Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2650/22.5T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
ÓNUS DE PROVA DO CUMPRIMENTO DOS DEVERES DE INFORMAÇÃO E ESCLARECIMENTO DA CONTRAPARTE
DECORRENTES DO PREVISTO NOS ARTS. 8º E 26º
RESPETIVAMENTE
DO DL Nº 74-A/2017 DE 23/06
RETOMA DO CONTRATO DE CRÉDITO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 334.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 8.º, 26.º E 28.º, DO DL 74-A/2017, DE 23/6
Sumário:
I – O ónus de prova do cumprimento dos deveres de informação e esclarecimento da contraparte, decorrentes do previsto nos arts. 8º e 26º, respetivamente, do DL nº 74-A/2017 de 23/06 [onde se estabelece o regime dos contratos de crédito relativos a imóveis], competia à mutuante/exequente.

II – Até se alude a esse propósito a uma “inversão do ónus da prova”, como expressa e literalmente preceituado no art. 36º do diploma em referência.

III – Tendo a mutuária/executada exercido tempestivamente o direito à “retoma do contrato de crédito”, ao abrigo do regime previsto no art. 28º do mesmo normativo, no final do ano de 2022, devia a Exequente tê-la informado e/ou esclarecido, na imediata sequência, da procedência ou improcedência da pretensão de “retoma do contrato” manifestada pela Executada, nomeadamente informando-a e esclarecendo-a do ainda necessário para operar positivamente a retoma do contrato de crédito, sendo disso caso.

IV – Donde, não tem a Exequente direito a não considerar verificadas as condições para a “retoma do contrato”.

V – Acresce que, nessas circunstâncias, isto é, de indefinição/silêncio da Exequente, a Executada prosseguiu pontualmente com o cumprimento contratual, até que em Maio de 2023 a Exequente vem sustentar – perante o Agente de Execução! – que nada do recebido significa aceitação da sua parte na “retoma legal do crédito”, pretensão esta que se afigura ser efetivamente excessiva e desproporcionada face ao iter de pagamentos da Executada, mormente tendo presente que o contrato de crédito, no valor de € 42.397,82, foi celebrado em 1998, tinha uma duração de 25 anos, só tendo surgido, ao que é dado saber, problemas na fase final do mesmo, quando o crédito da Exequente, de capital, estava reduzido a pouco mais de € 5000.

VI – Nesta ponderação, também deve ser-lhe negada essa pretensão com base no instituto do abuso do direito.

Decisão Texto Integral:
Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                           *

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                           *

1 – RELATÓRIO

Em autos de Execução Sumária para pagamento de quantia certa movidos em 21/11/2022 por “Banco 1..., S.A.” contra AA e outra, sendo o valor da execução de € 7.108,43, com referência a um contrato de mútuo com hipoteca do valor de € 42.397,82, celebrado no dia 13.05.1998, deduziu a identificada executada incidente de retoma do contrato de crédito [art. 28.º do DL n.º 74-A/2017, de 23/06], através de requerimento com a ref. 9463544, entrado em 10/02/2023, por meio do qual alega, em síntese, que procedeu à entrega de quantias que totalizam 2.531,26 €, sendo que a quantia de 2.000 € (liquidada em 22/11/2022) resultou da indicação dada ao balcão e a quantia de 531,26 € (liquidada em 26/12/2022) resultou de indicação dada “pela I. Mandatária dos valores ainda falta”.

A Exequente, em resposta, entrada em 27/02/2023, alegou apenas que a quantia de 2.000 € não foi imputada ao pagamento do contrato porque não era suficiente.

Não obstante, a exequente, posteriormente, em Maio/2023, remeteu uma comunicação ao AE (ref. 9713091), mediante a qual afirma que foi aplicada a quantia global de 1.531,26 € à divida da executada, nos termos ali mencionados, afirmando-se que as “entregas são efectuadas por conta da quantia exequenda, sendo certo que as mesmas não consubstanciam aceitação da exequente na retoma legal do crédito”.

Por despacho judicial proferido na oportuna sequência sobre este incidente, o Exmo. Juiz de 1ª instância concluiu no sentido de que «(…) julga-se procedente o incidente de retoma do contrato e, consequentemente, declara-se extinta a presente execução».

                                                           *

Inconformada com essa sentença, apresentou a Exequente recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«I. Constitui tema nuclear do presente recurso a questão de saber se, estão verificados os pressupostos para a retoma do contrato, nos termos do artigo 28º do DL nº 74-A/2017, diploma que transpõe parcialmente a Diretiva 2014/17/UE, relativa a contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação.

II. Decidiu o douto Tribunal julgar extinta a execução, porquanto entendeu que se encontravam verificados os requisitos para aplicação do disposto no DL nº 74-A/2017, o que não concorda a Recorrente, conforme explanará infra.

III. Conforme teor do Acórdão da Relação do Porto de 11/01/2022, disponível em www.dgsi.pt, é referido o seguinte:

I - A retoma do contrato de crédito, ao abrigo do regime previsto no art.º 28.º DL n.º 74-A/2017 de 23.06, verifica-se nas circunstâncias expressa nos art.º 2.º de tal diploma legal.

II – A retoma de contrato de crédito é um incidente, previsto em legislação avulsa, enxertado no processo executivo, que pode ser ou não deduzido por meio de embargos à execução e no seu prazo, podendo sê-lo, como um incidente inominado, no próprio processo executivo, até à venda do imóvel.

III - Além disso, a retoma do contrato pode ocorrer extrajudicialmente, por acordo entre credor e devedor, sendo que, neste caso, não carece da verificação dos requisitos previstos na lei, nomeadamente quanto à natureza do crédito.

IV – Os pressupostos cuja verificação é necessária para a retoma do contrato constam expressamente do art.º 28.º do supra referido DL., entre eles desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas e que seja possível manter o contrato de crédito em vigor nos exactos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento.

V – Não age em abuso de direito o banco mutuante que nunca criou na executada qualquer expectativa de que se encontraria uma solução para a situação, que não fosse a liquidação da totalidade do capital mutuado ainda em dívida, e bem ciente desta situação, a executada, por “motu proprium” continuou a provisionar a conta associada ao contrato de mútuo, o que foi fazendo depósitos com o intuito de pagar, parcialmente, a dívida, não obstante o banco mutuante sempre a ter alertado de que a liquidação parcelar da dívida não resolvia a situação de incumprimento. (sublinhado nosso).

IV. Procedeu a Recorrida AA à junção aos autos, de comprovativos de depósito bancário, de natureza voluntária, juntando para o efeito declarações manuscritas, datadas e assinadas por si, que alegadamente terão sido entregues à aqui Recorrente.

V. As declarações juntas pela Executada não se encontram devidamente carimbadas e assinadas pela Recorrente, não fazendo, por conseguinte, prova de que foram as mesmas entregues e recepcionadas pela aqui Recorrente, muito menos com o efeito espelhado na douta sentença, ou seja, para retoma do contrato de crédito peticionado.

VI.Em 05/05/2023, a ora Recorrente juntou requerimento aos autos, a informar que foi aplicado o montante total de €1.531,26 (mil quinhentos e trinta e um euros e vinte e seis cêntimos) à divida da executada no contrato de mútuo n.º ..., fazendo referência que as entregas efetuadas o foram por conta da quantia exequenda, sendo certo que as mesmas não consubstanciam aceitação da exequente/recorrida na retoma legal do crédito nem que estas foram efetuadas por conta de qualquer acordo de pagamento. (sublinhado nosso).

VII-O ónus de prova do pagamento dos valores das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante/recorrente tenha incorrido, impendia sobre a Executada, que não logrou efectuar tal prova, pelo não deveria assim, a sentença recorrida como fez, extinguir a execução.

VIII. Em função dos factos provados, deveria o Tribunal a quo ter proferido decisão diversa da extinção da execução.

IX. Sucede, que o valor liquidado pela Executada não foi suficiente para pagamento dos valores em divida.

X- Com efeito, os pagamentos realizados não foram suficientes para liquidar os valores em divida, com vista à retoma do contrato, pois ao mesmo acrescerá sempre as despesas em que o mutuante/recorrente tenha incorrido, conforme previsto no documento complementar anexo ao contrato de mútuo junto aos autos como titulo executivo, designadamente nas cláusulas oitava (Incumprimento) e nona (Despesas).

XI-Nem tão pouco se podem considerar como regularizados todos os montantes em divida, pelo facto da Executada efetuar depósitos autónomos.

XII- As despesas em que a Recorrente incorreu, designadamente com os honorários e despesas do Sr. Agente de Execução, não ficaram assegurados com o pagamento efetuado pela Executada, despesas que se encontram efetivamente documentadas e juntas aos autos.

XIII. A Recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida por entender que a mesma aplicou o Decreto-Lei n.o 74-A/2017 ao presente casu, quando não se encontravam verificados os pressupostos (cumulativos), para aplicação do regime legal, designadamente: …” o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.”

XIV. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da lei, em violação do disposto no nº 1 do artigo 28º do Decreto-Lei n.o 74-A/2017, nº 4 do artigo 607º, e alínea d) do nº 1 do artigo 615º, todos do Código de Processo Civil.

XV. A Recorrente não se conforma com a decisão do tribunal de 1ª instância, que motivou a extinção da execução quanto à Executada.

XVI. Pelo que, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra em que seja proferida decisão que determine o prosseguimento dos presentes autos.

XVII- Entende assim a ora Recorrente, que o Tribunal fez uma aplicação errada das normas jurídicas aplicáveis aos factos em causa in casu, incorrendo assim num desvio da realidade factual ou jurídica, por falsa representação da mesma, ou erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito.

XVIII. Não obstante, sempre a douta decisão merecerá censura, devendo ser Revogada e substituída por outra que se pronuncie no sentido da não verificação dos pressupostos para aplicação do regime legal ínsito no Decreto-Lei n.o 74-A/2017, julgando por conseguinte improcedente a o pedido de retoma do contrato requerido pela executada, por não reunir os respetivos pressupostos legais para aplicação do mesmo, prosseguindo os autos os ulteriores termos até final, para liquidação dos valores ainda em divida junto da Recorrente.

NESTES TERMOS,

Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida.

Como é de lei e de JUSTIÇA!»                                                    

                                                                       *

            A Executada AA apresentou contra-alegações que concluiu no sentido de que devia ser “confirmada” a data de 22 de Novembro de 2022 como a data da “retoma do contrato”, confirmando-se a sentença proferida.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Exequente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: incorreto julgamento de direito porquanto, ao contrário do decidido, não estavam verificados os pressupostos para a retoma do contrato, nos termos do artigo 28º do DL nº 74-A/2017 de 23/06.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é, essencialmente, a que consta do precedente relatório, para o qual se remete, por economia processual.

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre entrar sem mais na apreciação da questão supra enunciada, diretamente reportada ao mérito da decisão, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito porquanto, ao contrário do decidido, não estavam verificados os pressupostos para a retoma do contrato, nos termos do artigo 28º do DL nº 74-A/2017 de 23/06.

Rememoremos antes de mais o disposto neste normativo, a saber:

                                               «Artigo 28.º

                                            Retoma do contrato de crédito

1 - O consumidor tem direito à retoma do contrato no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação abrangidos pelo presente decreto-lei ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.

2 - Caso o consumidor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento.

3 - O mutuante apenas está obrigado a aceitar a retoma do contrato duas vezes durante a respetiva vigência.»

Que dizer?

Abreviando razões, que inequivocamente improcede a argumentação recursiva.

Senão vejamos.

A decisão recorrida foi do seguinte teor:

«(…)

No caso concreto, e afigurando-se também não existirem aqui dúvidas quanto à integração do “contrato” dos autos no âmbito do aludido DL n.º 74-A/2017, de 23/06 (tal como no PERSI: “consumidor” e contrato de crédito para aquisição de habitação própria e permanente e, em qualquer caso, garantido por hipoteca – art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e c) do DL n.º 74-A/2017), verifica-se que está patente nos autos que a executada manifestou pretender a retoma do contrato (cfr. ainda o manuscrito datado de 22/11/2022, anexo ao requerimento ref. 9436544, com menção expressa do aludido art. 28.º), o que fez ainda antes da instauração da execução (junto da própria exequente), mas afigurando-se poder a questão ser agora considerada processualmente, atento o requerimento em apreço, apresentado no prazo da oposição à execução (a executada foi citada em 23/01/2023 – ref. 9418300 da execução –, sem prejuízo ainda da interrupção do prazo decorrente do pedido de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono).

Por outro lado, a executada alega que procedeu à entrega de quantias que totalizam 2.531,26 €, sendo que a quantia de 2.000 € resultou da indicação dada ao balcão e a quantia de 531,26 € resultou de indicação dada “pela I. Mandatária dos valores ainda falta”, sendo que a exequente alegou apenas que a quantia de 2.000 € não foi imputada ao pagamento do contrato porque não era suficiente, embora se verifique que a exequente, posteriormente, em Maio/2023, remeteu uma comunicação ao AE (ref. 9713091), mediante a qual afirma que foi aplicada a quantia global de 1.531,26 € à divida da executada, nos termos ali mencionados, afirmando-se que as “entregas são efectuadas por conta da quantia exequenda, sendo certo que as mesmas não consubstanciam aceitação da exequente na retoma legal do crédito”.

Cabe salientar que não existem elementos documentais que permitam identificar exactamente qual o valor que estaria em dívida em cada momento para efeitos do art. 28.º do DL n.º 74-A/2017 (entenda-se, para efeitos do pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas), sendo que a exequente limitou-se a afirmar que a quantia de 2.000 € não era suficiente, ainda que posteriormente tenha reconhecido a entrega de outros valores, mas que não os aludidos 2.000 € (tendo presente o quadro apresentado na ref. 9713091, trata-se da quantia de 531,36 € que a própria executada mencionou, e de outras subsequentes quantias no valor de 250 € - que a executada alegou corresponder à prestação mensal e que a própria também afirmou estar a pagar).

Portanto, a exequente alega que a quantia de 2.000 € não era suficiente e aparentemente não “aplicou” essa quantia (mais referindo, em 02/2023, que tal quantia ainda estava disponível em saldo), mas reconheceu o pagamento de 531,26 € também invocado pela executada (efectuado em 12/2022, cerca de um mês depois do pagamento da quantia de 2.000 € e da instauração da execução), sem nada alegar sobre se o valor global de 2.531,26 € era ou não suficiente, à data, para a liquidação dos valores vencidos (não se trata da quantia em dívida por via da resolução, mas das prestações vencidas segundo o plano normal de amortização e os demais acréscimos) e/ou o que fosse relevante a esse respeito.

Todavia, em rigor, entende-se que se deve considerar que a exequente não impugnou o que vem alegado pela executada na ref. 9463544 (requerimento inicial do incidente ora em causa) quanto ao montante de 531,26 € corresponder aos valores ainda em falta quanto ao contrato (após a entrega da quantia de 2.000 € e em conjunto com esta, a qual a exequente afirmou, em 02/2023, estar em saldo) tal como indicado por uma “I. Mandatária”, sendo que aquele valor (531,26 €) consta efectivamente no documento (tabela) anexo ao requerimento, que a exequente também não colocou em causa, pelo que se afigura estar assente, face à não impugnação da exequente, que assim sucedia (arts. 293.º, n.º 2, e 574.º do CPC). Mais, a afirmação da executada quanto ao crédito estar “em dia”, à data do requerimento, após o pagamento de 2.531,26 € + 250 €, também não mereceu qualquer impugnação da exequente, a qual também não procedeu à indicação de quaisquer outros valores que fossem devidos.

Ora, entende-se que cabia à exequente prestar nos autos as eventuais informações necessárias para operar a retoma do crédito (v.g., caso o pagamento total devido não fosse 2.531,26 €, à data de Dezembro/2022 – em rigor, mesmo antes da instauração da execução, afigura-se que tal deveria ter sucedido extraprocessualmente, face ao então pretendido pela executada), o que não fez (limitando-se a afirmar que a quantia de 2.000 € não era suficiente, sem esclarecer qual seria, então, o valor necessário, o que lhe é imputável), sendo que, por outro lado, não colocou em causa que, em Dezembro/2022, o pagamento adicional de 531,26 € era suficiente para a liquidação dos valores ainda em falta, segundo alegado pela executada.

Com o devido respeito, não é aceitável nem adequado que a exequente, no circunstancialismo acima referido, nada diga quanto ao que vem alegado pela executada, sendo matéria que a exequente não podia desconhecer ou deixar de tomar posição no âmbito do incidente em causa, o que não fez (e, por isso, deve levar à admissão dos factos invocados pela executada), e só posteriormente, em 05/2023, se arrogue na possibilidade de vir manifestar nos autos, consoante o seu entendimento, que inexiste qualquer retoma do crédito e que se tratam de meros pagamentos por conta – repare-se, aliás, que, até Abril/2023, a executada terá entregue à exequente a quantia total de 3.531,26 € (2.000 € + 1.531,26 €).

Acrescenta-se que se entende não caber ao Tribunal efectuar qualquer tipo de diligência probatória a respeito da matéria, sendo certo que a exequente não indicou qualquer outra prova no âmbito do incidente em causa, valendo os princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, sob pena da intervenção oficiosa em termos probatórios (adicionais) poder alterar o equilíbrio de interesses (v.g.: “Não cabe ao juiz substituir-se à parte no pedido de realização de diligências probatórias, sob pena de se violar o princípio da igualdade das partes no processo”, “Se a parte podia ter requerido, com toda a largueza e possibilidade, certa diligência probatória e não o fez, sibi imputet” – Ac. da RC de 24/05/2022, disponível em www.dgsi.pt).

Nesta sequência, entende-se estar alegado e demonstrado que, pelo menos à data acima mencionada, se verificam os requisitos previstos no art. 28.º, n.º 1, do DL n.º 74-A/2017, para a retoma do crédito, devendo ser declarada extinta a execução em conformidade – ou, no limite, com o devido respeito, apenas não se verificará o pagamento (a que alude a segunda parte do aludido normativo) por facto imputável à exequente (que não prestou informação cabal para que o incidente pudesse ser apreciado diversamente), inviabilizadora então da retoma do contrato de crédito por parte da executada (mutuária), enquanto direito imperativo que lhe assiste nos termos do art. 35.º do DL n.º 74-A/2017.

Perante tal situação, entende-se estar verificado fundamento para extinção da presente execução, por retoma do contrato de crédito ao abrigo do art. 28.º do DL n.º 74-A/2017, pelo menos à data acima mencionada – ou, no limite, caso se equacionasse que não houve pagamento total, afigura-se que haveria concluir pela verificação de uma (outra) excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente também à extinção da execução (por ausência de informação sobre os valores que seriam devidos, inviabilizadora da retoma do contrato de crédito por parte da executada, enquanto direito imperativo que lhe assiste (cfr., quanto a uma tal excepção, o Ac. da RC de 28/03/2023, disponível em www.dgsi.pt) –, pelo que importa decidir em conformidade, notando-se apenas que se entende que tal decisão deve aproveitar, em termos lógicos, à co-executada BB (fiadora), quer por via da retoma do contrato de crédito, quer por via da subsidiária excepção dilatória inominada que respeita à “generalidade” da execução, se assim se pode dizer.

Face ao exposto, com os fundamentos acima postos e nessa exacta medida, i) não se julga oficiosamente verificada a excepção dilatória (PERSI); ii) julga-se procedente o incidente de retoma do contrato e, consequentemente, declara-se extinta a presente execução.

Fixa-se a taxa de justiça quanto ao primeiro incidente (PERSI) no mínimo legal, mas não são devidas custas pela executada AA (art. 527.º do CPC), atento o apoio judiciário concedido. Fixa-se a taxa de justiça do segundo incidente (retoma) no mínimo legal, que é a cargo da exequente (art. 527.º, n.º 1, do CPC). Não são aplicáveis outras custas a cargo da exequente ou da executada nesta fase dos incidentes. O valor da acção dos incidentes é o valor da execução (arts. 297.º, n.º 1, 304.º, n.º 1, e 306.º do CPC).

Registe e notifique. Após trânsito, com essa menção, comunique ao AE. DN.»

Ora, compulsando as alegações recursivas não pode deixar de se constatar que a Exequente ora recorrente nada aduz – em concreto e especificamente – para contrariar uma tal linha de argumentação [quanto a não ter impugnado oportunamente os pagamentos/entregas feitas pela Executada e sua suficiência para efeitos da reclamada/pretendida, por esta, “retoma do contrato”].

O que, salvo o devido respeito, bem se compreende, na medida em que não lograria êxito se tivesse optado por tal desiderato.

Na verdade, quanto a nós, seria manifestamente caso para se concluir pelo incumprimento do dever de informação e esclarecimento da contraparte, decorrentes do previsto nos arts. 8º e 26º[2], respetivamente, do DL nº 74-A/2017 de 23/06 em referência.

É que, revertendo ao caso ajuizado, constata-se que a Executada ao fazer o pagamento de € 2.000 em 22 de Novembro de 2022, solicitou, literalmente, que tivesse lugar a “retoma contratual do contrato” em causa, ao abrigo do DL nº 74-A/2017, mais dizendo que procedia «(…) à entrega  do valor de 2000 € para o efeito» [cf. fls. 89].

E quando na sequência, em 26 de Dezembro de 2022, procedeu ao pagamento dos € 531,26, dizendo que era para ser aplicado no crédito em causa, expressamente aludiu que era «(…) para pagamento do montante em dívida» [cf. fls. 91].

A esta luz, não se compreende nem pode aceitar que a Exequente não a tenha informado e/ou esclarecido, na imediata sequência de cada uma das situações, da procedência ou improcedência da pretensão de “retoma do contrato” manifestada pela Executada, nomeadamente informando-a e esclarecendo-a do ainda necessário para operar positivamente a retoma do contrato de crédito, sendo disso caso.

Atente-se que o ónus de prova do cumprimento desses deveres competia à Exequente ora recorrente, até se aludindo a esse propósito a uma “inversão do ónus da prova”, como expressa e literalmente preceituado no normativo em apreciação[3], sendo certo que a mesma nada alegou nesse sentido – no quadro da pretendida/reclamada “retoma do contrato” –, nem nada resulta de específico e concreto dos documentos constantes dos autos.

Só o vindo a fazer em de Maio de 2023 [cf. fls. 97 vº]…

Acresce ainda, e nesta parte em reforço do que consta da decisão recorrida, que a liquidação do montante de € 531,26 como sendo o devido pela Executada à data de 31/12/2022 foi efetuada e é do timbre da própria Exequente – é o que se retira do confronto do doc. de fls. 92 vº, conjugado com a afirmação do Agente de Execução de que esse era um “Doc. CEMG” [leia-se, da Exequente “Banco 1..., S.A.”]

O que nada foi impugnado…

Ora se assim é, naufraga insofismavelmente a alegação da Exequente, também reiterada em sede das suas alegações recursivas, de que «(…) não se encontram reunidos ou cumpridos todos os requisitos previstos no diploma legal mencionado supra».

Atente-se que se havia efetivamente despesas em que a Exequente ora recorrente incorreu, designadamente com os honorários e despesas do Sr. Agente de Execução, que não teriam ficado assegurados com o pagamento efetuado pela Executada, competia à Exequente, com transparência e diligência, comunicá-lo oportunamente, rectius, imediatamente, à Executada!

Mas mesmo que assim se não entendesse, cremos que a igual conclusão – sobre não ter a Exequente/recorrente direito a não considerar verificadas as condições para a “retoma do contrato” – importaria chegar, por força de estar essa posição/pretensão da Exequente a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, nos termos previstos no art. 334º do C. Civil, donde dever ser-lhe negada essa pretensão com base no instituto do abuso do direito.

Senão vejamos.

Num sistema jurídico de check and balances, valorizando o critério de Justiça do caso concreto, o aplicador da lei pode realizar um escrutínio da especificidade da situação jurisdicional colocada à apreciação.

E na hipótese vertente, ao realizar a análise de todo o cenário de litigância, essa é a conclusão a que não se pode deixar de chegar.

No que respeita ao particular instituto de abuso de direito, estabelece o art. 334º do C.Civil que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Conforme vem sendo admitido pela nossa Jurisprudência, sob pena de se esvaziar de conteúdo o instituto do abuso de direito, sempre que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa-fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, importará reconhecer uma situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape, consagrada no nosso ordenamento jurídico.[4]

 Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser o exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.[5]

A conceção adotada de abuso do direito é a objetiva.

Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites.

Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º do C.Civil sejam alheios fatores subjetivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido.

A este propósito já foram doutamente abreviadas em seis tipologias (a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, [são figuras baseadas nos mesmos fenómenos - decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança - mas de sentido inverso, na medida em que no primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício, ao passo que no segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria], o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas) as situações em que o instituto do abuso de direito poderá ocorrer e que nos permitirão, ao cabo e ao resto, ajustar padrões de atuação adequados a corporizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está sustentado o instituto do abuso do direito.[6]

Ora é isso que não se consegue concluir no caso vertente relativamente à Exequente ora recorrente, na medida em que nada comunicou nem esclareceu a Executada sobre a aceitação/procedência da “retoma do crédito” por esta reclamada no final do ano de 2022, a qual pagou o que de boa fé julgava ser o devido para esse efeito.

Acresce que, nessas circunstâncias, isto é, de indefinição/silêncio da Exequente, a Executada prosseguiu pontualmente com o cumprimento contratual, até que em Maio de 2023 a Exequente vem sustentar – perante o Agente de Execução! – que nada do recebido significa aceitação da sua parte na “retoma legal do crédito”.

Tal pretensão afigura-se-nos efetivamente ser excessiva e desproporcionada face ao iter de pagamentos da Executada, mormente tendo presente que o contrato de crédito, no valor de € 42.397,82, foi celebrado em 1998, tinha uma duração de 25 anos, só tendo surgido, ao que é dado saber, problemas na fase final do mesmo, quando o crédito da Exequente, de capital, estava reduzido a pouco mais de € 5000.

Admitir o direito à Exequente ora recorrente a tal reclamar, nomeadamente de persistir a resolução do contrato que operou e de ter lugar a prossecução da execução, seria tutelar uma situação que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.

Deste modo, e sem necessidade de outros considerandos, entendemos que “in casu” não pode ser tutelada a posição da Exequente.

Nestes termos improcedendo inapelavelmente o recurso.

                                                           *

(…)

 

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6 - DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença decisão nos seus precisos termos.

Custas do recurso pela Exequente/recorrente.                                                                                                                    Coimbra, 9 de Abril de 2024

                                                            Luís Filipe Cravo

                                                          Fernando Monteiro

                                                      João Moreira do Carmo





[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Moreira do Carmo

[2] Cf. «Artigo 8.º
Dever de informação
A informação a prestar pelos mutuantes e, sendo o caso, pelos intermediários de crédito no âmbito da negociação, celebração e vigência dos contratos de crédito regulados no âmbito do presente decreto-lei deve ser completa, verdadeira, atualizada, clara, objetiva e adequada aos conhecimentos do consumidor individualmente considerado, estando os mesmos obrigados a disponibilizá-la aos consumidores de forma legível.»;
«Artigo 26.º
Designação do cumprimento do contrato
1 - O consumidor pode designar a prestação correspondente ao crédito, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 783.º do Código Civil.
2 - O mutuante deve informar o consumidor, em linguagem simples e clara, das regras de imputação aplicáveis na falta da designação prevista no número anterior.

3 - Após prestar o esclarecimento previsto no número anterior, o mutuante interpela o consumidor para fazer a designação prevista no n.º 1.»

[3] Cf. o disposto no art. 36º do diploma em referência, com a epígrafe de “Inversão do ónus da prova”, no qual se preceitua que «Compete ao mutuante e, se for o caso, ao intermediário de crédito, fazer prova do cumprimento das obrigações previstas no presente decreto-lei.»


[4] Assim no acórdão do STJ de 11.02.2015, proferido no proc. nº 174/12.8TBLGS.E1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Neste sentido, vide FERNANDO AUGUSTO CUNHA E SÁ, in “Abuso do Direito”, 1973, Lisboa, a págs. 164-188.

[6] Assim por ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra, Livª Almedina, a págs. 249-269.