíveis;

H. Sendo que o direito à reparação compreende as prestações em espécie e em dinheiro;

I. A Recorrente encontra-se impedida de lançar mão do instituto da “Desoneração”, consagrado no artigo 31º da LAT, pelo menos, em relação a todas prestações que já foram liquidadas ao sinistrado;

J. O direito Recorrente não é um verdadeiro direito de regresso, mas antes decorre de sub-rogação legal nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente;

K. Uma vez pagas as indemnizações e prestações em espécie ao sinistrado ao abrigo dos contratos de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho, ficou sub-rogada nos direitos que aquele tinha contra a responsável subjectiva, no caso dos autos, o Fundo de Garantia Automóvel.

---- NESTES TERMOS e nos melhores de direito, que V. Exa. Mui doutamente suprirá, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença recorrida, fazendo-se assim A COSTUMADA JUSTIÇA.»

                                                                       *

            O Réu FGA apresentou contra-alegações, das quais extraiu as seguintes  conclusões:

      «1. A douta decisão de fls. absolveu o Fundo de Garantia Automóvel do pedido.

      2. E relativamente ao Fundo de Garantia Automóvel a ação terá sempre de improceder.

      3. O douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.05.2011, consultado em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5f1377cdddb28f7d8025788d 00329b4b?OpenDocument assim o impõe.

      4. O direito de regresso de que beneficia uma seguradora de acidentes de trabalho apenas pode ser exercido contra quem tenha dado causa ao acidente de viação.

        5. O FGA não foi causador do acidente de viação / acidente laboral, pelo que relativamente a si não se verificam os pressupostos do direito de regresso da seguradora, aqui Autora.

        6. Salienta-se que aos factos analisados no douto acórdão do STJ era aplicável, tal como no caso em apreço, o DL 522/85, de 31 de Dezembro.

        7. O artº 51º do DL 291/2007, de 21/08, viria a consagrar legalmente tal  entendimento.

        8. O Fundo de Garantia Automóvel deve ser absolvido do pedido.

---- ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!»

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil, face ao que é possível detectar:

- conteúdo e natureza jurídica do “direito de regresso” previsto no art. 31º da Lei nº 100/97 de 13.09 (sua eventual conexão com o direito à reparação a que o sinistrado tem direito e sua eventual distinção da figura jurídica da “sub-rogação legal”);

- configuração e pressupostos do dito “direito de regresso”, quando exercido pela seguradora laboral;

- se o FGA se configura como um “causador do acidente” contra quem pode ser exercido o dito “direito de regresso”

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consiste a mesma na enunciação do elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, o que naturalmente contempla a conjugação da condensação dos factos assentes com os decorrentes das respostas dadas aos quesitos da base instrutória elaborada, e sendo certo que o recurso deduzido não questiona a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto[1]

            São então os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:

I –  A autora “ A (...) Seguros, S.A.” exerce, devidamente autorizada, a indústria de seguros em vários ramos. [al.A) dos Factos Assentes];

II – No exercício da sua actividade, a autora celebrou um contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice nº 64/952244, conforme documento nº 1 (fls. 19 e 20 dos autos) junto com a petição inicial. [al.B) dos Factos Assentes];

III – Pelo referido contrato de seguro, a empresa “H (…)Lda.” transferiu para a ora autora a responsabilidade infortunística emergente de acidentes de trabalho relativamente aos trabalhadores que se encontram ao seu serviço, incluindo o trabalhador J (…). [al.C) dos Factos Assentes];

IV – No dia 10 de Setembro de 1999, pelas 13 horas e 40 minutos, ocorreu um acidente ao km. 117,647 do IP 5, no concelho de Mangualde, conforme documento nº 2 (fls. 21 a 24 dos autos) junto com a petição inicial. [al.D) dos Factos Assentes];

V – Nesse acidente foram intervenientes:

- o veículo automóvel de matrícula (...)DX, conduzido por FC (…)[de ora em diante designado apenas por DX), propriedade de MJ (…);

- o veículo automóvel de matrícula (...)JJ, conduzido pelo sinistrado J (…) [de ora em diante designado apenas por JJ], propriedade de “H (…)Lda.”. [al.E) dos Factos Assentes];

VI – À data do acidente, o trabalhador J (…) desempenhava a sua actividade de motorista para a sua entidade patronal “H (…), Lda”, o que fazia no interesse e por conta da sua entidade patronal. [al.F) dos Factos Assentes];

VII – No local onde ocorreu o acidente, o IP 5 configura uma recta, na qual o trânsito se processa em ambos os sentidos, existindo uma via de circulação em cada sentido. [als.F) e G) dos Factos Assentes];

VIII – No local do acidente, a faixa de rodagem mede 10,5 metros de largura, e o respectivo piso é asfaltado e não apresentava buracos, lombas ou desníveis, encontrando-se em bom estado de conservação. [als.H) e M) dos Factos Assentes, e resposta ao quesito 5º da Base Instrutória];

IX – No momento do acidente era de dia, estava bom tempo, não chovia, e o piso da faixa de rodagem encontrava-se seco. [als.I) a L) dos Factos Assentes];

X – No local do acidente é possível avistar a faixa de rodagem em toda largura numa extensão de 50 metros. [al.N) dos Factos Assentes];

XI – Nas circunstâncias supra descritas, o sinistrado J (…) conduzia o veículo JJ pelo IP 5, no sentido Viseu/Guarda, pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de trânsito. [als.O) e P) dos Factos Assentes];

XII – O veículo DX circulava no IP 5, no sentido Guarda/Viseu. [al.Q) dos Factos Assentes];

XIII – Ao chegar ao km. 117,645, o sinistrado foi surpreendido pelo súbito aparecimento do veículo DX à sua frente. [resposta ao quesito 6º da Base Instrutória];

XIV – O veículo DX seguia animado de uma velocidade de cerca de 120 km./hora. [resposta ao quesito 7º da Base Instrutória];

XV – Ao chegar ao km. 117,647, o condutor do DX não conseguiu adequar a velocidade que imprimia ao seu veículo ao limite da sua hemi-faixa de rodagem, e por isso invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária. [resposta aos quesitos 8º e 9º da Base Instrutória];

XVI – Ao chegar ao km. 117,645, o condutor do DX não conseguiu controlar a trajectória do veículo que conduzia, pelo que transpôs o eixo da via e invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária. [als.R) e S) dos Factos Assentes];

XVII – Embora tenha accionado os órgãos de travagem do veículo DX, deixando marcado no pavimento um rasto de travagem de 31 metros, o condutor do DX não conseguiu evitar o embate, que viria a ocorrer entre as partes frontais de ambos os veículos intervenientes no acidente. [als.T) e U) dos Factos Assentes];

XVIII – Com a força do embate, o veículo JJ foi projectado para fora da faixa de rodagem, vindo a imobilizar-se no final da ribanceira existente do lado direito desta, atento o seu sentido de marcha. [als.V) e X) dos Factos Assentes];

XIX – O embate ocorreu na via de circulação destinada ao trânsito do sentido Viseu/Guarda. [al.Z) dos Factos Assentes];

XX – Após o acidente, o sinistrado J (…) foi transportado ao Hospital de S. Teotónio de Viseu, onde esteve internado de 10-09-1999 a 05-11-1999. [resposta ao quesito 10º da Base Instrutória];

XXI – Naquela unidade hospitalar, como resultado do acidente, foram-lhe diagnosticadas as seguintes lesões:

- Esfacelo da perna esquerda;

- Fractura do fémur esquerdo;

- Fractura do 5° dedo da mão esquerda;

- Ferida incisa no antebraço esquerdo, entre outras lesões, conforme ficha de urgência que constitui o documento nº 3 (fls. 25 a 36 dos autos) junto com a petição inicial. [resposta ao quesito 11º da Base Instrutória];

XXII – O sinistrado viria a ser submetido a intervenção cirúrgica, onde lhe foi amputada a perna esquerda, sujeito a prótese para a amputação transtibial esquerda, osteossíntese, com placa, parafusos e encavilhamento. [resposta aos quesitos 12º a 14º da Base Instrutória];

XXIII – A partir dessa data de 05-11-1999, passou a ser seguido em regime de consulta externa até 21-01-2000, e acompanhado clinicamente pelos serviços médicos da autora, conforme documento nº 1 (fls. 37 a 44 dos autos) junto com a petição inicial. [resposta ao quesito 15º da Base Instrutória];

XXIV – Em 21-01-2000, foi internado no Hospital de Santa Maria, no Porto, onde realizou nova intervenção cirúrgica para retirar o material de osteosíntese, tendo-lhe sido atribuída alta hospitalar em 27-01-2000. [resposta aos quesitos 16º a 18º da Base Instrutória];

XXV – Continuou a frequentar regularmente a consulta, tendo-lhe sido colocada prótese em Julho de 2000. [resposta ao quesito 19º da Base Instrutória];

XXVI – Em 10-11-2000 foi novamente internado, por atraso de consolidação da fractura do fémur esquerdo, e submetido a nova intervenção cirúrgica para dinamização da vareta ao do fémur e extracção do 2° parafuso proximal, tendo-lhe sido atribuída alta hospitalar no dia seguinte, mantendo, porém, o acompanhamento médico através de consulta. [resposta aos quesitos 20º a 23º da Base Instrutória];

XXVII – Em 08-05-2001, o sinistrado voltou a ser internado no Hospital de Santa Maria para correcção cirúrgica do coto de amputação, tendo-lhe sido atribuída alta hospitalar no dia 10-05-2001. [resposta aos quesitos 24º e 25º da Base Instrutória];

XXVIII – Em consequência directa e necessária do acidente, o sinistrado ficou com incapacidade temporária pelo período de 797 dias, sendo os primeiros 180 dias com incapacidade geral total, e os restantes 617 com incapacidade geral parcial, até consolidação médico legal das lesões em 15-11-2001. [resposta aos quesitos 26º e 27º  da Base Instrutória];

XXIX – Após o que ficou afectado com uma I.P.P. de 40%, acrescida de 10% a título de dano futuro, e de 30 dias de incapacidade total para eventual extracção do material de osteossíntese [internamento e convalescença] que, na altura, ainda mantinha. [resposta ao quesito 28º da Base Instrutória];

XXX – A autora, ao abrigo do contrato de seguro identificado no ponto 6.2., suportou o custo da assistência clínica, despesas hospitalares, medicamentosas e de transporte, tendo liquidado as seguintes quantias:

- € 33,92 a (…);

- € 3.548,08 ao Médico Assessor;

- € 6.546,78 ao Hospital de S. Teotónio;

- € 10.058,89 ao Hospital de Santa Maria;

- € 276,04 ao sinistrado, a título de despesas por si efectuadas;

- € 3.584,3 à Ortopedia Universal;

- € 101,27 ao Laboratório Médico Pessanha;

- € 26,60 ao Laboratório Patologia Clínica;

- € 255,46 a T (…), Lda.;

- € 141,40 a G (…), Unipessoal, tudo conforme documento nº 5 (fls. 45 a 56 dos autos) junto com a petição inicial, nas datas referidas nesse documento. [resposta ao quesito 29º da Base Instrutória];

XXXI – A autora efectuou ainda o pagamento ao sinistrado da quantia total de € 8.662,63, a título de indemnização referente aos períodos de incapacidade temporária, conforme documento nº 5 junto com a petição inicial, nas datas referidas nesse documento. [resposta ao quesito 30º da Base Instrutória];

XXXII – A autora efectuou ainda o pagamento ao sinistrado da quantia total de € 45.908,54, a título de pensões, conforme documento nº 5 junto com a petição inicial, nas datas referidas nesse documento. [resposta ao quesito 31º da Base Instrutória];

XXXIII – A autora continua obrigada ao pagamento de uma pensão (na parte não remida) ao sinistrado, que corresponde actualmente ao valor anual de € 3.502,32, tendo constituído para o efeito uma provisão matemática, no montante de € 36.087,63. [resposta aos quesitos 32º e 33º da Base Instrutória];

XXXIV – MJ (…) não havia transferido a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo DX para qualquer Seguradora. [al.AA) dos Factos Assentes];

XXXV – O sinistrado intentou uma acção de indemnização que correu termos no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Mangualde, sob n.º 10/2001, da qual resultou provada a falta de seguro válido e eficaz do veículo DX. [al.AB) dos Factos Assentes];

XXXVI – Na pendência da supra mencionada acção, o condutor do DX à data do acidente, FC (…) faleceu, pelo que procedeu-se à respectiva habilitação de herdeiros, conforme documento nº 7 (fls. 82 a 84 dos autos) junto com a petição inicial. [al.AC) dos Factos Assentes];

XXXVII – Como únicos e universais herdeiros, FC (...) deixou os réus SB (...), MF (...), OF (...), FC (...), e FB (...). [al.AD) dos Factos Assentes];

XXXVIII – Por seu lado, a MJ (…) também faleceu na pendência da supra referida acção, tendo deixado como herdeiros os réus FF (…), MF (…), JF (…),. [als.AE) e AF) dos Factos Assentes];

XXXIX – Na acção referida no ponto 6.35. foi proferida a sentença cuja cópia consta de fls. 274 a 285, o Acórdão da Relação de Coimbra cuja cópia consta de fls. 286 a 291, e a decisão do S.T.J. cuja cópia consta de fls. 292 a 297 (facto este que se considera provado ao abrigo do disposto no art. 659º, nº 3, do C.P.C.). [al.AH) dos Factos Assentes];

XL – Na sequência do decidido nessa acção, o aqui réu Fundo de Garantia Automóvel veio a proceder ao pagamento das quantias em que foi condenado, o que fez 02-02-2009, sendo que quanto ao montante que ora interessa, procedeu ao seu pagamento em 05-06-2009, tudo conforme documentos juntos a fls. 269 e 270. [al.AI) dos Factos Assentes];

XLI – A autora solicitou aos réus o pagamento da quantia em dívida, mas até à presente data não foi efectuado qualquer pagamento. [al.AG) dos Factos Assentes].

                                                                       *                    

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            4.1. – Questão do conteúdo e natureza jurídica do “direito de regresso” previsto no art. 31º da Lei nº 100/97 de 13.09 (sua eventual conexão com o direito à reparação a que o sinistrado tem direito e sua eventual distinção da figura jurídica da “sub-rogação legal”):

            O preliminar aspecto que importa vincar é que é aplicável efectivamente ao caso vertente o regime decorrente da Lei nº 100/97 de 13.09. (a qual aprovou o “novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais”), na medida em que o acidente ajuizado ocorreu em 10 de Setembro de 1999 (cf. facto IV), donde, já no âmbito de vigência desta Lei, que consabidamente revogou o anterior regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais constante da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965 (cf. art. 42º daquele primeiro diploma).

            Está em causa nos autos a pretensão da Autora de ser reembolsada do montante que pagou a título de seguradora de acidentes de trabalho, com referência ao acidente de viação ocorrido em que foi interveniente e vítima J (…), acidente esse que tendo ocorrido no período laboral deste (enquanto motorista profissional no interesse e por conta da sua entidade patronal, a empresa “H (…), Lda.”, cujo veículo de matrícula (...)JJ conduzia no momento do acidente – cf. factos III a VI) determina uma concorrência de responsabilidades, pois que se trata de um acidente que é simultaneamente acidente de viação e acidente de trabalho ou de serviço.   

Ora, com referência à pretensão que a aqui A. veio exercer nesta acção, na economia da Lei nº 100/97 de 13.09. assume particular relevo o art. 31º, que previne para a hipótese de o acidente ser causado por companheiro de trabalho ou por terceiros, sendo que o interesse deste normativo reside no especial regime que estabelece sempre que o sinistrado do trabalho fica, em razão do acidente, titular de dois direitos de reparação: um pelo risco, perante a entidade patronal; outro por facto ilícito culposo, perante terceiro que tenha “causado” o acidente (de viação).

E reza assim o dito normativo:

“Artigo 31.º

Acidente originado por outro trabalhador ou terceiros

1 – Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.

2 – Se o sinistrado em acidente receber de outros trabalhadores ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade empregadora ou seguradora, esta considera-se desonerada da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsada pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.

3 – Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.

4 – A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no n.º 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.

5 – A entidade empregadora e a seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.”

 Acontece que é actualmente pacífico o entendimento de que:

«1. As indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto.

2. A responsabilidade primacial e definitiva pelo ressarcimento dos danos decorrentes de acidente de viação que igualmente se perspectiva como acidente de trabalho é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, podendo sempre a entidade patronal ou respectiva seguradora repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado – pelo que esta fisionomia essencial do concurso ou concorrência de responsabilidades (que não envolve um concurso ou acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita[2].

Este aspecto da solidariedade imprópria ou imperfeita será aprofundado infra quando se tratar da questão da configuração e pressupostos do “direito de regresso” em apreciação, pois que importa directamente solucionar aqui e agora o aspecto do conteúdo deste mesmo “direito de regresso”.

Aspecto para o qual assume relevo directo o constante do art. 10º da Lei nº nº 100/97 de 13.09., o qual reza assim:

Artigo 10.º

 Reparação

O direito à reparação compreende, nos termos que vierem a ser regulamentados, as seguintes prestações:

a) Em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa;

b) Em dinheiro: indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente; pensões aos familiares do sinistrado; subsídio por situações de elevada incapacidade permanente; subsídio para readaptação de habitação, e subsídio por morte e despesas de funeral.

            Não vislumbramos, assim, efectivamente fundamento para o que foi sustentado diversamente na sentença recorrida, particularmente quando no ponto “8.8.” da mesma se disse que o direito de regresso que a autora acciona nesta acção apenas lhe permitiria obter o pagamento da “indemnização” paga, e não de qualquer outra prestação, como decorre expressamente da norma do art. 31º, nº 4, da Lei nº100/97, de 13-09.

Por conseguinte, como as referidas despesas clínicas, hospitalares, medicamentosas e de transporte não se reconduzem ao conceito legal de indemnização pressuposto nos arts. 562º e 564º do Código Civil (reparação ao lesado de um dano por este sofrido, mediante a reconstituição da situação hipotética que existiria caso se não tivesse verificado o facto lesivo), não será devido o seu reembolso, também por esta razão.”

Haverá, assim, que dar acolhimento a este fundamento recursivo.

            É então tempo de apreciar o aspecto da natureza jurídica do dito “direito de regresso” (sub-rogação legal?).

            Esta temática conexiona-se directamente com o regime de solidariedade imprópria ou imperfeita – de que falámos supra relativamente aos responsáveis pelos acidentes laboral e de viação – mais propriamente no que ao regime das relações externas diz respeito.

E fala-se desta figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, na medida em que:

- no plano das relações externas, o lesado/sinistrado pode exigir alternativamente a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, mas sem que lhe seja lícito somar, em termos de acumulação real, ambas as indemnizações;

- no plano das relações internas, a circunstância de haver um escalonamento de responsabilidades, sendo um dos obrigados a indemnizar o responsável definitivo pelos danos causados, conduz a que tenha de se outorgar ao responsável provisório (a entidade patronal ou respectiva seguradora) o direito ao reembolso das quantias que tiver pago, fazendo-as repercutir definitivamente, directa ou indirectamente, no património do responsável ou responsáveis civis pelo acidente.

            De facto, neste particular divisam-se algumas particularidades ou aspectos específicos e peculiares desta relação de solidariedade imprópria, a saber: no plano relações externas (ao contrário do que ocorre na normal solidariedade obrigacional – cf. art. 523º do C.Civil) o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente de viação; entende-se que, se a indemnização paga pelo detentor ou condutor do veículo extingue efectivamente a obrigação de indemnizar a cargo da entidade patronal, já o inverso não será exacto, na medida em que a indemnização paga por esta entidade não extinguiria a obrigação a cargo do responsável pela circulação do veiculo que causou o acidente; e daí que se qualifique como sub-rogação legal (e não como direito de regresso) o fenómeno da sucessão da entidade patronal ou respectiva seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, referentemente à parcela da indemnização que tiver satisfeito.[3]

            Dá-se, assim, acolhimento a este “argumento” recursório da A./recorrente, mas não pode deixar de se constatar que na sentença recorrida também não se entendeu diversamente neste particular.

            Ora, se a qualificação como sub-rogação legal releva inegavelmente quanto à contagem do prazo de prescrição[4], já aspecto diverso é o de se concluir que ela releva para o que interessa nesta sede recursória.

            É o que veremos de seguida.

                                                                       *

4.2. – Questão da configuração e pressupostos do dito “direito de regresso”, quando exercido pela seguradora laboral:

 Como decorre do que supra se cuidou de explanar, temos então que no quadro das relações externas o lesado pode exigir a reparação dos danos causados pelo acidente quer da entidade patronal, quer do condutor ou detentor do veículo.

Mas se é o detentor do veículo quem paga a indemnização devida, não lhe assiste nenhum direito em relação à entidade patronal.

Já se a indemnização for paga, no todo ou em parte, pela entidade patronal, esta fica subrogada nos direitos do sinistrado.

Por isso é que, decorrido 1 ano sem que a vítima proponha a acção contra os responsáveis pelo acidente de viação, a entidade patronal ou a sua seguradora poderão exercer, em acção própria, o direito de regresso contra os responsáveis pelo acidente de viação (na formulação do nº4 do art. 31º da Lei 100/97, de 13.09.), a entidade empregadora e a sua seguradora são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente (nº5 do art. 31º).

Sendo que se a vítima recebeu indemnização pelo acidente de viação, a entidade patronal ou a sua seguradora, que pagaram, têm o direito de ser reembolsadas pela vítima (n.º 2 do art. 31.º).

            Temos então que no regime da concorrência de responsabilidades por acidente de viação e de trabalho, prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal: esta última assume um carácter subsidiário ou residual.[5]

Sendo certo que constitui jurisprudência firme do Supremo Tribunal de Justiça que “Concorrendo uma e outra, prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva da entidade patronal, uma vez que, face à proximidade da causa do dano, a responsabilidade primeira é daquele a quem puder ser imputado, a título de culpa ou risco, o acidente de viação.”[6]

E bem assim que “A responsabilidade pelo acidente laboral tem carácter subsidiário em relação à responsabilidade pelo acidente de viação, o que bem se justifica por a última decorrer ou de facto ilícito ou do risco inerente à circulação automóvel, casos em que a obrigação de indemnizar se afirma em primeira linha de responsabilidade.[7]

            Mas que efeito importa afinal atribuir à revogação do regime que constava do art. 21º do DL 408/79 de 25 de Setembro – conferindo à seguradora do responsável pelo acidente de trabalho o direito ao reembolso directo das quantias pagas contra a seguradora do responsável pelo acidente de viação – operada pelo art. 40º do DL 522/85, cujo art. 18º se limita efectivamente a mandar aplicar a este tema do concurso de responsabilidades emergentes de acidentes de viação e de trabalho a disciplina normativa constante da legislação especial de acidentes de trabalho?

Tem-se considerado que tal conduz ao entendimento segundo o qual o direito ao reembolso tem de ser exercido contra o sinistrado que haja recebido indemnizações em duplicado pelo mesmo dano.[8]

Aspecto que aprofundaremos de seguida.

                                                                       *

4.3. – Questão de se o FGA se configura como um “causador do acidente” contra quem pode ser exercido o dito “direito de regresso”:

            Este é que é o nó górdio deste recurso.

            Pois que se com a solução dadas às questões antecedentes subsiste em aberto a possibilidade de a ora A. exercer o “direito de regresso” previsto no art. 31º da Lei nº 100/97 de 13.09 – e até com a amplitude ampla com que se apresentou a fazê-lo na p.i. – é tempo de aquilatar se algo o impede em definitivo.

            Tenha-se em devida nota que a A. verdadeiramente só impugna a sentença do tribunal a quo quanto à absolvição do FGA.

            Na verdade, se bem se compulsar e interpretar as “alegações” de recurso da A. (o que também aparece evidenciado nas “conclusões” que das mesmas extraiu!), não pode deixar de se concluir que a mesma delimitou o recurso à absolvição do “recorrida” FGA, que considera ser a “responsável subjectiva, no caso dos autos” (cf. o art. 684º do C.P.Civil, designadamente o seu nº3).

            Com tal determinou fatalmente a improcedência deste seu recurso.

            Tornando até dispensável apreciar a excepção de prescrição que fora deduzida nos autos por alguns dos demandados…[9]

            É que se configura como claramente inequívoco que o “direito de regresso” em causa, enquanto expressão da consequência legal do facto de um dos devedores solidários «imperfeitos» ter cumprido a obrigação de ressarcimento a que estava vinculado (adiantando, no quadro de uma relação contratual destinada a garantir os riscos laborais, um valor indemnizatório que – perante a «hierarquização» das responsabilidades dos potenciais devedores – pode ser ulteriormente repercutido no património do devedor principal e definitivo da obrigação de indemnizar, a saber, o “responsável civil” pelo acidente de viação), tinha e tem como destinatários apenas "os responsáveis referidos no nº1” do mesmo art. 31º da Lei nº 100/97, ou seja, outros trabalhadores ou terceiros que tiverem “causado” o acidente.

            Acontece que – como doutamente aduzido pelo Recorrido FGA nas respectivas contra-alegações – não pode qualificar-se o FGA como “causador” do acidente de viação que simultaneamente se configura como acidente laboral, na medida em que a sua obrigação de ressarcir o sinistrado não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, que para tal entidade houvesse sido transferida (legal ou contratualmente), mas apenas no propósito de – socializando os riscos associados à circulação rodoviária – evitar a total desprotecção da vítima, decorrente, nomeadamente, do não apuramento da identidade do lesante.

            É, aliás, este o entendimento superiormente expresso no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-05-2011[10] – com argumentos a que, com “data venia” e ainda que feitos face ao quadro normativo decorrente da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, damos o nosso integral acolhimento, por entendermos que mantém plena actualidade face ao aplicável quadro normativo da Lei nº 100/97 de 13.09. – neles se destacando o seguinte passo:

«Ou seja: a fonte normativa do dever de indemnizar que o art. 21ºdo DL 522/85 faz recair sobre o FGA, embora tenha como pressuposto e medida a responsabilidade civil do causador do acidente, cuja identidade foi impossível apurar, não se situa no âmbito da figura da responsabilidade civil, constituindo antes objecto de um dever legal de ressarcimento, emergente do propósito de fazer assumir pela colectividade os riscos mais gravosos, ligados aos acidentes estradais, nos casos em que foi inviável fazê-los incluir no âmbito do pilar/seguro obrigatório.

E, não podendo, pelos motivos apontados, qualificar-se o FGA como causador do sinistro, isto é, como entidade que deva assumir, no âmbito da figura da responsabilidade civil, a indemnização de certo tipo de danos resultantes do acidente rodoviário, não se verificam os pressupostos legais a que a norma aplicável condiciona o exercício do direito de regresso por parte da seguradora que garantia os riscos laborais.»

Assim, porque não se verificam em relação a esta entidade aqui recorrida FGA os pressupostos do “direito de regresso” impetrado na acção, improcede inabalavelmente o presente recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – No regime de concorrência de responsabilidades por acidente de viação e de trabalho prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal, assumindo esta última um carácter subsidiário ou residual.

II – Neste regime de concorrência de responsabilidades, no quadro das relações externas o lesado pode exigir a reparação dos danos causados pelo acidente quer da entidade patronal, quer do condutor ou detentor do veículo; mas se é o condutor ou detentor do veículo quem paga a indemnização devida, não lhe assiste nenhum direito em relação à entidade patronal; já se a indemnização for paga, no todo ou em parte, pela entidade patronal, esta fica subrogada nos direitos do sinistrado.

III – Mas o “direito de regresso” previsto no nº4 do art. 31º da Lei nº 100/97 de 13.09., que tem características de sub-rogação legal (sucessão da entidade patronal ou respectiva seguradora nos direitos do sinistrado contra o “causador” do acidente), tinha e tem como destinatários apenas "os responsáveis referidos no nº1” do mesmo normativo, ou seja, outros trabalhadores ou terceiros que tiverem “causado” o acidente.

IV – Não pode qualificar-se o Fundo de Garantia Automóvel como “causador” do acidente de viação que simultaneamente se configura como acidente laboral, na medida em que a sua obrigação de ressarcir o sinistrado não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, subjectiva ou objectiva, antes no dever legal de ressarcimento, emergente do propósito de fazer assumir pela colectividade os riscos mais gravosos, ligados aos acidentes estradais, nos casos em que foi inviável fazê-los incluir no âmbito do pilar/seguro obrigatório. 

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, ainda que por fundamentos em parte diversos, acorda-se em negar provimento ao recurso e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida.

Custas em ambas as instâncias pela A./apelante.

                                                           *

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Maria José Guerra

Albertina Pedroso


[1] Nessa medida até tornando legítima a concreta dispensa de enumeração dessa factualidade (cf. art. 713º, nº6 do C.P.Civil), mas que optamos por fazer para tornar mais explícita e facilitada a exposição e compreensão da solução que se vai dar às questões que constituem o “thema decidendum”.
[2] Citámos os primeiros dois pontos do sumário do recente Ac. do S.T.J de 11-12-2012, no proc. nº 40/08.1TBMMV.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Também neste sentido, veja-se os Acs. do S.T.J de 9-3-2010, proferido no proc. nº 2270/04.6TBVLG.P1.S1, o de 11-01-2011, proferido no proc. nº 4760/07.0TBBRG.G1.S1, e o de 23-02-2012, proferido no proc nº 31/05.4TAALQ.L2.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[4] Cf., quanto a esta questão, o Ac. do S.T.J de 09-03-2010, no proc. nº 2270/04.6TBVNG.P1.S1, citado na nota anterior.
[5] Cf., neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24-01-2002, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano X, Tomo I – 2002, a págs. 54 e segs.
[6] Citámos o Ac. do S.T.J de 11-10-2011, no proc. nº 57/09.9T2AND.S1, acessível em  www.dgsi.pt/jstj.
[7] Citámos agora o Ac. do S.T.J de 11-05-2011, no proc. nº 242-A/2001.C2.S1, também acessível em  www.dgsi.pt/jstj.
[8] Cfr., inter alia, o Ac. do S.T.J. de 24-01-2002, no proc. nº 01A4056, acessível em  www.dgsi.pt/jstj.
[9] Diga-se apenas que tal via de defesa que tinha toda a pertinência no quadro do disposto no art. 498º do C.Civil, atendendo a que o acidente ocorreu em 10 de Setembro de 1999, que a consolidação das lesões do sinistrado J (…) se situa em 15 de Novembro de 2001, sendo nesta proximidade temporal que tiveram lugar os pagamentos ora reclamados pela A., excepção feita às “pensões”, mas quanto a estas também se pode adiantar que não se vislumbra ocorrer qualquer “duplicação” no recebido pelo dito sinistrado, acrescendo que “sibi imputet” à ora A. se na anterior acção que correu termos no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Mangualde, sob n.º 10/2001 (cf. facto XXXV) não deduziu o pedido de reembolso no confronto de quem o devia ter deduzido, antes apenas contra a aí Ré “Mundial Confiança, S.A.” (cf. fls. 279 vº)… 

[10] No proc. nº 620/1999.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.