Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8619/18.7T8CBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
FORMAÇÃO DE JOGADORES
TRANSFERÊNCIA DE JOGADORES
MECANISMO DE SOLIDARIEDADE
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 46.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: I) Os valores devidos a um clube de futebol que investiu na formação profissional de um jogador, por causa da transferência desse jogador e ao abrigo do mecanismo de solidariedade, não podem ser utilizados para outros fins que não sejam os da formação de novos jogadores.

II) Se esse clube deixar de existir ou deixar de participar em futebol organizado, isto é, deixar de estar filiado na Federação respectiva, não pode o mesmo receber os valores devidos a título do mecanismo de solidariedade, os quais devem ser entregues a essa Federação.

III) No caso referido em II) os valores aí referidos não podem ser apreendidos para a massa insolvente do clube também aí referido.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

O Juízo de Comércio de Coimbra, a requerimento da Senhora Administradora Judicial da Massa Insolvente da Associação B... , ordena a notificação – despacho datado de 10.04.2019 - da Federação Portuguesa de A... , na Avenida ....., para que considere apreendido, a favor da Massa Insolvente da Associação B... , o crédito correspondente aos valores que recebeu ou venha a receber do C... respeitante ao Mecanismo de Solidariedade, relativo ao jogador D... e para que proceda à respectiva transferência para a conta da referida Massa Insolvente.

Veio a Federação Portuguesa de A... responder à notificação efetuada pelo Tribunal, alegando, em suma, e, desde logo, invocando que não foi chamada ao processo para se pronunciar sobre esta questão, pelo que o referido despacho proferido é nulo; que tal valor deverá ser entregue à Federação devido ao facto de o clube formador do jogador (Associação B... ) já não participar em futebol organizado; que ainda não recebeu qualquer valor do C... e que não tem registo do contrato celebrado entre o E... e o C... , e que a Massa Insolvente não sabe o valor transferido pelo C... e que desistiu de interpelar aquele clube.

Notificada a Ilustre Administradora Judicial e credores, veio a primeira pugnar que não tem razão a Federação e bem assim o credor G... .

Pela 1.ª instância foi proferida a seguinte decisão:

“Uma vez respeitado o princípio do contraditório, cumpre apreciar e decidir.

Quanto à arguida nulidade por ter sido ordenado a apreensão sem que a Federação fosse ouvida, diga-se, desde já, que não assiste razão à Federação Portuguesa de A... .

Com efeito, o poder/dever de apreensão dos bens (no caso em apreço créditos) da insolvente que incumbe à Administradora Judicial nomeada resulta da própria lei regulamentadora do processo de insolvência nos artigos 149º e 150º do CIRE e é logo determinada na sentença de declaração de insolvência, pelo que não tem que ser ouvida previamente a entidade que tenha que proceder à sua entrega, que sim poderá fazer a declaração é que o crédito não existe, do que resulta que não se verifica a arguida nulidade.

Por outro lado, as razões invocadas agora apresentadas pela Federação são as mesmas que invocou na correspondência trocada com a Administradora Judicial, e com o C... , que foi junta aos autos como documentos nºs 7, 8 e 9 do requerimento enviado em 29.03.2019 (como todos os demais documentos a que infra se referirá, caso não se aluda a outra origem), pelo que a questão já foi apreciada pelo Tribunal.

No que concerne à questão se tal valor deve ser entregue à Federação devido ao facto de o clube formador do jogador (Associação B... ) já não participar em futebol organizado, tomando em consideração os respetivos documentos enviados aos autos em 29.03.2019, dir-se-á que o " C... " teria para pagar à Associação B... , que é relativo ao seguinte:

- Na época desportiva de 2010/2011 (de 11.08.2010 a 30.06.2011) o atleta D... esteve inscrito e representou a Associação B... na época do seu 17° aniversário, conforme consta no passaporte desportivo do jogador que se junta – documento nº 1.

- Este jogador foi recentemente transferido do E... para o C... .

- Dessa transferência do mencionado D... do E... para o C... resultam verbas a pagar pelo C... , não só ao E... como também a outros clubes.

- Trata-se do Mecanismo de Solidariedade, previsto no Regulamento do Estatuto e Transferência dos Jogadores da FIFA, nos termos do qual sempre que um jogador é transferido antes do final do seu contrato, todos os clubes que tenham contribuído para a sua educação e treino devem receber uma parte da compensação paga ao club anterior.

- A Administradora Judicial contactou, em 7 de março de 2019, o C... , informando a situação de Insolvência, pedindo para ser informada do montante a receber, e pedindo uma cópia do contrato para tomar conhecimento de futuros pagamentos que possam resultar de causas variáveis constantes no contrato - cfr cópia do e-mail enviado, em língua inglesa – Cfr. documento nº 2.

- Foi recebida resposta de C... pedindo contacto telefónico, e tendo a signatária contactado telefonicamente com o C... , foi confirmada a existência de uma verba relativa ao Mecanismo de Solidariedade pela transferência do jogador D... para o C... .

- O C... , que tem a obrigação de pagar tal verba, tinha já contactado o actual club de futebol existente na X...., F... .

- Foi reenviado à Administradora Judicial o e-mail que o C... recebeu da F... – Cfr. Documento nº 3.

- Conforme aí consta, a F... informou que a Associação B... atravessou uma crise económica e extinguiu a prática desportiva, tendo surgido a F... , tendo ainda informado que 'juridicamente nada temos a ver com o club antigo", mais informando que "o valor dos direitos da formação do atleta em causa deve ser entregue à Federação Portuguesa de A... " – Cfr. documento nº 3 .

- A Administradora Judicial enviou e-mail ao C... a informar que a F... nada tem a ver com a Associação B... , que é uma entidade jurídica diferente constituída apenas em 2014, e que o valor em causa deve ser entregue à Associação B..., agora Massa Insolvente, pois a mesma ainda não está extinta – Cfr. documento nº 4.

- Foi ainda informado que nos termos da Sentença proferida nos presentes autos deve proceder à cobrança de créditos sobre terceiros e que o valor deve ser entregue à Massa insolvente – Cfr. documento nº 4.

- Foi recebida resposta informando que iria ser consultada a Federação e a pedir o IBAN, tendo sido enviado o IBAN em 18.03.2018 documentos nºs 5 e 6.

- Em 18.03.2019 foi recebida resposta do C... informando que receberam e-mail da Federação Portuguesa de A... e que vão fazer o pagamento à Federação e não à Associação B... – Cfr. documento nº 7.

- De acordo com o e-mail da Federação Portuguesa de A... , esta informou que a Associação B... já não se encontra a participar das competições oficiais, pelo que o direito de receber o Mecanismo de Solidariedade pertence à Associação Nacional- Cfr. documento nº 7.

- A Administradora Judicial em 19.03.2018 enviou e-mail para o C... e para a Federação Portuguesa de A... - documento nº 8.

- Foi informado, entre outras coisas, que:

O Regulamento do Estatuto e Transferência de jogadores da FIFA, determina a existência de um crédito a favor da Associação B... ;

Existindo esse crédito a ora A.I. tem que o apreender;

A Administradora Judicial tem que cumprir e fazer cumprir a Lei Portuguesa, que se sobreporá a qualquer regulamento da FIFA .

Foi assim reafirmado que o valor resultante do crédito deve ser apreendido à ordem do Processo de Insolvência e deverá ser transferido para a conta da Massa Insolvente ¬tudo conforme cópia do e- mail junto e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – Cfr. documento nº 8.

- A Federação Portuguesa de A... veio responder, informando que na sua perspectiva os clubes perdem o direito de reclamar a compensação pela formação quando deixam de participar em provas de futebol organizadas, informando que a Associação B... não é detentora do crédito e que o mecanismo de solidariedade tem como função primordial que seja investido no desenvolvimento do futebol e na formação de jogadores, o que a Associação B... não está a fazer por não estar a participar em provas – Cfr. documento nº 9.

- Veio o C... informar que vai fazer o pagamento à Federação Portuguesa do Futebol – Cfr. documento nº 10.

- A Administradora Judicial respondeu, informando que não deve ser entregue qualquer valor à Federação Portuguesa de A... e que o crédito deve ser considerado apreendido à ordem do Processo de Insolvência, tudo conforme cópia do e-mail enviado em 21.03.2019 junto e cujo teor se dá por integralmente produzido – Cfr. documento nº 11.

- O C... veio já informar que vai enviar o pagamento à Federação Portuguesa de A... - Cfr. documento nº 12.

Em face do que vem de se dizer, verifica-se, assim, que existe um valor a pagar pelo C... , conforme este club reconheceu.

Nos termos do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA, o mecanismo de solidariedade resulta da participação de um Clube no processo de formação de um jogador, conforme reconhecido também quer pelo C... quer pela Federação Portuguesa de A... .

O C... vai efectuar o pagamento das respectivas quantias à Federação Portuguesa de A... .

É entendimento da Federação Portuguesa de A... que a Associação B... não terá direito a receber tais quantias por não participar actualmente em provas oficiais.

É claro no regulamento que esse direito é atribuído a todos os clubes que o jogador tenha representado entre o 12º e 23º aniversário, de acordo com o passaporte do jogador - cfr artigo 21º do Regulamento e Anexo 5 aí mencionado (pag. 26 e 71) - Cfr. documento nº 13.

Se o jogador não tivesse representado a Associação B..., como aconteceu na época desportiva 2010/2011, conforme consta do passaporte desportivo do atleta, nem a Massa Insolvente, nem a Federação Portuguesa de A... , poderíamos reclamar o valor do Mecanismo de Solidariedade.

Como tal, resulta claro, que esse crédito é da Associação B... , pela participação deste clube no processo de formação do jogador, e como tal será a Associação B... a detentora desse crédito, sendo que, conforme supra já referido, a partir do momento que exista esse crédito, deve ser apreendido a favor da Massa Insolvente.

No Regulamento do Estatuto e Transferência do Jogador da FIFA, não consta que o mecanismo de solidariedade tem como função primordial que seja investido no desenvolvimento do futebol e, particularmente, na formação de jovens jogadores, a não ser quando esse dinheiro é para entregue a uma Associação Nacional (neste caso a Federação) e não a um clube - cfr Anexo 5 ao referido Regulamento.

A Associação B... ainda existe, e não está extinta, pelo que não pode ser a Associação Nacional/Federação, a receber tal valor.

De qualquer modo, o regulamento da FIFA, tutela a relação entre clubes e/ou Associações. A partir do momento em que o crédito existe, não estamos já perante um processo entre clubes, que seja regulamentado ou tutelado pela FIFA, nem se trata de um processo de direito desportivo, trata-se, sim, de um processo judicial, e por ordem expressa do Tribunal e por aplicação da Lei (CIRE), deve ser efectivamente apreendido o crédito.

Quanto ao não recebimento do respectivo valor, diga-se que, conforme consta nos autos, a ultima informação prestada pelo C... foi a de que iria proceder ao pagamento à Federação Portuguesa de A... -Cfr. documentos nºs 7 e 10 do requerimento enviado em 29.03.2019, sendo que, conforme informação da Ilustre Administradora Judicial já foi solicitado a este clube que informe se, entretanto, já procedeu ao pagamento.

Quanto ao valor a receber, efectivamente ainda não é possível saber, uma vez que ainda não foi facultada a cópia do contrato celebrado.

Conforme consta no requerimento enviado aos autos em 29.03.2019 (cfr. documento nº 3) foi pedido o contrato para se tomar conhecimento do valor a receber, e de futuros pagamentos que possam resultar de causas variáveis constantes no contrato.

Como ainda não foi recebido o contrato, não é possível saber os valores concretos a receber.

Por outro lado, a Massa Insolvente não desistiu de interpelar o Club C... . De facto, conforme resulta das comunicações e documentos juntos pela Administradora Judicial, tal Clube reconheceu que tem que pagar o Mecanismo de Solidariedade gerado pelo facto do Clube Associação B... ter contribuído para a formação do jogador.

Atendendo à comunicação que a Federação Portuguesa de A... fez ao C... , este informou que vai pagar à Federação, e que tudo deverá ser tratado com a Federação – Cfr. Documento nºs 10 e 12 juntos com o referido requerimento.

Por tal razão a Administradora Judicial em 28.03.2019, enviou e-mail à Federação Portuguesa de A... a informar que devem considerar apreendido à ordem do Processo de Insolvência os valores que receberam ou venham a receber respeitante ao referido Mecanismo de Solidariedade – Cfr. documento nº 1.

Foi ainda solicitado informação quanto ao valor recebido e a receber e a cópia do contrato –Cfr. documento nº 1-, sendo que a esta comunicação não foi dada resposta pela federação.

Nestes termos, e por todos os referidos motivos, e tendo sido proferido o referido despacho de 10.04.2019, indefere-se o requerido pela Federação Portuguesa de A... , devendo a mesma, em consequência, proceder à entrega do respectivo valor logo que o mesmo seja recebido.

Notifique.

**

Montemor-o-velho, m.d”.

Federação Portuguesa de A... , Interveniente Acidental no processo acima identificado em que é Insolvente a Associação B... , notificada do despacho proferido nos autos, que a intima a entregar à Massa Insolvente o valor pago pelo C... a título de mecanismo de solidariedade, vem, ao abrigo do disposto no artigo 14.º do CIRE e 630.º do CPC, por aplicação do disposto no artigo 17.º do CIRE, porque está em tempo (cfr. Artigo 9.º, n.º 1 e 5 do CIRE e Artigo 638.º, n.º 1 do CPC, por aplicação do Artigo 17.º do CIRE) e tem legitimidade para o efeito (cfr. Artigo 631.º, n.º 2 do CPC, por aplicação do artigo 17.º do CIRE), e não se conformando com o mesmo, vem dele interpor RECURSO JURISDICIONAL para o Tribunal da Relação de Coimbra, , formulando as seguintes conclusões:

(…)

2. Do objecto do recurso

É esta a questão a dirimir:

O valor de € 98.775,00 (noventa e oito mil setecentos e setenta e cinco euros), relativo ao mecanismo de solidariedade referente à transferência do jogador D... , na sequência de transferência deste do E... para o C... , pertence (ou não) à Massa Insolvente da Associação B... ?

A 1.ª instância entende que sim, justificando assim a sua decisão:

“(…) Em face do que vem de se dizer, verifica-se, assim, que existe um valor a pagar pelo C... , conforme este club reconheceu.

Nos termos do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA, o mecanismo de solidariedade resulta da participação de um Clube no processo de formação de um jogador, conforme reconhecido também quer pelo C... quer pela Federação Portuguesa de A... .

O C... vai efectuar o pagamento das respectivas quantias à Federação Portuguesa de A... .

É entendimento da Federação Portuguesa de A... que a Associação B... não terá direito a receber tais quantias por não participar actualmente em provas oficiais.

É claro no regulamento que esse direito é atribuído a todos os clubes que o jogador tenha representado entre o 12º e 23º aniversário, de acordo com o passaporte do jogador - cfr artigo 21º do Regulamento e Anexo 5 aí mencionado (pag. 26 e 71) - Cfr. documento nº 13.

Se o jogador não tivesse representado a Associação B... , como aconteceu na época desportiva 2010/2011, conforme consta do passaporte desportivo do atleta, nem a Massa Insolvente, nem a Federação Portuguesa de A... , poderíamos reclamar o valor do Mecanismo de Solidariedade.

Como tal, resulta claro, que esse crédito é da Associação B... , pela participação deste clube no processo de formação do jogador, e como tal será a Associação B... a detentora desse crédito, sendo que, conforme supra já referido, a partir do momento que exista esse crédito, deve ser apreendido a favor da Massa Insolvente.

No Regulamento do Estatuto e Transferência do Jogador da FIFA, não consta que o mecanismo de solidariedade tem como função primordial que seja investido no desenvolvimento do futebol e, particularmente, na formação de jovens jogadores, a não ser quando esse dinheiro é para entregue a uma Associação Nacional (neste caso a Federação) e não a um clube - cfr Anexo 5 ao referido Regulamento.

A Associação B... ainda existe, e não está extinta, pelo que não pode ser a Associação Nacional/Federação, a receber tal valor.

De qualquer modo, o regulamento da FIFA, tutela a relação entre clubes e/ou Associações. A partir do momento em que o crédito existe, não estamos já perante um processo entre clubes, que seja regulamentado ou tutelado pela FIFA, nem se trata de um processo de direito desportivo, trata-se, sim, de um processo judicial, e por ordem expressa do Tribunal e por aplicação da Lei (CIRE), deve ser efectivamente apreendido o crédito”.

A apelante, Federação Portuguesa de A... , tem entendimento contrário, assim alegando:

(…) O mecanismo de solidariedade decorrente das transferências internacionais de jogadores está previsto e regulado no Regulamento da FIFA relativo ao Estatuto e Transferência de Jogadores (Regulations on the Status and Transfer of Players - aqui se deixa o link para o documento online: https://resources.fifa.com/image/upload/regulations-on-the- status-and-transfer-of-players-2018-2925437.pdf?cloudid=c83ynehmkp62h5vgwg9g).

Nesse sentido, analisando o Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA, em particular o seu Anexo 5, refere o n.º 3 deste artigo 2. o seguinte: “An association is entitled to receive the proportion of solidarity contribution which in principle would be due to one of its affiliated clubs, if it can provide evidence that the club in question – which was involved in the professional’s training and education – has in the meantime ceased to participate in organized football and/or no longer exists due to, in particular, bankruptcy, liquidation, dissolution or loss of affiliation. This solidarity contribution shall be reserved for youth football development programmes in the association(s) in question.” - Em tradução livre, “A associação tem o direito de receber a parte da contribuição de solidariedade que, em princípio, seria devida a um dos seus clubes afiliados, se puder provar que o clube em questão - que esteve envolvido na formação e educação do jogador profissional – deixou, entretanto, de participar no futebol organizado e / ou já não existe devido, em especial, a insolvência, liquidação, dissolução ou perda de filiação. Esta contribuição de solidariedade será reservada para programas de desenvolvimento do futebol juvenil na (s) associação (ões) em causa.”.

Neste conspecto, tendo a Associação B... deixado de participar em competições de futebol organizado e tendo sido declarada insolvente, a entrega da contribuição de solidariedade por parte do “novo” clube do jogador, para investimento em programas de desenvolvimento do futebol de formação é devida à Federação Portuguesa de A... ;  Em suma, o valor pago a esta Federação, é o valor relativo ao mecanismo de solidariedade, a que nos referimos no primeiro ponto deste requerimento e que, salvo melhor entendimento, corresponde a valor devido à Federação Portuguesa de A... , nos termos melhor referidos supra”.

Com todo o respeito, pela 1.ª instância e pela apelada, entendemos que a razão está do lado da Federação Portuguesa de A... .

Senão vejamos:

 A norma do artigo 46º do CIRE – será o diploma a citar sem menção de origem - determina que a massa insolvente “abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” (nº 1), apenas excluindo os “bens isentos de penhora” – ou seja, bens impenhoráveis –, embora mesmo estes possam ser “integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta” (nº 2). Ou seja, o que se apreende para a massa insolvente, para ser depois objeto de liquidação, são os bens do património do insolvente, não os bens do património de terceiro - bens de que o insolvente não seja o pleno e exclusivo proprietário.

O legislador afectou a globalidade do património do devedor, designada como massa insolvente, à satisfação das obrigações por este assumidas perante os seus credores, competindo ao administrador da insolvência os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, devendo, nesse âmbito, proceder à respectiva administração que deve abranger quer os bens já existentes, quer aqueles que o insolvente venha a adquirir na pendência do processo - proferida a sentença declaratória de insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente que devem ser imediatamente entregues ao administrador de insolvência e submetidos ao regime do depósito em geral e do depósito de bens penhorados em particular.

Esse conjunto de bens penhoráveis que integram o património do devedor e que, por tal facto, integram a massa insolvente, não encontra o seu limite na fase da liquidação, mas sim, no fim do processo de insolvência, ou seja, no seu encerramento, como decorre da própria letra da lei, em que se refere que a massa insolvente abrange “os bens e direitos que ele (insolvente) adquira na pendência do processo”.

A apelante reconhece que recebeu, efectivamente, do C... , no dia 22 de Março de 2021, o valor de € 98.775,001 (noventa e oito mil setecentos e setenta e cinco euros), relativo ao mecanismo de solidariedade referente à transferência do jogador D... , na sequência de transferência deste do E... para o C... .

Ora, este valor, nasce, tem a sua génese, no mecanismo de solidariedade, decorrente das transferências internacionais de jogadores - Regulamento da FIFA relativo ao Estatuto e Transferências de Jogadores (Regulations on the Status and Transfers of Players), em particular o seu Anexo 5, referente, precisamente, a tal mecanismo de solidariedade.

Como escreve a apelante, “(…) a finalidade deste mecanismo de solidariedade é o de permitir aos clubes que investiram na formação de determinado jogador, poderem receber uma percentagem do valor da sua transferência enquanto jogador profissional para que possam continuar a desenvolver o seu trabalho na formação de futuros jogadores.

Por outras palavras, estes valores que são “rateados” pelos clubes que participaram na formação de determinado jogador – quando o mesmo se transfere de um clube pertencente a uma federação nacional de determinado país, para um clube que pertença a uma federação nacional de outro país – servem o propósito de permitir àqueles clubes formadores o investimento nos seus escalões de formação. É essa, digamos, a ratio legis do referido mecanismo de solidariedade, garantindo com o referido investimento a prossecução de um fito, não só desportivo, mas acima de tudo social, que a referida norma visa proteger e alcançar”.

Ou seja, tais verbas não poderão, nunca, ser utilizadas pelos clubes abrangidos pelo referido mecanismo de solidariedade para outros fins. Está direcionado, única e exclusivamente, para a formação de novos jogadores.

Por isso, prevê o dito regulamento, se o clube que deveria receber os valores relativos ao mencionado mecanismo de solidariedade deixar de existir ou deixar de participar em futebol organizado, isto é, deixar de estar filiado na Federação respetiva, deixa o referido clube de poder receber o devido valor a título de mecanismo de solidariedade – estamos perante um “crédito”, já com eficácia na ordem jurídica, mas dependente de um facto futuro e incerto.

Nesse caso, o citado regulamento prevê, que tal valor - que não deixa de ser pago pelo clube que contratou o jogador que foi transferido -, será entregue pelo clube que adquiriu os direitos desportivos do jogador em questão, à Federação respetiva, ou seja, à Federação do clube que receberia o valor caso ainda existisse ou se encontrasse a disputar competições de futebol organizado – que, também, deverá aplicar o valor recebido exclusivamente ao desenvolvimento do futebol de formação.

São estas as consequências jurídicas que resultam do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA, em particular o seu Anexo 5, referente, precisamente, ao mecanismo de solidariedade.

Citando a apelante:

“Com efeito, o artigo 2. do Anexo 5 refere-se ao processo de pagamento do mecanismo de solidariedade, sendo que, o n.º 3 deste artigo 2. refere o seguinte:

“An association is entitled to receive the proportion of solidarity contribution which in principle would be due to one of its affiliated clubs, if it can provide evidence that the club in question – which was involved in the professional’s training and education – has in the meantime ceased to participate in organized football and/or no longer exists due to, in particular, bankruptcy, liquidation, dissolution or loss of affiliation. This solidarity contribution shall be reserved for youth football development programmes in the association(s) in question.”

Ora, neste conspecto, lançando mão de uma tradução livre, a referida norma dispõe o seguinte:

“A associação tem o direito de receber a parte da contribuição de solidariedade que, em princípio, seria devida a um dos seus clubes afiliados, se puder provar que o clube em questão - que esteve envolvido na formação e educação do jogador profissional – deixou entretanto de participar no futebol organizado e / ou já não existe devido, em especial, a insolvência, liquidação, dissolução ou perda de filiação. Esta contribuição de solidariedade será reservada para programas de desenvolvimento do futebol juvenil na (s) associação (ões) em causa.”

Ora, dúvidas não restarão que, à Federação, é devida a entrega da contribuição de solidariedade por parte do “novo” clube do jogador – o que adquiriu os direitos desportivos do mesmo -, para investimento em programas de desenvolvimento do futebol de formação. E, com o devido respeito, ao contrário do que afirma o Tribunal a quo, tal direito não poderá estar dependente do facto de determinado clube ser declarado insolvente antes ou depois da transferência do jogador.

Aliás, a análise da norma supra referida, não permite sequer retirar essa conclusão. O intuito dos valores a “ratear” pelos clubes formadores de determinado jogador, é o fomento do futebol de formação e é com esse intuito que o aludido regulamento da FIFA criou o referido mecanismo de solidariedade, sendo que, a aplicação de tal Regulamento deve ter sempre esse facto subjacente (…) Cumprirá nesta sede aludir a uma aparente contradição do Tribunal a quo. Com efeito, entende o Tribunal a quo que o valor em questão e alegadamente devido à Massa Insolvente, o é em virtude de estar previsto no RSTP.

Ou seja, o Tribunal a quo lança mão da aplicação de uma norma de um regulamento da FIFA para sustentar a origem e existência de um direito da Massa Insolvente. Porém, quando se discute e se alega que, em virtude de tal Regulamento – o mesmo em que o Tribunal a quo sustenta a existência do crédito – o valor devido a título de mecanismo de solidariedade deve ser entregue à ora Recorrente – como Federação do país do clube que in casu se encontra Insolvente e sem participar em competições de futebol organizado – entende o Tribunal a quo que a referida norma não é aplicável ao caso concreto porquanto o alegado crédito já existia aquando da declaração de insolvência.

Ora, com o devido respeito, tal interpretação não nos parece razoável do ponto de vista teleológico da norma em concreto e do regime que está na base da criação do mecanismo de solidariedade. Com efeito, fazer depender o destinatário do valor devido a título de mecanismo de solidariedade do momento de uma eventual declaração de insolvência, criará, como é bom de ver, situações de desigualdade e aleatoriedade que prejudicará o fim último do referido mecanismo.

Ou seja, não pode o RSTP servir de fundamento para alegar a existência de determinado crédito, mas já não se aplicar a norma do mesmo RSTP que dispõe que o valor não é devido à Massa Insolvente, como sucede no caso sub judice, como ficou supra demonstrado.

Por outro lado, o Tribunal a quo, e bem assim, a Ilustre Administradora Judicial deveriam ter tido o cuidado de interpelar o C... para proceder ao pagamento do valor que entendiam devido à Massa Insolvente, sendo que, sempre se dirá, entende a ora Recorrente que o referido valor deveria ser entregue – como foi – pelo C... à Federação Portuguesa de A... , ora Recorrente.

Neste conspecto, cumprirá referir que o C... entregou à aqui Recorrente o valor de € 98.775,00 (noventa e oito mil setecentos e cinco euros) respeitante ao Mecanismo de Solidariedade relativo ao jogador D... , como aliás a Recorrente informou os autos em requerimento que deu entrada nos autos em 10 de Maio de 2021, daí que não se alcance o porquê de o Tribunal a quo afirmar no Despacho Recorrido o seguinte:

“Por outro lado, não se conseguiu ainda obter nenhuma documentação comprovativa por parte da FPF sobre o exato montante ou a concreta data de recebimento de valores efetuados pelo C... em virtude do Mecanismo de Solidariedade.”

Por outro lado, sempre se dirá que é o próprio Tribunal a quo que afirma que “A FPF, entretanto, veio aos autos, ainda no ano de 2019, informar que não tinha recebido nenhum valor”, pelo que, não colhe o argumento de que a FPF não prestou nos autos os esclarecimentos devidos, registando-se também nesta sede, a contradição do Tribunal a quo.

Prosseguindo,

Salvo o devido respeito, andou bem o C... ao ter decidido, em data recente – 22 de Março de 2021 – entregar à aqui Recorrente o valor relativo ao mecanismo de solidariedade referente à transferência do jogador D... , na sequência de transferência deste do E... para o C... .

Com efeito, todos os clubes – portugueses ou estrangeiros, desde que sob a égide da FIFA e desde que esteja em causa uma transferência internacional - têm de cumprir o RSTP no que diz respeito ao pagamento de montantes respeitantes ao mecanismo de solidariedade.

Acresce que, como ficou já supra demonstrado, se o clube deixou de participar no futebol organizado e / ou já não existe devido, em especial, a insolvência, liquidação, dissolução ou perda de filiação, o valor é entregue à federação respetiva para investimento em futebol de formação. E, no caso concreto, verificaram-se ambos os eventos, porquanto, se por um lado, é inequívoco que a Associação B... se encontra insolvente, é também claro que não participa em competições de futebol organizado desde data anterior à declaração de insolvência.

Com efeito, a Associação B... deixou de participar em futebol organizado na época desportiva de 2018/2019, sendo a última época em que participou a época de 2017/20182. Neste sentido, encontram-se preenchidos ambos os requisitos – sendo que bastaria um, por não se tratar de requisitos cumulativos – para que o valor relativo ao mecanismo de solidariedade referente à transferência supra referida seja devido à aqui Recorrente.

E como é afirmado pelo Despacho recorrido, a insolvência da Associação B... foi declarada em Fevereiro de 2019, tendo a transferência de D... do E... para o C... ocorrido em Maio de 2018 – facto que se contesta, porquanto o período de registo de transferências de jogadores entre clubes de futebol decorre entre Julho e Agosto e em Janeiro, de cada ano, como é facto público e notório – sendo que, a Associação B... não mais participou em competições - Conforme comprovativos de consulta da Plataforma Score da Recorrente, de que se juntam cópias e e dão por reproduzidas para todos os efeitos legais – Documentos n.ºs 2 e 3 - de futebol organizado, a partir do momento em que se realizou a transferência, facto, aliás, de que a ora Recorrente já deu conta nos autos.

Neste conspecto, o C... fez, assim, o que era devido face ao Regulamento a que estão ambos vinculados – a que, aliás, a Associação B... estava também vinculada, pelo que, não só fica plenamente demonstrado que o montante é devido à FPF como também que não lhe é possível nem sequer devido o depósito do valor em conta da massa insolvente”.

Concordamos.

O n.º 3 do artigo 2. do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA, impede que o valor transferido e referente ao mecanismo de solidariedade, faça parte do património do devedor à data da declaração de insolvência ou que seja adquirido na pendência do processo.

É verdade, que o direito a receber o valor referente ao mecanismo de solidariedade por parte da Associação B... , surge por aplicação e conforme previsto no RSTP da FIFA, mas, extinguiu-se quando o Clube deixou de participar em futebol organizado, nomeadamente com a declaração de insolvência- mesmo que estivesse apreendido nos autos, a ora apelante poderia, sempre, lançar mão dos mecanismos previstos na norma do artigo 141.º n.º 1 do CIRE.

Assim, com todo o respeito, revogamos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra, que determinava à Apelante a entrega à Massa Insolvente  da Associação B... , do valor de € 98.775,001 (noventa e oito mil setecentos e setenta e cinco euros), relativo ao mecanismo de solidariedade referente à transferência do jogador D... , na sequência de transferência deste, do E... para o C... .

(…)

3. Decisão

Assim, na procedência da instância recursiva, revogamos a decisão proferida pelo Juízo Comercial de Coimbra – J1.

Custas pela massa insolvente.

Coimbra, de 26 de Outubro de 2021

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(António Freitas Neto – 1.º adjunto)

(Paulo Brandão - 2.º adjunto)