Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
619/16.8T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: UNIÃO DE FACTO
DISSOLUÇÃO
SERVIÇOS DOMÉSTICOS
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 05/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - M.GRANDE - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 402, 403, 473, 474, 1672 CC
Sumário:
1. - Na união de facto, os unidos não estão juridicamente vinculados ao cumprimento dos deveres conjugais previstos na lei para o casamento (art.ºs 1672.º e segs. do CCiv.), por o regime da união de facto não o prever, não equiparando, neste âmbito, as uniões de facto ao casamento civil, nem sendo o regime específico deste aplicável àquelas.
2. - Dissolvida a união de facto, o trabalho doméstico que um dos membros/unidos desenvolveu no tempo de duração da união, constituindo participação livre para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos, não lhe confere o direito à restituição do respetivo valor, nem a qualquer forma de partilha de valor quanto a bens pertencentes ao outro.
3. - Não se provando que um dos unidos de facto contribuiu para a aquisição de determinados bens por parte do outro – falta o apuramento de um esforço patrimonial/económico conjunto para aquisições patrimoniais por ambos –, não pode ele, extinta a união, pretender a partilha, em termos de restituição de valor (na proporção de metade), desse património alcançado pelo outro.
4. - A ação por enriquecimento sem causa depende da verificação de um enriquecimento à custa de outrem, que careça de causa justificativa, por nunca a ter tido ou por a ter perdido, tornando-se, assim, injusto e inaceitável para o direito, correndo o respetivo ónus da prova contra o demandante.
5. - Não se compreende no instituto do enriquecimento sem causa situação em que, depois extinta a união de facto, um dos ex-unidos, que foi fiador do outro (proprietário) no âmbito de um crédito bancário à habitação, mas não provou ter contribuído para o pagamento das prestações do empréstimo, vem pedir o reembolso de metade do valor das prestações pagas ao longo do período temporal de duração da união de facto.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


I – Relatório
A (…), com os sinais dos autos,
intentou (() Em 06/12/2016.) ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra
J (…), também com os sinais dos autos,
pedindo:
a) Seja reconhecida a dissolução da união de facto entre A. e R.;
b) Seja o R. condenado a pagar à A. metade do valor das prestações que foram pagas entre janeiro de 2006 e janeiro de 2016, referentes ao empréstimo contraído para aquisição de prédio urbano (identificado no art.º 9.º da petição inicial), em montante não inferior a € 39.000,00;
c) Seja o R. condenado a pagar à A. a quantia de € 6.952,00, a título de metade do valor dos automóveis e bens móveis que estão na posse do R.;
d) Seja o R. condenado no pagamento de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- tendo a A. vivido em união de facto com o R. durante 19 anos, do qual se encontra separada desde janeiro de 2016 – união de que nasceram dois filhos –, nesse tempo de vida em comum juntos contribuíram para a economia doméstica e para a aquisição de património (móvel e imóvel), o qual, apesar de registado a favor do R. e na posse dele, pertence a ambos;
- juntos adquiriram um terreno em (…), onde construíram, na pendência da união, uma casa de habitação (prédio urbano com descrição predial n.º (…)), tal como bens móveis, que recheiam esse prédio e aquela que foi a casa de morada de família, na (…);
- adquiriram ainda dois veículos automóveis (de marca “Citröen” e “Volkswagen”), pelo que, tudo somado, adquiriram um património no valor global de € 310.544,00, ao que acresce um rendimento anual não inferior a € 14.800,00, resultante do arrendamento do imóvel sito em (…);
- A. e R. compartilhavam as responsabilidades financeiras familiares em comunhão de vida, sendo que a A. sempre trabalhou, auferindo rendimentos que integravam o acervo financeiro da união, para além de assegurar sozinha as lides domésticas comuns;
- ocorre enriquecimento injustificado do R. à custa da A., cabendo a esta receber daquele metade do valor pago de prestações pelo empréstimo contraído para aquisição do imóvel sito em (…), ascendendo a € 39.000,00 (correspondente a € 78.000,00 : 2), bem como € 2.000,00, referente a metade do valor dos dois aludidos veículos automóveis, e € 4.952,00, referente a metade do valor dos bens móveis de recheio das habitações, num total, assim, de € 45.952,00.
Contestou o R.:
- defendendo-se por impugnação, negando, nomeadamente, que a A. tivesse contribuído com qualquer montante para a aquisição dos veículos ou para a prestação bancária, os quais foram suportados integralmente pelo R.;
- e requerendo, para o caso de procedência do pedido da A., a compensação com o crédito do R., no montante de € 7.115,50, relativo a pagamentos por si exclusivamente suportados com o aparelho dentário e os óculos da filha do casal, bem como com as férias e despesas durante estas que aproveitaram à A..
A A. pronunciou-se no sentido da inexistência de qualquer montante a compensar, concluindo pela integral procedência da ação.
Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixando-se o objeto do litígio e os temas de prova.
Foi realizada a audiência final, seguida da prolação de sentença (() Datada de 07/12/2017.), que decidiu de facto e de direito, julgando parcialmente procedente a ação, com o seguinte dispositivo:
«- não admitir a exceção de compensação deduzida pelo R. J (…)por inadmissibilidade legal;
- reconhecer a dissolução da união de facto entre a A. A (…) e o R. em janeiro de 2016;
- absolver o R. dos demais pedidos contra si formulados pelo A..».
Inconformada com o assim decidido, veio a A. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes
Conclusões (() Que se transcrevem, na parte relevante, com negrito, itálico e sublinhado retirados.):
(…)
Foi apresentada contra-alegação, concluindo o Recorrido pelo bem fundado da decisão em crise e consequente improcedência total do recurso.
Este foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.
Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso
Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa saber (() Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes. ):
a) Se ocorre erro de julgamento em matéria de facto, devendo alterar-se a resposta positiva restritiva ao ponto 7- dos factos dados como provados;
b) Se, por força dessa alteração fáctica, ou por razões de ordem jurídica, deve alterar-se a decisão de direito, em termos de procedência da ação (restituição de quantias pecuniárias, por força do instituto do enriquecimento sem causa, aplicado à cessação da vida em comum, após longa união de facto).

III – Fundamentação
A) Quadro fáctico dado como provado
Na sentença recorrida, foi julgado provado o seguinte factualismo:
«1 – Durante dezanove anos, A. e R. partilharam a mesma casa, tomaram juntos as suas refeições e passearam juntos, estando separados desde janeiro de 2016.
2 – A. e R. têm dois filhos em comum.
3 – O prédio urbano sito (…), encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de (…), mais constando do registo, através da ap. (…), a aquisição a favor do R., por compra.
4 – O valor patrimonial do imóvel referido em 3) em 2015 era de € 296.640 (duzentos e noventa e seis mil seiscentos e quarenta euros).
5 – Para construção do imóvel referido em 3), o R. recorreu a um empréstimo bancário, do qual a A. foi fiadora.
6 – Houve um ano em que a A. assegurou a limpeza do imóvel referido em 3) e lavou e passou as roupas de cama e de banho.
7 – A A. apenas trabalhou e auferiu rendimentos durante parte do período referido em 1).
8 – Era a A. quem cuidava dos filhos no dia-a-dia, acompanhando-os ao médico sempre que necessário, apoiando-os nas atividades escolares e extracurriculares e comparecendo nas reuniões escolares agendadas pelos respetivos estabelecimentos de ensino.
9 – A A. assegurava sozinha as lides domésticas.
10 – A A. cuidou dos pais do R., durante cerca de um ano, uma semana por mês, dando-lhes banho, alimentação e cuidando das roupas.
11 – Quando a A. esteve sem trabalho, recebia subsídio de desemprego e, quando tirou um curso de (…), recebeu remuneração.
12 – O terreno onde se encontra o imóvel referido em 3) foi comprado com dinheiro que os pais do R. lhe deram.
13 – Por apresentação de 23/09/2011, foi registada a favor do R. a propriedade do veículo de marca Citroen, de matrícula (…).
14 – Por apresentação de 3/04/2001, foi registada a favor do R. a propriedade do veículo de marca Volkswagen, de matrícula (…).
15 – Os veículos referidos em 13) e 14) foram pagos pelo A. (() Terá havido lapso de escrita, pois quereria escrever-se “foram pagos pelo R.” – cfr. al.ª c) do acervo dado como não provado.).
16 – A A. utilizava o veículo referido em 13) e o R. o referido em 14).
17 – A A. pagou o combustível e uma ou outra despesa corrente com a manutenção do veículo referido em 13).
18 – A A. comprou alguns géneros alimentares para a família, os quais foram por vezes pagos com o cartão do R., que continha o valor do subsídio de refeição.
19 – A A. pagou algumas botijas de gás.
20 – A A. pagou algum vestuário para os filhos com o seu dinheiro.
21 – O R. suportava mensalmente compras de supermercado no valor de € 200 (duzentos euros).
22 – O R. pagou € 2.500 (dois mil e quinhentos euros) pelo aparelho dentário da filha.
23 – O R. pagou os óculos da filha, no que gastou € 682 (seiscentos e oitenta e dois euros).».
E foram julgados como não provados os seguintes factos:
«a) Atualmente os filhos de A. e R. têm 19 e 14 anos de idade;
b) A. e R. adquiriram em conjunto os bens móveis que compõem o recheio do prédio referido em 3) e daquele que foi a casa de morada de família, (…), nomeadamente:
(...)
c) A A. adquiriu também o automóvel referido em 13), modelo Saxo, no valor de € 1.000, e o automóvel referido em 14), modelo Golf, no valor de € 3.000;
d) O imóvel referido em 3) gera anualmente um rendimento não inferior a € 14.800, resultado do respetivo arrendamento nos meses de junho, julho, agosto e setembro e na época de passagem de ano;
e) A prestação mensal do empréstimo referido em 5) era de € 650 e a A. contribuiu para o pagamento da mesma;
f) A A. efetuou as tarefas aí descritas nos restantes anos;
g) À revelia da A., o R. certificou-se que todos os bens sujeitos a registo fossem averbados junto do Serviço de Finanças e registados na Conservatória apenas em seu nome;
h) A A. pagava o telemóvel, vestuário e combustível consumidos pelo agregado familiar;
i) A A. pagava as consultas médicas e medicamentos dos filhos de ambos, bem como material escolar e outras despesas educacionais daqueles;
j) A A. tirou o curso referido em 11) entre 2009 e 2014;
k) Os rendimentos auferidos pela A. eram integralmente investidos no acervo financeiro do casal e contribuíam para a economia comum do casal, o que fazia na convicção da continuação e subsistência da convivência referida em 1);
l) A A. contribuiu para a aquisição dos bens referidos em 3), b) e c);
m) Durante o período de tempo em que perdurou o referido em 16), foi o R. quem pagou o seguro de responsabilidade civil do Citroen;
n) Para entregar o veículo referido em 13), a A. exigiu que o R. lhe pagasse € 500.».

B) Impugnação da decisão de facto
(…)
Na verdade, a Relação apenas deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.), cabendo, em qualquer caso, ao Recorrente indicar, mormente nas suas conclusões, os fundamentos por que pede a revisão/alteração do decidido (art.º 639.º, n.º 1, do mesmo Cód.).
E, especificamente quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, cabe-lhe, sob pena de rejeição, especificar os meios de prova que impõem decisão diversa (art.º 640.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv.), o que obriga à análise crítica da decisão proferida, sopesando dos meios de prova que o Tribunal recorrido teve por decisivos para formação da sua convicção probatória, só assim se podendo demonstrar que esses meios de prova, de per se ou conjugadamente com outros, não assumiam pendor ou força probatória que permitisse sustentar neles a decisão proferida.
Com efeito, esperava-se que a Apelante esclarecesse devidamente, não só qual a factualidade que, na sua ótica, foi julgada erradamente, como ainda quais as concretas provas que, uma vez criticamente analisadas/valoradas, obrigavam a uma decisão diversa da adotada, no sentido de delimitar, de forma motivada, o âmbito probatório da impugnação de facto (() Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 126 e segs., e Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 153, e ainda, no mesmo sentido, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, Lisboa, págs. 253 e segs.. Vide também Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80. No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do STJ, podendo ver-se, por todos, os Ac. desse Tribunal Superior de 04/05/2010, Proc. 1712/07.3TJLSB.L1.S1 (Cons. Paulo Sá), e de 23/02/2010, Proc. 1718/07.2TVLSB.L1.S1 (Cons. Fonseca Ramos), ambos disponíveis em www.dgsi.pt. ).
Dúvidas não restam, pois, de que devia a Apelante indicar os fundamentos pelos quais, atenta toda a prova implicada e valorada no âmbito do facto controverso/impugnado, pugna pela alteração da decisão de facto, mostrando/evidenciando em que se traduziu a errada apreciação do Tribunal recorrido.
Na verdade, não basta invocar meios de prova para defender decisão diversa da proferida, pois que, manifestamente, é necessário apresentar ainda as razões pelas quais se discorda da decisão, mostrando onde, face ao conteúdo e valia das provas invocadas (e das que foram objeto de valoração, contribuindo para a formação da convicção), devia ter-se procedido a uma diversa apreciação/valoração probatória, de molde a fundar uma razoável diversa convicção.
Doutro modo, sem apresentação das razões que mostrem o motivo da divergência do impugnante, fica por fazer a análise crítica da prova, necessária à decisão judicial da matéria de facto, percebendo-se as razões do juízo probatório do Tribunal recorrido (ante a fundamentação da convicção exarada na sentença), mas não se logrando conhecer, em toda a linha, as razões da diversa convicção de quem impugna.
Por isso, a omissão de apreciação crítica quanto à valia probatória das provas em que se alicerçou o Tribunal a quo logo deixa deficitária a impugnação, por não fazer transparecer onde radica a discordância da parte impugnante no concernente à apreciação/valoração das provas que o Tribunal teve por decisivas para se convencer.
E nem basta que o impugnante indique outras provas, de caráter documental – se não dotadas de força probatória plena –, se se demite de proceder à análise crítica daquelas que o Tribunal elegeu, caso não possam, sem mais, ter-se por abaladas face às diversas provas convocadas pelo Apelante, situação em que falta esclarecer as razões da discordância, não se evidenciando onde se situa o erro do julgador, assim dando mostras de um inconsequente inconformismo.
Com efeito, num tal quadro de ausência de fundamentação cabal da impugnação, e decorrente ininteligibilidade/ambiguidade desta, nem a contraparte pode exercer adequadamente o contraditório, nem o Tribunal ad quem logra percecionar os motivos concretos da discordância e o inerente fundamento recursório.
É que, em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve acesso, tratando-se, assim, da verificação quanto a um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas (formação e fundamentação da convicção), aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.
Para tanto, se o Tribunal de 2.ª instância é chamado a fazer o seu julgamento, numa autónoma formação da convicção, dessa específica matéria de facto, o mesmo é comummente restrito a pontos concretos questionados, procedendo-se a reapreciação com base em determinados elementos de prova, concretamente elencados, designadamente certos depoimentos indicados pela parte recorrente.
Ora, como explicita Abrantes Geraldes (() Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 115. ), “A motivação do recurso é de geometria variável, dependendo tanto do teor da decisão recorrida como do objectivo procurado pelo recorrente, devendo este tomar em consideração a necessidade de aí sustentar os efeitos jurídicos que proclamará, de forma sintética, nas conclusões”. E acrescenta que se, “para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspectiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir os objectivos pretendidos” (() Op. cit., p. 118, com itálico aditado. ).
Especificamente em matéria de impugnação da decisão de facto, à luz do art.º 640.º do NCPCiv., refere o mesmo Autor:
… podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora passa a vigorar sempre que o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
(…)
d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto” (() Op. cit., ps. 126 e seg., com negrito e itálico aditados.).
Para depois concluir: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida …” (() Cfr. op. cit., ps. 128 e seg.. ).
Ante este quadro referencial, parece notório – salvo o devido respeito por diverso entendimento – que a Apelante não observou cabalmente os ónus, a seu cargo, estabelecidos pelo art.º 640.º do NCPCiv., conjugado com o art.º 639.º do mesmo Cód., posto que nenhuns motivos invoca, como visto, para abalar a leitura da prova, e a convicção assim formada pela 1.ª instância, à luz das ditas provas oralmente produzidas (por depoimento de parte e testemunhal).
(…)
Em suma: a impugnação vertida nos autos não se faz acompanhar da necessária sustentação em todo o âmbito indispensável, não revelando, sem mais, onde se encontra o erro de julgamento de facto, erro esse que também este Tribunal não descortina ante a desenvolvida fundamentação da convicção do Tribunal recorrido quanto à decisão de facto, ademais obtida na total imediação com as provas.
Donde, pois, a improcedência desse segmento impugnatório.

C) Substância jurídica do recurso
Da obrigação de restituição por enriquecimento sem causa
Inalterado o quadro fáctico da sentença, cabe agora saber se deve alterar-se a decisão de direito, em termos de integral procedência da ação, com restituição das quantias pecuniárias peticionadas, por via de enriquecimento sem causa, na sua pretendida aplicação à cessação da vida em comum, após longa união de facto entre A. e R..
Pretende a A./Apelante – recorde-se – que, tendo vivido em união de facto com o R. durante um período temporal que se prolongou por 19 anos, nesse tempo de vida em comum juntos contribuíram para a economia doméstica e para a aquisição de diverso património, compartilhando as responsabilidades financeiras familiares, sendo que a A. sempre trabalhou, auferindo rendimentos que integravam o acervo financeiro da união, para além de assegurar sozinha as lides domésticas comuns.
Por isso, ocorrendo enriquecimento injustificado do R., tem a A. direito a receber dele metade do valor de prestações então pagas pelo empréstimo para aquisição de imóvel sito em (…) (num total € 39.000,00), bem como metade do valor de dois veículos automóveis (€ 2.000,00) e metade do valor dos bens móveis de recheio de duas casas de habitação (€ 4.952,00).
Daí um pedido de pagamento de € 45.952,00.
Na sentença foi este pedido julgado improcedente, no essencial com a seguinte fundamentação:
«(…) a jurisprudência tem sido unânime em enquadrar no instituto do enriquecimento sem causa as situações em que, com a participação de ambos os membros da união de facto, são adquiridos bens, figurando no respetivo título apenas um deles (…).
Contudo, (…) o direito ao enriquecimento sem causa apenas se coloca quando, no âmbito de uma união de facto, há bens adquiridos com a participação de ambos os membros. Ora, no presente caso, não se demonstrou que a A. tivesse contribuído para a aquisição dos bens em apreço (o imóvel, os dois veículos automóveis e os demais bens móveis), conforme resulta dos pontos 12) e 15) dos factos provados e das alíneas b), c), e), k) e l) dos factos não provados. Para além disso, também não se demonstrou que houvesse uma economia comum ou um acervo financeiro do casal, nem que a A. contribuísse para o mesmo, pelo que, por esta via, a pretensão da A. deverá improceder.
Tal conclusão não é afastada pelo facto de se ter dado como provado que, durante o período em que durou a união de facto, era a A. quem cuidava dos filhos no dia-a-dia, acompanhando-os ao médico sempre que necessário, apoiando-os nas atividades escolares e extracurriculares e comparecendo nas reuniões escolares agendadas pelos respetivos estabelecimentos de ensino, bem como era a A. que assegurava sozinha as lides domésticas (pontos 6) e 8) a 10) dos fundamentos de facto).
Com efeito, conforme se entendeu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/07/2011, “o que está em causa (não por exemplo, a compra de quaisquer bens com o dinheiro de ambos durante o período da união de facto), mas o trabalho doméstico que a autora fez enquanto viveu (em união de facto, retenha-se) com o réu. Ora esta actividade (…) tem de ser vista, nas circunstâncias concretas, com a sua participação, livre, para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos.
Como se reconhecerá, não está em causa qualquer enriquecimento do réu à custa da autora.
Na verdade, o trabalho da autora era a sua contribuição para a vida em comum, mas da matéria de facto não resulta que só a autora contribuísse para as despesas do lar.
Se a autora cozinhava, naturalmente que os géneros teriam de ser comprados e nada faz presumir que fosse a autora que tudo pagasse.
Como bem se escreve na decisão recorrida e referindo-se ao trabalho prestado pela autora: “com efeito, tal contribuição, envolvendo necessariamente um dispêndio de energias e de força de trabalho – os serviços domésticos – mais não é, afinal, que o cumprimento de uma obrigação natural – a de contribuir para a comunhão de vida (comunhão de cama, mesa e habitação) e para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos.
E mais à frente:
“Nos termos do art. 402º CC, a obrigação diz-se natural quando se funda num mero dever de ordem moral e social cujo cumprimento não é judicialmente exigível mas corresponde a um dever de justiça.
É o caso da contribuição para a economia comum na união de facto, desde que assente a ausência de vínculos juridicamente relevantes entre os seus membros, designadamente os deveres de coabitação, cooperação e assistência enunciados no art. 1672º CC sobretudo estes dois últimos, na modalidades de socorro e auxílio mútuos e de assunção conjunta das responsabilidades da vida familiar (art. 1674º CC) e na de alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar de harmonia com as possibilidades de cada um através da afectação dos seus recursos àqueles encargos e do trabalho dispendido no lar (art. 1675º nº1 e 1676º nº1 CC).
Ora, não pode ser repetido o que foi prestado espontaneamente – isto é, livre de toda a coacção (art. 403º nº 2 CC) – no cumprimento de uma obrigação natural (art. 403º, nº1 CC) .
Não sendo o trabalho dispendido no lar judicialmente exigível no âmbito da união de facto, a sua prestação como contribuição para a economia comum configura-se como cumprimento espontâneo de obrigação natural, insusceptível de ser repetido, pelo que falece à apelante e autora o direito à restituição do respectivo valor” (disponível em www.dgsi.pt).
E se a prestação de trabalho doméstico não confere o direito à restituição do respetivo valor, também não poderá conferir à A. o direito a metade do valor dos bens pagos pelo R. durante a união de facto.».
Contrapõe, agora, a A./Recorrente que foi o R. quem construiu a moradia em terreno por ele adquirido e com registo de aquisição a seu favor, muito embora a Apelante tenha sido fiadora no empréstimo bancário para financiamento da construção (conclusão 24.ª).
Ora – diga-se –, a mera condição de voluntária fiadora/garante não confere, naturalmente, de per se, direitos patrimoniais à A., se não se mostrar que, enquanto garante, foi chamada ao pagamento da dívida garantida.
Depois refere a Recorrente que durante um ano assegurou a limpeza desse imóvel, lavou e passou roupas de cama e de banho, trabalhou e auferiu rendimentos, cuidou, acompanhou apoiou e educou os filhos, assegurou as lides domésticas e até cuidou temporariamente dos pais do R., para além de ter comprado géneros alimentícios para a família e vestuário para os filhos.
Em suma, afirma que durante o tempo da união contribuiu economicamente e com trabalho (dinheiro e esforço) para a economia comum estabelecida, pelo que o património então obtido só pode ter resultado de um esforço comum, ainda que formalmente apenas em nome de um dos então unidos.
Vejamos os factos, começando pelo dito imóvel, sem esquecer que o pedido se reporta à restituição do correspondente a metade do valor das prestações pagas pelo empréstimo para aquisição do imóvel, o que pressupõe uma igual contribuição (ou esforço) para tal pagamento ao credor bancário.
Ora, resultou não provado que a A. contribuiu para o pagamento da prestação do dito empréstimo bancário (al.ª e) dos factos julgados não provados), tal como que efetuou tarefas no imóvel nos restantes anos (al.ª f) do quadro não provado), pelo que apenas se apura que num ano a A. assegurou a limpeza do imóvel e lavou e passou roupas de cama e banho (facto 6-).
Assim sendo, não se vê que a A./Apelante tenha efetivamente contribuído economicamente, com dinheiro ou esforço pessoal, para a aquisição do imóvel ou para o pagamento das respetivas prestações bancárias.
Aquele facto – apurado – de durante um ano ter assegurado a limpeza do imóvel e lavado e passado roupas de cama e banho não lhe confere, obviamente, direitos sobre o prédio, nem mostra que tenha contribuído, nos moldes alegados e com a finalidade em questão, para a satisfação do credor bancário, tal como o não mostra, de per se, a sua posição de fiadora no empréstimo (o garante não se torna credor do devedor pelo simples facto da prestação da garantia, mas pelo pagamento que haja feito, por força da garantia, em vez do devedor).
Assim, se da circunstância de as pessoas viverem em união de facto não resulta, sem mais, que ambas contribuem em igual medida para as despesas do agregado e para a aquisição de património por alguma delas, dos autos não consta a prova necessária à conclusão de que a A./Apelante contribuiu para o pagamento das prestações do empréstimo bancário e o fez em igual medida (ou com similar esforço) relativamente ao R., o único devedor ao banco (cfr. facto 5-).
Quanto aos veículos automóveis (dois), o que resulta apurado é que foram adquiridos e pagos pelo R., com registo de aquisição a favor deste (factos provados 13- a 15-, havendo lapso manifesto de escrita no facto 15-, pois se pretendia escrever “R.” em vez de “A.”).
Com efeito, foi julgado não provado que “A A. adquiriu também o automóvel referido em 13), modelo Saxo, no valor de € 1.000, e o automóvel referido em 14), modelo Golf, no valor de € 3.000” (cfr. al.ª c) do quadro não provado).
Assim, também os dois veículos foram adquiridos pelo R. e por ele pagos, motivo pelo qual a aquisição se encontra com registo a seu favor (e não a favor da A.).
Mas contribuiu esta para a sua aquisição?
Só pode responder-se que nada mostra que assim tenha sido, pelo menos em termos diretos. E está até julgado como não provado (cfr. al.ª l) do quando não provado) que a A. tenha contribuído para a aquisição dos bens referidos em 3), b) e c), isto é, do dito imóvel, dos móveis que constituem o recheio das duas casas de habitação e dos dois veículos automóveis.
Mas se assim é, também não se logrou sequer provar:
- que o R., à revelia da A., se certificou que todos os bens sujeitos a registo fossem averbados/registados apenas em seu nome (cfr. al.ª g) do quadro não provado);
- que a A. pagava o telemóvel, vestuário e combustível consumidos pelo agregado familiar [al.ª h)];
- que a A. pagava as consultas médicas e medicamentos dos filhos de ambos, bem como material escolar e outras despesas educacionais daqueles [al.ª i)]; e
- que os rendimentos auferidos pela A. eram integralmente investidos no acervo financeiro do casal e contribuíam para a economia comum do casal, o que fazia na convicção da continuação e subsistência da convivência/união [al.ª k)].
Apenas se prova, então, neste âmbito, que:
«17- A A. pagou o combustível e uma ou outra despesa corrente com a manutenção do veículo referido em 13) [aquele que ela utilizava];
18- A A. comprou alguns géneros alimentares para a família, os quais foram por vezes pagos com o cartão do R., que continha o valor do subsídio de refeição;
19- A A. pagou algumas botijas de gás;
20- A A. pagou algum vestuário para os filhos com o seu dinheiro;
21- O R. suportava mensalmente compras de supermercado no valor de € 200,00;
22- O R. pagou € 2.500,00 pelo aparelho dentário da filha;
23- O R. pagou os óculos da filha, no que gastou € 682,00.».
Quer dizer, faltou provar o invocado investimento (integral) dos rendimentos auferidos pela A. no acervo financeiro dos unidos e a contribuição dela, por isso, para a economia comum, para o que não bastaria a demonstração daqueles pagamentos acabados de descrever.
Aqui chegados, deve dizer-se, atentas as vicissitudes do caso, que se concorda com a jurisprudência citada na decisão recorrida, mormente o Ac. STJ de 06/07/2011 (() Proc. 3084/07.7TBPTM.E1.S1 (Cons. Sérgio Poças), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I- Não estando, como não está, o unido de facto vinculado juridicamente ao cumprimento dos deveres conjugais previstos nos arts 1672.º e segs. do CC, e porque o regime da união de facto nada prevê nesse sentido, necessariamente, não existe o direito a indemnização pela ruptura daquela união nem pelos eventuais danos não patrimoniais que a dissolução daquela tenha causado. // II- Em caso de dissolução da união de facto, o trabalho doméstico que a autora fez enquanto viveu naquela situação com o réu, porque constitui uma participação livre para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos, não lhe confere o direito de restituição do respectivo valor.». Cfr. também, inter alia, o Ac. STJ, de 20/03/2014, Proc. 2152/09.5TBBRG.G1.S1 (Cons. Nuno Cameira), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «II- No âmbito de uma união de facto, as despesas normais e correntes (água, electricidade, gás e televisão), sendo próprias de quem vive, ainda que “informalmente”, a plena comunhão de vida de que fala o art.º 1577.º do CC, não são restituíveis, à luz do instituto do enriquecimento sem causa. // III- Deve entender-se que não ocorreu uma efectiva deslocação patrimonial geradora do enriquecimento da ré à custa do autor, se durante os sete anos da união de facto mantida, o autor tiver pago várias quantias relacionadas com o imóvel, pertencente à ré, onde o casal residiu, mas beneficiado do trabalho doméstico por ela sempre prestado. // IV- A falta de causa do enriquecimento não se basta com a cessação da união de facto; torna-se necessário que o autor alegue e prove que as deslocações patrimoniais se verificaram no pressuposto, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência da união de facto.».), segundo o qual «o trabalho doméstico que a autora fez enquanto viveu (em união de facto, retenha-se) com o réu» traduz atividade que «tem de ser vista, nas circunstâncias concretas, com a sua participação, livre, para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos», não estando «em causa qualquer enriquecimento do réu à custa da autora», já que o trabalho desta «era a sua contribuição para a vida em comum, mas da matéria de facto não resulta que só a autora contribuísse para as despesas do lar.
Se a autora cozinhava, naturalmente que os géneros teriam de ser comparados e nada faz presumir que fosse a autora que tudo pagasse.».
A contribuição da A., «envolvendo necessariamente um dispêndio de energias e de força de trabalho – os serviços domésticos – mais não é, afinal, que o cumprimento de uma obrigação natural – a de contribuir para a comunhão de vida (comunhão de cama, mesa e habitação) e para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos.».
Assim, afigura-se-nos correto o entendimento no sentido de que «a contribuição para a economia comum na união de facto, desde que assente a ausência de vínculos juridicamente relevantes entre os seus membros», cai, por regra, no regime das obrigações naturais (cfr. art.ºs 402.º e segs. do CCiv.), pelo que «não pode ser repetido o que foi prestado espontaneamente em cumprimento de uma obrigação natural» (n.º 1 do art.º 403.º do CCiv.).
E também haverá de concordar-se – repete-se, e salvo o devido respeito – que, não sendo o trabalho despendido no lar judicialmente exigível no âmbito da união de facto, a sua prestação como contribuição para a economia comum se configura como cumprimento espontâneo de obrigação natural, insuscetível de ser repetido, pelo que falece à apelante e autora o direito à restituição do respetivo valor.
Assim sendo e não resultando, por outro lado, provado que a Recorrente tenha adquirido os bens em causa, sozinha ou em conjunto com o Recorrido, ou que tenha contribuído para a sua aquisição, através do concurso no pagamento do preço ou das prestações do empréstimo bancário, ou sequer que tenha canalizado os rendimentos que auferia, designadamente em termos de integralidade, para um acervo financeiro comum (da união), em específica contribuição para uma economia comum de ambos, que motivasse/sustentasse/assegurasse as aquisições dos móveis (recheios e veículos) e a satisfação do credor bancário, não se vê como possa ocorrer in casu um enriquecimento injusto do Apelado à custa da Apelante, na perspetiva da ação por enriquecimento, consabido assentar a obrigação de restituição em locupletamento injustificado de uma parte à custa do património da outra.
Com efeito, são bem conhecidos os contornos jurídicos relevantes da convocada figura do enriquecimento sem causa.
No âmbito deste instituto, trata-se da verificação quanto a um injusto locupletamento, por destituído de causa justificativa, de uma parte à custa do património da outra, com o decorrente dever de restituição daquilo com que injustamente se enriqueceu – compreendendo tudo quanto se obteve à custa do empobrecido ou, não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente (cfr. art.ºs 473.º e 479.º, ambos do CCiv.) –, independentemente da prática de um qualquer facto culposo (() Já, por exemplo, na obrigação indemnizatória por responsabilidade civil extracontratual está, diversamente, em causa a reparação de um dano, causado a outrem, decorrente de facto ilícito e culposo, como tal imputável ao lesante (art.º 483.º, n.º 1, do CCiv.).).
Assim, o enriquecimento sem causa depende (cumulativamente) da verificação da existência de (i) um enriquecimento, (ii) que seja obtido à custa de outrem, (iii) faltando uma causa justificativa.
Em sede de enriquecimento sem causa, é pacífico que a vantagem em que o enriquecimento (() Visto como um enriquecimento real ou patrimonial, traduzindo-se este último na “diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (situação real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)”, sendo certo que, nesta sede, “a obrigação de restituir se pauta pelo efectivo alcance das vantagens no património do enriquecido” – assim M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 492 e seg.. ) se manifesta pode traduzir-se no evitar de uma despesa – por exemplo, evitar pagar certo montante de renda de casa por se utilizar uma casa de que se não paga renda ou de que se paga uma renda abaixo do valor locativo –, mas também na aquisição de um novo direito ou no acréscimo de valor de um direito já existente – a propriedade de um bem ou “a mais-valia trazida a um prédio por trabalhos nele efectuados” (() Cfr. Almeida Costa, op. cit., p. 492.).
Essa vantagem, auferida por um sujeito, por repercutida no seu património, tem sempre de ocorrer para que haja enriquecimento sem causa, sendo suportada por outrem, com inerente, por regra, diminuição patrimonial, a qual pode traduzir-se, por exemplo, numa renda que se não cobra. Todavia, pode até “não se verificar qualquer efectivo empobrecimento”, já que “… o instituto abrange situações em que a vantagem adquirida por uma pessoa não resulta de um correspondente sacrifício económico sofrido por outra – diminuição patrimonial ou simples privação de um aumento –, embora se haja produzido a expensas desta, à sua custa. Recordem-se, por exemplo, certos casos de uso de coisa alheia sem prejuízo algum para o proprietário” (() Assim Almeida Costa, op. cit., p. 492. Também Pires de Lima e Antunes Varela aludem, neste âmbito, ao uso ou consumo de coisa alheia, como, por exemplo, a instalação em casa alheia (cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 454). ).
Ponto é que o enriquecimento – à custa de outrem – se verifique e careça de causa justificativa, ou por nunca a ter tido ou por a ter perdido (() Cfr., por todos, Almeida Costa, op. cit., p. 499, e Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 454.), tornando-se, por isso, injusto e, como tal, inaceitável para o direito.
Imprescindível é ainda a ausência de outro meio jurídico – se a lei não faculta ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído –, pois que estamos perante obrigação com natureza subsidiária, como resulta do art.º 474.º do CCiv. (() Ver ainda Almeida Costa, op. cit., p. 501.).
A obrigação de restituir abrange, segundo o preceituado no art.º 479.º do CCiv., tudo quanto o enriquecido obteve à custa do empobrecido ou, não sendo possível a restituição em espécie, o correspondente valor em dinheiro (n.º 1), não podendo, porém, exceder-se a medida do locupletamento efetivo (n.º 2), do enriquecimento patrimonial obtido, nem o montante do empobrecimento do lesado, se inferior àquele.
In casu, pretende a A. (ex-unida de facto), como visto e no fundo, uma “repartição a meias” de determinados ativos patrimoniais que se encontram no património do R. (o outro ex-unido de facto), como se se tratasse de uma “quase partilha” (de um património comum ou a que se teria um direito igualitário), sob invocação de que a obtenção desses ativos resultou de uma contribuição conjunta (esforço patrimonial/económico de ambos dirigido à aquisição dos respetivos bens).
Como, porém, tal não se logrou provar, indemonstrado fica o requisitório que poderia fazer intervir o convocado instituto do enriquecimento sem causa (() Cfr. ainda o Ac. STJ, de 24/10/2017, Proc. 3712/15.0T8GDM.P1.S1 (Cons. Ana Paula Boularot), em www.dgsi.pt, no sentido de, quer as relações pessoais quer as relações patrimoniais na união de facto não estão sujeitas ao regime específico que o casamento prevê quanto a esta matéria, sendo os seus efeitos a esses níveis diversos dos que provêm do casamento, ficando os patrimoniais sujeitos ao regime geral, sem prejuízo, contudo, do que as partes possam convencionar entre si (v.g, aquisição de bens em conjunto, abertura conjunta de contas bancárias e sua movimentação), sendo que as regras substantivas que regulam as relações entre os cônjuges, bem como entre estes e terceiros, são regras especiais que não compreendem aplicação analógica.
Ora, in casu, de acordo com a matéria provada, nem se surpreendem aquisições em comum ou de bens em conjunto, nem qualquer contribuição específica/concreta, da Recorrente, direcionada para tais aquisições ou para a satisfação de encargos decorrentes dessas aquisições.) (() Como é também consabido, cabe ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento – cfr. Ac. STJ, de 24/03/2017, Proc. 1769/12.5TBCTX.E1.S1 (Cons. António Piçarra), em www.dgsi.pt –, sendo que, como visto, no caso não se logrou demonstrar uma contribuição monetária de um dos membros da união de facto (a A./Recorrente) para qualquer construção ou aquisição patrimonial que não se enquadrasse no âmbito da satisfação dos encargos da vida familiar [cfr. Ac. STJ, de 03/11/2016, Proc. 390/09.0TBBAO.S1 (Cons. Olindo Geraldes), em www.dgsi.pt].).
Donde que nada haja, salvo o devido respeito, a censurar à decisão recorrida.
Improcede, pois, a apelação.

***
IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):
1. - Na união de facto, os unidos não estão juridicamente vinculados ao cumprimento dos deveres conjugais previstos na lei para o casamento (art.ºs 1672.º e segs. do CCiv.), por o regime da união de facto não o prever, não equiparando, neste âmbito, as uniões de facto ao casamento civil, nem sendo o regime específico deste aplicável àquelas.
2. - Dissolvida a união de facto, o trabalho doméstico que um dos membros/unidos desenvolveu no tempo de duração da união, constituindo participação livre para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos, não lhe confere o direito à restituição do respetivo valor, nem a qualquer forma de partilha de valor quanto a bens pertencentes ao outro.
3. - Não se provando que um dos unidos de facto contribuiu para a aquisição de determinados bens por parte do outro – falta o apuramento de um esforço patrimonial/económico conjunto para aquisições patrimoniais por ambos –, não pode ele, extinta a união, pretender a partilha, em termos de restituição de valor (na proporção de metade), desse património alcançado pelo outro.
4. - A ação por enriquecimento sem causa depende da verificação de um enriquecimento à custa de outrem, que careça de causa justificativa, por nunca a ter tido ou por a ter perdido, tornando-se, assim, injusto e inaceitável para o direito, correndo o respetivo ónus da prova contra o demandante.
5. - Não se compreende no instituto do enriquecimento sem causa situação em que, depois extinta a união de facto, um dos ex-unidos, que foi fiador do outro (proprietário) no âmbito de um crédito bancário à habitação, mas não provou ter contribuído para o pagamento das prestações do empréstimo, vem pedir o reembolso de metade do valor das prestações pagas ao longo do período temporal de duração da união de facto.
***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da A./Apelante.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 22/05/2018

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro