Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86/20.1T90FR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 04/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JI CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 67-A, N.ºS 1, AL. B), E 3, E 271.º DO CPP; ART. 152.º DO CP; ART. 33.º DA LEI N.º 112/2009, DE 16-09; ART. 24.º, N.º 1, DA LEI N.º 130/2015, DE 04-09
Sumário: I – Por força do disposto no n.º 3 do artigo 67-A do CPP, as vítimas de condutas constitutivas do crime de violência doméstica integram-se, ope legis, na categoria de “vítimas especialmente vulneráveis”.

II – Daí decorre a faculdade concedida ao juiz de tomada antecipada de declarações das referidas vítimas, devendo a pretensão solicitada para a realização do dito acto ser deferida, excepto quando, objectiva e manifestamente, se revele totalmente desnecessária.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

1 — RELATÓRIO

1. 1. - A Magistrada do Ministério Público veio interpor recurso da decisão proferida pelo Juiz de Instrução no processo de inquérito n.º nº 86/20.1T9OFR do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu - Juízo de Competência Genérica de Oliveira de Frades, que indeferiu a tomada de declarações para memória futura dos ofendidos M. e T..

1.2. - Inconformado com essa decisão, veio o Ministério Público interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes Conclusões (que se transcrevem):

“1. O Ministério Público, a 22 de Outubro de 2020, promoveu, ao abrigo do disposto no artigo 33.°, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16.9, e do artigo 271.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, a realização de diligência de tomada de Declarações para Memória Futura aos ofendidos M. e a T., visando que as mesmas pudessem ter valor probatório em julgamento, porquanto nos presentes autos se denuncia a prática, por L. e R., de factos suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 13.°, 14.°, n. ° 1, 26.° e 152.°, n. ° 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), todos do Código Penal.

2. Decorre dos autos que os arguidos são, respectivamente, filhos e irmãos das vítimas M. e a T., tendo a primeira revelado que ela, bem como o seu filho T., eram vítimas de maus-tratos psíquicos por parte dos outros dois filhos, aqui arguidos, pois aqueles eram verbalmente agressivos, os insultavam e lhes exigiam dinheiro para a bebida e para o tabaco, levando a que o agregado passasse várias dificuldades.

3. Por despacho proferido a 28.10.2020, de fls. 232 e 233, o Tribunal a quo indeferiu a promovida tomada de declarações para memória futura mas, ressalvando o devido e merecido respeito, fê-lo de forma com a qual não nos conformamos.

4. Ora, de acordo com os artigos 33.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16.9, e 24.°, n.º 1, da Lei do Estatuto da Vítima, o juiz pode proceder à inquirição das vítimas (e daquelas especialmente vulneráveis) no decurso do inquérito, a fim de que o seu depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

5. M. e T. são vítimas especialmente vulneráveis, ao abrigo do artigo 67°-A, n.º 1, alínea b), e n.º 3, por referência ao disposto no artigo 1, alínea j), ambos do Código de Processo Penal, e do artigo 2°, alínea b), da Lei 112/2009, de 16.9.

6. Admitindo o artigo 33.º, da Lei n.º 112/2009, de 16.9, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se sendo tal diligência obrigatória, importa considerar que, no caso dos autos, a proximidade física entre as vítimas e, pelo menos, um dos arguidos, as suas relações de parentesco e as condições de saúde das vítimas mostra necessária a requerida diligência, pelo que entendemos existirem razões que justificam, no caso em apreço, que se proceda à mesma.

7. Consideramos que o legislador, ao estabelecer o regime especial previsto no referido artigo 33.º, mostrou-se sensível ao facto de a violência doméstica ser uma forma de criminalidade particularmente susceptível de causar graves e duradouras consequências para as suas vítimas, sendo a tomada de declarações para memória futura enquadrada como sendo uma das medidas de protecção destas vítimas no âmbito do processo penal.

8. Acresce que, tratando-se de vítimas especialmente vulneráveis, mostra-se reforçada, salvo melhor entendimento, a possibilidade de prestação de declarações para memória futura.

9. O doutro despacho recorrido indeferiu a realização da referida diligência estribando a sua fundamentação, em síntese, na circunstância de inexistir fundamento bastante para a pretendida diligência uma vez que, referindo-se à vitimização secundária, considerou ser inevitável o contacto das vítimas com o sistema judicial.

10. Ora, sendo evidente que as mesmas sempre teriam de ter contacto com o sistema judicial, o que se pretende com a diligência requerida é, precisamente, que aquelas tenham o menor número de contactos possível, sendo esse o fundamento primacial para o requerido. A finalidade das declarações para memória futura é a de evitar a repetição de audição da vítima, protegê-la do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil, evitando, assim, que o mesmo possa olvidar-se dos factos, na sua plenitude, pese embora a natureza urgente dos autos.

11. Refere ainda o despacho recorrido que “… a pertinência desta medida – da faculdade em apreço e promovida pelo MP – deve ser apreciada em concreto, sendo que, na ponderação dos interesses em confronto, deve ser dada particular atenção à natureza e gravidade do crime e às circunstâncias em que foi cometido e às características da vítima…”.

12. No caso concreto, e não obstante a inexistência de agressões físicas e a circunstância de não estarmos perante a “clássica” violência entre “casal”, a verdade é que a fragilidade das vítimas (em função, essencialmente, dos seus problemas de saúde), as relações de parentesco existentes e o facto de as mesmas residirem com, pelo menos, um dos arguidos, aconselham a que se proceda à tomada de declarações para memória futura, conforme promovido, afigurando-se-nos de forte gravidade a criminalidade contra pais e irmãos, colocando em crise a “instituição” família.

13. O indeferimento do pedido formulado pelo Ministério Público impede que as vítimas exerçam o seu direito a prestar antecipadamente declarações e de evitar a sua revitimização e, tratando-se de factos, em si mesmos, traumáticos, importa necessariamente minimizar o trauma associado.

14. Não obstante resultar do despacho recorrido que a tomada de declarações para memória futura se trata de um mecanismo excepcional de produção de prova, não tem sido este o entendimento sufragado pelos nossos Tribunais quando se trate de tomada de declarações para memória futura a vítima especialmente vulnerável, entendimento que também acolhemos.

15. Por fim, acresce que, nos termos do disposto nos artigos 53.°, n.º 2, alínea b), e 263°, n° 1, ambos do Código de Processo Penal, cabe ao Ministério Público a direção da acção penal, pelo que cabe a este decidir da tempestividade e oportunidade das diligências probatórias a realizar em sede de inquérito e bem assim decidir e promover da obtenção e conservação das provas indiciarias. E, em situações com os contornos descritos, a prestação de declarações para memória futura afigura-se-nos essencial para a realização da justiça.

16. Destarte, encontram-se reunidos todos os pressupostos de facto e de direito para a audição de M. e de T. em declarações para memória futura.

17. Assim, entendemos que o Mmo. Juiz deveria ter acolhido a promoção do Ministério Público no sentido de se designar data e hora para tomada de declarações para memória futura às vítimas M. e T., e que, ao não  o ter feito, violou o disposto nos artigos 67.°-A, n.° 1, alínea b), e n.° 3, por referência ao disposto no artigo 1°, alínea j), 53°, n.° 2, alínea b), 263°, n.° 1, e 271.°, todos do Código de Processo Penal, artigo 24.° da Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro, artigos 16.º, n.º 2, e 33.°, da Lei 112/2009 , de 16 de Setembro.

18. Pelo exposto, consideramos que se impõe, pois, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por despacho que determine a realização de diligência de declarações para memória futura de M. e T., o que se pretende com o presente recurso.

Termos em que, deverá o presente recurso proceder e, por força dessa procedência, deverá ser revogado o despacho recorrido e determinada a sua substituição por outro que determine a tomada de declarações para memória futura a M. e a T.. Assim decidindo, farão V. Ex.as, Senhores Juízes Desembargadores, a inteira e acostumada justiça.”


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1.2.2. - Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Sr Procuradora-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o art.° 416.° do. C.P.P., apresentou o seguinte parecer:

“O Ministério Público veio impugnar o despacho que indeferiu a promoção para tomada de declarações para memória futura das testemunhas M. e T., indiciariamente vítimas do crime de violência doméstica, justificando o Mmo. Juiz a quo a sua decisão, em síntese, na circunstância de, por um lado, ser inevitável o contacto das testemunhas com o sistema judicial, “até porque tais declarações sempre careceriam de ser produzidas em ambiente formal, com a presença de diversos intervenientes processuais”, e, por outro, porque “o incómodo que para as vítimas poderá emergir da sai deslocação a este tribunal, mormente por força dos padecimentos que os afetam, não deixa de ser idêntico, por isso independentemente de o motivo da deslocação prender-se com declarações para memória futura ou para prestação de depoimento em audiência e julgamento”.

Alega o recorrente, em resumo, que as testemunhas em causa, sendo vítimas do crime de violência doméstica, são especialmente vulneráveis, podendo beneficiar da possibilidade de lhes serem tomadas declarações para memória futura, nos termos do art.º 33 da Lei 112/2009, de 16 de setembro; que, no caso, para além de razões de natureza formal, existem razões de natureza substancial, decorrentes da proximidade física e familiar com os agressores, da idade e do seu estado de saúde, para considerar as testemunhas pessoas especialmente vulneráveis; que, no caso das vítimas do crime de violência doméstica, a regra deve ser a da tomada de declarações para memória futura, só tal não devendo acontecer quando dos autos resultem razões relevantes que objetivamente desaconselhem essa recolha antecipada de prova; e que, no caso, a realização de tal diligência é essencial para a realização da justiça, prevenindo a revitimização dos ofendidos e acautelando a genuinidade do seu depoimento, devendo, por isso, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine a tomada de declarações para memória futura de M. e T..

Desde já consignamos que, a nosso ver, deve o recurso proceder, reclamando a argumentação douta e eloquentemente expendida pela Exma. Magistrado do Ministério Público na 1ª instância a nossa plena adesão, a qual apenas complementaremos chamando a atenção para a fragilidade dos argumentos invocados pelo Mmo. Juiz a quo para indeferir o requerido pelo Ministério Público. Com efeito,

Com bem o demonstra a Ex.ma Magistrada recorrente, ao recusar a tomada de declarações para memória futura pela circunstância de, nem assim, se evitar o contacto das vítimas com o sistema formal de justiça nem o incómodo da deslocação ao tribunal, redundaria, o Mmo. Juiz a quo desconsiderou o facto de tal diligência decorrer, normalmente, em ambiente de maior recato e informalidade que uma audiência de julgamento, e de se destinar, também, a prevenir futuras deslocações ao tribunal e a assegurar a genuinidade dos depoimentos, que o decurso do tempo e a proximidade física e/ou familiar com os agressores é consabidamente suscetível de diminuir.

Assim, pelas razões invocadas pela Exma. Magistrada do Ministério Público na 1ª instância, somos de parecer que o presente recurso deve ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe dia e hora para a tomada de declarações para memória futura das testemunhas M. e T.”

1.2.3. - Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.° 419.°, n.° 3, do C.P.P..


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II — FUNDAMENTAÇÃO

2. 1. — Objecto do Recurso

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a decidir consiste em saber se se mostram reunidas as circunstâncias de que a lei faz depender a audição da vítima de crime de violência doméstica em declarações para memória futura.

2. 2. - A Decisão Recorrida

É o seguinte o teor da decisão recorrida:

Veio a Digna Magistrada do MP, a fls. 228 e s., solicitar, para memória futura, a tomada de declarações às testemunhas M. e T., alegadas vítimas da conduta indiciada ou apontada ao arguido L..

Louva-se, para o efeito, na idade e estado de saúde da primeira, e na doença de que padeceria o segundo, bem como no interesse de evitar a sua exposição e contacto com o sistema judicial.

Compulsados os autos, cumpre referenciar o seguinte:

Embora a promovida diligência encontre assento em diversos lugares do ordenamento penal (cfr. o artº 271º do CPP e, em matéria de protecção e assistência das vítimas de violência doméstica, o artº 33º da Lei 112/09 de 16.9), a mesma não deixa de assumir natureza excepcional relativamente à regra prevenida no artº 355º, nº 1 do CPP, ou seja, que a prova deve ser ‘concentrada’, isto é, produzida e examinada, em audiência de julgamento – cfr., ainda, o nº 2 daquele artº 355º, bem como o artº 356º, nº 2, al. a) do mesmo diploma.

Tem-se entendido aquele mecanismo excepcional de produção de prova como visando, fundamentalmente, duas finalidades: uma relacionada com a mitigação ou supressão do risco de perda da prova, risco esse sobremaneira evidenciado nos casos ou hipóteses comtemplados no normativo geral em matéria de tomada de declarações para memória futura (doença grave ou deslocação para o estrangeiro); outra consistente na protecção das testemunhas, sobremaneira em função de evitar a sua vitimização secundária, decorrente, nomeadamente, do número de vezes que aquela é ‘obrigada’ a prestar depoimento (v. g. uma ou mais vezes em sede de inquérito [depoimento inicial e eventuais depoimentos complementares], porventura outra/outras em sede de instrução [caso haja lugar a essa fase] e também em sede de julgamento): consabidamente resulta uma forma de violentação da vítima a compulsão da mesma a uma sucessiva revisitação do evento as mais das vezes traumático, num ambiente por regra formal, com a presença de diversos intervenientes, e submetida a questões ou perguntas, muitas vezes de pormenor e outras de difícil compreensão para o inquirido…

Contrariamente à hipótese prevenida no nº 2 do artº 271º do CPP, aquelas previstas no antecedente nº 1, ou no artº 33º, nº 1 da Lei 112/09, constituem uma faculdade atribuída ao juiz, faculdade esse de uso certamente não discricionário, mas submetida a critérios ou requisitos imanentes à norma ou faculdade de antecipação da produção da prova.

Ora, sendo evidente que a finalidade subjacente à possibilidade da prestação antecipada de depoimento por parte de uma vítima, afora dos casos ‘gerais’ previstos no nº 1 do artº 271º do CPP, prendem-se com a finalidade de evitar a sua vitimização secundária, “… a pertinência desta medida – da faculdade em apreço e promovida pelo MP – deve ser apreciada em concreto, sendo que, na ponderação dos interesses em confronto, deve ser dada particular atenção à natureza e gravidade do crime e às circunstâncias em que foi cometido e às características da vítima…” – “Violência Doméstica – implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno” – Manual Pluridisciplinar, 166 (E-book, CEJ, 2016). E tais interesses – em confronto – são, por um lado, aquele da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente necessário à consecução das finalidades do processo e, por outro, o interesse comunitário na descoberta da verdade e na realização da justiça – cfr. os arestos da RL de 11.1.12 e de 6.2.14 citados na mencionada obra, págs. 166 e s..

Postos perante este balizamento, e na concreta situação dos autos, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, inexistir fundamento bastante para a pretendida e promovida diligência.

Assim, e por um lado, seja em sede de (eventual) audiência de julgamento, seja em sede de diligência/declarações para memória futura, resulta inevitável o contacto daquelas alegadas vítimas com o sistema judicial, até porque tais declarações sempre careceriam de ser produzidas em ambiente formal, com a presença de diversos intervenientes processais – nºs 3 e 5 do artº 271º do CPP. Por outra via o ‘incómodo’ que para as vítimas poderá emergir da sua deslocação a este tribunal, mormente por força dos padecimentos que os afectam, não deixa de ser idêntico, por isso independentemente de o objectivo da deslocação prender-se com declarações para memória futura ou para prestação de depoimento em audiência de julgamento.

Nenhum fundamento encontramos, por isso, para postergar o interesse da concentração da prova na sua sede própria.

 Termos em que, como anunciado, indefiro a promovida inquirição para memória futura.”


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2.3. - Apreciando e decidindo

Indicia-se nos presentes autos a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º n.º 1, alínea d) e n.º 2, do Código Penal.

Não existe discordância quanto à qualificação jurídica dos factos já apurados em inquérito.

Impõe-se então verificar se estão preenchidos os requisitos para o deferimento da diligência antecipada da tomada de declarações para memória futura das vítimas M. e T. (respectivamente mãe e irmão do arguido L.).

A recolha de declarações para memória futura foi inicialmente pensada pelo legislador português como meio preventivo de recolha de prova susceptível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, tendo contudo ampliado o respectivo âmbito para protecção das vítimas - CPP Conselheiros, pag 963.

A Lei nº 112/2009, de 16-09 regula autonomamente as declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica.

Assim, dispõe no seu art 33º:

“1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.

4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.

6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.

7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”

Do teor da norma ínsita no nº 1 resulta que a antecipação das declarações não é sempre obrigatória.

Também a Lei n° 130/2015, de 4 de setembro - Estatuto da Vítima - prevê o direito das vítimas especialmente vulneráveis, - como uma das medidas especiais de protecção, - à prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.°.

O referido art. 24°, n°1, prevê que o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de. Processo Penal.

Nos termos previstos no nº 3 do art 67-A do CPP “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”

Segundo esta al. b) considera-se “Vítima especialmente vulnerável”, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;”

Ora, estando em causa um crime de violência doméstica, previsto no art.° 152.°, n.° 1, do C. Penal, punido com pena de prisão de um a cinco anos de prisão, é certo que integra a noção de criminalidade violenta, definida no art.°- 1.°, alínea j), do C.P.P. nos seguintes termos:

«Para efeitos do disposto neste Código considera-se criminalidade violenta:

 - as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.

Consequentemente, e por força da lei, os ofendidos nestes autos são vítimas especialmente vulneráveis, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na citada alínea b) do n° 1 do art.° 67.°-A do ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.

O que vem a traduzir-se numa faculdade atribuída ao juiz da tomada de declarações antecipada de vítimas de crime de violência doméstica, que implica como regra, “dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova” - Ac Rel Lisboa de 04.06.2020.

No mesmo sentido Ac da Rel Coimbra de 21 de agosto de 2020 - relatora Des Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso, onde se assinala: “Conforme resulta do transcrito art. 33º, n.º 1, a tomada de declarações para memória futura não é obrigatória (pode proceder). No entanto, deve ser este o procedimento a adotar, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, só assim se não procedendo quando existam razões relevantes para o não fazer (no mesmo sentido, cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 9.11.2016, no proc. 5687/15.7T9AMD-A.L1, e de 4.6.2020, no proc. 69/20.1PARGR-A.L1, e da Relação de Évora de 23.6.2020, no proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1, todos em www.dgsi.pt).”

Importa ponderar que o direito de audição antecipada, que se materializa nas declarações para memória futura, visa evitar a vitimização secundária e repetida e ainda quaisquer formas de intimidação e de retaliação e evitar também que as repercussões decorrentes do trauma se reflictam negativamente na aquisição da prova.

Efectivamente, como se extrai do e-book do CEJ Violência Doméstica, implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, manual pluridisciplinar, abril 2016, pág. 40, As situações de violência continuada resultam numa diversidade de consequências e danos físicos, psicológicos, relacionais, etc, que, nos casos mais graves, poderão conduzir à incapacitação, temporária ou permanente, da vítima ou, mesmo, à sua morte.

Algumas das consequências traumáticas mais comuns em vítimas de VD/VC são:

• danos físicos, corporais e cerebrais, por vezes, irreversíveis (e.g, fraturas nas mandíbulas, perda de dentes, lesões óculo-visuais, perturbações da capacidade auditiva, fraturas de costelas, lesões abdominais, infertilidade na sequência de sucessivas infeções e/ou lesões vaginais e uterinas, entre muitas outras; algumas mulheres desenvolvem uma perturbação equivalente à dos lutadores de boxe, em virtude dos danos neurológicos provocados pelas pancadas sucessivas na zona do crânio e face - algo similar, nos seus efeitos, à doença de Parkinson);

•.alterações dos padrões de sono e perturbações alimentares;

• alterações da imagem corporal e disfunções sexuais;

• distúrbios cognitivos e de memória (e.g., flashbacks de ataques violentos, pensamentos e memórias intrusivos, dificuldades de concentração; confusão cognitiva, perturbações de pensamento - não é raro as vítimas afirmarem que estão a enlouquecer, dado que a sua vida se torna ingerível e incompreensível);

 • distúrbios de ansiedade, hipervigilância, medos, fobias, ataques de pânico;

• sentimentos de medo, vergonha, culpa;

• níveis reduzidos de autoestima e um autoconceito negativo

• vulnerabilidade - ou dependência emocional, passividade; desânimo aprendido”;

• isolamento social ou evitamento (resultantes, frequentemente; dos sentimentos de vergonha, auto-culpabilização, desvalorização pessoal, falta de confiança que as vítimas sentem);

• comportamentos depressivos, por vezes com tentativa de suicídio ou suicídio consumado.

Muitas vítimas apresentam um quadro de Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD).

É sabido que quanto mais tardiamente são prestadas as declarações pelas vítimas, mais se intensificam as perturbações da memória fruto do trauma.”

Assim, em conformidade com o acórdão da Rel de Lisboa supra citado e para garantia de uma efectiva protecção da vítima, evitando situações de revitimação, atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do dever de protecção à mesma vítima consagrado no art.° n.° 2 da Lei n.°112/2009, só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.

Daí a necessidade da prestação de declarações para a memória futura em situações como a dos autos, em que na avaliação do caso a situação foi considerada “de grande vulnerabilidade” - relatório social a fls 14 a 16 - não obstante a avaliação do nível do risco como “baixo” - cfr fls 47.

Resulta do inquérito que o T., “transplantado renal desde 2008 apresenta estado de saúde frágil com necessidade de supervisão clinica frequente em consultas da especialidade, com transporte assegurado e medicação de uso hospitalar…” e que M. tem acuidade visual diminuta, obesidade e perturbações depressivas e apresenta dificuldade de locomoção. “

A testemunha C., senhoria da casa onde as vítimas residem, declarou que a M. se desloca de canadianas e um dos filhos por vezes é transportado de ambulância.

Conforme resulta do relatório social acima mencionado e das declarações de M. a fls 39 e segs, a conduta do arguido L., de 46 anos de idade - certidão de fls 20  - desempregado, desde há alguns anos a viver a expensas da mãe, pauta-se de forma quase diária por agressões verbais violentas - “és uma filha da puta”, “ vai dar a cona aos chulos” “vai para o caralho”, “és um triste”, “és um aleijado”, “és um deficiente” “És um nojento” - insultos que dirige à mãe e ao irmão T., sobretudo quando não tem dinheiro para tabaco” , obviamente como forma de os coagir a entregar-lhe dinheiro. A M. (65 anos de idade - cfr fls 26) referiu que tem algum medo do L., pois se ele se vira contra si “não tem forças para se defender.” “Já o mandou sair de casa muitas vezes mas ele responde “Vão vocês”.”

As circunstâncias apuradas são susceptíveis de incutir nos ofendidos, - dada a sua notória fragilidade e o facto de residirem todos na mesma casa, - medo e inquietação, com a necessária perturbação emocional daí decorrente.

A tudo isto acresce que os episódios de violência ocorridos no seio deste agregado familiar são antigos e diários, o que torna o comportamento do arguido insuportável.

É, pois, inequívoco que a reiteração, por parte do arguido, de tais comportamentos, perturba seriamente, - além da estabilidade do agregado familiar - a estabilidade emocional de cada um dos ofendidos.

Acresce o fundamento do MP de que a exposição pública dos factos e o contacto com o sistema judicial, implicará necessariamente um efeito de vitimização secundária decorrente não apenas dos seus testemunhos em tribunal, mas também da repetição dos factos vivenciados, efeito ao qual devemos obstar. Além de que a realização de tal diligência é essencial para a realização da justiça, prevenindo a revitimização dos ofendidos e acautelando a genuinidade do seu depoimento.

A inequívoca gravidade do circunstancialismo fáctico indiciado é suficiente para justificar a realização da pretendia diligência, já que não consubstancia uma situação excepcional capaz de infirmar a especial fragilidade atribuída por lei a “Vítima especialmente vulnerável.

Assim sendo, haverá de conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que designe data para a rápida tomada de declarações aos ofendidos M. e T., nos termos solicitados pelo MP.

3 - Dispositivo

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita a inquirição para memória futura ofendidos M. e T., conforme requerido pelo Ministério Público.

Sem tributação

Coimbra, 7 de Abril de 2021

Processado informaticamente e revisto pela relatora

Isabel Valongo (relatora)

Alcina da Costa Ribeiro (ajunta)