Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
610/20.0T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
UNIÃO DE FACTO
ACÇÃO DE RECONHECIMENTO JUDICIAL
JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 60, 64, 65 CPC, 211 CRP, LEI Nº 7/2001 DE 11/5, LEI Nº 23/2010 DE 30/8, ART.122 Nº1 G) LEI Nº 62/2013 DE 26/8
Sumário: 1. A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida e da natureza das normas que disciplinam a relação jurídica que está na base do litígio.

2. As soluções plasmadas pelo legislador desde a Reforma de 1977 (DL n.º 496/77, de 25.11) até ao presente foram no sentido da tendencial e progressiva equiparação, para diversos efeitos, entre as situações próprias do vínculo conjugal e as decorrentes da união de facto, com a efectiva protecção dos agregados familiares constituídos fora das normas do casamento.

3. A união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas, pelo que, materialmente, a acção de reconhecimento judicial da união de facto insere-se na competência do Juízo de Família e Menores, conforme a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8) - «Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar (…) outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.»

Decisão Texto Integral:                 
              

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

I. A (…) instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra/Juízo de Família e Menores de Coimbra, contra o Estado Português, a presente acção declarativa comum para reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para os fins dos art.ºs 3º, alínea a), e 4º da Lei n.º 7/2001, de 11.5.

Alegou, nomeadamente, a convivência com a companheira indicada nos autos, em situação análoga à dos cônjuges, durante período superior a três anos, bem como a existência de determinado acervo patrimonial e de casa de morada da família.

Conhecendo da questão da incompetência material do Tribunal, a Exma. Juíza a quo proferiu o seguinte despacho (de 12.02.2020):

«(…) verifico que através da presente acção o A. pretende o reconhecimento da união de facto e funda o seu pedido nos artigos 2º-A, 3º, al. a) e 4º da Lei n.º 7/2001, de 11.5 e 130º, n.ºs 1 e 2 al. f), da Lei n.º 62/2013, de 26.8./ Ora nitidamente este tribunal é materialmente incompetente para a presente acção:/ (…) A incompetência em função da matéria decorre da propositura num tribunal de uma acção que, de acordo com o princípio da especialização, está reservada a uma espécie ou categoria diferente de Tribunal./ (…) Na parte que aqui interessa, de acordo com o artigo 122º, n.º 1, al. b) da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 40/2016, de 22/12, os juízos de Família e Menores têm competência para os processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum./ Ou seja, analisando os art.ºs 122º a 124º da mencionado Lei de Organização do Sistema Judiciário, vemos que a competência dos juízos de Família e Menores relativamente a situações de união de facto cinge-se a processos de jurisdição voluntária./ O legislador não atribuiu competência material aos juízos de Família e Menores para uma acção, como a presente, de simples apreciação positiva - de reconhecimento da união de facto do A.!/ Na verdade, perante a causa de pedir e o pedido formulado pelo A., nitidamente não estamos perante um processo de jurisdição voluntária, previsto nos art.ºs 986º e ss do CPC./ Assim, este tribunal é materialmente incompetente para os seus ulteriores termos, devendo o processo correr na instância local com competência cível: o artigo 130º da Lei de Organização do Sistema Judiciário determina que os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial … quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada./ Por todo o exposto, ao abrigo dos art.ºs 96º, 97º e 99º, n.º 1 do CPC, declaro a incompetência deste Tribunal em razão da matéria, determinando, consequentemente, o indeferimento liminar da petição inicial

Inconformado, o A. apelou formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:[1]  

1ª - Ao abrigo do disposto no art.º 1º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11.5 - “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” - o legislador reconhece a união de facto como uma verdadeira relação familiar, “pessoal”, contendente com o estado civil das pessoas e família.

2ª - Segundo o disposto nos art.ºs 111º a 116º, da LOSJ, a competência para o reconhecimento judicial de uma união de facto não pertence aos tribunais de competência territorial alargada - ao abrigo do art.º 80º, da LOSJ, o reconhecimento judicial de uma união de facto encontra-se no âmbito da competência dos tribunais de comarca.

3ª - Considerando o disposto no art.º 81º, da LOSJ, o critério da competência em razão da matéria releva não só para determinar que os tribunais de comarca são os aqui competentes, mas também para determinar qual o juízo competente.

4ª - A cláusula geral sobre «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família» como resulta da actual alínea g), do n.º 1, do art.º 122º da LOSJ, constitui um segmento normativo que foi introduzido pela Lei n.º 52/2008, de 28/02 [LOFTJ], através do seu art.º 114º, al. h).

5ª - O assento n.º 1/92, DR, n.º 134, de 11.6.1996, entende as acções sobre o estado das pessoas como aquelas cuja procedência se projecta sobre o estado civil de alguém - divórcio, separação de pessoas e bens, investigação de paternidade, impugnação de legitimidade, interdição, impugnação de impedimentos para o casamento, autorização para o casamento.

6ª - O termo estado civil usa-se num conceito restrito e num conceito mais lato: a) assim na acepção do conceito mais restrito abrange a posição da pessoa face ao matrimónio (solteiro, casado, divorciado, separado, viúvo) e está usado nomeadamente nos art.ºs 7º, n.ºs 1 e 2; 69º, al. n), 220º-A, 126º, n.º 1 als. a) e b), 132º, n.º 2 e 136º, n.º 2 al. a), do Código de Registo Civil; b) já o conceito mais amplo abrange os factos sujeitos a registo e está usado no art.º 211º do mesmo Cód. de Registo.

7ª - A leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família» reporta-se às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (cf. art.º 1576º do CC, Lei n.º 23/2010, de 30.8 e as alterações legislativas daí decorrentes, com destaque para a Lei n.º 7/2001, de 11.5), de modo a individualizar/concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que actualmente tem a família.

8ª - Com «ações relativas ao estado civil das pessoas», o legislador utilizou essa expressão, na sua acepção mais restrita, atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, mas sempre no sentido de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.

9ª - A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, integra a previsão do art.º 122º, nº 1, al. g), da LOSJ.

10ª - Ao aludir a al. g), do n.º 1, do art.º 122º da LOSJ, a acções relativas ao “estado civil” das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, mas sempre com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.

11ª - A Mm.ª Juíza do Tribunal a quo ao afirmar que “(…) analisando os art.ºs 122º a 124º da mencionado Lei de Organização do Sistema Judiciário, vemos que a competência dos juízos de Família e Menores relativamente a situações de união de facto cinge-se a processos de jurisdição voluntária”, desconsiderou, por isso, completamente o plasmado na alínea g), do n.º 1, do art.º 122º, da LOSJ.

12ª - É necessário que no Tribunal de Comarca competente exista, como existe, um juízo especializado de família e menores, para que lhe seja submetida a acção em causa, e no caso sub judice existe um juízo de família e menores competente para a apreciação desta acção - o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

13ª - A sentença em crítica violou, portanto, a norma do art.º 122º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, devendo ser revogada e substituída por outra que determine o Juízo de Família e Menores de Coimbra como o legalmente competente, em razão da matéria, para a apreciação e decisão desta acção.

Não houve resposta.[2]

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa reapreciar e decidir, apenas, da competência material do tribunal recorrido para conhecer do objecto da acção.


*

II. 1. Os factos a considerar são os que decorrem do relatório que antecede.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código (art.º 60º, n.º 1 do Código de Processo Civil/CPC). Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (n.º 2).

São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.ºs 64º do CPC e 40º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário/LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8 - na redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12); os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa/CRP).

As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art.ºs 65º do CPC, 81º da LOSJ e 211º, n.º 2 da CRP).

Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges; b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio; d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil; e) Ações intentadas com base no artigo 1647º e no n.º 2 do artigo 1648º do Código Civil; f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges; g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família (art.º 122º, n.º 1 da LOSJ, sob a epígrafe de “competência relativa ao estado civil das pessoas e família”). Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos (n.º 2).

Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (art.º 130º, n.º 1 da LOSJ).

3. Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida[3] e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.

Ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido, sabendo-se, como decorre do exposto, que a competência dos tribunais judiciais é uma competência residual, dado que são da sua competência todas as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional; face ao disposto no art.º 130º, n.º 1, al. a) da LOSJ, é indiscutível que os Juízos de competência genérica da Instância Local detêm uma competência residual, cabendo-lhes preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.

In casu, importa saber se o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial de Coimbra tem competência para preparar e julgar a presente acção.

4. A Lei n.° 7/2001, de 11.5, veio adoptar medidas de protecção das uniões de facto, independentemente do sexo das pessoas e desde que a união durasse há mais de dois anos (art.º 1º, n.º 1, na sua redacção inicial[4]).

A Lei n.° 23/2010, de 30.8, alterou substancialmente aquele regime jurídico, e passou a prever-se no art.º 2°-A (aditado à Lei n.° 7/2001, de 11.5), relativo à “prova da união de facto”, que na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível (n.º 1), evidenciando-se, aqui e nas demais alterações (maxime, na nova redacção dos art.ºs 3º a 6º), a tendência do legislador no sentido de proteger efectivamente agregados familiares constituídos fora das normas do casamento.[5]

5. No presente recurso - como se verá -, a solução deverá ser encontrada atendendo à previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ, e não propriamente por referência ao que prescreve a alínea b) do mesmo número: questiona-se se a competência material a dilucidar se encontra atribuída pelas ditas alíneas, as únicas que aqui relevam.

            6. Ao indagar o conteúdo e sentido do segmento normativo (cláusula geral) em análise - “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” - verifica-se que foi introduzido pela Lei n.º 52/2008, de 28.02 (LOFTJ), através do seu art.º 114º, al. h), sem que seja possível divisar nos correspondentes “trabalhos preparatórios” a razão de ser de tal estatuição, importando assim atender ao contributo da jurisprudência sobre a leitura desses conceitos jurídicos. [6]

7. E a jurisprudência tem convergido no sentido de que a leitura da citada alínea b) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ [processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum] implica ou pressupõe a tramitação de acção com a natureza de processo de jurisdição voluntária, sendo que não se descobre no título XV [“Dos processos de jurisdição voluntária”] do CPC, ou em legislação avulsa, um qualquer procedimento de jurisdição voluntária que tenha por objecto a apreciação e o reconhecimento judicial (a se) de uma situação de união de facto[7], sublinhando-se também, atentas as particularidades daquela concreta jurisdição, que não se vê sequer qualquer razoabilidade em sujeitar a presente acção e em razão da natureza do seu objecto, ao critério de julgamento a que alude o art.º 987º, do CPC [“Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”], ou à possibilidade plasmada no n.º 1 do art.º 988º do mesmo diploma legal.

Perfilhando-se aquele entendimento e equacionando, depois, a aplicação da referida alínea g), não se vê como enjeitar a perspectiva de que a alusão na parte final à palavrafamíliase tem de entender como referida às “acções sobre o estado civil das pessoas, ou seja, fazendo qualificar o conceito de estado civil usado no seu sentido restrito[8] - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida[9] -, e bem assim que o legislador terá certamente pretendido abranger o caráter fluído e flexível que hoje carateriza a vida familiar, que não se restringe a laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável, e sabendo-se que estamos perante uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8º da CEDH[10], razão pela qual a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se aoutras ações relativas ao estado civil das pessoas e famíliase reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto[11], de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que actualmente tem a família.[12]

8. A descrita perspectiva mostra-se consentânea com a própria evolução da organização judiciária: os Tribunais/Juízos de Família (desde o momento em que foram criados pela Lei n.º 4/70, de 29.4 e vieram a ser regulamentados, pela primeira vez, pelo DL n.º 8/72 de 07.01, e até à legislação actual) estão pensados/vocacionados para o conhecimento de acções que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família, ou seja, a longa tradição já sedimentada é a de conferir a competência daquele tribunal de competência especializada às acções em que há lugar à aplicação de normas de Direito da Família, sendo pacífico que em acções relativas às situações de união de facto se aplicam normas de Direito da Família (cf., designadamente, os art.ºs 1793º - conjugado com a Lei n.º 7/2001, de 11.5 - e 2020º do Código Civil)[13], “embora no conceito de família alargada pela evolução das condições sócio-familiares”.[14]

9. Concluiu-se, assim, que a união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas e família, pelo que, materialmente, a presente acção de reconhecimento judicial da união de facto se insere na competência do Juízo de Família e Menores, no caso vertente, atribuída ao Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

10. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos, pois que o Tribunal a quo tem competência, em razão da matéria, para julgar a presente acção.

Sem custas.


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23.6.2020


 

Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral

 




[1] Expurgadas, desde logo, da parte relativa ao pretenso conflito negativo de competência, tendo-se por desnecessária a pronúncia sobre o (eventual) alcance do despacho da Mm.ª Juíza do Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 3, proferido a 15.01.2020, reproduzido a fls. 118.
[2] Antolhando-se que o demandado, representando pelo M.º Público, foi devidamente notificado (cf. fls. 123 e 127).
[3] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respectivamente.

[4] Preceitua agora o art.º 1º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11.5 - redacção conferida pela Lei n.º 23/2010, de 30.8 -, que “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.

[5] Cf., nomeadamente, o acórdão da RC de 04.10.2011-processo 350/09.0TBANS.C1, publicado no “site” da dgsi.

[6] Cf., a propósito, sobretudo, os acórdãos do STJ de 13.11.2012-processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1 e da RP de 05.02.2015-processo 13857/14.9T8PRT.P1, publicados no “site” da dgsi, onde se destaca (além da abordagem doutrinal efectuada, no primeiro aresto, sobre a problemática do “estado civil”), designadamente:

   a) Que a respectiva Proposta de Lei n.º 187/X e a sua Exposição de Motivos refere, apenas, no tocante à competência material dos diversos tribunais, que uma das linhas de orientação do diploma vai no sentido de apostar no reforço da justiça especializada no tratamento de matérias específicas, como sejam a família, menores…”»; e no parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, consta apenas, em nota de rodapé, o seguinte: “de referir que se atribui aos juízos de família e menores a competência para preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou economia comum - cf. art.º 113º, alínea b) - e acções de investigação da maternidade e paternidade - cf. art.º 114º, n.º 1 alínea l) -, competências que não se encontram actualmente acometidas aos Tribunais de Família e Menores” (DAR II-A, n.º 91, de 03.5.2008, X Legislatura, 3ª Sessão Legislativa, pág. 31, nota 5).

   b) Que a Proposta de Lei n.º 114/XII, relativa à actual LOSJ, não nos dá qualquer pista sobre o conteúdo e o sentido da anterior inovação legislativa, tal como o subsequente parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, pois apenas aí se dá conta que uma das linhas centrais da reorganização dos tribunais judiciais de 1ª instância seria “a promoção de um acentuado aumento da especialização dos tribunais” (DAR II-A, n.º 53, de 19.12.2012, XII Legislatura, 2ª Sessão Legislativa (2012-2013), pág. 99).

   c) Por último, que, aparentemente, o legislador de 2013, com a preocupação de estabelecer a reorganização judiciária, deu por adquirido o conceito de “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”, sem que antes tenha sido precisado, não observando, em nenhum daqueles momentos de aprovação legislativa, as condições mínimas para se vir a respeitar o princípio da confiança no acto legislativo (9º, n.º 3 do Código Civil), uma vez que declinou as regras básicas de concisão, simplicidade e clareza instituída pelas boas práticas legislativas, as quais implicam uma comunicação prévia ou contemporânea das inovações legislativas, designadamente, a sua razão de ser, o seu conteúdo e sentido (Lei 75/98, de 11.11, alterada e republicada pela Lei n.º 42/2007, de 24.8, art.º 13º, n.º 1 ao exigir uma exposição de motivos; Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011 - DR I, n.º 131, 11.7; art.ºs 3º, n.º 1, 2 e 3; 14º, n.º 1, 3 e 5 e 17º, Regras de Legística a Observar na Elaboração de Actos Normativos da Assembleia da República, Edição A. R., Lisboa, 2008, págs. 24 e seguinte).
[7] Neste sentido, vide, ainda, António José Fialho (no artigo “In Competências das secções de família e menores nas uniões de facto e na economia comum”, https://blogippc.blogspot): “com excepção das questões relativas à casa de morada de família dos unidos de facto ou daqueles que vivem em economia comum (art.ºs 3º, al. a), e 4º, da Lei n.º 6/2001 e art.º 4º, al. d), e 5º da Lei n.º 7/2001), o exercício de outros direitos previstos nos diplomas que regulam as medidas de protecção da união de facto e da economia em comum não se integram em nenhum dos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no Código de Processo Civil ou noutros diplomas estabelecendo procedimentos a que sejam aplicáveis as regras do processo civil previstas para os processos de jurisdição voluntária”.
[8] Cf., nomeadamente, os mencionados acórdãos do STJ de 13.11.2012-processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1 e da RP de 05.02.2015-processo 13857/14.9T8PRT.P1.

[9] Cf. o acórdão da RC de 26.4.2016-processo 901/15.1T8LRA.C1, publicado no “site” da dgsi.

[10] Cf., por exemplo, os Ac. TEDH Marckx v. Bélgica, 13.6.1979; Jolie & Lebrun v. Bélgica, 14.5.1986; Johnston v. Irlanda de 18.12.1986; Berrehab v. Holanda de 21.6.1988; Boyle v. Reino Unido, 09.02.1993; Keegan v. Irlanda, 26.5.1994; Kroon e Outros v. Holanda, de 27.10.1994; Boughanemi v. França 24.4.1996; X, Y & Z v. Reino Unido, 22.4.1997; Söderbäck v. Suécia, 28.10.1998; Wagner v. Luxemburgo, 28.6.2007.
[11] E veja-se, por exemplo, o art.º 1576º do Código Civil e a Lei 23/2010, de 30.8, bem como as alterações legislativas daí decorrentes, especialmente para a Lei 7/2001, de 11.5.

[12] Cf. o citado acórdão da RP de 05.02.2015-processo 13857/14.9T8PRT.P1 (tendo-se sumariado: «As “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” da competência material dos tribunais de família e menores são aquelas que correspondem às condições ou qualidades pessoais e que têm como fonte as relações jurídicas familiares, de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal e familiar.»).

[13] Relativamente a algumas das especificidades e similitudes da união de facto como uma verdadeira “relação pessoal”, concernente ao estado civil das pessoas, vide F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume I – Introdução Direito Matrimonial, 5ª edição, Julho de 2016, Imprensa da UC, nomeadamente, a págs. 67, 79 e 87.

[14] Cf. o mencionado acórdão do STJ de 13.11.2012-processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1 e, ainda, com idêntico enquadramento quanto aos anteriores pontos do presente acórdão, os arestos da RL de 11.12.2018-processo 590/18.1T8CSC.L1-6 [concluindo-se: «1 - A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos n.ºs 2 e 4, do art.º 14º, do DL n.º 237-A/2006, de 14.12 (...), integra a previsão do art.º 122º,n.º1, alínea g), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO; 2 - É que, ao aludir a referida alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, e , com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.»] e da RC de 08.10.2019-processo 2998/19.6T8CBR.C1, publicados no “site” da dgsi.


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