Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1120/22.6T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ALIMENTOS PAGOS A MENOR
PERFILHAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA PATERNIDADE
EFEITOS DA SENTENÇA
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 473.º, 474.º, 476.º, N.º 1, E 2003.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Não há lugar à restituição, por enriquecimento sem causa, das quantias pagas pelo autor a título de alimentos a uma menor, por ele perfilhada – ficando aquela, por isso, registada como sendo sua filha –, se vem depois a verificar-se, em ação de impugnação da paternidade, que a menor não é filha de tal autor.

II – No nosso direito, não são de restituir os alimentos, provisórios ou definitivos, indevidamente recebidos.

III – A sentença de impugnação de paternidade só vale para o futuro (não tem efeitos ex tunc) e, como tal, não confere o direito ao impugnante de reaver as quantias pagas a título de alimentos àquele que era considerado como seu filho.

IV – No caso, a prestação dos alimentos assentou em causa justificativa: a sentença de regulação das responsabilidades parentais, no âmbito da qual se fixaram os alimentos devidos à menor, e o facto de o autor ter assumido a paternidade através da perfilhação.

Decisão Texto Integral:

Relator: Arlindo Oliveira
1.º Adjunto: Emídio Francisco Santos
2.º Adjunta: Catarina Gonçalves

            Processo n.º 1120/22.6T8FIG.C1 – Apelação

            Comarca ..., ..., Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, ambos já identificados nos autos, na qual formula o seguinte pedido:

“A R. SER CONDENADA A:

A) RESTITUIR AO AUTOR A QUANTIA DE 16.700,00 € (DEZASSEIS MIL E SETECENTOS EUROS), PAGA POR ESTE A TITULO DE PENSÃO DE ALIMENTOS Á ENTÃO MENOR CC, DESDE MAIO DE 2007 ATÉ MARÇO DE 2021.

B) NO PAGAMENTO DA QUANTIA DE 55,38€, A TÍTULO DE JUROS VENCIDOS, DESDE 01.05.2007,

C) BEM COMO, NO PAGAMENTO DOS JUROS VINCENDOS DESDE A INTERPOSIÇÃO DA PRESENTE AÇÃO ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO, À TAXA LEGAL”.

Alega para o efeito que, sendo casado com DD, durante algum tempo viveu maritalmente com a ré, e dessa relação extraconjugal nasceu em .../.../2004 CC. Na sequência da acção de regulação do exercício do pedir paternal intentada pelo Ministério Público foi fixada a pensão de alimentos na quantia de 100,00 € mensais a pagar pelo autor, pelo que, desde 2007 o autor procedeu ao pagamento desse valor e conviveu com a menor, recebendo-a em sua casa com o consentimento da esposa, que a tratava como se sua filha fosse.

Sucede que a então menor não é filha do autor, o que foi declarado por sentença judicial e

cancelado o registo de paternidade, pelo que o autor não tinha obrigação de pagar alimentos.

A Ré, citada regular e pessoalmente, não contestou, nem interveio de qualquer forma no processo.

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 567º, nº 2 do CPC, tendo o autor apresentado as alegações contantes de fls. 16 v.º, pugnando pela procedência da acção e consequente condenação da ré no pedido.

Após o que foi proferida a sentença de fl.s 17 a 20, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se julgou a presente acção improcedente, por não provada, absolvendo-se a ré do pedido, ficando as custas a cargo do autor, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficia.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso o autor AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 29), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

A. O RECORRENTE É CASADO COM DD, DESDE 03.08.1992.

B. DURANTE O TEMPO EM QUE RESIDIU NA ... O RECORRENTE, TEVE UMA RELAÇÃO EXTRACONJUGAL, DA QUAL NASCEU, EM .../.../2004, CC.

C. O RECORRENTE FOI INFORMADO SER O PROGENITOR DA MENOR E 17.04.2007, O MINISTÉRIO PÚBLICO INTENTOU AÇÃO DE REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL CONTRA ESTE.

D. TENDO SIDO DADO COMO PROVADO, ATRAVÉS DO ASSENTO DE NASCIMENTO, QUE CC, ERA FILHA DO AQUI RECORRENTE E DA RÉ.

E. FOI FIXADO A TÍTULO DE PENSÃO DE ALIMENTOS A QUANTIA DE 100,00€ MENSAIS, COM INICIO A PARTIR DE MAIO DE 2007.

F. O RECORRENTE COMPROVOU QUE A MENOR NÃO ERA SUA FILHA, EM 2020, ATRAVÉS DE RELATÓRIO PERICIAL REALIZADO NO ÂMBITO DO PROCESSO Nº. 4625/20...., POR ESTE INTENTADO PARA O EFEITO.

G. CONSEQUENTEMENTE FOI CANCELADO O REGISTO DE PATERNIDADE.

H. ASSIM DESDE MAIO DE 2007 ATÉ MARÇO DE 2021, O RECORRENTE PAGOU A TÍTULO DE PENSÃO DE ALIMENTOS A QUANTIA GLOBAL DE 16.755,38€, E ATENTO TER-SE PROVADO NÃO SER O PROGENITOR DA ENTÃO MENOR, NÃO TINHA TAL OBRIGAÇÃO.

I. ASSIM O RECORRENTE, ENTENDE QUE HOUVE UM ENRIQUECIMENTO, POR PARTE DA PROGENITORA, À CUSTA DESTE, NUM MONTANTE QUE ASCENDE A 16.755,38€, E PELO QUAL QUER VER-SE RESSARCIDO.

J. SENDO QUE OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO DA PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA DEIXOU DE EXISTIR, COM O RECONHECIMENTO DE QUE O RECORRENTE NÃO É PAI BIOLÓGICO DA CC, E COM ISSO, A RÉ TEM A OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR TUDO O QUE RECEBEU EM VIRTUDE DE UMA CAUSA QUE DEIXOU DE EXISTIR.

K. PELO QUE, DEVERÁ, A RÉ RESTITUIR AO AUTOR A QUANTIA GLOBAL DE 16.755,38€, INDEVIDAMENTE RECEBIDA, ACRESCIDA DE JUROS DE MORA VENCIDOS DESDE 01.05.2007, E VINCENDOS, DESDE A INTERPOSIÇÃO DA PRESENTE AÇÃO ATÉ EFETIVO E INTEGRAL PAGAMENTO À TAXA LEGAL, CONFORME PETICIONADO.

Assim a sentença recorrida aplica deficientemente o Direito ao não considerar existir enriquecimento sem causa. Pelo que, não pode subsistir devendo assim ser revogada, substituindo-se por outra em que se condene a Ré a restituir ao Autor/ Recorrente a quantia peticionada.

TERMOS EM QUE, INVOCANDO O DOUTO SUPRIMENTO DO VENERANDO TRIBUNAL, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E CONSEQUENTEMENTE REVOGADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, ORDENANDO-SE A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE CONDENE A RÉ A RESTITUIR AO AUTOR/ RECORRENTE A QUANTIA PETICIONADA.

PORÉM,

VOSSAS EXCELENCIAS DIRÃO COMO FOR DE JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se a ré deve ser condenada a restituir as quantias que recebeu do autor, a título de alimentos a favor da sua filha CC, a qual se encontrava registada como sendo, também, filha do autor, por perfilhação deste, vindo tal paternidade a ser impugnada, com o consequente cancelamento do respectivo registo de paternidade.

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

1. O Autor casou com DD em 03.08.1992.

2. Contudo, e durante algum tempo em que residiu na ..., conheceu e viveu maritalmente com a aqui Ré.

3. Na vigência dessa relação extraconjugal, nasceu, em .../.../2004, CC.

4. Foi registada como filha da Ré BB e do Autor AA.

5. O registo da paternidade teve como base a declaração prestada, perante o Conservador do Registo Civil, pela Ré BB e pelo Autor no sentido de ser este o pai biológico da Ré CC.

6. Por sentença proferida no âmbito da acção de regulação do poder paternal o nº. 1422/06.... do ... Juízo do Tribunal de Família e Menores ... instaurada pelo Ministério Público foi proferida sentença em 11.05.2007, onde, para além do mais foi fixado a título de pensão de alimentos e face aos rendimentos do Autor, a quantia de 100,00€ mensais.

7. Na sentença proferida no âmbito desses autos, foi dado comprovado, através do assento de nascimento, que CC, era filha do aqui Autor e da Ré.

8. Tendo, em consequência disso, passado o “progenitor” a agir como tal, visitando a menor com frequência, trazendo esta para sua casa, com o consentimento da sua esposa, que tratava esta como se de uma filha se tratasse, já que o casal não tem filhos;

9. Ora, desde essa data (maio de 2007) o Autor começou a proceder ao pagamento do valor que tinha ficado estipulado.

10. Mesmo quando o Autor esteve desempregado, não tendo, por impossibilidade financeira, procedido ao pagamento a que estava obrigado, logo que começou a laborar, foi obrigado a pagar os valores até então em incumprimento.

11. Passando largos meses a proceder ao pagamento de 200,00€ mensais.

12. Acontece, e como já vinha a desconfiar há já alguns anos, a então menor, não é filha do aqui Autor.

13. Acresce que, por sentença proferida no âmbito do processo tutelar comum nº 4625/20.... do Juízo de Família e Menores ... – Juiz ..., o aqui Autor foi declarado como não sendo o pai da então menor CC e, consequentemente foi cancelado o registo de paternidade.

14. Desde maio de 2007 até março de 2021, o Autor pagou a titulo de pensão de alimentos a quantia de 100,00€ mensais.

Se a ré deve ser condenada a restituir as quantias que recebeu do autor, a título de alimentos a favor da sua filha CC, a qual se encontrava registada como sendo, também, filha do autor, por perfilhação deste, vindo tal paternidade a ser impugnada, com o consequente cancelamento do respectivo registo de paternidade.

Entende o autor que assim deve ser decidido, porquanto pagou a peticionada quantia à menor CC, na errónea convicção de que a mesma era sua filha, o que, mais tarde, veio a confirmar não ser verdade, em virtude de se ter demonstrado, na competente acção de impugnação da paternidade que intentou, não ser pai biológico da CC, tendo-lhe pago alimentos, durante anos, sem que, na sua perspectiva, existisse causa justificativa para tal, pretendendo, agora, ser reembolsado das quantias que pagou, com base no instituto do enriquecimento sem causa/repetição do indevido.

Ao invés, na sentença recorrida, não se atendeu a pretensão do autor, com o fundamento em que o pagamento dos alimentos à menor teve como causa justificativa a sentença que os fixou e a tal não obsta a posterior sentença de impugnação da paternidade que não “neutraliza” a que fixou os alimentos.

Ainda que assim se não entenda, sempre a acção teria de improceder, com o fundamento em que o enriquecimento tem de ser actual, no sentido de o enriquecido estar no gozo da deslocação patrimonial ou conhecer a ilegitimidade do enriquecimento, o que nada disto se verifica, uma vez que não se demonstrou que a ré soubesse que o autor não era o pai da CC e porque as prestações efectuadas se destinaram ao sustento e demais necessidades cobertas pela prestação de alimentos, a favor da CC, pelo que já foram consumidas e, por isso, já não existem.

Conforme resulta do disposto no artigo 473.º do Código Civil, aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, a obrigação de restituir o que indevidamente recebeu, ou o que recebeu por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.

Por outro lado, cf. se dispõe no seu artigo 474.º, o instituto do enriquecimento sem causa, tem carácter subsidiário, no sentido de que só a ele se pode recorrer quando a lei não facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.

Consequentemente, para que possa falar-se em enriquecimento sem causa exige-se:

a) a existência de um enriquecimento;

b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem e;

c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

Entendendo-se o enriquecimento como a obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, independentemente da forma que revista.

Em segundo lugar que o enriquecimento careça de causa justificativa, seja porque nunca a teve seja porque, apesar de a ter originariamente/inicialmente, a deixou de ter, a tenha perdido.

Sem esquecer que incumbe ao autor (empobrecido) o ónus da prova da ausência da causa da sua prestação pecuniária, por se tratar de facto constitutivo de quem requer a restituição, pelo que não se contenta a lei em que não se prove a existência de uma causa de atribuição, mais se exigindo a demonstração da falta de causa justificativa. O empobrecido tem de convencer o tribunal da falta de causa – neste sentido, P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, pág. 429 e Acórdão do STJ, de 02/07/2009, Processo n.º 123/07.5TJVNF.S1, disponível no sítio respectivo do Itij.

Acrescentando aqueles autores in ob. cit. (pág.s 428/9), que inexiste causa justificativa para o enriquecimento “… porque, segundo a própria lei, deve pertencer a outra pessoa (…) Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode assegurar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.

(…)

Com vista a abranger todas as situações de enriquecimento injusto, poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento”.

In dúbio, deve considerar-se que a deslocação patrimonial verificada teve justa causa (cf. Acórdão do STJ, de 16 de Outubro de 2008, Processo n.º 08A2709, disponível no mesmo sítio do anterior), pois que se o empobrecido que, como acima já referido, está onerado com a demonstração da falta de causa justificativa, não a lograr demonstrar, a causa tem de ser julgada contra ele, cf. artigo 346.º, in fine, do Código Civil (neste sentido, Vaz Serra, Direito Material Probatório, pág. 65).

Por último, é necessário que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem se arroga o direito à restituição, a expensas suas. Como refere A. Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, 4.ª Edição, Revista E Actualizada, Almedina, 1982, a pág. 409 “A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduzir-se-á, em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro”.

A ter, ainda, em linha de conta que, cf. autor e ob. ora cit., a pág. 437, “… a obrigação de restituir, a que se referem os artigos 473.º e seguintes, não visa reparar o dano do lesado – esse é o fim próprio da responsabilidade civil –, mas suprimir ou eliminar o enriquecimento de alguém à custa de outrem”.

Volvendo, ao caso em apreço, desde logo, não se pode considerar que exista um enriquecimento da ré ou da CC (beneficiária dos alimentos) pelo facto de os ter recebido do autor.

Efectivamente, esta tinha direito aos alimentos de que carecia, da responsabilidade dos progenitores, nos termos previstos nos artigos 1878.º a 1880.º e 2009.º, n.º 1, al. c), todos do Código Civil, pelo que, em rigor, o enriquecido com as prestações monetárias efectuadas pelo autor, foi o obrigado a alimentos (o pai biológico da CC) e não esta, ou a ré, na qualidade de progenitor com guarda.

De qualquer forma, ainda que se considere que a mesma (ou a mãe, ora ré) estão enriquecidas à custa do autor, na justa medida das prestações que este prestou, não se pode considerar estarem verificados os requisitos do enriquecimento sem causa, designadamente, o do enriquecimento ilegítimo.

A razão para tal reside na especificidade/natureza da obrigação alimentar, que leva a concluir que “alimentos não se restituem”, como o refere L. P. Moitinho de Almeida, in Os Alimentos No Código Civil 1966, in ROA, Ano 28 – 1968, pág.s 104/108.

Aduzindo para tal que “A razão de ser deste princípio é a de que os alimentos se destinam a ser consumidos por aquele que deles carece”.

Defendendo que, não obstante a regra de que os alimentos não se restituem estar apenas prevista para o caso dos alimentos provisórios (artigo 2007.º, n.º 2, do Código Civil), a mesma se deve, igualmente, aplicar aos alimentos definitivos.

Prossegue tal autor, referindo que no nosso direito só dois princípios poderiam interferir na aplicação do princípio de que os alimentos não se restituem: o enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 473.º e seg.s e a repetição do indevido, a que se refere o artigo 476.º, ambos do Código Civil.

E a questão, acrescenta, está em saber qual deles se sobrepõe ao outro.

Concluindo, que o princípio é o de que é o enriquecimento sem causa que cede a favor do princípio de que os alimentos não se restituem, aventando para tal duas razões, sendo a primeira delas “… a da existência de um enriquecimento, que o mesmo é dizer (…), um benefício apreciável em dinheiro de que uma pessoa se encontra presentemente em gozo. Daí resulta que o enriquecimento tem de ser actual”.

Acrescentando que “… a pensão alimentícia não enriqueceu o credor, porque este já gastou os montantes recebidos. O enriquecimento não é, portanto, actual, pelo que não pode caracterizar o enriquecimento sem causa”.

A segunda razão reside no facto de que tanto o enriquecimento sem causa como o da repetição do indevido (que se enquadra no instituto do enriquecimento sem causa) têm carácter subsidiário e “… não pode ser exercido quando à hipótese corresponda qualquer acção apropriada, ou seja, baseada em alguma fonte de obrigações, designadamente disposições legais ou princípios doutrinais. Assim, em presença do princípio alimentos não se restituem, que não tem carácter subsidiário, o princípio do não-locupletamento à custa alheia tem de ceder, porque tem esse carácter”.

Em face do que se impõe concluir “… que, no nosso direito, também não são de restituir os alimentos definitivos indevidamente recebidos”.

Bem se compreende que assim seja, atento a que os alimentos, cf. resulta do disposto nos artigos 2003.º a 2006.º, do Código Civil, se destinam a tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário do alimentado, tendo como medida os meios de quem os presta e as necessidades de quem os recebe, a fixar, como regra, em prestações pecuniárias mensais, tendo em vista, precisamente, que visam satisfazer as sobreditas necessidades do alimentado e que, por isso, se esgotam, se consomem, na satisfação de tais necessidades, diárias e reiteradas, pelo que, nada resta, atingida a satisfação das referidas necessidades do alimentado, que se possa considerar como “sobra”, plausível de configurar o enriquecimento do beneficiário dos alimentos, que necessitou de os gastar com vista a satisfazer as suas necessidades diárias.

Aliás, tal princípio e razão de ser que subjaz à fixação de alimentos (a satisfação das necessidades do alimentado, previstas no artigo 2003.º, n.º 1, do Código Civil), também justificará a conclusão de que não são devidos alimentos quanto ao passado, como resulta do disposto no artigo 2006.º, n.º 1, do Código Civil. Trata-se de necessidades presentes/actuais, pelo que, no reverso da situação também não se justifica que haja obrigação de restituir os alimentos já recebidos antes da declaração da cessação da obrigação de os prestar ou sem que tenha sido declarada a extinção ou a redução/modificação dos alimentos fixados.

Sendo, ainda, de considerar que a obrigação de prestar alimentos cessa nas situações previstas no artigo 2013.º do Código Civil, mas a que há a acrescentar a situação em que, como no caso em apreço, se verifique o trânsito em julgado de sentença que julgue procedente um pedido de impugnação da paternidade, maternidade ou perfilhação.

Caso em que, como refere Remédio Marques in Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), 2.ª edição revista, Centro de Direito da Família da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2007, a pág. 373, “… dessa maneira, o carecido perde o status de filho relativamente ao outrora obrigado. Fica, naturalmente, excluída a possibilidade de o impugnante pedir a restituição das quantias entregues ao menor – ou ao progenitor com guarda, para custear as despesas para com aquele –, já que a sentença produz efeitos ex nunc”.

Ou seja, a sentença de impugnação de paternidade só vale para o futuro (não tem efeitos ex tunc) e, como tal, não confere o direito ao impugnante de reaver as quantias pagas a título de alimentos aquele que era considerado como seu filho.

Inexiste, pois, qualquer enriquecimento da demandada, mercê do princípio de que os alimentos não se restituem, o que, desde logo, acarretaria a improcedência da acção.

 

Mas, uma outra ordem de razões, concorre para a conclusão de que a acção terá de improceder e que, inclusive, igualmente, afasta a possibilidade do êxito da pretensão do autor com base na repetição do indevido.

Efectivamente, o pagamento da prestação de alimentos à CC, assentou em causa justificativa, numa dupla ordem de razões: a sentença de regulação das responsabilidades parentais referida no item 6.º dos factos provados, no âmbito da qual se fixaram os alimentos devidos à menor e no facto de o autor ter assumido a paternidade da CC, através da perfilhação, tal como relatado nos itens 4.º e 5.º dos factos provados, perfilhação esta que foi efectuada nos termos legais e de modo eficaz, tal como decorre do disposto nos artigos 1847.º, 1849.º e 1853.º, al. a), todos do Código Civil.

Como consta do ora referido item 5.º, foi o próprio autor quem, perante o Conservador do Registo Civil, declarou ser o pai biológico da CC.

Daqui se tem, pois, de concluir que a obrigação de prestar alimentos por parte do ora autor, sempre existiu no momento em que prestou cada uma das prestações mensais relativas à prestação de alimentos a que estava obrigado, o que afasta a possibilidade de repetição do indevido, cf. artigo 476.º, n.º 1, in fine, do Código Civil.

Soçobram, assim, todas as razões invocadas pelo autor para a revogação da sentença recorrida, a qual, por isso, é de manter.

Assim, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, pelo apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Coimbra, 07 de Fevereiro de 2023.