Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
340/20.2T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
ACÇÃO DECLARATIVA
INVENTÁRIO
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 580.º, N.º 1, E 581.º, N.º 1, E 1104.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL.
Sumário: I) Quando o objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente com identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior e com efeito impeditivo da prolação de decisões judiciais contraditórias com o mesmo objecto.

II) Quando o objecto processual anterior funciona como condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material e efeito vinculativo no processo instaurado em segundo lugar, sem necessidade da tríplice identidade referida em I).

III) Instaurado processo de inventário para partilha da herança dos sujeitos A e B, obsta ao prosseguimento desse processo a autoridade de caso julgado que se formou em torno da sentença proferida em anterior acção declarativa em que, com fundamento na partilha efectuada em vida dos sujeitos A e B, ocorrida em 1984, por acordo e aceitação de todos os interessados, reconheceu-se que se procedeu, validamente, à partilha de todos os bens imóveis pertença daqueles sujeitos, em consequência do que cada um dos filhos deles passou a usar e fruir cada um dos bens que lhes foram destinados, em termos constitutivos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre esses bens, com improcedência dos pedidos formulados nessa acção: reconhecimento por parte dos réus que os bens pertenciam à herança aberta por óbito dos sujeitos A e B e consequente entrega ao ali autor e requerente do inventário de tais bens.

Decisão Texto Integral:





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A…, casado com B…, já identificados nos autos, veio requerer a cumulação de inventários para partilha das heranças abertas por óbito de seus pais, C… e D… , falecidos, respectivamente, em 05 de Janeiro de 1987 e 30 de Abril de 1994.

Alega, para tanto, que os inventariados faleceram sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, “havendo bens de natureza imobiliária por partilhar” (cf. artigo 3.º do requerimento inicial).

Depois de deferida a requerida cumulação de inventários e junta a relação de bens, no que a este recurso interessa, vieram os interessados E… ,  F.. , G… e H… deduzir oposição ao inventário (cf. referência Citius 6852709, de 16-06-2020).

Alegam, para tanto e com relevo, que os inventariados procederam, no ano de 1984, ainda em vida de ambos, à partilha de todos os seus bens pelos filhos, os quais desde então vêm possuindo os prédios que lhes ficaram a pertencer, tendo até alguns interessados procedido ao registo em seu favor de alguns desses imóveis. Mais referem que tal já foi objeto de apreciação na ação que correu termos neste Juízo Local Cível, sob o n.º 3157/16.5T8PBL, por decisão ali proferida, já transitada em julgado.

Terminam, sustentando que, uma vez que a herança aberta por óbito dos inventariados já se encontra partilhada, é destituída de qualquer fundamento a instauração do presente inventário, por ausência de bens a partilhar.

Notificado o cabeça-de-casal, veio o mesmo dizer, tanto quanto se depreende, que a distribuição dos prédios pelos filhos não é havida por sucessória, podendo qualquer herdeiro exigir partilhas e declarar nulo o acordo subjacente a tal distribuição, para o que cita os artigos 2028.º, n.º 2 e 2029.º do Código Civil.

Mais alegou que a sentença proferida no indicado processo não faz caso julgado, nem se reporta à integralidade dos prédios das heranças. Sustenta que os imóveis relacionados pertencem ao acervo das heranças dos inventariados e que os registos prediais invocados pelos oponentes não são constitutivos de direitos reais.

Termina, pugnando pelo indeferimento da oposição ao inventário, devendo, em consequência, o mesmo prosseguir os seus ulteriores termos.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo foi proferida a decisão de fl.s 105 a 115 (aqui recorrida), em que se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a oposição ao inventário e, em consequência, julgo extinta a instância, por inutilidade da lide.

Fixo ao inventário o valor correspondente à soma do valor dos bens a partilhar (artigo 302.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Custas a cargo do cabeça-de-casal (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil).”.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o requerente do inventário A…, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida, imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 127), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:
()

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verificam os requisitos para ser julgada procedente a oposição deduzida ao inventário, com o fundamento em a partilha já ter sido feita em vida dos inventariados, por acordo de todos os interessados, tal como já reconhecido em anterior acção, intentada pelo aqui requerente contra os demais interessados, em que se apreciou a existência e validade de tal partilha.

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida:

1.º No âmbito da ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, que correu termos neste Juízo Local Cível de Pombal sob o n.º 3157/16.5T8PBL, o cabeça-de-casal e a sua mulher (aí autores) pediram a condenação dos demais interessados neste inventário e respetivos cônjuges (aí réus):

1. a reconhecer que os prédios que descrevem pertencem em exclusivo às heranças abertas por óbito dos pais do autor marido;

2. a entregarem ao autor a posse dos prédios e das chaves até à respetiva partilha e adjudicação, abstendo-se de impedirem, perturbarem ou limitarem a sua livre administração pelo autor, sob a cominação do pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 100,00 EUR por cada dia de incumprimento;

3. a indemnizarem a herança pelos danos causados com a sua ocupação e exploração, em quantia a liquidar em execução de sentença – cf. certidão junta como documento n.º 1 com a referência Citius 7242151, de 17-11-2020, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

2.º Tal ação foi julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se os réus de todos os pedidos contra eles formulados; mais se condenou os autores como litigantes de má-fé na multa de 3 UC e no pagamento aos réus de uma indemnização correspondente à taxa de justiça paga pela contestação – cf. mesmo documento.

3.º Emerge da matéria de facto provada nessa ação que:

«1. Por escritura de habilitação outorgada no dia 14.07.2008, no Cartório da Dr.ª L…, foram declarados como herdeiros de C… , falecido a 05.01.1987, e de D… , falecida em 30.04.1994, os seus filhos, A… , F… , I.. , J… , E… , G… e H… .

2. J… faleceu a 02.06.2008, sobrevivendo-lhe a sua mulher, M…e os seus filhos, N… e O….

3. Encontra-se inscrito na matriz predial da freguesia de …. sob o artigo 1832, na titularidade de C… , o prédio urbano composto por casa de habitação, sita na Rua Principal, da localidade de …, freguesia e concelho de …., a confrontar do nascente com a Estrada Pública, do norte com …, do sul com …. e do poente com o próprio.

4. Encontra-se inscrito na matriz predial da freguesia de ….. sob o artigo 3117, na titularidade de C… , o prédio rústico composto por terra de cultura com 7 oliveiras, 4 figueiras e eira, com depósito de água, sito em …., com a área matricial de 530 m2, a confrontar do nascente com o urbano do próprio, do norte com …., do sul com …. e do poente com …. e outros.

5. Durante mais de 40 anos consecutivos, os pais e sogros das partes sempre habitaram a referida casa de habitação e exploraram o quintal e o prédio rústico contiguo a poente.

(…)

13. No ano de 1984, ainda em vida dos pais, C… e D… , por sua própria decisão e vontade e com a anuência e aceitação de todos os filhos, destinaram os prédios que, de entre o seu património, ficariam a pertencer a cada um dos filhos, à exceção dos bens móveis existentes na casa onde moravam e de um outro, o descrito no ponto 11.

(…)

15. Em consequência da distribuição a que chegaram, cada filho passou a amanhar cada um dos prédios que lhe foi destinado.

16. Todos acordaram que o prédio urbano identificado no ponto 3 ficaria, em exclusivo, para a ré  H… e o prédio rústico identificado no ponto 4, que é confinante daquele e constitui o quintal da casa, ficaria para os dois irmãos, ora réus,  G… e H… , na proporção de metade para cada um.

17. Não obstante, uma vez que C… e D… ainda eram vivos, por todos foi acordado que estes continuariam a morar na casa de habitação descrita no ponto 3, o que sucedeu até à data das respetivas mortes, ocorridas a 5.01.1987 e a 30.4.1994, respetivamente.

18. Após o referido acordo, tanto os réus, como os próprios autores passaram a amanhar e a cuidar dos prédios que assim lhes foram destinados, conforme entenderam, tendo nomeadamente o autor procedido ao arranque de uma vinha existente num prédio sito nas “….” e à plantação de outras árvores de fruto.

19. O réu G… , por forma a poder realizar as culturas hortícolas, procedeu à implantação de um tubo de condução de água desde a sua habitação, situada ali próxima, até aos prédios referidos nos pontos 3 e 4.

20. Os réus G… e H… encarregaram a ré  E… de lavrar, amanhar e usar o terreno, o que aquela sempre fez, desde então, semeando fava, ervilha, tremoço, plantando batatas, couves, tomate e outros produtos hortícolas, assim como cuidou e aparou as árvores, apanhando os respetivos frutos.

21. Os réus E… e P… praticam atos sobre o prédio rústico identificado no ponto 4, com autorização dos réus  G… e H… , que solicitaram àqueles que o mantivessem limpo, procedessem ao seu amanho, cuidassem das plantas e apanhassem os frutos.

22. Tais atos perduraram mais de 30 anos, à vista de toda a gente e dos próprios autores, sem qualquer oposição, na convicção de que não lesavam nem lesam direitos de outrem.» - cf. mesmo documento.

4.º Na fundamentação da sentença consignou-se o seguinte:

«Porém, provando-se que desde 1984 os prédios em causa têm vindo a ser usados, cuidados e conservados pelos réus G… e H… , que, mesmo sem título válido (já que o acordo aludido nos pontos 13 e 16 sempre careceria de forma especial – cf. artigos 947.º n.º1 e 2029.º do Código Civil), passaram a dispor dos mesmos como entenderam, solicitando à ré E… e respetivo marido que amanhassem, cultivassem e zelassem o terreno rústico, tudo nos termos descritos nos pontos 13, 16 e 19 a 22, o que aconteceu ao longo de mais de 20 anos, sempre de forma ininterrupta, à vista de todos, na convicção de estarem a exercer um direito próprio e sem que alguém se opusesse, impõe-se concluir que se mostram verificadas as características da posse necessárias à aquisição do respetivo direito de propriedade por usucapião, nos termos do disposto nos artigos 1260.º n.º 1, 1261.º n.º1 e 1262.º do Código Civil.

E, assim, tal realidade produz efeito impeditivo do direito que os autores aqui pretendiam fazer valer.» - cf. mesmo documento.

Se se verificam os requisitos para ser julgada procedente a oposição deduzida ao inventário, com o fundamento em a partilha já ter sido feita em vida dos inventariados, por acordo de todos os interessados, tal como já reconhecido em anterior acção, intentada pelo aqui requerente contra os demais interessados, em que se apreciou a existência e validade de tal partilha.

Alega o recorrente que não se verifica caso julgado decorrente da decisão proferida na ação n.º 3157/16.5T8PBL, com o fundamento em que a partilha em vida não obsta a que se possa requerer inventário judicial, com vista à composição dos quinhões e aferir de eventuais reduções por inoficiosidade, o que apenas pode ser aferido após a morte dos doadores.

Na decisão recorrida, ao invés, dada a inexistência de bens a partilhar, julgou-se procedente a oposição ao inventário, com a consequente extinção da instância, por inutilidade da lide, tendo como pressuposto que a questão da “validade” da partilha efectuada em vida dos inventariados, com o acordo de todos os interessados, já foi decidida na acção acima referida.

Como consabido, e reproduzindo o por nós já defendido em decisões anteriores, visa a “excepção de caso julgado” evitar que o órgão jurisdicional contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior.

Garante, portanto, a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente e a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica.

Encontrando-se os seus requisitos enumerados no artigo 581º do CPC, a saber: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.

Identidade de sujeitos que reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas acções sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Identidade da causa de pedir que existe quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, identidade que tem de ser procurada não relativamente às demandas formuladas, mas na questão fundamental levantada nas duas acções; pelo que, tendo a nossa lei adoptado a chamada teoria da substanciação, se exige sempre a indicação do título ou facto jurídico em que se baseia o direito do autor.

Identidade do pedido que tem de ser apreciada não só em relação ao que se pede nas duas acções mas também em relação ao que se alega a respeito da questão fundamental que comanda o pedido das acções.

Sendo inquestionável o que acabamos de observar, está longe de representar ou constituir, só por si, uma explicação acabada para a compreensão da “excepção de caso julgado”.

Se, quanto à identidade de sujeitos, nenhumas dificuldades normalmente se suscitam, não é com a mesma facilidade que se percebe tal identidade nos elementos objectivos (causa de pedir e pedido).

E, a propósito dos limites objectivos do caso julgado, não será despiciendo referir que desde há muito que a concepção/sistema restrito do caso julgado se foi impondo quer na doutrina quer na jurisprudência; ou seja, hoje, não é sustentável dizer que qualquer fundamento fica pelo trânsito em julgado indiscutível (sistema amplo do caso julgado), devendo antes ser dito, como regra, que só a decisão tem foros de indiscutibilidade, sendo tudo o mais (todos os seus fundamentos) discutível (sistema restrito).

Porém, o que se diz como regra (só ter a sentença força de caso julgado na parte decisória e não nos motivos) é algo que não tem uma rigidez absoluta, distinguindo-se, tendo como ponto de partida tal regra (própria dum sistema restritivo puro), hipóteses em que os fundamentos têm força de caso julgado e hipóteses em que não têm[1].

Verdadeiramente, hoje, em termos de limites objectivos do caso julgado, impera a ideia pragmática do “in medio virtus[2]; o sistema restritivo adoptado acaba por ser apenas “pseudo-restritivo” ou, mais exactamente, um sistema intermédio[3].

De modos diversos e com mais ou menos nuances (de linguagem), diz-se recorrentemente que a decisão e fundamentos constituem um todo único; que toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), pelo que o respectivo caso julgado se encontra sempre referenciado a certos fundamentos; que reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos; enfim, que não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo no seu todo; que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão[4].

 “Em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão; mais exactamente, os fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial; não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão. Mas valem (os fundamentos) enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta[5]”.

Enfim, repetindo, os pressupostos da decisão estão cobertos pelo caso julgado enquanto pressupostos da decisão – caso julgado relativo – ou seja, a força de caso julgado alarga-se aos pressupostos enquanto tais[6]; o que está em causa no caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos; e só o raciocínio como um todo faz caso julgado[7].

Mas mais – e relacionado com esta ideia dos fundamentos, enquanto tal (ligados ao decidido), adquirirem valor de res judicata – o caso julgado também possui um valor enunciativo, ou seja, a eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada, ficando afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele efeito que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.[8]

Mais ainda, os fundamentos podem possuir um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto; conexões que podem ser, designadamente, de prejudicialidade, o que significa, por ex., que, se numa compra e venda o comprador obtém a redução do preço atendendo aos defeitos da coisa, não pode questionar a validade do contrato em acção em que o vendedor requeira que ele lhe pague a quantia em dívida.

E ainda o que resulta do que é normalmente chamado de “efeito preclusivo”; que designa o efeito da sentença segundo o qual não se pode formular a mesma solicitação processual no futuro com base em factos não supervenientes ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância – 663.º/1= 611.º/1 do NCPC[9].

Podendo referir-se, neste ponto, que “o âmbito da preclusão é substancialmente distinto para o autor e para o réu. Quanto ao autor, a preclusão é definida exclusivamente pelo caso julgado: só ficam precludidos os factos que se referem ao objecto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da acção com base numa distinta causa de pedir. (…). Quanto ao âmbito da preclusão que afecta o réu, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação (art. 498.º/1), pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado: ficam precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada pelo tribunal.[10]

O que significa – é o sentido do efeito preclusivo para um réu – que os contra-direitos que um réu possa fazer valer – e não fez – são ininvocáveis contra o caso julgado; que este abrange aquilo que foi objecto de controvérsia e ainda os assuntos que o réu tinha o ónus de trazer à colação, estando neste último caso todos os meios de defesa do réu; que a indiscutibilidade duma questão, o seu carácter de res judicata, pode resultar tanto duma investigação judicial, como do não cumprimento dum ónus que acarrete consigo por força da lei esse efeito[11].

É, na síntese clássica, a regra do “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debetat”.

E é chegado a este ponto da compreensão dos limites objectivos do caso julgado – nos meandros das situações incompatíveis, de prejudicialidade e do chamado efeito preclusivo – que emerge a “figura” da autoridade de caso julgado e os exemplos de escola (e jurisprudenciais) da verificação da “autoridade de caso julgado”.

Como excepção dilatória, visa o caso julgado (material) prevenir, como já se referiu, a possibilidade de prolação de decisões judiciais contraditórias com o mesmo objecto (efeito impeditivo); como autoridade de caso julgado, garante a vinculação dos órgãos jurisdicionais e o acatamento pelos particulares de uma decisão anterior (efeito vinculativo).

Quando o objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior; quando o objecto processual anterior funciona como condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo instaurado em 2.º lugar[12].

Daí que a excepção do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; enquanto, naturalmente, a autoridade do caso julgado dispensa tal tríplice identidade[13].

Porém, tal dispensa não significa um não confinamento da “figura” do alcance e da autoridade do caso julgado àquelas situações em que a sentença reconhece, no todo ou em parte, um concreto direito do A., assim fazendo precludir todos os meios de defesa do R., os concretamente deduzidos e até os abstractamente dedutíveis com base em direito próprio; ou àquelas situações em que a sentença, ao reconhecer um direito, constitui um pressuposto ou condição de julgamento de um outro objecto ou prejudica/exclui a invocação de direitos contraditórios e incompatíveis.

São aliás bem elucidativos os exemplos em que tal “figura” se considera normalmente como verificada:

Se uma decisão reconhece o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e condena o R. à sua restituição e à demolição da construção que na mesma efectuou, não pode o R. – por força da autoridade do caso julgado da primeira decisão – em nova acção, ainda que com fundamento em acessão industrial imobiliária, pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre a mesma parcela de terreno; apesar de não se verificar a excepção dilatória do caso julgado, atenta a diversidade da causa de pedir, a segurança e a certeza jurídica decorrentes do trânsito em julgado da primeira decisão obstam a que, em nova acção, se questione o direito de propriedade e as obrigações de restituição e de demolição reconhecidas na primeira acção com base numa realidade que já se verificava aquando da primeira acção e que aí poderia/deveria ter sido invocada pelo R. (quer para impedir a procedência da acção, quer para sustentar, em sede reconvencional, o direito potestativo de acessão imobiliária.

Se uma decisão condena no pagamento de uma indemnização, não pode aquele que é ali condenado vir pedir, com base no enriquecimento sem causa, a restituição da quantia paga; impedimento esse que resulta, não da excepção de caso julgado (face à diversidade das causa de pedir), mas da autoridade de caso julgado formado pela primitiva acção/decisão.

Se uma decisão condena no preço (duma compra e venda) duma coisa, não pode o condenado, em posterior acção, vir invocar vício invalidante de tal compra e venda; impedimento que também resulta da autoridade de caso julgado formado pela primitiva acção/decisão.

Se numa acção de reivindicação se reconhece a propriedade, tal vale como autoridade de caso julgado num processo posterior em que o proprietário requer a condenação da contraparte no pagamento duma indemnização pela ocupação indevida do imóvel.

Exemplos que têm em comum a identidade de sujeitos (em ambas as acções: na já decidida e na nova acção).

Ora, na situação em apreço, os requerentes do inventário pretendem fazer tábua rasa do que foi decidido na supra referida acção n.º 3157/16, o que não o consente a autoridade do caso julgado decorrente da decisão ali proferida.

Efectivamente, nesta acção, com fundamento na partilha efectuada em vida dos aqui inventariados, ocorrida em 1984, por acordo e aceitação de todos os interessados,  reconheceu-se que se procedeu, validamente, à partilha de todos os bens imóveis pertença daqueles, em consequência do que cada um dos filhos dos inventariados passou a usar e fruir cada um dos bens que lhes foram destinados, tendo improcedido os pedidos ali formulados: reconhecimento por parte dos réus que os bens pertenciam à herança aberta por óbito dos pais e consequente entrega ao ali autor e aqui requerente, de tais bens, precisamente, por se ter considerado que cada um dos interessados já havia adquirido a propriedade de cada um dos prédios que lhes coube, por usucapião, decorrente dos actos de posse sobre cada um dos prédios em causa, que a cada um deles coube, em resultado da referida partilha.

O que acarreta que ficou proibida a discussão futura acerca da titularidade/propriedade de tais bens, estando definitivamente assente que são pertença de cada um dos filhos dos inventariados, em consonância com o acordado para a partilha de tais bens, dada a autoridade de caso julgado daquela decisão, acordo que também envolveu o aqui requerente do inventário, pelo que ficou, definitivamente, arrumada a questão da partilha de tais bens.

Por isso, concordamos com o exposto na decisão recorrida, quando nela se refere que:

“Regressando ao caso dos autos.

É manifesto que não se verifica a exceção de caso julgado a que alude o artigo 580.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por não haver identidade de pedidos e de causa de pedir entre este processo de inventário e a ação n.º 3157/16.5T8PBL.

Mas verifica-se a exceção de autoridade de caso julgado.

No processo de inventário, o requerente visa fazer cessar a comunhão hereditária (artigo 1097.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), no pressuposto de que existem bens a partilhar.

Sucede que, na referida ação n.º 3157/16.5T8PBL, em que foram intervenientes todos os interessados neste inventário, provou-se que, no ano de 1984, ainda em vida dos inventariados, por sua própria decisão e vontade e com a anuência e aceitação de todos os filhos, destinaram os prédios que, de entre o seu património, ficariam a pertencer a cada um dos filhos, à exceção dos bens móveis existentes na casa onde moravam e de um outro que não é relacionado neste inventário.

Por força da autoridade do caso julgado, impõe-se aceitar neste processo a situação jurídica material definida naquela ação, nomeadamente no que respeita à circunstância de, em vida, os inventariados terem disposto de todo o seu património imobiliário pelos filhos. Por outras palavras, deve considerar-se definitivamente resolvida a questão da partilha em vida pelos inventariados de todos os seus bens imóveis.”.

Decidida, em definitivo, a questão da propriedade de tais bens e inerente partilha dos mesmos, resta averiguar qual a respectiva consequência para os presentes autos.

E esta, como decidido em 1.ª instância, não pode ser outra que não a procedência da deduzida oposição ao inventário e consequente extinção da instância nos presentes autos.

Efectivamente, cf. artigo 1104.º, n.º 1, al. a), do CPC, podem os interessados deduzir oposição ao inventário, visando demonstrar que não há razões para a sua realização, invocando designadamente o facto de já ter sido realizada a partilha por via extrajudicial válida ou de todos os bens indicados como pertencendo à herança já terem sido adquiridos por outrem por via da usucapião – cf. Código GPS, Vol. II, Almedina, Maio de 2020, pág. 569.

Ou, como se refere in O Novo Regime do Processo de Inventário …, Almedina, (Reimpressão), Outubro de 2020, a pág. 81, da autoria de M. Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, a dedução de oposição ao inventário visa colocar em causa a sua admissibilidade ou utilidade, com o fundamento, entre outros, de “já se mostrar plenamente consumada a sua finalidade em consequência de válida e eficaz partilha extrajudicial”.

Também Fernando Neto Ferreirinha, in Processo de Inventário, 3.ª Edição Revista, Aumentada e Actualizada, Almedina, 2017, a pág.s 262/3, refere que um dos fundamentos para deduzir oposição ao inventário é o de inexistirem bens a partilhar, o que se verifica no caso de se ter realizado a partilha por acordo.

Ali citando Augusto Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Vol. II, 6.ª Edição, Almedina, pág. 41, que considera que “a oposição ao inventário constitui um verdadeiro obstáculo processual, destinado a atacar o processo na sua estrutura, na sua razão de ser e, por isso, julgada procedente, o inventário não mais pode prosseguir em seus termos, ficando virtualmente terminado”.

Ainda, relativamente à eficácia da partilha em vida, de acolher o ensinamento do autor ora citado, Partilhas Litigiosas, Vol. I, Almedina, 2018, pág.s 236 a 239, de acordo com o qual o teor do disposto no artigo 2029.º, n.º 1, do Código Civil, a partilha em vida, com o consentimento de todos os interessados, supõe a dispensa de colação, citando em abono de tal conclusão (nota 645, de pág. 238) Oliveira Ascensão, Sucessões, 1980; Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I-52, nota 1; Galvão Teles, Sucessões, Parte Geral, 2004, pág. 42 e Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 2004, 2.ª edição (reimpressão), pág. 552.

Defendem tais autores que tendo a partilha sido feita em vida, não há que repeti-la por morte, perdendo razão de ser a colação.

A partilha em vida, feita de acordo e aceitação de todos os interessados conforma o modo como é feita a partilha, sendo descabido que, à morte dos doadores, se repita a mesma, designadamente, para efeitos da colação, o que mais se acentua quando, como in casu, o requerente do inventário também aceitou a partilha efectuada, já em 1984 e, como os demais interessados, passou a fruir os bens que lhe couberam na sequência de tal partilha.

Em suma e em conclusão, não viola a decisão recorrida as normas indicadas pelo recorrente (sendo que os artigos 2015.º e 2016.º do CC, se referem aos alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges, nada tendo que ver com a matéria aqui em causa).

De referir, ainda, que os Arestos que o recorrente cita em abono da sua pretensão não se aplicam à situação em apreço, em que, reitera-se, se partilharam todos os bens dos inventariados e com o acordo e aceitação de todos os interessados, ao passo que no Acórdão da Relação do Porto, de 09/12/2002, CJ, V, 189 e respectivo sítio do itij, se tratava de duas doações parciais, uma delas por escrito particular e o desta Relação, de 11/05/2004, Processo 3822/03, disponível no mesmo sítio do anterior, visava um caso em que as doações tinham sido feitas apenas a alguns dos herdeiros e não de todos eles, o que, como é óbvio, convoca consequências que não as que aqui há a considerar.

Consequentemente, tem o recurso de improceder.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 15 de Junho de 2021

[1] A dificuldade – como refere o Prof. Castro Mendes, in Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 121 e ss. – está “em estabelecer a distinção em bases científicas sem empurrar a questão para uma casuísmo necessariamente arbitrário”.

[2] Efectivamente, a concepção/sistema restrito (da sentença só ter força de caso julgado na parte decisiva e não nos fundamentos) leva a conclusões duvidosas e em última análise insatisfatórias (como resulta dos inúmeros exemplos citados por Castro Mendes, obra citada, pág. 143).

[3] Como observou – há mais de 50 anos, mas com inteira actualidade – o Prof. Castro Mendes (obra citada, pág. 133) – mesmo aqueles (Dias Ferreira) que diziam que “a sentença só tem força de caso julgado na parte decisiva e não nos motivos, considerandos ou enunciações”, não deixavam de acrescentar “excepto quando os considerandos estejam relacionados com a decisão por forma que com ela formem um todo indivisível”. Do mesmo modo a jurisprudência que “aceita a regra segundo a qual o caso julgado não se alarga aos fundamentos da decisão”, logo acrescentado “que o CPC admite a decisão implícita, como consequência necessária do julgamento expressamente proferido e já transitado, constituindo problema de interpretação da sentença saber se nela há um fundamento implícito”.

[4] Seguimos de perto Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 578.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579/80.

[6] O Prof. Antunes Varela – Manual de Processo, 1.ª ed., pág. 693 e ss. – parece ser um pouco mais restritivo, na medida em que apenas diz que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende que seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado”; e que “a força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final”; porém, mais à frente não deixa de reconhecer que “reveste o maior interesse, para a delimitação do caso julgado, a fixação do sentido e, sobretudo, do alcance dessa resposta contida na decisão final”; e que “é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado

[7] O que, aliás, é de certo modo corroborado pelo art. 498.º do VCPC= art. 581.º do NCPC, ao colocar os dois requisitos da identidade objectiva – pedido e causa de pedir – precisamente no mesmo plano; sem qualquer diferença de projecção e alcance.

[8] Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, em que ilustra o referido com os seguintes exemplos: Se o R. é condenado, como devedor, a cumprir uma prestação ao A., aquele não pode demandar este último pedindo a restituição, com base no enriquecimento sem causa, da quantia paga; se o R. é condenado a entregar uma coisa ao A., aquele não pode instaurar uma acção pedindo a restituição da mesma coisa.

[9] A sentença condenatória corresponde à situação existente no momento do encerramento da discussão nos termos do art. 663.º/1 do CPC.
[10] Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 585/6.

[11] E a indiscutibilidade não pode ser posta em causa invocando argumentos, factos ou razões que o efeito preclusivo cobriu. - Prof. Castro Mendes, obra citada, pág. 186.

[12] A excepção do caso julgado encerra a vertente negativa, em ordem a evitar a repetição de acções; a autoridade do caso julgado traduz a vertente positiva, no sentido de imposição externa da decisão tomada.
[13] Se a exigisse não faria diferença com a excepção de caso julgado.