Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/14.1TBMBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
DEVER DE COLABORAÇÃO
DIREITO DE ESCUSA
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – MOIMENTA DA BEIRA – SEC. DE COMP. GENÉRICA.
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO DE SIGILO BANCÁRIO
Decisão: INDEFERIMENTO
Legislação Nacional: ARTºS 417º, Nº 3, AL. C) DO CPC; 78º, Nº 2 DO REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS.
Sumário: I – No incidente de levantamento do dever de sigilo bancário importa resolver um conflito de interesses: o interesse tutelado pelo dever de segredo bancário versus interesse na realização da justiça.

II - A prevalência ao interesse preponderante deve ser ponderada em concreto, em função dos contornos do litígio.

III - Na ponderação dos interesses em confronto, há que averiguar se a informação pretendida é necessária - tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como ónus e regras de prova - ou imprescindível - no sentido de não poder ser obtida de outro modo.

IV - Tendo todas as pessoas/instituições/entidades o dever de colaboração para a descoberta da verdade, a lei reconhece-lhes contudo direito de recusa em determinadas situações, sendo uma delas a de que a colaboração pedida importe violação de sigilo profissional: art. 417º, nº 3, al. c) do Código de Processo Civil.

V - Sendo legítima a escusa, cabe ao Tribunal decidir sobre a dispensa desse dever de sigilo nos termos do nº 3 do art. 135º do CPP, o que pressupõe a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida para a descoberta da verdade, em confronto com a tutela da reserva da vida privada protegida pelo sigilo bancário.

Decisão Texto Integral:
I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            D... e mulher, M... (de futuro, apenas Autores) instauraram ação contra A... e mulher, L... (de futuro, apenas Réus).

                Alegaram, em resumo, o seguinte: invocando a usucapião, serem donos de um prédio rústico que venderam aos Réus em 1999, por simples acordo verbal e pelo preço de 2.500 contos (€ 12.500.00), do qual os Réus apenas pagaram € 5.000,00 em 03.05.2000; em 26.05.1999, os Réus outorgaram numa escritura de justificação notarial para poderem registar o prédio em seu nome. Em sentença proferida num outro processo, foi declarada oficiosamente a nulidade da compra e venda que havia sido outorgada verbalmente entre Autores e Réus. Apesar de interpelados, os Réus nunca pagaram o restante do preço.

                Terminam pedindo: (i) a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado com os Réus; (ii) condenando-se os Réus a restituírem-lhes o prédio objeto do contrato; (iii) o cancelamento do registo que incide sobre o prédio a favor dos Réus; subsidiariamente, caso a restituição em espécie do prédio não seja possível, (iv) a condenação dos Réus a restituir-lhes o valor correspondente ao preço do prédio; ou, (v) a pagar-lhes o remanescente do preço ainda não pago (€ 7.500,00).

                Em contestação, os Réus alegaram resumidamente o seguinte: efetivamente, existiu um acordo de compra e venda do prédio rústico, em 1999, mas pelo preço de mil contos; ficou acordado que os Réus só pagariam esse preço quando obtivessem o empréstimo bancário que iam solicitar para construção de uma casa no prédio; obtido o empréstimo, em Abril de 2000, os Réus pagaram aos Autores os mil contos acordados; só posteriormente ao acordo vieram os Réus a saber que o prédio não estava registado em nome dos Autores pelo que os interpelaram, tendo sido estes que os instruíram para efetuaram uma justificação notarial.

                A título de exceção, invocaram o abuso de direito por parte dos Autores, bem como o caso julgado —— na dita ação judicial, que foi contra eles intentada pelos mesmos Autores, já estes haviam pedido a condenação dos Réus a pagar-lhes os € 7.500,00 a título do pagamento do preço em falta, sendo que tal pedido veio a ser julgado improcedente ——, e a impossibilidade de restituição do prédio em espécie uma vez que nele já se mostra efetuada uma construção urbana e alterada a inscrição matricial do prédio.

                Terminam pedindo a condenação dos Autores por litigância de má-fé.

                Os Autores ainda responderam. Nesse articulado, e para além do mais, aceitam que lhes foi feito o pagamento dos mil contos (cf. artigo 9º da resposta), o que também já resultava da petição inicial (cf. seu artigo 14º).

                Nessa resposta pediram a notificação do Banco C..., SA «para que venha aos Autos informar a data do pedido de financiamento dos Réus para a construção a que aludem na sua Contestação, e bem assim, data de aprovação do mesmo e data de entrega e montante da primeira tranche.».

                Aquando da admissão dos meios de prova, a M.mª Juíza ordenou se oficiasse ao Banco C... nos termos requeridos.

                O Banco C..., invocando sigilo profissional bancário, solicitou informação sobre se os Réus visados davam a sua autorização.

                A M.mª Juíza questionou os Réus para o efeito, mas os mesmos não autorizaram a informação.

A M.mª Juíza proferiu então despacho suscitando o presente incidente de dispensa de sigilo bancário, «com vista à obtenção dos elementos solicitados».

                II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.         OS FACTOS

Relevam aqui as ocorrências processuais descritas no ponto “I.1.” deste acórdão.

3.         O DIREITO

Tendo todas as pessoas/instituições/entidades o dever de colaboração para a descoberta da verdade, a lei reconhece-lhes contudo direito de recusa em determinadas situações, sendo uma delas a de que a colaboração pedida importe violação de sigilo profissional: art. 417º nº 3 al. c) do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

O Banco C... estribou a sua recusa na prestação das pretendidas informações no art. 78º nº 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (de futuro, apenas RGICSF), que impõe o dever de segredo a todos os que prestem serviços nas instituições de crédito, considerando como tal “designadamente, (…) os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”.

Esse dever de sigilo bancário é mais uma das manifestações do direito à reserva da vida privada, direito esse constitucionalmente garantido: n.º 1 e 2 do art. 26º da Constituição da República Portuguesa (de futuro, apenas CRP).

A seriedade de tal proteção é de tal monta que, excetuado o consentimento do visado ou as exceções contempladas na lei, a revelação de informações tuteladas pelo sigilo importa responsabilidade criminal: art. 195º do Código Penal (de futuro, apenas CP).

Entende-se, porém, que esse direito não pode ser absoluto pois doutra forma perigaria a tutela de outros interesses, também eles de tutela constitucional, como é o caso da necessidade de obtenção de provas, como corolário do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva: art. 20º nº 1 da CRP.

As exceções contempladas na lei revelam pois, e sempre, um conflito de interesses, a necessitar de ponderação e cautelas.

Assim, invocada a recusa de colaboração, “é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo final acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”: nº 4 do art. 417º do CPC.

Ora, o art. 135º do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP) dispõe o seguinte:

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, (…), pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

No caso em apreço, pretende-se informação sobre um pedido de financiamento dos Réus ao Banco C..., a data da sua aprovação, data de entrega e montante da primeira tranche.

São informações relativas a uma operação bancária, pelo que manifestamente abrangidas pelo dever de segredo bancário.

Não foi dada autorização pelo titular da conta.

Assim sendo, a escusa do Banco C... é legítima.

Sendo legítima a escusa, cabe a este Tribunal decidir sobre a dispensa desse dever de sigilo nos termos do nº 3 do art. 135º do CPP, o que pressupõe a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida para a descoberta da verdade, em confronto com a tutela da reserva da vida privada protegida pelo sigilo bancário.

Quanto à prevalência do interesse preponderante, a dicotomia no caso respeita ao interesse subjacente ao segredo bancário versus interesse na realização da justiça.

O segredo bancário corresponde «a um interesse geral do sistema bancário, para preservação das condições de captação de poupanças», mas também «a um interesse privado dos clientes da instituição de crédito, tendo em vista a protecção da sua vida privada». [[1]]

Assim, não teríamos dúvidas em afirmar que o interesse na realização e boa administração da justiça, atenta a sua dimensão social, deve prevalecer sobre o interesse dos Réus em não ver divulgada a informação sobre um pedido de financiamento bancário, mormente por se tratar de informação de cariz económico.

Porém, a ponderação dos interesses em conflito terá sempre de ser efetuada em concreto.

E, por isso, há que entrar em linha de conta com a imprescindibilidade da informação pretendida.

Neste âmbito, não pode deixar de curar-se estarmos no domínio dum processo civil, sujeito a ónus e regras de prova específicas, em função do pedido e da causa de pedir em causa no processo.

Com a informação pretendida, pretende-se saber, tão só:
· a data em que os Réus pediram financiamento para a construção da casa que erigiram no terreno comprado aos Autores
· a data de aprovação desse financiamento
· a data de entrega e o montante da primeira tranche do financiamento

Tais informações só seriam relevantes se o litígio tivesse qualquer relação com o facto de os Réus terem tido, ou não, necessidade de financiamento bancário para custear a construção da sua casa, sobre se ele fora ou não concedido, por qual montante e em que data tal financiamento tinha começado a ser disponibilizado.

Ora, inexiste nos autos qualquer litígio sobre a construção da casa, bem como sobre um pretenso financiamento e seus termos.

O litígio que os Autores trouxeram a tribunal versa apenas sobre o contrato de compra e venda do terreno onde os Réus vieram depois a implantar a sua casa, qual o preço acordado, condições de pagamento e se esse preço foi ou não integralmente pago.

Na verdade, como resulta do que já deixamos assinalado supra (ponto “I.1”), o litígio entre Autores e Réus cifra-se em saber qual o preço acordado na compra e venda verbal entre eles celebrada: os Autores alegam ter sido de € 12.500,00, enquanto os Réus contrapuseram que o preço tinha sido de mil contos, ou seja, € 5.000,00.

Aos Autores compete pois, de acordo com o art. 342º nº 1 do Código Civil (de futuro, apenas CC), a prova de que o preço acordado foi de € 12.500,00. [[2]]

Depois, num segundo momento, releva o facto de que os Autores disseram logo na petição inicial que os Réus já tinham pago, por conta do preço, € 5.000,00, ou seja, os tais mil contos que os Réus referem ter pago.

Assim sendo, temos uma confissão judicial por parte dos Autores de terem já recebido € 5.000,00 (= mil contos), o que constitui força probatória plena do pagamento desse montante: cf. arts. 352º, 356º e 358º do CC e art. 46º do CPC.

«A confissão judicial pode ser feita, espontaneamente, nos articulados, pela parte ou pelo seu advogado, ou em outro acto do processo, mas neste caso só pela parte ou por procurador com poderes especiais para o efeito; e pode ser feita, provocadamente, em depoimento de parte ou em acto de prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal (art. 356º CC).». [[3]]

Por consequência, encontrando-se plenamente provado que os Réus pagaram € 5.000,00 (ou mil contos), tal facto já não deve ser objeto de prova: art. 410º e 607º nº 5 do CPC.

Segue-se daqui, que no que toca à componente económica do negócio, aos Autores resta o ónus da prova de que afinal o preço foi de € 12.500,00 e que os Réus ainda não pagaram os € 7.500,00 restantes.

E, a ser assim, o não pagamento desses € 7.500,00 também não é posto em causa pelos Réus.

O que os Réus questionam é que não têm sequer de pagar esse montante, pelo simples facto de que o preço acordado foi de apenas € 5.000,00!

Não pode confundir-se o ónus da prova dum pagamento com o ónus da prova de qual foi o preço acordado para o negócio.

Nesta perspetiva, a informação solicitada ao Banco C... não só não é imprescindível, como nem sequer é necessária ou relevante para os temas de prova elencados em audiência preliminar. [[4]]

Por outro lado, não podemos deixar de registar e alertar que logo na petição inicial, os próprios Autores aludiram a uma sentença proferida no processo ..., em que teria sido declarada oficiosamente a nulidade da compra e venda “devendo ser restituído tudo o que foi prestado” (cf. artigo 25º da PI).

                Na sua contestação, os Réus alegaram que nessa ação, que foi contra eles intentada pelos mesmos Autores, já estes haviam pedido a condenação dos Réus a pagar-lhes os € 7.500,00 a título do pagamento do preço em falta, “pedido esse que foi julgado improcedente” (artigos 26º a 28º da contestação).

                Face a estas alegações, não pode deixar de prefigurar-se a hipótese da ocorrência dum possível caso julgado material [[5]], a impedir que de novo se conheça nestes autos  questões já decididas na outra ação. [[6]]

4.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) No incidente de levantamento do dever de sigilo bancário importa resolver um conflito de interesses: o interesse tutelado pelo dever de segredo bancário versus interesse na realização da justiça.
b) A prevalência ao interesse preponderante deve ser ponderada em concreto, em função dos contornos do litígio.
c) Na ponderação dos interesses em confronto, há que averiguar se a informação pretendida é necessária —— tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como ónus e regras de prova —— ou imprescindível —— no sentido de não poder ser obtida de outro modo.

                III.           DECISÃO

5.            Pelo que fica exposto, julgando-se não verificados os pressupostos necessários, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em indeferir o levantamento/quebra do dever de sigilo bancário no que toca à informação pedida nos autos ao Banco C..., SA.

                Custas do incidente a cargo dos Autores.

                Coimbra, 28/04/2015


(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)



[[1]] Paulo Mota Pinto, “A Protecção da Vida Privada e a Constituição”, BFDUC, ano 2000, vol. LXXVI, pgs. 174/175.
[[2]] E aos Réus, naturalmente, cumpre a prova dos factos que integram as exceções deduzidas (art. 342º nº 2 do CC), mas delas não cabe aqui curar já que o pedido de informações foi solicitado pelos Autores.
[[3]] Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum, à luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2000, pág. 230.
[[4]] E que foram, como resulta dos autos: (i) os termos do negócio celebrado entre as partes; (ii) a propriedade dos Autores sobre o prédio rústico objeto desse negócio; (iii) a atuação de Autores e Réus após a celebração do negócio e (iv) a “falsidade dos termos do negócio e os danos sofridos pelos Réus com a presente ação.

[[5]] Exceção dilatória, de conhecimento oficioso: art. 577º al. i) e 578º do CPC.
[[6]] «Advirta-se, porém, que, em relação à pretensão formulada pelo autor e eventualmente considerada procedente na sentença, ficam precludidos, quer na acção, quer fora dela, todos os meios de defesa que o réu tenha invocado ou pudesse ter invocado contra ela. Essa é já, como vimos, a solução resultante da preclusão consagrada no artigo 489º, quanto aos meios de defesa que o réu não invocou, mas poderia e deveria ter alegado, na contestação.» __ Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 713, nota (2).

      E, em termos jurisprudenciais: «Nos limites objectivos do caso julgado material incluem-se todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como pressupostos necessários e fundamentadores da decisão final.» __ acórdão do STJ, de 05.05.2005 (Processo 05B602, nº do Documento: SJ200505050006027), disponível em www.dgsi.pt