Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
169/14TBNZR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
PROCEDIMENTO PRÉ-CONTRATUAL
ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - NAZARÉ - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.4 ETAF, DL Nº119/83 DE 25/2, LEI Nº 3/99 DE 13/1
Sumário: Os Tribunais Administrativos são os competentes para dirimir litígios decorrentes do procedimento que antecedeu a celebração de um contrato de arrendamento que, por lei, deva ser submetido a um procedimento pré-contratual, regulado por normas de direito público.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I

A (…) Lda, com sede na Rua (...) , Matosinhos, veio intentar, providência cautelar não especificada com inversão do contencioso, contra C (…) – Instituição Particular de Solidariedade Social sem fins lucrativos – IPSS, com sede no (...) e T (…) SA, com sede em (...) , Albufeira, formulando, contra ambas, o seguinte pedido:

“a) Sejam, quer o procedimento de formação do contrato de arrendamento da praça de touros do Sítio da Nazaré, quer o contrato de arrendamento (cessão de exploração) celebrado entre as Requeridas com tal objeto, julgados nulos.

b) Devem, em consequência, às Requeridas ser ordenada a não execução do contrato nulo;

c) Deve ser fixada sanção pecuniária compulsória no valor de € 50.000,00 por cada corrida de touros que as mesmas Requeridas, não obstante a condenação peticionada na alínea anterior, venham a realizar.

d) Deve a decisão a proferir, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 369º CPC, dispensar a Requerente do ónus de propositura da ação principal, decretando-se a inversão do contencioso.

Fundamentou os pedidos do seguinte modo, aqui se sintetizando:

A 1ª Requerida é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS).

É proprietária da Praça de Touros do Sítio da Nazaré, a qual, ao longo das últimas décadas, vem arrendando a sociedades, ou a particulares, fazendo-o sempre através do lançamento de concurso ou hasta pública, em cumprimento do disposto do DL 119/83 que estabelece o Regime Jurídico das Instituições Particulares de Solidariedade Social.

Estabelece o art. 23º nº 1 desde DL que: «A empreitada de obras de construção ou grande reparação, bem como a alienação e o arrendamento de imóveis pertencentes às instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme o que for mais conveniente».

Impõe tal norma que a Requerida, enquanto IPSS: a) anuncie publicamente a abertura de concurso, ou a realização de hasta pública; b) em tal anúncio estabeleça ou as condições do concurso (preço, prazo, condições de pagamento, outras contrapartidas, critérios de avaliação dos concorrentes, critérios de ordenação das propostas, prazo para receção das propostas e publicitação da decisão fundamentada), ou as condições da hasta pública (preço base, condições de pagamento, dia de realização da hasta pública).

A 1ª Requerida assim não procedeu em 2014, optando por contactar particularmente potenciais interessados, recebendo destes as propostas e decidiu a assinatura do contrato com a 2ª Requerida, sem qualquer aviso prévio, quer aos demais interessados, quer ao público em geral, não tornando públicos nem os critérios da escolha, nem as condições do contrato.

A época tauromáquica na praça da Nazaré não se inicia antes do final de Julho, pelo que, inexistia urgência na celebração do arrendamento.

Com tal procedimento a 1ª Requerida violou os princípios da concorrência, da transparência e da igualdade consagrados na imposição às IPSS da celebração de contratos de arrendamento por concurso ou hasta pública.

Tem a Requerente como objeto, entre o mais, a organização de espetáculos tauromáquicos, sendo, por isso, interessada na praça de touros do Sítio da Nazaré, interesse esse que manifestou junto da 1ª Requerida. Depois de lhe ter apresentado uma proposta, que refez várias vezes, veio a saber pela 1ª Requerida que esta já tinha celebrado um contrato com a 2ª requerida, que chamou de cessão de exploração, mas que, em rigor, é um contrato de arrendamento, para o triénio de 2014/2016. Ficou, assim, sem saber quais os critérios, valores e condições porque o imóvel foi arrendado.

A celebração do contrato de arrendamento com a 2ª Requerida constitui violação do imperativamente disposto no citado n.º 1 do art. 23º do DL 119/83, sendo, por isso, tal negócio nulo (cfr. art. 294º CC), justificando tutela cautelar “como forma de evitar que um negócio jurídico absolutamente nulo, com grande visibilidade pública, possa ser visto como impunemente executado”.

Citadas as Requeridas vieram ambas deduzir oposição.

A 1ª Requerida, C (…), veio impugnar parte dos factos alegados pela Requerente. Invoca o seu objeto estatutário destinado a desenvolver atividades destinadas a intensificar o culto em honra de Nossa Senhora e promover a fé e vivência cristãs, não atuando, nesse âmbito, como uma IPSS, mas exclusivamente como instituição religiosa, em colaboração com o Patriarcado de Lisboa e exclusivamente subordinado ao seu parecer favorável para a prática de certos atos, nomeadamente, venda de imóveis.

Somente enquanto atua em áreas que impliquem comparticipações do erário público ou de outras entidades, nomeadamente, subsistemas de saúde ou seguradoras, é que a Requerida se comporta como uma IPSS.

Assim, no caso dos autos, a Requerida não atuou enquanto uma IPSS, uma vez que a exploração da praça de touros não implica qualquer comparticipação das entidades supra referidas, tendo tido o consentimento do Patriarcado de Lisboa para proceder como fez com vista à adjudicação da referida exploração.

De qualquer modo, mesmo que a Requerida tivesse atuado enquanto IPSS não teria obrigatoriamente de recorrer a concurso público para adjudicar a exploração da praça de touros. Na verdade, nos termos do nº 2 do artº 23º do D.L. nº 119/83, de 25 de Fevereiro, o contrato podia ser feito, como foi, por negociação direta desde que daí resultassem, como também aconteceu, vantagens para a Requerida, devendo a decisão ser fundamentada em ata.

Ora, estando a Requerida numa situação económica e financeira muito difícil, não poderia estar dependente das delongas de um concurso nem das eventuais contingências daí resultantes.

Tanto mais que, a empresa adjudicatária pagou imediatamente parte substancial do montante contratado, o que permitiu aliviar de imediato a tesouraria da Requerida.

A deliberação de ceder a exploração da praça de touros por negociação direta, através da análise das propostas que foram recebidas e a eleição daquela que foi mais vantajosa para a Instituição, tal como os fundamentos para tal decisão, foi lavrada em ata.

Das reuniões com os interessados na exploração da praça de touros ficou claro que todos aceitaram a forma de negociação adotada.

Os interessados apresentaram as suas propostas que foram analisadas pela Requerida.

A Requerente, aceitando a forma como seria feita a adjudicação da exploração da praça de touros, apresentou a sua proposta, mas a mesma não foi do agrado da Requerida, por apresentar uma forma de pagamento ambígua.

A proposta vencedora contemplava um preço muito superior ao oferecido pela Requerente, tal como formas de pagamento muito mais vantajosas para a Requerida.

Por sua vez, não se trata do arrendamento de um simples espaço, mas da cessão de exploração de um recinto de espetáculos que inclui os serviços de bar e equipamentos de apoio às ganadarias, toureiros, forcados e cavaleiros, tal como a cessão dos direitos de transmissões televisivas e radiofónicas.

A instauração da providência mostra-se injustificada pois que, a Requerente foi informada de todo o procedimento adotado, aceitou negociar com a Requerida, tendo apresentado diversas propostas, sem alguma vez questionar a forma e processo de negociação para adjudicação da exploração da praça de touros.

Nunca a Requerente, durante a fase negocial, manifestou o seu desejo de existência de um concurso público, pelo que, criou na Requerida total confiança quanto à forma como decorreram as negociações, jamais suspeitando a Requerida que aquela viria agora, exclusivamente porque foi preterida na sua escolha, a instaurar o presente procedimento cautelar.

A Requerente violou ostensiva e manifestamente os limites impostos pela boa-fé.

A final conclui pelo indeferimento dos pedidos formulados pela Requerente, julgando-se a presente oposição procedente, por provada, e por via dela deve:

1- Declarar-se a Requerente sem legitimidade para requerer o presente procedimento cautelar por agir com abuso de direito;

2- Declarar-se destituída de fundamento o presente procedimento cautelar por falta de

direito ameaçado da Requerente;

3- Declarar-se legal e válido o procedimento efetuado pela Requerida destinado   a adjudicação da exploração da praça de touros da Nazaré;

4- Declara-se válido o contrato celebrado entre a Requerida e T (…) Lda., para a exploração da praça de touros da Nazaré.

Por sua vez a Requerida T (…) veio invocar a sua ilegitimidade alegando que não foi parte interveniente na celebração de qualquer contrato de arrendamento ou de cessão de exploração com a C (…), pedindo, em consequência a sua absolvição da instância.

À cautela, impugnou os demais factos, referindo que não se verificou nada de ilegal ou mesmo irregular em todo esse processo, pois que, a divulgação, a negociação e a contratualização foram absolutamente transparentes e imparciais. O próprio Requerente aderiu à forma de negociação e de contratualização definida pela Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, só que não foi escolhido e, por isso reage, em flagrante abuso de direito.

E, contesta a aplicação ao caso do art. 23º nº1 do DL119/83 de 25 de Fevereiro, por preterição do lançamento de concurso público para seleção de arrendatário da praça de touros do Sítio da Nazaré, por não ser a Requerente entidade pública.

As regras da contratação pública previstas no Código dos Concursos Públicos aplicam-se a todo o sector público administrativo tradicional: o Estado, as Regiões Autónomas, as Autarquias Locais, os Institutos Públicos, as Fundações Públicas, as Associações Públicas e as Associações de que façam parte uma ou várias pessoas coletivas referidas anteriormente, mas não às IPSS.

O Código efetua a transposição das Diretivas n.ºs 2004/17/CE e 2004/18/CE, (ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março) e codifica as regras, até então, dispersas por vários diplomas

Contudo, ao ler o vertido no nº2 do art. 23º nº1 do DL 119/83 conclui-se que basta existirem razões de conveniência, para os arrendamentos deverem ser efetuados por negociação direta, bastando para tal que a escolha deste procedimento decorra de vantagens para a instituição ou por motivo de urgência.

Conclui, pedindo a sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, pelo indeferimento da providência cautelar.

A Requerente A (..) Lda, admitindo a ilegitimidade da  requerida T (…) face a documento por esta junto, veio requerer a intervenção principal provocada de T (..), Lda., com sede em Empreendimento X (...) , (...) , (...) , Albufeira.

O incidente foi admitido, tendo o ora interveniente vindo deduzir oposição.

Foi designada data para a audiência final.

No decurso da mesma sido proferido o seguinte despacho:

«Melhor compulsados os autos constata-se que o objeto do litígio do presente procedimento cautelar consiste no procedimento de contratação em causa nos autos, isto é, se atento o disposto no artigo 23.º do Decreto- Lei n.º 119/83 de 25-02 que regula o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, o procedimento de contratação deveria ter sido sujeito a concurso ou a hasta pública.

Considerando que, por isso, o objeto do litígio não se reconduz à execução do próprio contrato celebrado entre os requeridos mas sim ao seu processo de formação afigura-se ao Tribunal que poderemos estar perante uma exceção dilatória de incompetência absoluta por serem competentes para conhecer do presente procedimento os Tribunais Administrativos e fiscais.  

Cumpre, todavia, fazer atuar o disposto no art. 3.º, n.º 3 do novo C.P.C. possibilitando à requerente e aos requeridos pronunciarem-se previamente, pois, trata-se de questão relativamente à qual, embora de conhecimento oficioso, deve acautelar-se o princípio da proibição das decisões surpresa»

A Requerente veio pronunciar-se nos seguintes termos:

A) Introdução

1º - A requerente, sempre com salvaguarda do devido respeito, pensa que, na origem da hipótese colocada pelo Tribunal e cuja validação implicaria a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, estarão duas linhas de pensamento:

A primeira correspondente ao facto de a ação das IPSS ser, em geral, de interesse público, o que torna doutrinalmente ponderável que as mesmas vejam os seus pleitos decididos pela jurisdição administrativa;

A segunda, apresentada pela primitiva requerida “T (…)” e repercutida pela sociedade por si dominada e aqui chamada “Triunfaplauso”, insinua, por (modo retoricamente brilhante, acentue-se) que a haver concurso (o que não aceita) então o mesmo deveria seguir as regras inscritas no Código dos Contratos Públicos (que certamente, não por acaso, rebatizaram de “Código dos Concursos Públicos”).

2º Temos assim uma questão e uma ilusão jurídicas.

3º Do mais simples para o mais complexo,

B) Do concurso público

4º Por mais que a primitiva requerida e a chamada de si dependente se esforcem 1983

(DL 119/83) aconteceu antes de 2008 (Código dos Contratos Públicos DL 18/2008).

5º Em 1983 existiam três diplomas de direito público que previam explicitamente a realização de concursos públicos, quais sejam:

O Decreto-Lei n.º 48871, diploma de 1969 que regulava as empreitadas de obras públicas que corressem total ou parcialmente por conta do Estado ou de instituto público autónomo.

O Decreto-Lei n.º 211/79, que regulava as despesas com obras e aquisição de bens e serviços para o Estado.

O Decreto-Lei n.º 390/82, que regulava sensivelmente as mesmas matérias, mas aplicado às autarquias locais.

6º Já no domínio do direito privado e antes do DL 119/83 regulava desde 1966 o art. 463º do Código Civil (cfr. também Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado).

7º Significa isto que em 1983 a figura e procedimento do “concurso público” estava doutrinalmente definida e era aplicável quer em matérias de direito privado, quer de direito público.

8º Pelo que, a norma do art. 23º 1 do DL 119/83 não só não efetua qualquer remissão para uma norma de direito público, como aponta para instituto jurídico (também) com dimensão privatística, reiterando-se aqui o alegado no art. 7º do requerimento inicial.

C) Da competência dos tribunais comuns face aos sujeitos da lide

9º A este respeito apontar que estamos, nos presentes, sempre perante pessoas coletivas de direito privado.

10º Ora, de acordo com o disposto no n.º3 do art. 212º CRP:

Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

11º Nada existindo nas normas infraconstitucionais que autorize conclusão diversa (cfr. Arts. 1º e 4º ETAF e 37º CPTA).

12º Impõe-se, pois, quanto a esta matéria concluir como no Ac. STJ de 05/11/2002, em cujo sumário se lê (Relator: Conselheiro Silva Paixão, in www.dgsi.pt/jstj):

I - Não pode ser qualificado como contrato administrativo de empreitada de obras públicas o contrato celebrado em 1998 entre uma sociedade comercial e uma instituição particular de segurança social, para construção de um lar e centro de dia, porque nenhum dos contraentes é uma entidade pública, ou entidade particular no exercício de um poder público, e porque aquela não pode considerar-se uma obra pública.

II - Esse contrato não perde a natureza de contrato de empreitada de direito privado pelo facto de ter sido antecedido de concurso público - pois o concurso público não é exclusivo dos contratos administrativos, podendo preceder a conclusão de contratos privados, nomeadamente o de empreitada - e pelo facto de as partes haverem fixado cláusulas típicas dos contratos de empreitada de obras públicas e remetido a resolução dos casos omissos para a disciplina do DL n.º 405/93, de 10-12 - tais normas aplicar-se-ão, não por imposição legal, mas em virtude de estipulação contratual que para elas remete (art.º 405 do CC).

(...)

IV - Não respeitando a causa fundada em tal contrato a uma relação administrativa, ela é da competência dos tribunais judiciais, e não dos tribunais administrativos”.

Requer assim que, a jurisdição comum seja julgada materialmente competente.

Seguidamente foi proferido o seguinte despacho:

«Da incompetência do tribunal em razão da matéria

Notificados a Requerente e os requeridos para, querendo, se pronunciarem sobre a eventual exceção de incompetência deste tribunal, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, veio a primeira a fls. 386 e ss alegar que o art. 23.º do DL n.º119/83, não se reporta ao concurso público sujeito ao direito administrativo e, por outro, que a Requerida Confraria da Nossa Senhora da Nazaré é uma pessoa coletiva de direito privado.

Cumpre apreciar.

Nos termos do disposto no art.64.º do novo CPC, são da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. E são as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria são da competência dos Tribunais e das secções dotados de competência especializada – cfr. art.65.º do citado diploma legal.

Do teor de tais artigos decorre que os Tribunais Judiciais dispõem de competência residual pelo que, importa verificar se existe alguma norma que estabeleça a jurisdição especial da presente ação. Existindo, é essa a jurisdição competente, não existindo será competente o Tribunal Judicial.

Com a entrada em vigor do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º13/2002, de 19 de Fevereiro, verificou-se um alargamento da competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Dispõe o art.1.º, n.º1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Mais concretamente, e no que aos presentes autos importa, dispõe o art.4.º, n.º1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09/09/2013, disponível in www.dgsi.pt, “A atual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, deslocando o polo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta atua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma atividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal. Neste contexto, o art. 4º do ETAF, visa ampliar e reduzir o âmbito da jurisdição, funcionando, como norma especial em relação ao art. 1º, mas também, como critério de interpretação no sentido de densificar o conceito de “relação jurídica administrativa” e desfazer dúvidas sobre a extensão da jurisdição administrativa a certas matérias.”

Dispõe a alínea f) do citado n.º1 do art.4.º que competem ainda aos tribunais administrativos as “questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo (…)”.

Por outro lado, a competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição.

Nos presentes autos importa determinar se a competência para apreciar o pedido formulado pelo autor recai sobre os tribunais judiciais ou sobre os tribunais administrativos.

Nos termos do art.23.º do DL n.º119/83, de 25 de Fevereiro, que regula o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, a empreitada de obras de construção ou grande reparação, bem como a alienação e o arrendamento de imoveis pertencentes às instituições, deverá ser feita um concurso ou hasta pública, conforme o que for mais conveniente.

Ora, o objeto do presente litígio prende-se com o procedimento de contratação utilizado pela Requerida C (…), Instituição Particular de Solidariedade Social sem fins lucrativos, IPSS, para arrendamento da Praça de Touros da Nazaré, isto é, se atento o disposto no art.23.º do DL n.º119/83, de 25 de Fevereiro, o procedimento de contratação deveria ter sido sujeito a concurso ou hasta pública (e cujo contrato de arrendamento, segundo a versão da Requerente, foi denominado pela partes como “cessão de exploração” para evitar a aplicação do disposto no citado preceito).

Com efeito, caso o presente litígio se reconduzisse à execução/cumprimento do contrato o tribunal competente para conhecer do procedimento cautelar seria o tribunal judicial.

No entanto, o presente litígio reconduz-se ao processo de formação do contrato, motivo porque são competentes para deles conhecer os tribunais administrativos e fiscais.

Ora, na supra citada alínea e) do art.4.º do ETAF integram-se os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, isto é, os tribunais administrativos são competentes para apreciar as questões que possam emergir de todos os contratos que estejam submetidos a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, independentemente da sua qualificação como contrato administrativo, incluindo os litígios que tenham por objeto a interpretação, validade e execução de contratos, mesmo que puramente privados, desde que estejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Neste sentido ainda refere-se no supra citado Acórdão que “na interpretação do preceito se “abstrai da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, colocando-o na órbita dos tribunais administrativos, desde que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público. O acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica é aqui colocado, não no conteúdo do contrato, nem na qualidade das partes, mas nas regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis. (…) Cumpre ainda salientar, como de forma unânime se tem pronunciado a jurisprudência dos tribunais superiores que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respetivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que o contrato seja submetido a esse procedimento de formação. Em matéria “contratual” “a jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso de o procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso de a entidade administrativa contratante – por não ser tal norma obrigatória (só permitida) – ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privatista”.

Reportando-nos novamente ao caso dos autos, a Requerente alega que o procedimento de contratação relativamente ao contrato em causa deveria ter sido sujeito a concurso ou hasta pública, não o tendo sido.

Portanto, e não obstante a primeira Requerida ser uma pessoa coletiva privada, a matéria em discussão em sede dos presentes autos pertence exclusivamente à jurisdição administrativa.

Portanto, conclui-se que a Instância Local da Nazaré – Secção de Competência Genérica não tem competência material para apreciar a presente ação e dirimir o litígio em apreço.

O desrespeito pelas regras da competência material gera a incompetência absoluta do Tribunal, nos termos do art.96.º, alínea a) do novo CPC.

E pode ser arguida pelas partes, devendo ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa – cfr. art.97.º do CPC.

A incompetência absoluta, constituindo uma exceção dilatória nos termos do disposto nos arts.576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do novo CPC, é insanável.

Quanto ao momento em que deve ser conhecida, dispõe o art.98.º do CPC que “Se a incompetência for arguida antes de ser proferido o despacho saneador, pode conhecer-se dela imediatamente ou reservar-se a apreciação para esse despacho; se for arguida posteriormente ao despacho, deve conhecer-se logo da arguição.”.

Por outro lado, nos termos do disposto nos arts.99.º e 278.º, n.º1, alínea a) do CPC, a verificação da incompetência absoluta, como é o caso, importa a absolvição da ré da instância.

Em suma, deverá ser julgada procedente, por provada, a exceção dilatória da incompetência absoluta das Requeridas, e ser declarada a incompetência absoluta deste Tribunal para os termos da presente ação, uma vez que é materialmente competente para o efeito, o Tribunal Administrativo e Fiscal, atento o disposto no art.4.º, n.º1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e, em consequência, devem as Requeridas ser absolvidas da instância, nos termos conjugados do disposto nos arts.99.º, n.º1, 278.º, n.º1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a), todos do novo CPC.

Pelo exposto e decidindo, julgo totalmente procedente, por provada, a exceção dilatória da incompetência absoluta, declarando, em conformidade, a incompetência absoluta da Instância Local da Nazaré – Secção de Competência Genérica para os termos da presente ação, por ser materialmente competente para o efeito o Tribunal Administrativo e Fiscal, e, em consequência, absolvo a ré da instância.

Custas a cargo da Requerente, fixando-se o valor da ação em 30.000,01€ - arts.296.º, 304.º, n.º3, alínea d) e 306.º, todos do novo CPC e art.7.º do RCP e Tabela II anexa.

Registe e Notifique, sendo ainda a Requerente para, querendo, usar da faculdade prevista no art.99.º, n.º2 do novo CPC».

Inconformada com tal decisão veio a Requerente recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

1ª) Em 1983 existiam três diplomas de direito público que previam explicitamente a realização de concursos públicos, quais sejam:

O Decreto-Lei n.º 48871, diploma de 1969 que regulava as empreitadas de obras públicas que corressem total ou parcialmente por conta do Estado ou de instituto público autónomo.

O Decreto-Lei n.º 211/79, que regulava as despesas com obras e aquisição de bens e serviços para o Estado.

O Decreto- Lei n.º 390/82, que regulava sensivelmente as mesmas matérias, mas aplicado às autarquias locais.

2ª) Já no domínio do direito privado e antes do DL 119/83 regulava, desde 1966, o art. 463º do Código Civil.

3ª) Significa isto que em 1983 a figura e procedimento do “concurso público” estava doutrinalmente definida e era aplicável quer em matérias de direito privado, quer de direito público. Logo, o emprego das figuras do concurso público ou da hasta pública, sempre com salvaguarda de melhor opinião, não faz com que sejam empregues na formação do contrato, quaisquer normas de direito público.

4ª ) Pelo que, a norma do art. 23º 1 do DL 119/83 não só não efetua qualquer remissão para uma norma de direito público, como aponta para instituto jurídico (também) com dimensão privatística que obriga as IPSS, que se encontrem nas circunstâncias normativamente relevantes e aí previstas, a:

a) Anunciar publicamente a abertura de concurso, ou a realização de hasta pública;

b) Em tal anúncio estabelecendo ou as condições do concurso (preço, prazo, condições de pagamento, outras contrapartidas, critérios de avaliação dos concorrentes, critérios de ordenação das propostas, prazo para receção das propostas e publicitação da decisão fundamentada), ou as condições da hasta pública (preço base, condições de pagamento, dia de realização da hasta pública).

5ª ) Não existindo, na redação aplicável da norma do art. 23º 1 do DL 119/83, qualquer reenvio para normas de direito administrativo, sempre com salvaguarda de melhor opinião, perde cabimento a aplicação da previsão da norma do da al. e) do art. 4º do ETAF.

6ª ) E a idêntica conclusão se chega por consideração da relação jurídica tal como descrita pela A.. Em nenhum momento se invoca a violação de qualquer norma ou procedimento de índole pública ou administrativa, antes se descreve tal relação jurídica como puramente privada:

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. É na ponderação do modo como o autor configura a ação, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exata configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer.

7ª Foram, pois, salvo melhor opinião, violadas as normas do art. 23º 1 do DL 119/83, da al. e) do art. 4º do ETAF e dos arts. 99.º e 278.º, n.º1, alínea a) do CPC.

A final requer que o recurso seja julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se a jurisdição comum julgada materialmente competente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                        II

A factualidade a considerar resulta do relatório supra

                                                                        III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do nCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 608 in fine), é a seguinte a questão a decidir:

- Da (in)competência material da jurisdição comum.

Estabelece o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei no 13/2002, de 19 de Fevereiro no seu art. 4º nº 1 alª e) que: «Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público».

A Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro (que introduziu o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e a Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro (que introduziu o novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos) visaram proceder a uma reforma do contencioso administrativo, introduzindo novidades, nomeadamente em matéria de responsabilidade civil e de contratos.

Assim, a técnica do ETAF, para a delimitação de competências dos tribunais administrativos e fiscais, no respeitante à responsabilidade contratual e pré-contratual, consistiu em formular critérios de qualificação dos contratos.

Em primeiro lugar, estabeleceu o critério do procedimento pré-contratual: a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais exista lei que os submeta a um procedimento pré-contratual de direito administrativo (alínea e) do nº 1 do artigo 4º).

Por imposição de diversa legislação comunitária, o ordenamento jurídico submete vários contratos a procedimentos pré-contratuais específicos. Quando tal aconteça, independentemente de se tratar de contratos tradicionalmente de direito privado ou público, é a jurisdição administrativa a materialmente competente.

Está nessa situação o Dec-Lei nº 119/83 de 25 de Fev. que estabelece o estatuto das IPSS’s e, cujo art. 23º nº 1 preceitua: «A empreitada de obras de construção ou grande reparação, bem como a alienação ou o arrendamento de imóveis pertencentes às instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente».

Foi com esse fundamento normativo que a Requerente interpôs a providência cautelar –  violação do imperativamente disposto no citado n.º 1 do art. 23º do DL 119/83, sendo, por isso, tal negócio nulo (cfr. art. 294º CC), justificando tutela cautelar “como forma de evitar que um negócio jurídico absolutamente nulo, com grande visibilidade pública, possa ser visto como impunemente executado”.

Resulta, assim, da petição inicial que a Requerente pretende se reconheça que foi desrespeitado um procedimento pré-contratual de direito público a que a 1ª Requerida se encontrava sujeita por força dos seus estatutos e qualidade de IPSS.

E com tal procedimento ilícito celebraram as Requeridas um contrato de arrendamento de imóvel.

Estamos assim perante sujeitos de direito privado que se regem por um procedimento pré-contratual pelo direito público.

A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição.

A presente providência cautelar foi instaurada em 29 de Maio de 2014.

Estava em vigor a Lei nº 3/99 de 13 de Janeiro Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), cujo art. 18.º estabelece:

1 - São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Ora, estabelecendo o art. 4º nº 1 alª e) do ETAF a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto, questões relativas à validade de atos pré-contratuais, a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, há que concluir como concluiu a 1ª instância que, os tribunais judiciais não são competentes para conhecer a providência, sendo-o os tribunais administrativos.

A decisão recorrida não merece, pois, qualquer censura.

Em suma:

- Os Tribunais Administrativos são os competentes para dirimir litígios decorrentes do procedimento que antecedeu a celebração de um contrato de arrendamento que, por lei, deva ser submetido a um procedimento pré-contratual, regulado por normas de direito público.

                                                                        IV

Termos em que, acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando-se a decisão recorrida.

Anabela Luna de Carvalho( Relatora ))

 João Moreira do Carmo

 José Fonte Ramos