Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
468/11.0TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
ASSEMBLEIA GERAL
CONVOCATÓRIA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COVILHÃ 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.58, 167, 248, 374, 374-A, 377 CSC, 334 CC
Sumário: 1. A eventual falta de isenção ou não independência do presidente da mesa da assembleia geral de uma sociedade anónima, por violação dos requisitos previstos no art. 374º, nº 5, “ex vi” do art. 374º-A, do CSC, pode reflectir-se no modo ou processo de formação – convocação da reunião, reunião dos sócios, a discussão e apresentação de propostas, a votação, a contagem dos votos, o apuramento do resultado, etc. – das deliberações sociais, mas então é a esta luz, vício formal de procedimento deliberativo, que se deve apurar se a deliberação é anulável, nos termos do art. 58º, nº 1, a), do CSC.

2. A eventual não isenção do presidente da mesa da assembleia geral poderá é determinar a sua destituição por justa causa à sombra do art. 374º-A, nº 2, do CSC.

3. A convocação da assembleia geral de uma sociedade anónima como resulta da lei (art. 377º, nº 2, e 167º, nº 1, do CSC) e no caso dos autos dos estatutos, deve ser feita por publicação em sítio institucional da Internet, sem prejuízo de os estatutos exigirem, ainda, uma forma adicional de comunicação (nos termos do nº 3 daquele preceito).

4. Caso todas as acções sejam nominativas, podem os estatutos prever a substituição das ditas publicações por comunicação aos accionistas através de carta registada.

5. Prevendo os estatutos da recorrida tal faculdade, e deixando ao critério do presidente da mesa a possibilidade de optar por uma ou outra forma de convocação, ainda que todas as acções sejam nominativas o presidente poderá optar por efectuar a convocação não através de envio de cartas registadas, mas sim através do sistema de publicação.

6. Mesmo que durante vários anos a convocação da assembleia geral tivesse sido feita através de carta registada, o presidente da mesa não está obrigado a adoptar tal forma de convocação, em vez do sistema de publicação, já que nesta matéria não há usos ou práticas a que a lei mande atender.

7. A base legal para uma aplicação da doutrina da confiança, no direito português, por forma a vedar o “venire contra factum proprium”, reside no art. 334º do CC, e, de entre os elementos nele enunciados, na boa fé.

8. Não age em “venire” o presidente da mesa da assembleia geral de uma sociedade anónima, se convoca tal assembleia mediante a publicação legal, apesar de durante vários anos se ter usado habitualmente a carta registada, se tal publicação é o meio legal e estatutário de convocação da assembleia geral; nem esse “venire” existe se o presidente não está vinculado à convocação da assembleia unicamente por meio de carta registada, apesar de acções serem todas nominativas, podendo neste caso optar, face à lei e estatutos, entre a convocação por publicação ou por carta registada.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. M (…) residente em (...), Covilhã, propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra J (…), S.A., com sede em (...), Covilhã, pedindo a anulação das deliberações tomadas no dia 4.3.2011 e 9.3.2001 em assembleia geral, ou nas datas alternativas de 24.3.2001 e 29.3.2011.

Alegou, em síntese, que é accionista da sociedade ré, que a estrutura accionista da sociedade é de natureza familiar e assim se manteve, sendo que essas relações ficaram deterioradas devido a diversos episódios, que descreveu. Teve conhecimento, no dia 18.3.2011, que tinham sido convocadas duas assembleias gerais da sociedade ré: a primeira convocatória foi publicada no dia 31.1.20011, no site de publicações oficiais online do Ministério da Justiça, cujo conteúdo referiu; a segunda foi publicada no dia 1.2.2011, no mesmo site de publicações oficiais, cujo conteúdo também mencionou. As convocatórias em causa foram realizadas pelo Presidente da Mesa de Assembleia Geral, o qual optou pelo recurso à publicação e não ao envio por carta registada. Ora, o referido Presidente, que desempenha funções na sociedade desde que a mesma foi transformada em sociedade anónima, não podia ignorar quem era os accionistas à data. Este esteve na entrega dos títulos nominativos a cada accionista, fazendo ele próprio a conferência e entrega dos títulos. Até à data em causa, atenta a estrutura familiar da sociedade, as convocatórias para assembleia sempre haviam sido efectuadas por carta registada, por e-mail ou até por fax, e nunca antes havia sido utilizada a publicação. A alteração foi efectuada com o objectivo de evitar que o autor estivesse presente e participasse nas referidas assembleias gerais e de na primeira poder votar, em violação do prescrito no art. 21º do CSC. Que existiu um claro abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” (art. 334º do CC), inquinando as deliberações tomadas nessas assembleias. Não foi, também, cumprido nas convocatórias o disposto no art. 377º do CSC - a não explanação do procedimento de voto por correspondência. Também não foi cumprido o disposto no art. 289º, nº 4 do CSC – a não publicação no site da empresa das listas concorrentes aos órgãos sociais e respectivos candidatos.

Concluiu que as deliberações tomadas padecem dos vícios prescritos no art. 58º, nº 1, als. a) e c) do CSC, e, como tal, devem ser anuladas.

A ré contestou, referindo que a assembleia geral designada para o dia 4.3.2011/alternativa 24.03.2011 não se realizou, pelo que não existe qualquer anulação que possa ser pedida por falta de objecto. No dia 9.3.2011, pelas 15 h, foi realizada a assembleia convocada para esse dia, através de publicações oficiais, conforme a respectiva acta, redigida por Notário, que juntou. Ambas as assembleias gerais foram convocadas de acordo com o art. 13º do pacto social. O Presidente da Assembleia Geral convocou a mesma nesses termos já que o Conselho de Administração não lhe podia garantir que as pessoas que constavam do registo das acções eram ainda, nessa data, os proprietários das acções, pois todos os accionistas tinham levantado as mesmas e podiam ter sido vendidas a terceiro. Não houve qualquer abuso de direito, mas antes procedeu-se com cautela.

Na audiência preliminar, o autor, em face da contestação e da acta da assembleia geral realizada, reduziu o pedido, para a anulação das deliberações tomadas na assembleia geral realizada no dia 9.3.2011, o que foi deferido.

*

Em saneador-sentença de seguida proferido, a acção foi julgada improcedente.

*

2. O A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

I- A extensa impugnação apresentada pela Recorrida, que impugna inclusive o teor de documentos subscritos pelos próprios membros do Conselho de Administração, não vê o Recorrente, como se alcança a segurança dos autos conterem todos os elementos necessários para se proferir decisão, mormente nos artº 94 e 95 da p.i.;

II- Na decisão recorrida não foram devidamente considerados elementos de facto, aceites pela Recorrida, relevantes para a boa sentença a proferir:

- omitida a data desde que o Recorrente é sócio da Recorrida – a partir da constituição, desta em 1987, conf. consta do artº 3º e 4º da p.i. e doc. nº 2,

- Atenta a transformação da sociedade em anónima, registada em 26/10/95, o Recorrente, tornou-se e manteve-se como accionista – artº 6 .pi., aceite;

- O Recorrente era sócio e depois accionista da Recorrida, ininterruptamente, durante 24 anos;

- A estrutura accionista era e manteve-se familiar (artº 10 da p.i.);

- No dia 23/07/08, foi deliberado um aumento de capital social da Recorrida, com emissão de novas acções, apenas sob o tipo nominativo (artº 11 e 12 da p.i. -sabia-se em nome de quem, haviam sido emitidos os referidos títulos, registados no livro de registos, com intervenção da D. Mª da Conceição e entrega e conferência dos títulos aos accionistas, pelo Sr. Presidente da mesa de assembleia geral;

-Na assembleia geral de 28/04/10, constatável a inalterabilidade qualitativa e quantitativa dos accionistas (após o share buy back , deliberado em 30/06/09 vide artº 19 e 21 da p.i.);

-- O Presidente da mesa de Assembleia Geral, Dr. (…), acompanhava, no exercício dessas funções, a Recorrida, desde o ano da sua transformação em sociedade anónima, i.é, desde 1995, vide artº 6 e 10 da p.i., sendo que o primeiro, na qualidade de advogado, acompanhava a vida da sociedade desde a sua constituição (1987);

- Em trocas de correspondência, de Setembro de 2010 a Fevereiro de 20011, o Recorrente actuou como accionista da Recorrida e o Conselho de Administração assim o tratou e reconheceu (ainda que não respeitando os seus direitos). Quando solicitou informações e cópia da acta de 09/03/2011, foi-lhe negada a qualidade de accionista;

- Foi alterado o procedimento de convocatória das assembleias gerais durante 24 anos, ininterruptos, da existência da Recorrida, nunca houve outra forma de convocatória senão por carta registada !!!

- Nas duas convocatórias, tanto se afirma a existência, como a inexistência de livro de registos, como a inexistência e a existência de averbamentos;

- O Sr. Presidente da Mesa de Assembleia Geral não podia ignorar quem eram os accionistas, pois os títulos que haviam sido emitidos eram todos nominativos.

- A única alteração que houve ocorreu por parte das accionistas (…) e Mª (…), que vieram a constituir uma nova sociedade detentora das participações daquela na Recorrida, facto que o Sr. Presidente da Mesa de assembleia geral, tinha conhecimento pois passou a exercer idênticas funções na nova accionista;

III- Não se trata de averiguar da conformidade da actuação do Presidente da mesa da assembleia geral com a lei e os estatutos, antes se ele podia, além de optar pela publicação, deixar de convocar os accionistas conhecidos, pelo meio ininterruptamente utilizado , durante 24 anos – carta registada;

IV- A figura do abuso de direito não é apenas aplicável ao exercício de direitos subjectivos – ubi lex non distinguit, neque nos distinguere debemus !

V- A economia processual, não pode sacrificar a necessária punição de tão evidente e flagrante violação dos direitos dos accionistas, previstos no artº 21 do CSC. É porque ao Tribunal também está acometida uma função de prevenir abusos e litígios futuros.

VI- O comportamento em apreço é manifestamente abusivo do Direito, nos termos do artº 334 do CC., outro comportamento, ao Sr. Presidente da mesa da AG, lhe era imposto e devido – actuou em violação do artº 21 do CSC.

VII- Ao actuar em flagrante desconformidade ao uso reiterado e prática habitual da convocatória das assembleias gerais da Recorrida por carta registada, o Sr. Presidente da mesa de assembleia geral da Recorrida visou impedir e efectivamente impediu o Recorrente de participar na referida assembleia, sendo que, quanto à accionista (…), impediu-a não só de estar presente, participar, mas também de votar. Tudo contrário ao previsto no artº 21 do CSC,

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida, e ANTES deverá ser considerada procedente a acção, como peticionado: anulação da deliberação de 09/03/11, com o que se fará JUSTIÇA !

3. A R. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II – Factos Provados

1. A J (…), S.A. tem por objecto a actividade de concepção, desenvolvimento, produção e comercialização de expositores, plásticos, madeiras, metais e vidros.

2. O autor é sócio da sociedade ré e foi presidente do conselho de administração de 2003 até 2010.

3. O acordo social da ré, denominado “contrato da sociedade industrial J (…) S.A.”, no seu art. 6º dispõe que:

4. As acções são nominativas ou ao portador e são reciprocamente convertíveis nos termos da lei (…)

No seu art. 13º o mesmo estipula que:

“A assembleia geral será convocada pelo presidente da mesa, e nos casos especiais previstos na lei, pelo órgão de fiscalização ou tribunal.

& 1º - A convocatória para a constituição da assembleia geral deverá observar o formalismo legal em vigor à data da convocação.

& 2º - Quando as acções sejam nominativas e na ordem de trabalho não se compreenda nenhum dos assuntos para que a lei determine outra forma de convocação poderá o presidente da mesa substituir a publicações por cartas registadas, devendo mediar pelo menos vinte e um dias entre a expedição das cartas registadas e a data da reunião”.

5. No sítio da internet do portal do Ministério da Justiça – Publicação On-Line de Acto Societário – o Presidente da Assembleia Geral da J (…) S.A., fez publicar, em 1.02.2011 a seguinte convocatória:

(…) convoca-se a Assembleia Geral da sociedade para o próximo dia 9 de Março de 2001, pelas 15 horas, com a seguinte ordem de trabalhos:

Ponto único: Deliberação sobre a propositura pela sociedade de acção para o exercício do direito de indemnização a intentar contra o Sr M (…) que foi administrador da sociedade, por actos por este praticado no exercício das funções de presidente do conselho de administração, bem como deliberação sobre a designação de um representante especial da sociedade, advogado, para patrocinar tal acção, tido nos termos do art. 75º do Código das Sociedades Comerciais.

A assembleia Geral terá lugar na sede da sociedade.

A presente assembleia geral não é convocada por carta registada, por opção do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, nos termos do § segundo do art. 13º dos Estatutos por não se poder, face ao não depósito das acções na sociedade e à inexistência de averbamentos no livro de registos das mesmas e por, nos termos do art. 6º dos Estatutos estas serem reciprocamente convertíveis entre nominativas e ao portador, confirmar que todas as acções são nominativas (…).

Nos termos do n.º 3 do art. 75º do Código das Sociedades Comerciais não pode votar na deliberação prevista na ordem de trabalhos a pessoa cuja responsabilidade está em causa.

A cada 10 acções corresponde um voto.

Nos termos do n.º 4 do art. 383º do Código das Sociedades Comerciais fica desde já convocada a assembleia para uma segunda convocatória, no cado de não se poder reunir na data arcada, por falta de representação de capital social exigido por lei, sendo marcado como dia de reunião em segunda convocatória as 15 horas do dia 29 de Março de 2011.

6. No dia 9 de Março de 2011, pelas 15:00 horas, na Zona Industrial do (...), da freguesia do (...), concelho da Covilhã, reuniu-se a assembleia geral da sociedade “J (…), S.A.”, com a presença e fazendo-se representar accionistas titulares de cinquenta e oito virgula setenta e nove por cento, cuja respectiva acta foi elaborada por Notário do Cartório Notarial da Covilhã.

7. Nessa assembleia geral estiveram presentes:

(…), titular de vinte acções, que interveio por si, na qualidade de presidente do conselho de administração e ainda em representação de I (…) SGPS, S.A., titular de dez mil e novecentas acções;

(…), titular de vinte e oito acções, que interveio por si e em representação de (…), titular de oitocentas e dez acções.

8. Nessa assembleia foi proposto que:

a. a sociedade delibere interpor contra o ex administrador M (…) uma acção de indemnização pelos danos que este originou e vai originar à sociedade, pelos seus comportamentos (descritos em acta) e por outos que entretanto se venham a apurar, nomeando a sociedade para o exercício desse direito como seu representante o Senhor Dr. (…), advogado, a quem o Conselho de Administração deverá outorgar a competente procuração, para que este interponha a acção de indemnização e ainda que proponha também acção que vise declarar sem qualquer efeito o documento denominado “contrato de fornecimento” alegadamente assinado em 8 de Fevereiro de 2010 em Willmington NC, por M (…) em nome da sociedade J (…) S.A, bem como interponha também acção para declarar a nulidade da autorização que o referido Senhor M (…) deu na escritura de cessão de quotas ocorrida na Alemanha.

b. a assembleia-geral ratifique o contrato nulo celebrado entre a sociedade e o Senhor M (…) referente à venda a este do veículo automóvel marca Mercedes Benz.

9. Por unanimidade de voto dos accionistas presentes e representados, foi aprovada a proposta (supra descrita) apresentada.

10. No âmbito da sua actividade, foi a primeira vez que a assembleia geral da sociedade ré foi convocada nos termos referidos em 5.

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3, e 685º-A, do CPC).

Nesta conformidade a única questão a decidir é a seguinte.

- Se as deliberações sociais aprovadas na assembleia geral da ré do dia 9.3.2011, padecem do vício de procedimento apontado pelo recorrente e em caso afirmativo se há lugar à anulação das mesmas.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“O regime das invalidades das deliberações assenta na distinção entre vícios ocorridos no procedimento deliberativo (vícios de procedimento) e vícios de conteúdo da deliberação (vícios de conteúdo).

O procedimento deliberativo – ou “modo ou processo de formação” – constituiu uma sucessão de actos ordenados – convocação da reunião, reunião dos sócios, a discussão e apresentação de propostas, a votação, a contagem dos votos, o apuramento do resultado, etc. – tendo em vista a produção de determinado efeito final: a deliberação.

A existência de um vício em qualquer um destes aspectos teremos um vício de procedimento da deliberação.

(…)

No caso dos autos o autor vem invocar vícios de procedimento relativamente à deliberação tomada na assembleia geral da sociedade ré, do dia 9 de Março de 2011.

(…)

Todo o sócio tem direito a participar nas deliberações, sem prejuízo das restrições prevista na lei (art. 21º, n.º 1, al. b) do CSC.

Para esse efeito, as deliberações são tomadas (as mais das vezes) em assembleia geral convocada, isto é, com prévio chamamento dos sócios através de convocatória para a reunião.

Nas assembleias gerais o direito de participar implica o de usar da palavra, o de colocar questões, o de adiantar argumentos, o de formular propostas e o de votar (vide, neste sentido, António Menezes Cordeiro (Coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª ed., 2011, p. 142).

É através do voto que o sócio manifesta a sua vontade, que, por sua vez, contribuirá para a formação da vontade social.

(…)

Há sócios, contudo, sem direito de voto, em casos de supressão do direito de voto ou nos casos de impedimento.

Diz-se, então, que o direito de participar está limitado, contudo, o direito de estar presente na assembleia e de nela discutir não pode ser suprido, mesmo que o sócio esteja impedido de votar (arts. 21º, n.º 1, al. b) e 248º, n.º 5 do CSC) (neste sentido, sobre o que vimos dizendo, vide Coutinho de Abreu e Outros, Códigos das Sociedades Comerciais em Comentário, 2010, p. 356 e ss.).

A participação nas deliberações envolve naturalmente o direito de ser convocado para a assembleia geral.

In casu, a sociedade ré é uma sociedade anónima.

O autor é sócio dessa sociedade anónima.

No dia 9 de Março de 2011, a sociedade ré tomou deliberações em assembleia geral.

Portanto, autor tem direito de participar nas deliberações da sociedade e, nomeadamente, na deliberação tomada na assembleia geral do dia 9 de Março de 2011.

O autor – conforme resulta da acta da assembleia geral – não esteve presente na dita assembleia.

O autor alega que não teve conhecimento da convocatória.

A ré defende que a assembleia geral foi convocada nos termos legais e contratuais.

(…)

A questão que se coloca é a de se saber se foram praticados actos ou omitidos actos que consubstanciam a violação de preceitos legais ou estatutários quanto à convocatória da assembleia, isto quanto à forma e ao conteúdo (o autor nada alega quanto a vícios na autoria da convocatória, nem ao respectivo prazo).

Em regra, a ocorrência de um vício no procedimento determina a anulabilidade da respectiva deliberação, nos termos do art. 58º, n.º 1, al. a) do CSC.

(…)

O autor, na sua petição inicial, defende que carece de fundamento o recurso à publicação, que nunca antes havia sido utilizada.

Alega o autor que a sociedade ré tem uma natureza exclusivamente familiar, os sócios são conhecidos, o Presidente da mesa da assembleia geral sabe que o autor é sócio da sociedade, pelo que a assembleia deveria ter sido convocada, como sempre, por carta registada (ou mesmo por e-mail ou fax).

Quid iuris ?

A violação do procedimento pode resultar de contrariedade à lei ou aos estatutos da sociedade.

Verifiquemos, em primeiro lugar, a lei.

(…)

As assembleias gerais são, desde logo, como, aliás, no caso em apreço, convocadas pelo presidente da mesa (art. 377º, n.º 1 do CSC).

A convocatória deve ser publicada (art. 377º, n.º 2 do CSC) e mencionar os elementos descritos no n.º 5 do mesmo artigo.

Determina o n.º 3 do art. 377º do CSC (redacção da reforma de 2006), porém, que o “contrato de sociedade pode exigir outras formas de comunicações aos accionistas e, quanto sejam nominativas todas as acções da sociedade, pode substituir as publicações por cartas registadas ou, em relação aos accionistas que comuniquem previamente o seu consentimento, por correio electrónico com recibo de leitura”.

A publicitação é hoje feita na Internet (art. 167º, n.º 1 do CSC) (antes era na III Série do Diário da República).

Desde 1 de Janeiro de 2006, o sítio da internet no qual devem ser feitas as publicações obrigatórias de actos societários é www.mj.gov.ot/publicacoes, de acordo com a Portaria n.º 590-A/2005, de 14.07.

Ora, conforme resulta da factualidade julgada provada, a convocatória da assembleia geral de 9 de Março de 2011 foi objecto de publicação, na Internet, conforme às exigências legais enunciadas.

O autor defende que deveria ter ocorrido por carta registada ou, porventura, por e-mail ou fax.

O autor alega que, por um lado, é um sócio conhecido e, por outro lado, sempre foi esse o procedimento habitual em anteriores convocatórias.

(…)

Verifiquemos, então, o que diz o contrato social a este respeito.

No seu art. 13º o contrato social dispõe que:

& 1º - A convocatória para a constituição da assembleia geral deverá observar o formalismo legal em vigor à data da convocação.

& 2º - Quando as acções sejam nominativas e na ordem de trabalho não se compreenda nenhum dos assuntos para que a lei determine outra forma de convocação poderá o presidente da mesa substituir a publicações por cartas registadas, devendo mediar pelo menos vinte e um dias entre a expedição das cartas registadas e a data da reunião”.

Portanto, de forma clara podemos, interpretando o contrato social, concluir nos seguintes termos:

A lei – o Código das Sociedades Comerciais – prevê que o contrato de sociedade pode exigir outras formas de comunicação e, nomeadamente, quando sejam nominativas todas as acções da sociedade, pode substituir as publicações por cartas registadas ou, em relação aos accionistas que comuniquem previamente o seu consentimento, por correio electrónico com recibo de leitura.

(…)

Portanto, sendo as acções nominativas, o contrato social concede ao presidente da mesa da assembleia geral o direito (contratual) de decidir convocar a assembleia geral mediante a publicação legal na Internet ou por cartas registadas.

Na situação sub judice o presidente da mesa da assembleia geral decidiu convocar a assembleia geral mediante a publicação na Internet.

Ao fazê-lo, o presidente da mesa cumpriu quer as exigências legais a este respeito (art. 377º, n.º 2 do CSC e art. 167º, n.º 1 do CSC), quer as exigências contratuais – do contrato social – que, mesmo estando perante acções nominativas, permite optar entre a publicitação legal e a carta registada.

O presidente da mesa fez a sua opção e, desde modo, cumpriu os estatutos sociais.

Aliás, na publicitação realizada o presidente da mesa teve o cuidado de explicar a razão da sua opção, onde se pode ler: a presente assembleia geral não é convocada por carta registada, por opção do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, nos termos do § segundo do art. 13º dos Estatutos por não se poder, face ao não depósito das acções na sociedade e à inexistência de averbamentos no livro de registos das mesmas e por, nos termos do art. 6º dos Estatutos estas serem reciprocamente convertíveis entre nominativas e ao portador, confirmar que todas as acções são nominativas.

Repare-se que pode-se discutir se o presidente da mesa fez a melhor opção e se as razões dessa opção são verdadeiras.

O contrato social não exige que o presidente da mesa explicite as razões da sua opção.

Porventura, tal ocorreu na medida em que, anteriormente, a opção havia sido pela publicação por cartas registadas.

Contudo, o acordo social concede ao presidente da mesa o direito de optar quer pelo procedimento da publicação legal, quer pela publicação por carta registada (isto sendo as acções todas nominativas).

Julgamos, por isso, que a opção do presidente da mesa está duplamente legitimidade.

Por um lado, está legitimada na sua conformação com o contrato social que lhe permite decidir sobre a forma de publicação, mas, por outro lado, porque, tendo dúvidas sobre se as acções eram, na altura, todas nominativas, por cautela, optou pelo procedimento estipulado contratualmente que seria válido quer se tal ocorresse, quer não.

Recordo que, nos termos contratuais, a opção só existe se as acções forem todas nominativas.

Se assim não for, a convocação tem de obedecer à publicação legal, isto é, tem de ser publicada no sítio institucional da Internet.

Ora, nestes termos, perante as dívidas do presidente da mesa, temos de concluir que a opção tomada mostra-se perfeitamente prudente e conforme às normas legais e contratuais.

Em todo caso, mesmos que assim não fosse, isto é, sabendo o presidente da mesa que todas as acções eram nominativas, sempre poderia ter optado também pela publicitação legal, via Internet, conforme o fez.

Em suma: a convocatória realizada não viola qualquer disposição legal, nem contratual.

*

2.2.3. Da boa fé, do abuso de direito e da restante alegação do autor

O autor, como fundamento para o peticionado pedido, alega ainda que:

i) a sociedade tem – como sempre teve – uma estrutura accionista familiar;

ii) não é aceitável a opção do presidente da mesa, já que o mesmo sabia do tipo nominativo das acções;

iii) sabia da sua qualidade de sócio;

iv) nunca antes foi utilizada a publicação para convocar qualquer assembleia geral;

v) Foi mudado o procedimento habitual contrariando as justas e legítimas expectativas do autor;

vi) Tal actuação é contrária à boa fé e visou evitar que o autor estivesse presente e participasse na assembleia;

vii) A convocatória foi efectuada em claro abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” – art. 344º do CC.

Em nosso entender, salvo o devido respeito, o facto da sociedade ser de estrutura familiar e o facto do presidente da mesa conhecer a situação de sócio do réu, não é fundamento que justifique que o presidente da mesa fique limitado nos seus poderes estatutários.

Na verdade, mesmo estando perante acções nominativas, os estatutos sociais, concede ao presente da mesa o direito de optar por duas soluções quanto à publicitação.

Portanto, sendo assim, ao fazê-lo, o presidente da mesa cumpre o contrato social e não viola qualquer direito a este respeito que possa ser invocado pelo autor.

O autor sabe, porque conhece os estatutos sociais, que o presidente da mesa tem o direito de optar ou pela publicação legal ou pela publicação por carta registada.

Portanto, não pode defender a ilegitimidade contratual e legal da decisão do presidente da mesa, mas também o autor, enquanto homem prudente, não podia deixar de contar com tal comportamento contratualmente previsto e que conhece.

É verdade que foi mudado o procedimento de convocação da assembleia geral.

Contudo, essa mudança não é fundamento nem para a alegação de violação de boa fé, nem para se defender que isso violou as expectativas legítimas do autor.

O autor conhece o estatuto contratual da sociedade e, portanto, tem obrigação de saber que o mesmo concede ao presidente da mesa o direito de opção entre duas modalidades de convocatória para a assembleia geral.

Portanto, se assim é, parece-nos que o autor tem de contar com um das duas decisões.

A decisão do presidente da mesa é uma decisão com a qual o autor tem de contar.

Ora, se até essa data as anteriores convocatórias haviam sido por via postal registada ou mesmo por outros meios, isso não pode vincular o presidente da mesa a tal procedimento, quanto o contrato social lhe permite realizar outro tipo de publicação.

Na situação em apreço, a alteração de publicação está mesmo acompanhada de uma justificação, razão pela qual não se pode dizer que o presidente da mesa, ao actuar como actuou, quis afastar a presença do autor da assembleia geral.

A assembleia geral foi convocada mediante publicações em conformidade com a lei.

Julgamos que, sendo assim, não é possível concluir que, cumprindo as exigências legais, ainda lhe seria exigível um outro comportamento.

Não me parece possível concluir que, perante o cumprimento normativa referido, que o presidente da mesa não actuou de boa fé, tanto mais que o mesmo deixou claro as razões da opção tomada quanto à publicitação.

A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto e leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.

O autor tinha razões para saber que a assembleia geral podia ser convocada segundo duas modalidades, de acordo com a opção do presidente da mesa.

É isso que está contratualmente estipulado nos estatutos sociais.

Portanto, dentro deste comportamento, não pode o autor invocar que tinha a expectativa de que apenas uma delas fosse sempre cumprida.

Também não é possível concluir, perante o quadro normativo em apreço, que o presidente da mesa, ao actuar como actuou, visou o afastamento do autor da assembleia geral.

Defende mesmo o autor que a convocatória foi efectuada em claro abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” – art. 344º do CC.

O abuso de direito, consagrado no art. 334º do CC, prescreve que é “ilegítimo o exercício de um direito, quanto o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Ora, o direito que está em causa nestes autos é um direito procedimental.

Estaremos nós perante um abuso de direito procedimental ?

Não me parece que assim seja.

Na verdade, a proibição do venire contra factum proprium visa impedir uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente.

Ora, este instituto jurídico aplica-se ao exercício de direitos subjectivos ou de pretensões quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (vide a noção em Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Almedina, p. 50 e ss.).

Ora, na situação dos autos, o presidente da mesa não exerceu qualquer direito subjectivo ou pretensão, mas antes cumpriu uma norma procedimental de convocação de uma assembleia geral.

Em todo o caso, não me parece que se possa dizer que o autor é titular de uma legítima expectativa de que a assembleia geral seja convocada apenas de uma das modalidades previstas, tanto mais que a lei dá prevalência aquela que o presidente da mesa seguiu na situação dos autos.

Não existe expectativa jurídica que mereça tutelar jurídica, nem qualquer comportamento contraditório que fundamente e justifique a paralisação dos seus efeitos.

A tutela das expectativas das pessoas é essencial a uma ordenação que pretende ter como efeito a estabilidade e a previsibilidade das acções.

Contudo, a tutela da confiança exige uma situação objectiva de confiança e uma contrariedade directa entre o anterior e o actual comportamento (Paulo Mota Pinto, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório no Direito Civil”, Boletim da Faculdade de Direito, Volume Comemorativo, 2003, p. 302 e ss.).

Na situação dos autos não existe qualquer situação objectiva de confiança que mereça tutelar nem qualquer comportamento contraditório.

Existe sim uma opção, ao nível da publicação, a cargo do presidente da mesa da assembleia geral, cujo direito o autor conhecia e com o qual não pode deixar de contar.

Não é enquadrável, portanto, a situação dos autos em qualquer abuso de direito, nem este nos parece o instituto adequado para arguir um vício procedimental.” – fim de transcrição.

Concorda-se, no essencial, com as razões jurídicas invocadas na decisão recorrida e com o discurso argumentativo da mesma. Tal sentença está bem fundamentada, com mobilização dos adequados preceitos legais/estatutários, e com a interpretação e aplicação concreta dos mesmos.

O recorrente, vistas as suas alegações de recurso, mais precisamente as suas conclusões, levanta 3 objecções.

2.1. Em primeiro lugar era prematuro decidir com a necessária segurança, mormente face ao alegado nos arts. 94º e 95º da p.i.

Na altura em que a decisão foi proferida, os autos continham já todos os elementos necessários a uma decisão conscienciosa, sem necessidade de mais provas (art. 510º, nº 1, b), do CPC). Não vendo nós que a matéria contida nos referidos artigos da p.i. possa influenciar a decisão a tomar, atento a causa de pedir invocada e o pedido formulado. Efectivamente, aí, nesses artigos, o recorrente alegou que o presidente da mesa da assembleia geral foi advogado e recentemente actuou como procurador da accionista Mª (…)e ao que julga, também, da accionista Mª (…), ambas membro do conselho de administração (art. 94º), pelo que declarado um litígio entre tais accionistas de um lado e o recorrente, accionista também, de outro, se impunha que o referido presidente tivesse apresentado a sua renúncia ao cargo o que não fez (art. 95º). Matéria que foi impugnada pela recorrida (vide art. 32º da contestação). Mais até, argumentou o recorrente, o dito presidente violara os seus deveres de independência, isenção e lealdade face aos accionistas, nos termos do art. 374º-A do CSC (vide art. 99º da p.i.).

Dispõe este normativo, seu nº 1, que se aplicam aos membros da mesa da assembleia geral, com as necessárias adaptações, os requisitos de independência fixado no art. 414º, nº 5, do CSC. Por sua vez este normativo dispõe que “Considera-se independente a pessoa que não esteja associada a qualquer grupo de interesses específicos na sociedade nem se encontre em alguma circunstância susceptível de afectar a sua isenção de análise ou decisão, nomeadamente em virtude de:

a) Ser titular ou actuar em nome ou por conta de titulares de participação qualificada igual ou superior a 2% do capital social da sociedade;

b) Ter sido reeleita por mais de dois mandatos, de forma intercalada.”

Ora, mesmo que provada a factualidade alegada pelo recorrente (no indicado art. 94º da p.i.), e mesmo que se pudesse concluir que o mencionado presidente da mesa da assembleia geral tinha deixado de ser independente, o máximo que poderia acontecer era tal presidente vir a ser destituído por justa causa em assembleia geral, como o permite o citado art. 374º-A, nº 2, do CSC. Não poderia era tal matéria, mesmo que provada, e por esse facto, inquinar a deliberação social tomada pelos accionistas, na assembleia geral de 9.3.2011, originar a sua anulabilidade, nos termos do art. 58º, nº 1, a), do CSC, como pretende o recorrente, pois legalmente a eventual não isenção do presidente da mesa não é motivo de anulabilidade das deliberações dos accionistas.

A eventual falta de isenção ou não independência do presidente pode, é certo, reflectir-se no modo ou processo de formação – convocação da reunião, reunião dos sócios, a discussão e apresentação de propostas, a votação, a contagem dos votos, o apuramento do resultado, etc. – das deliberações sociais, mas então é a esta luz, vício de procedimento deliberativo, que temos de procurar saber se a deliberação é anulável ou não.

Ora, no nosso caso, apenas cabe apreciar e decidir se houve algum vício formal na convocação da dita assembleia geral de 9.3.2011.

E, assim, passamos à segunda objecção erguida pelo recorrente.              

2.2. Defende o mesmo que na decisão recorrida não foram devidamente considerados elementos de facto, aceites pela recorrida, relevantes para a boa sentença a proferir, a saber: - omitida a data desde que o recorrente é sócio da recorrida – a partir da constituição, desta em 1987, conforme consta do art. 3º e 4º da p.i. e doc. nº 2; - atenta a transformação da sociedade em anónima, registada em 26.10.95, o recorrente, tornou-se e manteve-se como accionista – art. 6º da p.i., aceite; - o recorrente era sócio e depois accionista da recorrida, ininterruptamente, durante 24 anos; - a estrutura accionista era e manteve-se familiar (art. 10º da p.i.); - no dia 23.7.08, foi deliberado um aumento de capital social da recorrida, com emissão de novas acções, apenas sob o tipo nominativo (art. 11º e 12º da p.i.); - pelo que se sabia em nome de quem haviam sido emitidos os referidos títulos, registados no documento de registo de acções da sociedade, com intervenção da Mª (…) e entrega e conferência dos títulos aos accionistas, pelo presidente da mesa de assembleia geral (arts. 13º a 15º da p.i.); - na assembleia geral de 28.4.10, constatou-se a inalterabilidade qualitativa e quantitativa dos accionistas, após o share buy back, deliberado em 30.6.09 (vide art. 19º e 21º da p.i.); - o presidente da mesa da assembleia geral acompanhava, no exercício dessas funções, a recorrida, desde o ano da sua transformação em sociedade anónima, i.é, desde 1995, (vide art. 22º da p.i.); - sendo que aquele, na qualidade de advogado, acompanhava a vida da sociedade desde a sua constituição (1987); - em trocas de correspondência, de Setembro de 2010 a Fevereiro de 20011, o recorrente actuou como accionista da recorrida e o conselho de administração assim o tratou e reconheceu; - foi alterado o procedimento de convocatória das assembleias gerais durante 24 anos, ininterruptos, da existência da recorrida, nunca houve outra forma de convocatória senão por carta registada; - nas duas convocatórias, tanto se afirma a existência, como a inexistência de livro de registos, como a inexistência e a existência de averbamentos; - o presidente da mesa da assembleia geral não podia ignorar quem eram os accionistas, pois os títulos que haviam sido emitidos eram todos nominativos; - a única alteração que houve ocorreu por parte das accionistas Mª (…) e Mª (…), que vieram a constituir uma nova sociedade detentora das participações daquela na recorrida, facto que o presidente da mesa da assembleia geral, tinha conhecimento pois passou a exercer idênticas funções na nova accionista.

Dos elementos de facto citados pelo apelante, só podemos recorrer aos que ele alegou na p.i., e que são os acabados de mencionar por reporte aos arts. 3º e 4º, 6º, 10º a 15º, 19º a 22º, tudo factualidade aceite pela recorrida (vide art. 12º da contestação). Toda essa factualidade, porém, vai desaguar à questão solucionada pela decisão recorrida. Apesar de o apelante ser accionista (facto provado 2.) e dever ser convocado para a assembleia geral de 9.3.2011, a convocação de tal assembleia apresenta vício formal ou não ? E a esta questão inarredável já a sentença recorrida deu a correcta resposta. Não houve vício formal na convocatória.

A convocação da assembleia como resulta da lei (art. 377º, nº 2, e 167º, nº 1, do CSC) e dos estatutos (art. 13º § 1) devia ter sido feita por publicação em sítio institucional da Internet, e foi-o. Nada a censurar neste aspecto.

Depois, aquele mesmo artigo 377º, no seu nº 3, permite que os estatutos estipulem, ainda, outra forma adicional de comunicação. É um plus reforçador da necessidade de comunicação da assembleia aos accionistas, que no nosso caso, os estatutos da recorrida não fixaram. E ademais permite a lei neste último preceito que, caso todas as acções sejam nominativas, podem os estatutos prever a substituição das ditas publicações por comunicação aos accionistas através de carta registada. Os estatutos da recorrida, no citado art. 13º § 2, previu tal faculdade, deixando ao critério do presidente da mesa tal possibilidade. Ou seja, ainda que todas as acções fossem nominativas o presidente poderia optar por efectuar a convocação não através de envio de cartas registadas, mas sim através do sistema de publicação. E foi o que fez, nada havendo a criticar.

O presidente da mesa não tinha que explicitar a razão da sua opção, mas no caso até invocou determinadas razões (facto provado 5.), fundamentando, assim, a sua opção da convocatória por publicação. Embora se possa discordar de tal opção, e se possa defender que assentou em pressupostos inexactos, os apontados na convocatória, o que não se pode afirmar é que o mesmo desrespeitou a lei ou os estatutos, na forma da convocação da dita assembleia. Inexiste, por isso, qualquer vício formal.

A incorrecção do raciocínio do apelante assenta nisto. É que o presidente da mesa estaria vinculado a convocar a indicada assembleia por meio do envio de carta registada, o que não tem fundamento legal, pois, como vimos, mesmo na hipótese de estarmos unicamente perante accionistas nominativos o presidente da mesa não estava vinculado a uma determinada forma de convocação, podendo optar livremente, nesse caso, ou pela publicação ou pelo envio de carta registada.

É certo que o apelante esgrime que desde sempre foram enviadas cartas registadas para a convocação das assembleias. Como resulta da lei desde a transformação da recorrida de sociedade por quotas em sociedade anónima passou a ser obrigatório a convocação por publicação (compare-se o dito art. 377º, nº 2, com o art. 248º, nº 3, do CSC, atinente às sociedades por quotas), ou, em caso específico podia efectuar-se tal convocação por carta registada. Mas o facto de ter sido a primeira vez que aconteceu a convocação por publicação (facto provado 10.), como é típico das sociedades anónimas, quando seria usual a convocação por carta registada (ou mesmo fax ou outro meio), como afirma o recorrente, não torna este uso habitual, esta prática reiterada, numa forma vinculada de procedimento, numa obrigação a cumprir pelo presidente da mesa, já que a lei nesta situação concreta não determina a atendibilidade dos usos (art. 3º, nº 1, do CC).

Não estando, pois, o presidente da mesa vinculado a dar cumprimento a essa forma de convocação, isto é, não estando obrigado a convocar a assembleia por meio de carta registada, o seu comportamento, a opção que tomou, repetimo-lo, não implica que tivesse havido algum vício formal na formação da deliberação social tomada, por irregularidade da convocatória da assembleia.                

Uma nota mais sobre este ponto. Embora não seja relevante, face ao que ficou dito na sentença recorrida e ao que acabámos de expor, convém deixar dito algo, mas de forma sumária, sobre outro argumento esgrimido pelo apelante, designadamente sobre a menção aos livros feita na convocatória.

Da convocatória para a assembleia de 9.3.2011, publicitada em 1.2.2011, consta que (facto provado 5.) “A presente assembleia geral não é convocada por carta registada, por opção do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, nos termos do § segundo do art. 13º dos Estatutos por não se poder, face ao não depósito das acções na sociedade e à inexistência de averbamentos no livro de registos das mesmas e por, nos termos do art. 6º dos Estatutos estas serem reciprocamente convertíveis entre nominativas e ao portador, confirmar que todas as acções são nominativas (…)”- o negrito é nosso. Enquanto numa convocatória para outra assembleia, designada para 4.3.2011 (mas não realizada, o que levou à redução do pedido por parte do recorrente), publicitada 1 dia antes (31.1.2011) constava idêntico texto, mas sem a palavra “averbamentos”. O recorrente vê nesta diferença uma contradição que lhe serve de argumento para tentar evidenciar a incorrecta actuação do presidente da mesa e/ou da recorrida. Mas salvo o devido respeito é um argumento “fraquinho”, pois afigura-se-nos ser evidente que se trata de um mero lapso na redacção/publicitação da convocatória o facto de faltar uma palavra nessa convocatória. Além do mais é duplamente irrelevante a omissão de tal palavra, primeiro porque se reporta a uma convocatória para uma outra assembleia que não a assembleia em apreço nos autos, e em segundo, voltamos a dizê-lo, por não poder influenciar a presente decisão face ao que mais atrás ficou por nós exposto.      

2.3. Finalmente defende o recorrente que o comportamento do presidente da mesa representa abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC, pois sabia quem eram os accionistas e não utilizou a forma do envio de carta registada para os convocar para a assembleia, meio esse ininterruptamente utilizado.

A sentença recorrida já deu resposta apropriada a esta argumentação, rebatendo correctamente a objecção do ora recorrente.

Sempre se acrescentarão 2 notas sobre este tema.

A primeira reporta-se à circunstância de na p.i. o recorrente haver invocado existir abuso de direito, quanto à forma da convocação da dita assembleia, na modalidade do “venire contra factum proprium”. Deixando, agora, de lado saber-se se tal instituto do abuso de direito se aplica somente aos direitos subjectivos e pretensões ou não, por não ser o cerne da questão, busquemos a conceptualização da figura do “venire”.

Trata-se de uma a figura que é manifestação de tutela da confiança das pessoas.

Na verdade, segundo a melhor doutrina de Meneses Cordeiro, em Tratado de D. Civil, Parte Geral, T. IV, 2007, págs. 292/294, discorrendo sobre o tema do “venire contra factum proprium”, por violação da protecção da confiança, este autor ensina, concretizando, que ela assenta num modelo de 4 proposições, válido em geral:

1ª – Uma situação de confiança, que pode, em regra, ser expressa pela ideia de boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que está nessa situação sem ter violado os deveres de cuidado que ao caso cabiam;

2ª – Uma justificação para essa confiança, que requer que esta se tenha alicerçado em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal;

3ª – Um investimento de confiança, que exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efectivo, desenvolvido qualquer actuação baseada na própria confiança, actuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis;

4ª – A imputação da situação de confiança, que implica a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado. Ao proteger-se a confiança de uma pessoa vai-se, em regra, onerar outra, implicando que esta outra seja, de algum modo, a responsável pela situação criada.

Estas 4 previsões específicas de confiança dispensam, por vezes, algum ou alguns dos pressupostos referidos, quando os restantes assumam, em concreto, uma tal intensidade que possam suprir a falta do outro ou outros. Por outro lado não há entre tais requisitos uma determinada hierarquia.

A base legal para uma aplicação da doutrina da confiança, no direito português, por forma a vedar o “venire contra factum proprium”, nas suas manifestações mais correntes, reside no art. 334º e, de entre os elementos previsivos nele enunciados, na boa fé.  

Pelo mesmo diapasão afinam Baptista Machado, em Tutela da Confiança e “venire contra factum proprium”, in Obras Dispersas, Vol. 1, págs. 396 e segs., Oliveira Ascensão, T. G. Direito Civil, Vol. III, pág. 290, e M. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, 2004, pág.411.

Ora, no caso em apreço não é possível concluir que o apelante tivesse caído nessa situação de confiança ética, própria da pessoa que está nessa situação sem ter violado os deveres de cuidado que ao caso cabiam.

Recorde-se que o recorrente accionista da recorrida foi presidente do seu conselho de administração até 2010 (facto provado 3.), pelo que inevitavelmente conhecia os estatutos da recorrida sabendo que a convocação para as assembleias gerais teria de ser feita por publicação, embora pudesse eventualmente ser feita por envio de carta registada. Estava, por isso, perfeitamente alertado da possibilidade de se fazerem publicações para convocar assembleias gerais. E nem o facto de, apesar da transformação da recorrida de sociedade por quotas em sociedade anónima, em 1995, em que passou a ser obrigatório legalmente a convocação por publicação, se continuar a efectuar convocação da assembleia por carta registada, tendo sido agora a primeira vez que aconteceu a convocação por publicação, não torna esse uso habitual, essa prática reiterada, numa forma vinculada de procedimento, numa obrigação a cumprir pelo presidente da mesa, como acima já salientámos, já que a lei nesta situação concreta não determina a atendibilidade dos usos.

Não estando, pois, o presidente da mesa vinculado a dar cumprimento a essa forma de convocação, isto é, não estando obrigado a convocar a assembleia por meio de carta registada, o seu comportamento anterior habitual, como alega o apelante, não pode ter gerado para este uma situação de expectativa jurídica, que mereça tutela jurídica, que a convocação das assembleias seria sempre e somente feita por tal meio, pelo envio de carta registada, nem, portanto, se podendo ajuizar que o presidente da mesa teve um comportamento contraditório que pudesse fundamentar e justifique a paralisação dos efeitos da convocatória, por publicação, para a assembleia de 9.3.2011.   

A segunda nota diz respeito ao texto do citado art. 334º do CC. Quando a lei utiliza o advérbio “manifestamente” não o fez, obviamente, por acaso, antes quis deixar bem marcado o rigor exigível para o funcionamento de tal instituto. Ou seja, como ensina A. Varela (no seu CC Anotado, Vol. I, 4ª Ed., nota 3., pág. 299, com referência a outros autores), só haverá abuso se o exercício de direitos for clamorosamente ofensivo da justiça, ou em hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensivo do comum sentido ético-jurídico.

O que não é o caso dos autos, pois não se consegue detectar, na conduta do presidente da mesa ao usar uma forma de convocação de assembleia geral prevista na lei e nos estatutos, em detrimento de outra forma de convocação possível mas não vinculante, esse contexto ou circunstância pesada, marcante e patente, aos olhos do comum das pessoas, de mediante tal comportamento estar intoleravelmente ou clamorosamente a ofender o sentido geral de justiça.     

Não ocorre, assim, no caso, qualquer abuso de direito.    

3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):

i) A eventual falta de isenção ou não independência do presidente da mesa da assembleia geral de uma sociedade anónima, por violação dos requisitos previstos no art. 374º, nº 5, “ex vi” do art. 374º-A, do CSC, pode reflectir-se no modo ou processo de formação – convocação da reunião, reunião dos sócios, a discussão e apresentação de propostas, a votação, a contagem dos votos, o apuramento do resultado, etc. – das deliberações sociais, mas então é a esta luz, vício formal de procedimento deliberativo, que se deve apurar se a deliberação é anulável, nos termos do art. 58º, nº 1, a), do CSC;

ii) A eventual não isenção do presidente da mesa da assembleia geral poderá é determinar a sua destituição por justa causa à sombra do art. 374º-A, nº 2, do CSC;

iii) A convocação da assembleia geral de uma sociedade anónima como resulta da lei (art. 377º, nº 2, e 167º, nº 1, do CSC) e no caso dos autos dos estatutos, deve ser feita por publicação em sítio institucional da Internet, sem prejuízo de os estatutos exigirem, ainda, uma forma adicional de comunicação (nos termos do nº 3 daquele preceito); e ademais permite a lei neste último preceito que, caso todas as acções sejam nominativas, podem os estatutos prever a substituição das ditas publicações por comunicação aos accionistas através de carta registada;

iv) Prevendo os estatutos da recorrida tal faculdade, e deixando ao critério do presidente da mesa a possibilidade de optar por uma ou outra forma de convocação, ainda que todas as acções sejam nominativas o presidente poderá optar por efectuar a convocação não através de envio de cartas registadas, mas sim através do sistema de publicação;

v) Mesmo que durante vários anos a convocação da assembleia geral tivesse sido feita através de carta registada, o presidente da mesa não está obrigado a adoptar tal forma de convocação, em vez do sistema de publicação, já que nesta matéria não há usos ou práticas a que a lei mande atender;

vi) A base legal para uma aplicação da doutrina da confiança, no direito português, por forma a vedar o “venire contra factum proprium”, reside no art. 334º do CC, e, de entre os elementos previsivos nele enunciados, na boa fé;  

vii) Não age em “venire” o presidente da mesa da assembleia geral de uma sociedade anónima, se convoca tal assembleia mediante a publicação legal, apesar de durante vários anos se ter usado habitualmente a carta registada, se tal publicação é o meio legal e estatutário de convocação da assembleia geral; nem esse “venire” existe se o presidente não está vinculado à convocação da assembleia unicamente por meio de carta registada, apesar de acções serem todas nominativas, podendo neste caso optar, face à lei e estatutos, entre a convocação por publicação ou por carta registada.

IV -  Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

*

Custas pelo recorrente.

*

Moreira Carmo (Relator)

Carlos Marinho

Alberto Ruço
1.
Julgaria o recurso procedente por se afigurar que se verifica, no caso, uma situação de abuso de direito.
2.
Com efeito, provou-se:
«5. No sítio da internet do portal do Ministério da Justiça – Publicação On-Line de Acto Societário – o Presidente da Assembleia Geral da J (…), S.A., fez publicar, em 1.02.2011 a seguinte convocatória:
(…) convoca-se a Assembleia Geral da sociedade para o próximo dia 9 de Março de 2011, pelas 15 horas, com a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto único: (…).
A assembleia geral terá lugar na sede da sociedade.
A presente assembleia geral não é convocada por carta registada, por opção do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, nos termos do § segundo do art. 13º dos Estatutos por não se poder, face ao não depósito das acções na sociedade e à inexistência de averbamentos no livro de registos das mesmas e por, nos termos do art. 6º dos Estatutos estas serem reciprocamente convertíveis entre nominativas e ao portador, confirmar que todas as acções são nominativas (…)» - (facto provado n.º 5).
«No âmbito da sua actividade, foi a primeira vez que a assembleia geral da sociedade ré foi convocada nos termos referidos em 5» - (facto provado n.º10).
3.
Ou seja, estava criada uma prática ao longo dos anos que consistia em convocar as assembleias por carta.
Sendo assim, os accionistas esperavam que o presente e o futuro se desenrolasse de acordo com os hábitos existentes, salvo aviso da sociedade em contrário ou alteração objectiva das circunstâncias que mostrasse aos accionistas que a antiga forma de comunicação não seria observada, designadamente por impedimento ou impossibilidade de manter a prática observada até então.
Existia, pois, uma situação de confiança nunca certa praxis.
Por outro lado, a sociedade podia ter facilmente enviado uma circular aos accionistas conhecidos, quando o tivesse entendido oportuno, mas previamente à convocatória, a avisá-los de que no futuro as assembleias deixavam de ser convocadas por carta, como até então e passariam a ser convocadas através do portal do Ministério da Justiça.
Se isto que fica referido não fosse feito, então era previsível para os órgãos representativos da sociedade que, pelo menos alguns accionistas, não teriam conhecimento da convocatória realizada por meio diverso do usado até então.
Num caso destes, o princípio da boa fé impunha que a sociedade, através dos seus órgãos responsáveis impedisse tal resultado perfeitamente previsível, como se disse, e ditava-lhes que emitissem o mencionado aviso ou então, enquanto não o fizessem, que procedessem à convocatória pelas duas vias, carta em relação aos accionistas conhecidos e publicação no mencionado portal relativamente aos accionistas desconhecidos que porventura houvesse.

Alberto Ruço