Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
89/06.9TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CUMPRIMENTO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
MATÉRIA DE FACTO
CONDIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 06/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 342º E 830º DO CC
Sumário: I – A fixação num contrato-promessa de compra e venda de uma cláusula estabelecendo que a celebração do contrato prometido depende do prévio pagamento da totalidade do preço respeitante à venda, pela soma de sucessivos pagamentos parcelares, traduz uma condição a preencher previamente em vista (sine qua non) da celebração do contrato prometido.

II – Assim, a pretensão pelo promitente comprador de obter a execução específica desse contrato implica a alegação e a demonstração, por este, do preenchimento dessa condição, enquanto facto constitutivo do direito deste promitente a obter essa execução especifica (artº 342º, nº 1 do CC).

III – Não funciona essa condição, pois, como facto impeditivo do direito do A. (do promitente que pretende obter a execução específica) que o R. (aquele contra quem é accionada a execução especifica) deva provar, nos termos do artº 342º, nº 2 do CC.

IV – Podendo atribuir-se a esta condição de pagamento prévio alguma feição de “facto duplo” (no sentido de facto simultaneamente qualificável como facto constitutivo e impeditivo), essa circunstância revela-se dinamicamente no seu elemento indutor do direito à execução especifica por quem o exerce, sendo que, neste sentido, sem a prova desse facto, caracteristicamente constitutivo, nem sequer nasce o direito invocado pelo A. e, por isso, nem sequer é possível opor-lhe nenhum facto impeditivo (excepção peremptória).

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. A... (A. e aqui Apelante) demandou, em Janeiro de 2006, antecedendo-o da providência cautelar apensa (esta foi intentada em 03/11/2005)[1], B... (R. e ora Apelado), invocando a celebração com este, em 01/10/2003, de um contrato-promessa de compra e venda (o junto a fls. 18/23 da providência cautelar apensa), referente a um prédio (a vender por €400.000,00[2]) em cuja parte urbana se situava um estabelecimento comercial denominado “Bar X...”, sendo que a celebração deste contrato foi acompanhada, na mesma data, da outorga, em paralelo, de um “contrato de cessão de exploração” (do R. à A., corresponde este último ao documento junto a fls. 24/27 da providência) também respeitante ao mencionado estabelecimento. Todavia – alega-o a A. – o indicado contrato-promessa teria sido alterado, ou mesmo substituído, em 01/01/2004, pelo texto junto a fls. 32/33 da mencionada providência cautelar[3].

            Invocando incumprimento da promessa pelo R. (que teria vedado à A. A continuação da exploração do Bar), formulou a A. os seguintes pedidos[4]:


“[…]
1 – Declarar-se, nos termos do artigo 830º do Código Civil, a execução específica do contrato-promessa celebrado, devendo o mesmo ser cumprido nos precisos termos em que se encontra.
2 – Condenar-se o R. a pagar à A. a quantia de €99.244,43 a título de danos patrimoniais.
3 – Condenar-se o R. a pagar à A. a quantia de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais.
4 – Condenar-se o R. a abster-se de realizar negócio jurídico sobre os imóveis e sobre o estabelecimento e de perturbar o exercício dos direitos da A. sobre o estabelecimento.
[…]
Subsidiariamente, e apenas para a hipótese de não vir a ser possível a execução específica do contrato-promessa, deve condenar-se o R. nos termos do artigo 442º, devendo o R. restituir em dobro todas as quantias recebidas, acrescidas dos pedidos formulados de 2 a 5.
[…]”
            [transcrição de fls. 5]

           

1.1. O R. contestou a fls. 81/100 pugnando pela improcedência da acção, imputando à A. o incumprimento da promessa, designadamente quanto aos pagamentos faseados estabelecidos no contrato – no contrato-promessa de fls. 18/23 da providência cautelar apensa, negando o R. a subscrição do documento (indicado como alteração do contrato) de fls. 24/27 da mesma providência[5].

            1.2. Findas, sequencialmente, as fases dos articulados, condensatória (vale quanto a esta fase a peça processual de fls. 171/184) e de instrução, alcançou-se o julgamento documentado a fls. 481/484 e 488/489[6], findo o qual, depois de fixados os factos provados por referência à base instrutória (despacho de fls. 490/496), foi proferida a Sentença de fls. 498/536 – esta, completada pelo despacho de fixação dos factos, constitui a decisão objecto do presente recurso – que julgou a acção totalmente improcedente.

            1.3. Inconformada, reagiu a A. interpondo o presente recurso de apelação, motivando-o a fls. 610/652 e rematando tal peça processual com as conclusões que aqui se transcrevem:
[…]
            [transcrição de fls. 644/652]

           

1.3.1. O Apelado respondeu ao recurso a fls. 655/670, pugnando pela confirmação da Sentença apelada.


II – Fundamentação


            2. Relatados os passos que conduziram o processo até esta instância, cumpre assinalar, como ponto de partida na apreciação do recurso, que as conclusões transcritas no item anterior operaram a fixação do objecto temático da apelação, como decorre da conjugação dos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            Tendo presente o teor dessas conclusões – e assim expressamos qual o objecto temático da apelação – verificamos que o recurso se centra no acto de fixação dos factos – refere-se, portanto, para sermos exactos, ao despacho de fls. 490/496 –, pugnando a Apelante, com base numa distinta valoração da prova testemunhal[7], pela formulação de respostas distintas das fornecidas pelo Tribunal a quo aos seguintes pontos da base instrutória (v. as conclusões B e C acima transcritas): 2º, 3º, 4º, 5º (não provados)[8], 18º (resposta que, ao remeter para alíneas dos factos provados, é, na prática, negativa) 19º (resposta restritiva), 20º, 21º, 22º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º e 34º (todos estes receberam respostas negativas).

Note-se que a Apelante, na estruturação temática do seu recurso, não nos apresenta qualquer alternativa ao acto subsuntivo (ao acto de valoração jurídica dos factos) que pudesse passar pela manutenção nesta instância dos exactos factos fixados pela Exma. Juíza a quo, querendo com isto dizer-se – e continuamos no quadro da delimitação do objecto deste recurso – que o controlo do acto de aplicação do Direito só terá lugar aqui caso ocorram alterações ao elenco dos factos que propiciem – que fossem aptas a propiciar – uma outra solução jurídica, antagónica, em sentido favorável à pretensão da Apelante, da considerada na primeira instância através da Sentença apelada[9].


2.1. Como ponto de partida da apreciação dos factos que o recurso convoca, indicaremos aqui o elenco destes que foi considerado pelo Tribunal a quo, sendo que tal indicação (resulta ela da transcrição do trecho de fls. 500/506 da Sentença apelada) apresenta, na lógica expositiva deste Acórdão, a provisoriedade argumentativa decorrente de estarem em causa – pendentes de apreciação, digamo-lo assim – fundamentos do recurso que pretendem actuar sobre estes factos, visando a sua alteração, fundamentalmente através do acrescento de outros, no caso das respostas negativas (quase todas as criticadas pela Apelante).

Não obstante, feita esta advertência, aqui deixamos nota de quais os factos que a instância precedente considerou provados:
[…]
            [transcrição de fls. 500/506]

            2.2. Relativamente aos factos pretendidos discutir no recurso, abordaremos os pontos da base instrutória objecto de respostas negativas ou especificadas relativamente às quais a Apelante manifesta desacordo[10]. Podemos agrupar tematicamente esses factos, facilitando a subsequente exposição, nas seguintes incidências convocadas pela acção:


(A) Pontos da base referidos à alteração do contrato invocada à partida pela A./Apelante, alegadamente através da subscrição, adicional, pelo R./Apelado dos documentos de fls. 32/33 e 34:


[11]
Em 01 de Janeiro de 2004 o R. e a A. declararam alterar o acordo mencionado em B) [o contrato-promessa de fls. 18/19 da providência apensa, cuja celebração é consensualmente assumida por ambas as partes], quanto ao prazo de celebração da escritura e modo de pagamento, subscrevendo o escrito constante de fls. 32 dos autos apensos? (não provado)
Tendo naquela data a A. entregue ao R. o cheque nº ... do Y..., no valor de €100.000,00, a título de caução, o qual lhe foi devolvido, depois de paga aquela quantia? (não provado)
O R. deslocava-se semanalmente ao X... Bar para receber quantias em dinheiro, que variavam entre €500,00 e €2.000,00, até perfazer a quantia de €100.000,00? (não provado)
Posteriormente a A. entregou o cheque caução nº ... do Y..., no valor de €50.000,00, que lhe foi devolvido depois do pagamento desta quantia? (não provado)
19º
Apesar de a A. ter entregue ao R. as quantias mencionadas nos quesitos 3º e 5º, este apenas emitiu quatro recibos da quantia de €3.300,00 cada? (resposta especificada restritiva que originou o item [11] dos factos)
30º
O R. emitiu e subscreveu a declaração de venda constante de fls. 34 dos autos de procedimento cautelar apenso? (não provado)
34º
A A. nunca pagou ao R. quaisquer outras quantias, designadamente as referidas nos quesitos 3º, 4º e 5º, para além das que respeitavam aos meses de Outubro e Novembro de 2003 e Fevereiro e Março de 2004, no valor de €3.300,00/mês? (não provado)

B) Pontos da base com incidência na caracterização da performance contratual/comportamental das partes e atinentes a danos alegados pela A.:
18º
Após a realização das obras ditas em I), foi solicitada a vistoria, sendo a mesma de parecer negativo, por existirem alterações ao projecto que não se encontravam licenciadas? (resposta equivalente a não provado)
20º
No estabelecimento comercial encontravam-se em mercadoria e vasilhame a quantia de €7.844,21? (não provado)
21º
Na data em que procedeu à mudança de fechaduras o R. apropriou-se de todos os produtos que existiam no estabelecimento? (não provado)
22º
A partir da data em que o R. encerrou o imóvel a A. ficou impedida de prosseguir a actividade comercial? (não provado)
25º
O R. não diligenciou propositadamente, apesar de devidamente notificado, no sentido de legalizar as obras que fizera no estabelecimento, com o objectivo de evitar que a A. exercesse a sua actividade, e para desse modo apropriar-se de todas as quantias entretanto recebidas? (não provado)
26º
Devido à actuação do R. a A. teve grandes dificuldades económicas? (não provado)
27º
A A. sentiu-se humilhada e só conseguiu sobreviver graças à sua determinação e ajuda de pessoas amigas? (não provado)
28º
A A. sofreu angústias e desilusões que ainda hoje perduram? (não provado)
29º
A A. pretende continuar a desenvolver a sua actividade comercial no estabelecimento objecto do acordo descrito em C)? (não provado)
31º
A A. já não residia na morada indicada na alínea J)/[12], facto que era do conhecimento do R.? (não provado)


            2.2.1. (A) A Quanto a este primeiro grupo de pontos da base cuja resposta é contestada (referem-se eles à alteração do contrato através da imputada subscrição pelo R./Apelado dos documentos de fls. 32/33 e 34 do apenso), importa ter presente que a Apelada pretende a consideração, contra a versão que emergiu do julgamento na primeira instância, do que representaria, em termos práticos, uma substituição do contrato inicial (chamemos-lhe assim, referindo-nos ao acordo consubstanciado no documento de fls. 18/23 do apenso) por um novo contrato (o de fls. 32/33 do apenso), numa espécie de “concurso aparente” entre os dois contratos em que o segundo excluiria o primeiro, ou parte substancial dele, designadamente as cláusulas respeitantes ao modo de pagamento pela promitente compradora, in itinere para o contrato definitivo, dos valores que era suposto perfazerem, por acumulação paulatina (isto em qualquer das versões da promessa; cfr. as cláusulas sétimas dos dois contratos), os €400.000,00 correspondentes ao preço de venda dos prédios.

É na sequência desta alegada substituição dos contratos, que faz emergir duas versões sobre os pagamentos decorrentes da celebração da promessa, que aparecem alguns pontos da base, recolhendo as perspectivas antagónicas da A. e do R., que questionam os moldes em que se teriam processado esses pagamentos[12]. É o que sucede com os itens 3º, 4º, 5º e 19º (que recolhem a perspectiva da A. quanto ao pagamento) e é o que sucede, igualmente, com o item 34º (este recolhe a posição do R. quanto a esse pagamento).

2.2.1.1. (A) Note-se a este respeito – e retenha-se desde já este aspecto do problema colocada pela pretensão de execução específica –, que, em qualquer das versões do contrato-promessa, a celebração do contrato prometido sempre dependeria da – ou sempre estaria condicionada à – circunstância do valor total fixado para a venda (os tais €400.000,00) ter sido entretanto atingido (integralmente pago) por acumulação das diversas entregas parciais sequenciais efectuadas no quadro do cumprimento continuado dessa promessa, pois só assim ela estaria em condições de ser cumprida. Interessa reter este dado porque dele decorre a evidência de pretender a promitente compradora desencadear a execução específica da promessa (o que, repete-se, sempre pressuporia o cumprimento desta promessa pelo seu lado, como decorre do artigo 830º, nº 1 do CC) quando, de acordo com a sua própria alegação, não resulta que estivessem preenchidas as condições que lhe permitiriam exigir do promitente vendedor o cumprimento dessa mesma promessa através da celebração do contrato definitivo.

Com efeito, consideramos que a execução específica da promessa, enquanto modalidade de “realização coactiva da prestação”[13], implica, no quadro argumentativo que aqui se configura através de uma afirmação implícita da Apelante de que teria cumprido a sua parte dessa promessa, a caracterização como promitente fiel, isto como ponto de partida expresso na causa de pedir, do contraente (promitente comprador) que pretende obter essa execução específica. Este contraente pretendente da execução específica assume-se necessariamente, no confronto com um promitente infiel (estamos a falar de ónus argumentativos ligados ao preenchimento dos pressupostos da execução específica) como parte que cumpriu e que mantém interesse no cumprimento da promessa na sua essência significativa, obrigação de celebrar certo contrato (artigo 410º, nº 1 do CC), estando preenchidos todos os pressupostos conducentes à possibilidade de exigir ao outro promitente esse cumprimento final (chamemos-lhe assim, referindo-nos ao objectivo da celebração do contrato prometido, enquanto fim normal da promessa[14].

É que, conforme entendemos a lógica de funcionamento da execução específica de um contrato-promessa (da chamada acção ex artigo 830º do CC), prefigura-se como elemento constitutivo do direito a obter uma sentença que produza os efeitos da declaração negocial do contraente faltoso (a isto corresponde a execução específica) a integração das condições que permitiriam a esse contraente não faltoso exigir essa mesma declaração ao outro promitente, enquanto necessidade, para quem formula esse pedido, de fazer prova (e de alegar) os factos constitutivos do (desse) direito invocado, nos termos do artigo 342º, nº 1 do CC.

Isto mesmo foi entendido na Sentença apelada – e bem, expressando, aliás, uma compreensão inteligente da Exma. Julgadora do funcionamento da execução específica – ao considerar-se que “[…] em atenção às concretas cláusulas do contrato-promessa e ao efeito jurídico pretendido com o pedido de execução específica, o pagamento assume a feição de facto constitutivo do direito à execução específica” (transcrição de fls. 525/526, com sublinhado acrescentado neste texto).

Com efeito, neste caso, se uma das condições cujo preenchimento seria necessário, para obter a celebração do contrato de compra e venda prometido, se traduzia no prévio pagamento integral do preço dos prédios, só através do preenchimento dessa condição poderíamos afirmar a integração dos factos constitutivos do direito à execução específica exercido pelo promitente que se afirma fiel. Ou, dizendo o mesmo por outras palavras, constatamos que a A. tem de provar que a promessa está em condições de ser cumprida através da sentença, como o estava – ou porque já o estava – dentro do programa contratual estabelecido entre as partes, tivessem estas procedido em conformidade com tal programa.  

De facto, quanto à afirmação aqui pressuposta de que não estariam preenchidas as condições que possibilitariam à promitente compradora exigir do promitente vendedor o cumprimento da promessa, notamos que aquela (a ora Apelante) em nenhum trecho do seu argumentário, quer na providência cautelar quer nesta acção, indicou elementos (factos) que lhe permitissem sustentar que o contrato-promessa já reunia, tendo presente o programa contratual desenhado pelo seu clausulado, todos os elementos possibilitadores do desencadear do cumprimento correspondente à celebração do contrato prometido, por já ter sido atingido, pela soma das entregas parcelares da promitente compradora, a totalidade do valor da compra, conforme era exigido nas cláusulas sétimas dos dois contratos-promessa aqui considerados.

Note-se que esta visão das coisas (a caracterização do pagamento prévio do preço como pressuposto de partida – como causa de pedir – da execução específica, com a alocação do respectivo ónus da prova à A.), esta visão das coisas, dizíamos, implica a não atribuição desse ónus da prova quanto à prévia existência ou inexistência do pagamento ao R., por não o configurarmos, na dialéctica argumentativa que aqui se suscita, como facto impeditivo do direito da A., cuja alocação em termos de ónus da prova devesse ser feita, nos termos do artigo 342º, nº 2 do CC, ao R. E dizemos isto, porque este (o R.) não fez actuar esse elemento como tal – como facto impeditivo –, concretamente por não o introduzir, por referência ao nº 5 do artigo 830º do CC, como excepção de não cumprimento, desencadeada em vista do cumprimento da promessa[15]. Com efeito, podendo atribuir-se a este aspecto (à questão do pagamento no programa contratual traçado entre os dois promitentes) alguma feição de “facto duplo”, no sentido de poder ele ser, simultaneamente, qualificável – atrever-nos-íamos a dizer: semanticamente qualificável – como facto constitutivo e impeditivo, vemos que na actuação concreta dessa incidência, se ultrapassarmos o elemento semântico que tenderia a expressar um mero jogo de palavras, esse facto revela-se dinamicamente no seu elemento indutor do direito à execução específica, sendo que, neste sentido, sem a prova do facto constitutivo (deste concreto facto constitutivo), nem sequer nasce o direito invocado pela A. e, por isso mesmo, nem sequer é possível opor-lhe nenhum facto impeditivo e, consequentemente, nenhuma excepção peremptória.

É nestes termos que equacionamos a questão do ónus da prova do pagamento dos valores devidos ao abrigo do iter da promessa. Para além de se sublinhar o evidente défice argumentativo da A./Apelante, logo à partida da acção, interessará aqui reter que o pagamento integral do preço respeitante à compra e venda prometida, funcionando como facto a provar pela A. (artigo 342º, nº 1 do CC), conduz – conduzirá, como veremos –, face ao non liquet respeitante a esse aspecto, ao funcionamento da regra de decisão implícita nessa atribuição do ónus da prova, propiciando assim uma decisão desfavorável à pretensão da A., sendo certo que a dúvida sobre a realidade de um facto relevante para a afirmação de determinado direito deve ser resolvida contra a parte a quem o facto aproveita (artigo 516º do CPC).

Foi este, com efeito, o percurso trilhado e o resultado alcançado pela decisão apelada.

            2.2.1.2. (A) Independentemente disto – e continuamos a descrever obstáculos diversos que aqui se apresentam à realização da pretensão de execução específica do contrato pela Apelante –, à consideração do modo de pagamento previsto no primeiro contrato[16], estando documentada a efectivação deste pagamento nos quatro primeiros meses subsequentes à data desse contrato (item [11] dos factos; documentos de fls. 30 e 31 do apenso), a este modo de pagamento, dizíamos, opõe a R., por alegada substituição do respectivo suporte contratual inicial, um novo sistema de pagamentos decorrente de um alegado segundo contrato[17]. Esta distinta regulação das relações contratuais travadas no quadro da promessa serviu à Apelante, logo na providência cautelar, para suportar a alegação de ter realizado pagamentos ao Apelado, para além dos documentados nos quatro recibos indicados no ponto [11] dos factos. Porém, para sermos rigorosos na interpretação do sentido do invocado segundo contrato, sempre teríamos que considerar que a forma pela qual a Apelante indicou, tanto na providência cautelar como nesta acção, a realização desses pagamentos não seria sequer coincidente com o teor das cláusulas respectivas do segundo contrato (transcrevemo-las na nota 18, supra)[18], valendo esta constatação pela afirmação de que os pagamentos que a Apelante alega ter feito, tenham eles ocorrido ou não (adiante veremos como resolver tal impasse de facto), significariam, em qualquer dos casos, a adopção de um modelo distinto – verdadeiramente um terceiro modelo – do contratualmente previsto, valha um ou outro dos contratos, sendo que a Apelante não dispõe, relativamente a este modelo de pagamento, de qualquer suporte documental.

Pretende a Apelante, pois, em termos práticos – é o que não pode deixar de se concluir da sua alegação –, afirmar através de testemunhas, em desconformidade do que prescreve o artigo 394º, nº 1 do CC, uma convenção contra ou além do conteúdo de um documento particular (trate-se este do primeiro ou do segundo contrato-promessa) que, no primeiro caso, ambas as partes reconhecem, convergentemente, ter celebrado e, no segundo caso, a A. afirma ter sido celebrado.

Vale esta asserção, enfim, como já dissemos, em função da constatação de que o método de pagamento afirmado pela A. (o questionado nos pontos 3º, 4º e 5º da base instrutória) não tem correspondência nem no primeiro nem no segundo contrato, funcionando relativamente a qualquer deles, pois, como algo aparentado a um pacto adicional (temporalmente posterior) contrário ao que se expressou através dos documentos considerados.

Ora, como decorre do artigo 394º, nº 1 do CC a nossa lei pretende vedar a produção de prova testemunhal (precisamente aquela da qual a Apelante aqui pretende socorrer-se) que tenha por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do mesmo Código, sejam essas convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento[19].

Ora, sendo certo que a questão dos pagamentos em nenhum dos contratos alternativamente apresentados é regulada nos exactos termos afirmados pela A. (os questionados nos itens 3º, 4º e 5º da base instrutória), tratando-se esse modo de pagamento de aspecto expressamente regulado em qualquer dos contratos, não vemos como a indagação, através de prova testemunhal, do que se pergunta nos indicados pontos 3º 4º e 5º da base, pode ser vista como compatível com o estabelecido no nº 1 do artigo 394º do CC.

Trata-se esta de uma questão que não nos parece irrelevante e que nos suscita as maiores dúvidas quanto à articulação do tipo de prova aqui considerada com a essência significativa dos factos pretendidos demonstrar.

2.2.1.3. (A) Não obstante, lembramos aqui – e assim abordamos directamente a impugnação, nos termos do artigo 712º, nº 1 do CPC, do primeiro trecho dos factos indicado em 2.2. – estarem em causa os pontos da base (2º, 3º, 4º, 5º, 19º, 30º e 34º) referidos à alteração do contrato invocada pela A./Apelante, alteração esta que teria ocorrido através da subscrição adicional, pelo R./Apelado, dos documentos de fls. 32/33 e 34, alteração que teria originado o tipo de pagamentos indicados pela A.

Resultaria tal asserção, di-lo a Apelante, dos depoimentos das testemunhas do respectivo rol, [...]

Porém, para além da descontextualização das transcrições incluídas pela Apelante no recurso, muitas vezes substancialmente matizadas noutros trechos dos depoimentos que não foram transcritos (v. um exemplo de variação do depoimento na nota 22, supra), haverá, pois, que colocar esses depoimentos no contexto global de toda a prova produzida no julgamento[22], sendo que, nesse contexto, deparamo-nos invariavelmente com depoimentos simétricos, dos dois lados da prova, afirmando, respectivamente, a versão da parte apresentante[23] e que, por isso mesmo – por serem depoimentos que revelaram pouca objectividade e total falta de distanciamento de quem os prestava dos interesses de uma das partes, aparentemente assumidos como próprios –, não constituem material probatório seguro para fundar asserções de facto que não sejam claramente suportadas, no sentido de corroboradas, fora da prova testemunhal.

Esta é, com efeito, a visão que esta Relação, coincidentemente com a primeira instância, extrai da sua valoração directa da prova testemunhal, assente na audição do registo sonoro desta.

Todavia, se quiséssemos procurar, exteriormente à prova testemunhal, elementos de corroboração de uma ou de outra das versões em confronto, seriamos conduzidos, como correctamente referiu a Exma. Juíza na fundamentação das respostas, a uma maior plausibilidade da versão do R., ou, dizendo o mesmo por outras palavras, a uma menor consistência da tese da A.

Com efeito, trata-se aqui – lembramo-lo –, enquanto circunstância de facto básica, de considerar que o contrato-promessa assumidamente celebrado entre as partes (o de fls. 18/19 da providência cautelar) foi substituído ou alterado[24] por um suposto segundo contrato (o de fls. 32/33 do mesmo apenso), contendo uma regulação distinta do modo de pagamento faseado do valor pelo qual se realizaria a venda dos prédios. Só que, estando assente, por se tratar de prova documental não impugnada (apresentada, aliás, pela A.), o pagamento pelo R., em 25/02/2004, do imposto de selo reportado ao primeiro contrato (documento de fls. 23 do apenso)[25], fica sem suporte lógico a pretendida (pela A.) celebração em data anterior (01/01/2004) de um novo contrato: se o contrato já tivesse sido substituído, que razão levaria o promitente vendedor a praticar um acto fiscal necessário relativamente a um contrato que já não vigorava entre os contraentes.

E o mesmo poderemos dizer, apontando no sentido da falta de corroboração da tese da A., quanto aos supostos cheques-caução[26], sendo que pertencem esses cheques a módulos requisitados posteriormente à data da suposta subscrição do contrato (v. documento de fls. 343[27]), o que não confere verosimilhança (ou corroboração) à tese da A. quanto à data da subscrição do segundo contrato e a uma alegada entrega, temporalmente coincidente com esse contrato, do primeiro cheque.

Aliás, quanto a indícios inconsistentes com a tese da A., poderíamos também indicar a circunstância do suposto segundo contrato não conter, contra o que decorreria do seu próprio texto (v. cláusula décima), qualquer rubrica na folha contendo as cláusulas referidas ao modo de pagamento (v. fls. 32), circunstância que o coloca, quando encarado em si mesmo, sobre uma intensa reserva de autenticidade.

Temos, pois, e é o que aqui interessa acentuar, uma prova testemunhal que é, toda ela, inconsistente com a afirmação de qualquer das teses em confronto na acção[28] e que, nesse sentido (no sentido de ter correspondido a um non liquet), não poderia deixar de conduzir ao privilegiamento, enquanto regra de decisão induzida pelos artigos 342º, nº 1 do CC e 516º do CPC, da tese do R.[29], lembrando-se aqui o que acima sublinhámos, a propósito da atribuição à A. do ónus da prova, que vale para qualquer das vertentes aqui consideradas, e que não poderia deixar de conduzir ao prevalecer, em termos de resultado decisório, da tese do R.

Devem, pois, manter-se as respostas aqui questionadas pela Apelante, sendo certo que esta Relação, na sua valoração directa da prova, concretamente da prova testemunhal, coincide inteiramente com a primeira instância.

            2.2.2. (B) E o mesmo vale para o segundo segmente temático de factos criticados pela Apelante. Refere-se este, como anteriormente indicámos, aos pontos 18º, 20º, 21º, 22º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º e 31º da base instrutória (factos que acima caracterizámos, no item 2.2., como tendo incidência na apreciação da performance contratual/comportamental das partes e atinentes a danos alegados pela Apelante).

            Também aqui tudo assentaria numa sobrevalorização dos dois depoimento indicados pela Apelante (C... e D...), depoimentos sujeitos aos condicionalismos acima indicados nas notas 21 e 22 e que, também aqui, não poderiam conduzir ao distinto resultado pretendido pela Apelante. Tais depoimentos não apresentaram, aliás, a expressividade concreta e de precisão que lhes é pretendida atribuir, revelando antes um valor meramente circunstancial que se situa muito aquém da pretensão da Apelante.

            É neste sentido que se confirmam, também neste segmento, as respostas do Tribunal a quo

2.3. Independentemente da valoração ora efectuada da prova disponível nos autos, designadamente daquela que a Apelante indicou como erradamente valorada pela primeira instância – valoração que este Tribunal aqui assumiu autonomamente e em termos particularmente amplos, num quadro de verdadeira substituição à instância precedente –, sempre importaria ter presente qual o conteúdo dos poderes de reapreciação dos factos nesta Relação, no quadro do controlo da prova testemunhal (aquela que a Apelante considera ter sido deficientemente valorada), nos termos do artigo 712º, nº 1, alínea a) do CPC.

            Tenha-se presente, desde logo, que o relacionamento deste Tribunal, no âmbito do presente recurso, com a prova testemunhal ocorre, como não poderia deixar de ser, indirectamente – consubstancia-se num acesso mediato –, através da apreciação de registos sonoros dos depoimentos prestados em julgamento pelas testemunhas.

Assim, sublinhar o carácter indirecto ou mediato do relacionamento deste Tribunal com este tipo de prova assumirá alguma relevância, já que expressa a consideração de posições caracteristicamente diferentes (apreciação directa versus apreciação indirecta), dando sentido à asserção de que o controlo que ora se exerce se refere fundamentalmente à detecção e correcção, sendo caso disso, “[…] de manifestos erros de julgamento [e] de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova”[30], sendo certo – e seguimos  aqui, desta feita, a argumentação constante do Acórdão do STJ de 10/05/2007[31] – que o legislador do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro (que estruturou o 2º grau na apreciação da matéria de facto, com base no registo da prova produzida em audiência) “[…] afora pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento – preferiu acreditar, em regra, no juiz que faz a imediação da prova [, p]or mais qualificado que possa parecer, pela natureza e a hierarquia das coisas, um juízo feito num tribunal superior”.

            Com efeito, a valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação (artigo 396º do CC), expressando este a aceitação de uma inevitável margem de ponderação subjectiva do julgador, enquanto elemento irrepetível num controlo por terceiros, parecendo não existir, assim, fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato aos factos (assente, tão-só, na audição da gravação sonora de depoimentos), para que o Tribunal de recurso substitua a “livre apreciação” do julgador imediato, pela sua (mediata) “livre apreciação”. A ideia de um recurso de natureza substitutiva quanto aos factos, não implicará, estamos em crer, qualquer “substituição” de “livres apreciações”[32]: o julgamento dos factos não se repete, controla-se a racionalidade da fixação de determinados factos e não de outros; a substituição opera fora de um quadro valorativo em que a instância de recurso se limite a invocar, substituindo-a à da instância recorrida, a “sua” “livre apreciação” da prova testemunhal.

É que, como sugestivamente refere Jordi Ferrer Beltrán, “[a] livre valoração da prova é «livre», só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração. Com efeito, a operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos de julgamento aportam a determinada hipótese, está sujeita aos critérios gerais da lógica e da racionalidade”[33], querendo isto dizer que é no controlo do carácter lógico e racional das respostas, por referência à prova produzida, que se exerce o poder da Relação de actuar sobre o julgamento dos factos, quando estão em causa asserções que assentaram na prova testemunhal.

Todavia, não obstante considerarmos ser este o entendimento mais consentâneo com a estrutura de um recurso incidente sobre os factos fixados através da valoração da prova testemunhal, adoptou-se aqui – como cremos ilustrar o percurso antecedentemente empreendido – um entendimento muito mais amplo, fundamentalmente substitutivo e operando num plano de igualdade com a primeira instância, quanto à natureza e intensidade do padrão de controlo dessa decisão de facto, na sua abordagem por um Tribunal da Relação[34]. Vale isto por dizer, enfim, que o controlo da prova aqui efectuado operou por sobreposição à decisão da primeira instância e com base na formação de uma convicção própria por este Tribunal. O que sucedeu foi, assim, que esta Relação chegou, autonomamente, ao mesmo resultado que o Tribunal a quo e, por isso, confirmou o entendimento deste.

2.4. Aqui chegados, consolidando-se os exactos factos fixados na primeira instância, resta-nos confirmar o julgamento aí realizado, com a consequente improcedência do recurso.

Todavia, previamente à formulação da decisão, sumariaremos alguns pontos centrais do antecedente percurso expositivo:


I – A fixação num contrato-promessa de compra e venda de uma cláusula estabelecendo que a celebração do contrato prometido depende do prévio pagamento da totalidade do preço respeitante à venda, pela soma de sucessivos pagamentos parcelares, traduz uma condição a preencher previamente em vista (sine qua non) da celebração do contrato prometido;
II – Assim, a pretensão pelo promitente comprador de obter a execução específica desse contrato, implica a alegação e a demonstração, por este, do preenchimento dessa condição, enquanto facto constitutivo do direito deste promitente a obter essa execução específica (artigo 342º, nº 1 do CC);
III – Não funciona essa condição, pois, como facto impeditivo do direito do A. (do promitente que pretende obter a execução específica) que o R. (aquele contra quem é accionada a execução específica) deva provar, nos termos do artigo 342º, nº 2 do CC;
IV – Podendo atribuir-se a esta condição de pagamento prévio alguma feição de “facto duplo” (no sentido de facto simultaneamente qualificável como facto constitutivo e impeditivo), essa circunstância revela-se dinamicamente no seu elemento indutor do direito à execução específica por quem o exerce, sendo que, neste sentido, sem a prova desse facto, caracteristicamente constitutivo, nem sequer nasce o direito invocado pelo A. e, por isso, nem sequer é possível opor-lhe nenhum facto impeditivo (excepção peremptória).


III – Decisão


            3. Assim, na improcedência da apelação, decide-se confirmar a Sentença recorrida.

            Custas do recurso a cargo da Apelante.



J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Embora em qualquer das situações estejam em causa processos iniciados antes de 01/01/2008 (o que, por si, determina o regime de recursos aplicável), a propositura da providência cautelar (uma restituição provisória de posse), projectou a ulterior aplicação a esta fase processual do regime dos recursos anterior à reforma consubstanciada no Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1; cfr. a Decisão do ora relator de 16/06/2008, proferida no processo nº 280/07.0TBLSA-F.C1, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/db953307306506a2802574710050bb). Note-se, aliás, que, por essa mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil doravante citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo mencionado DL nº 303/2007, se refere à versão anterior à introduzida por este Diploma.
[2] Para compreensão da situação – aqui na perspectiva em que a A. a apresenta – tenha-se presente que o contrato-promessa em causa (o de fls. 18/23 da providência cautelar apensa) indica a seguinte sequenciação de pagamentos: “[n]os termos do contrato-promessa, a A. efectuaria o pagamento mensal da quantia de €3.300,00 […]” (transcrição do artigo 6º da petição inicial).
[3] Incidência que apresenta um especial significado neste recurso e que a A. relata nos seguintes termos no seu articulado inicial:
“[…]

Contudo, em 01 de Janeiro de 2004, celebraram alterações ao contrato-promessa, nomeadamente, quanto ao prazo e modo de pagamento […].
A A. entregou a título de caução o cheque nº ..., do Y..., no valor de €100.000,00, o qual seria devolvido assim que o R. tivesse aquela quantia em seu poder (cfr. doc. nº 7 da providência cautelar […]).
Deste modo o R. deslocava-se semanalmente ao X... Bar para receber quantias em dinheiro que variavam entre os €500,00 e os €2.000,00, até perfazer a quantia supra referida.
10º
O cheque foi posteriormente devolvido e inutilizado.
11º
Posteriormente, e utilizando o mesmo sistema, a A. entregou o cheque caução nº ..., do Y..., no valor de €50.000,00, que também lhe foi devolvido após o pagamento desta quantia (cfr. doc. nº 8, da providência cautelar […]).
[…]”
                [transcrição de fls. 1 vº/2].
[4] Na providência cautelar apensa foi a A. restituída provisoriamente à posse do referido Bar (fls. 59/73 dessa providência, posteriormente confirmada em sede contraditória a fls. 188/195).
[5] Diz o R. a tal respeito na contestação:
“[…]
13º
Impugna-se especificamente o referido no artigo 7º da PI, uma vez que o R. não conhece, por não ser verdadeiro, a existência válida da alteração ao contrato de promessa, alteração esta datada de 1 de Janeiro de 2004,
14º
Bem como da Declaração de Venda que se encontra anexa com a mesma data, os quais nunca assinou e dos quais nunca teve cópia.
15º
Nem estas fazem qualquer sentido de existir, face à formalização efectuada no contrato-promessa datado de 1 de Outubro de 2003, outorgada em escritório de advogado com assinaturas reconhecidas […].
[…]
19º
Estranho é o surgimento conveniente de um aditamento, com formato e configuração em tudo idênticas ao anterior, com uma assinatura do R. em cópia, mas que este recusa ter alguma vez assinado, afirmando que tal documento nunca viu ou existiu.
20º
Este pretenso documento, ao contrário do que refere a sua cláusula décima, não se encontra devidamente rubricado, nem faz prova do pagamento do respectivo imposto de selo, ao contrário do legítimo.
[…]”
                [transcrição de fls. 84]
[6] E também a fls. 605 (repetição da inquirição de uma testemunha anteriormente não registada).
[7] Indica a Apelante em concreto, cumprindo o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 690º-A do CPC, o depoimento das (suas) testemunhas C ... e D....
[8] Indicaremos sequencialmente o sentido das respostas recolhidas no despacho de fls. 490/491.
[9] Vale isto pela afirmação, que ora se assume, de que o acto de aplicação do Direito aos factos, tendo por base os exactos factos fixados pelo Tribunal a quo, se afigura a esta Relação como correcto e merecedor, nesse pressuposto, de inteira confirmação – na subsequente exposição apenas abordaremos pontos concretos dessa operação subsuntiva, na medida em que isso assuma utilidade na apreciação da dimensão fáctica do julgamento ora controlado.
[10] Sendo que com a indicação destes pontos cumpriu a Apelante o ónus argumentativo que lhe é imposto, enquanto impugnante da matéria de facto, pela alínea a) do nº 1 do artigo 690º-A do CPC.
[11] Transcrevemos aqui, mantendo a forma interrogativa, os pontos que eram questionados na base instrutória constante de fls. 178/183, com o acrescento determinado a fls. 230.
[12] Na base instrutória, questionando-se as duas perspectivas quanto a este problema, não se assumiu qualquer posição a respeito da alocação do ónus da prova a uma ou a outra das partes, tendo tal questão permanecido em aberto para o julgamento, onde se colocou, face à indemonstração das duas perspectivas, acabando por ser resolvida – e cremos que bem – pela Exma. Juíza a quo, alocando esse ónus à A. (v. trecho de fls. 525/526 da Sentença), daí extraindo, quanto a esse aspecto, a “regra de decisão” decorrente do artigo 516º do CPC.
[13] Este é o título da Secção que no Código Civil contém a respectiva regulação, integrando a “acção de cumprimento e execução” (artigos 817º a 826º) e a “execução específica” (artigos 827º a 830º).
[14] “Atenta a necessidade de pressupostos de funcionamento da acção de cumprimento e da execução específica, uma conclusão se impõe: o contraente fiel pode pedir a execução específica do contrato-promessa enquanto mantiver interesse na prestação. Tal não significa […] que a execução específica só se compatibiliza com a mora. Certo é que é no estado e na pendência da mora que a execução específica – tal qual a acção de cumprimento – encontra o seu habitat normal, por ser característica desse estado a subsistência do interesse do credor na realização da prestação. Demonstrada, porém, a eventualidade da subsistência do interesse do credor, após o incumprimento definitivo, demonstrada fica também a compatibilização da execução específica com os casos de incumprimento definitivo em que essa subsistência tenha lugar” (Manuel Januário da Costa Gomes, Em Tema de Contrato-Promessa, Lisboa, 2005, p. 59).
[15] O R. refere a questão do não pagamento num quadro de negação directa dos factos invocados pela A. como constitutivos do seu direito à execução específica do contrato, afirmando que este não foi cumprido pela A., tanto assim que o resolveu. Não se trata, pois, de fazer actuar aqui a excepção de não cumprimento (artigo 830º, nº 5 do CC), enquanto afirmação de que a execução específica, a efectivar-se, tem de considerar o preço não pago, por razões de fidelidade ao contrato e de equilíbrio das prestações respectivas, sendo esta a finalidade, dentro da lógica de actuação da execução específica da promessa, do indicado nº 5 do artigo 830º (v. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo II, Coimbra, 2010, pp. 432/433).
[16] Isto através do texto da respectiva cláusula terceira: “[a] segunda outorgante [a ora Apelante] entrega ao primeiro [ao ora Apelado], todos os meses seguintes e sucessivos a este contrato, o valor de €3.300,00 para amortização do valor da compra” [transcrição de fls. 18 do apenso; clausula que foi transposta para o item [2] dos factos provados].
[17] Seria este o resultante das cláusulas terceira e quarta desse invocado novo contrato:
“[…]
Terceira
Neste acto a segunda outorgante entrega ao primeiro o cheque nº ... do Banco Y... no valor de €100.000,00, sem data, a qual data será aposta no cheque quando ambos os outorgantes assim o determinarem.
Quarta
O remanescente, no valor de €300.000,00 serão pagos em sessenta prestações mensais e sucessivas, a iniciar no mês seguinte à outorga do presente contrato.
[…]”
                [transcrição de fls. 32 do apenso]
[18] Em rigor, a Apelante diz que passou a pagar importâncias mensais variáveis, entre €500,00 e €2.000,00, acompanhadas de sucessivos e substitutivos cheques-caução de €100.000,00 e €50.000,00, o que, como facilmente se percebe, não estava previsto em qualquer dos contratos aqui em causa, não dispondo de qualquer suporte documental. Isto, todavia, sem prejuízo de podermos imputar essa hipotética forma de pagamento – tivesse ela sido provada – no computo global do pagamento do preço da venda ao abrigo da promessa.
[19] Note-se que o nosso Código Civil, contrariamente ao que sucede com a Lei italiana (v. os artigos 2722º e 2723º do Codice Civile), não distingue quanto a convenções anteriores ou contemporâneas do documento (artigo 2722º do Código italiano, que proíbe, pura e simplesmente, a prova testemunhal: “[l]a prova per testimoni non è ammesa se há per oggetto patti aggiunti o contraria al contenuto di un documento, per i quali si alleghi che la stipulazione è stata anteriore o contemporanea”) e convenções posteriores à formação do documento (quanto a estas o artigo 2773º do Código italiano permite ao juiz autorizar, em função das circunstâncias, a produção de prova testemunhal: “[q]ualora si alleghi che, dopo la formazione di un documento, è stato stipulato un patto aggiunto o contrario al contenuto di esso, l’autorità giudiziaria puo consentir esa prova per testimoni soltanto se, avuto riguardo alla qualità delle parti, alla natura del contratto e a ogni altra circostanza, appare verosimile che siano state fatte aggiunte o modificazione verbali”, v. Salvattore Patti, “Prova testimoniale. Presunzioni”, in Commentario del Codice Civile Scialoja-Branca, Bolonha, Roma, 2001, pp. 34/56).
[20] E que produziu um depoimento integralmente coincidente com a versão da Apelante quanto aos factos, invocando mesmo, durante a prestação desse depoimento, uma situação de confronto físico com o R., aparentemente com alguma ligação à situação ora ajuizada, que terá envolvido tiros disparados pelo R. os quais terão atingido a testemunha. Sublinha-se esta circunstância (que foi relatada pela própria testemunha) para ilustrar, tão-só, a situação de animosidade existente entre a testemunha e o R., enquanto dado significativo na compreensão do depoimento. Aliás, sendo certo que a testemunha foi, na prática, durante a ausência da A. no Brasil o “gestor” do Bar, como reconheceu, estamos com este depoimento face a uma espécie de “depoimento de parte”, de sentido favorável, prestado por interposta pessoa.
[21] Esta testemunha, que não indica qualquer razão justificativa para o conhecimento profundo que ostenta (mas sempre indirecto, dado tratar-se de assuntos que o não envolveram directamente) relativamente aos assuntos da A. e do R., depõe de forma sempre favorável aos interesses da A., invocando um conhecimento muito profundo dos assuntos do R., sendo evidente a existência de uma animosidade, não explicada, relativamente ao R. Todavia, o depoimento desta testemunha, assentando fundamentalmente na interpretação que ela própria faz de procedimentos e intenções que atribui ao R. (por exemplo: “ele não gosta de cheques, só de dinheiro vivo”) não traduz, em rigor, uma transmissão de factos directamente percepcionados pela testemunha, mas de impressões e de interpretações subjectivas sobre supostos comportamentos e procedimentos do R. Vale isto, pela descaracterização deste depoimento como transmissão de factos (funcionou antes como uma espécie de testemunho de carácter do R., num contexto muito pouco fiável). Aliás, ilustrando o tipo de depoimento prestado por esta testemunha, tenha-se presente que começou por pretender “provar” que o R. não recebia cheques e que, por isso, só receberia pagamentos em “dinheiro vivo” (“não gostava de cheques”), para depois se “embrulhar” com as respostas no relato de supostos episódios passados, recuar nas afirmações enfáticas que anteriormente fizera e acabar por admitir o contrário do que inicialmente afirmara. Da mesma forma, lançando elementos menos claros sobre as motivações desta testemunha, temos a afirmação reiterada de que possuiria cópias em casa de toda a documentação junta pela A., sem que se percebesse (como certeiramente observou a Exma. Juíza a quo) a razão de ser disso.
[22] Este Tribunal ouviu, por mais de uma vez, todo o registo sonoro dos depoimentos das oito testemunhas que depuseram no julgamento.
[23] Na prova testemunhal do R. constitui exemplo paradigmático desta falta de distanciamento o depoimento da sua cônjuge de facto, E....
[24] A ideia de alteração é pretendida veicular pela A., logo desde a providência cautelar (v. o respectivo artigo 7º a fls. 3 do apenso), não obstante tal ideia ser inconsistente com a subscrição de um novo contrato, dada a ostensiva vocação de completude deste segundo contrato. Assim, o que poderia estar em causa, existisse prova dessa incidência, seria uma verdadeira substituição do primeiro contrato pelo segundo.
[25] Trata-se de prova que podia ser valorada na Sentença (como o foi, implicitamente e explicitamente, a fls. 494), nos termos do artigo 659º, nº 3 do CPC (v. José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, Vol. 2º, Coimbra, 2001, pp. 643/644).
[26] Sublinha-se – e assim se responde a uma questão suscitada no recurso – ser irrelevante a pretendida junção do original do cheque de fls. 36 do apenso, nesta fase de recurso, nos termos do artigo 706º, nº 1 do CPC, conforme indica a Apelante na conclusão M acima transcrita. Com efeito, o documento em causa não foi impugnado na sua materialidade, a cópia respectiva já contém a anotação manuscrita indicada pela Apelante e, enfim, a questão que se suscita relativamente a esse documento cinge-se à atribuição ao mesmo de um significado (caucionar um valor) para o qual é irrelevante dispor-se do original ou da cópia desse documento.
De qualquer forma, quanto à não junção do original, a Apelante dispôs de inúmeras oportunidades – fosse qual fosse a posição da Exma. Juíza a quo – apenas se podendo, a esse respeito, queixar de si própria.
[27] Cfr. nota 26, supra.
[28] O que também vale, quanto a pagamentos, para a tese do R., também ela indemonstrada, sendo absolutamente correcta a resposta negativa ao item 34º da base, já que não se sabe se a A. não terá pago ao R. outras quantias no contexto do contrato celebrado.
[29] Subjaz aos artigos 342º do CC e 516º do CPC, a construção teórica chamada “teoria das normas”. Tal teorização tem origem nos trabalhos do processualista alemão Leo Rosenberg (1879-1963), no início do Século XX, e já foi qualificada como “direito consuetudinário mundial”, assentando na consideração “[…] de que nenhuma norma pode ser aplicada sem que o juiz se convença da verificação de todos os seus pressupostos [, extraindo-se] daí que a recusa de aplicação sucederá tanto quando o juiz se convença da não verificação de um ou mais dos elementos da facti species (Tatbestand) da norma a aplicar, quanto quando o juiz não se convença quanto à sua não verificação. Quer isso dizer, então, que «a parte cuja pretensão processual não pode ter sucesso sem a aplicação de determinada norma jurídica suporta o ónus da alegação e da prova de que os elementos da facti species dessa norma se verificaram de facto na situação» […]” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 18 e 43/44; importa sublinhar que este Autor expõe a chamada “teoria das normas” numa perspectiva crítica, caracterizando-a como inadequada a uma série de situações, o que, todavia, não sucede com o absoluto fracasso probatório da A. que aqui nos cumpre apreciar).
“No caso de um non liquet – portanto: de não se ter podido apurar, afinal, o que aconteceu, com referência aos factos em litígio – o juiz ficaria, na falta de outra regra, impedido de proceder quer à aplicação positiva, quer à negativa. Mas a decisão não pode ser omitida. O ónus da prova torna-se, nessa altura, numa norma de decisão do caso. E a decisão cairá contra quem, invocando os factos decisivos, não logre demonstrá-los “ (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, 2005, p. 466).
Não obstante a perspectiva crítica que tem da “teoria das normas”, é adequado citar aqui a caracterização que faz Pedro Ferreira Múrias do conceito de “normas de decisão”: “[…] as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […, são] normas de decisão […], são «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i. e., através da ficção […]” (Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 62/63).

[30] Diz-se no Acórdão do STJ de 14/03/2006 (Ferreira Girão), publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XIV, Tomo I/2006, pp. 130/131.
[31] Proferido no processo nº 06B1868 (Pires da Rosa), disponível, sob estes campos de pesquisa, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3bd4510d626cc929802572d80032c28
[32] O legislador, aliás, assumiu este condicionalismo – e disso deixou algum tipo de rasto que reputamos de expressivo – ao consignar, no preâmbulo do referido Decreto-Lei nº 39/95, o seguinte:
“[…]
[O] objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova […]”.
[33] La valoración racional de la prueba, Madrid, 2007, p. 45.
[34] Seguiu-se aqui, pois, o entendimento defendido por J. P. Remédio Marques, “Um breve olhar sobre o duplo grau de jurisdição em matéria de facto”, in Cadernos de Direito Privado, número especial 01, Dezembro, 2010, pp. 80/90; seguiu-se, enfim, a chamada “tese do poder-dever da Relação formar uma convicção própria sobre os factos impugnados”.