Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO PRESCRIÇÃO CONDEVEDOR FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL | ||
Data do Acordão: | 11/13/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 303, 305, 521, 524, 636 CC | ||
Sumário: | Sendo a prescrição um meio de defesa pessoal, que não é sequer de conhecimento oficioso, a invocação da prescrição por parte dum devedor civil (FGA) não poder valer como invocação da prescrição que porventura possa aproveitar aos restantes devedores civis; e, muito menos, a prescrição do crédito indemnizatório dum devedor civil como o FGA pode significar a prescrição do crédito indemnizatório também deduzido contra os restantes (e principais) devedores civis. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório Alegou, em síntese, que, no dia 02/06/1996, nas Caldas da Rainha, conduzia, na Rua General Amílcar Mota, no sentido sul-norte, o motociclo com a matrícula (...) CG, quando foi interveniente num acidente de viação com o veículo de matrícula IR (...) , conduzido pelo 2.º R., no sentido norte-sul; veículo este registado a favor de P (…) (entretanto falecido, tendo-lhe sucedido as 3.ª e 4.ª RR.), “podendo este ter transmitido a sua propriedade”, antes do acidente ao 5.º R e este, por sua vez, “ter transmitido a sua propriedade”, antes do acidente, ao 2.º R.; sendo que, em relação a tal veículo, não se encontrava transferida para qualquer empresa seguradora a responsabilidade civil por danos causados pelo mesmo. Mais referiu que tal acidente se ficou exclusivamente a dever ao condutor do veículo IR (...) (2.º R.) ter passado a ocupar a hemi-faixa à sua esquerda, assim colidindo no motociclo conduzido pelo A., que ali, vindo em sentido oposto, circulava; e ainda ao facto do 2.º R. conduzir com uma taxa de álcool no sangue de 1,67 g/l. Tendo, além dos danos materiais no seu veículo (por que já foi indemnizado pelo FGA), resultado e sofrido importantes e graves lesões para o A., danos estes, patrimoniais e não patrimoniais, cuja indemnização aqui solicita.
Citados todos os RR. – incluindo o Ministério Público, em representação do ausente (5.º R.) M (…) e dos herdeiros do falecido (2.º R.) A (…) – apenas o (1.º) Fundo de Garantia Automóvel e as (3.º) F (…) e (4.º) B (…) apresentaram contestações. Articulados/contestações em que invocaram (entre outras e no que aqui, para o objecto da apelação, interessa) a prescrição do crédito/direito indemnizatório peticionado pelo A..
Foi então dispensada a Audiência Prévia e proferido saneador/sentença em que, após ter sido declarada a total regularidade da instância, se julgou verificada a total prescrição do direito do A. e, em consequência, absolveram-se todos os RR. do pedido formulado.
Inconformado com tal decisão, interpôs o A. recurso de apelação, recurso sobre o qual, em 18/09/2018, foi proferida Acórdão, nesta Relação de Coimbra, a anular “a decisão proferida na 1.ª Instância, determinando-se que seja proferido novo saneador/sentença em que se discriminem os factos que se consideram provados e que justificam/suportam a decisão, aproveitando-se o ensejo para especificar os fundamentos de direito que justificam a decisão de absolver (ou não) os réus não contestantes”
Regressados os autos à 1.ª Instância, obtidos os elementos considerados indispensáveis, foi dado cumprimento ao determinado no anterior Acórdão desta Relação e proferido novo saneador/sentença em que, após ter sido declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém, se julgou mais uma vez verificada a total prescrição do direito do A. e, em consequência, absolveram-se todos os RR. do pedido formulado.
Mais uma vez inconformado, interpõe o A. novo recurso de apelação, visando a revogação parcial da sentença proferida e a sua substituição por decisão que “determine a improcedência da excepções por quem não as invocou e nula a decisão que absolve do pedido os RR que nada invocaram ou mandar prosseguir contra os mesmos a acção.” Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões: (…) I – Incorre a sentença recorrida em nulidade por excesso de pronuncia - nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1 al d) do CPC - ao absolver “os Réus do pedido formulado” julgando “verificada a prescrição do direito do Autor” quando só o Réu Fundo de Garantia Automóvel e as Rés F (…) e B (…)invocaram a prescrição. II – Não existindo nos autos qualquer fundamento jurídico para que se tenha decidido pela prescrição em relação aos RR que não a invocam é nula a sentença nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1 al b) do CPC III – Sendo a prescrição um meio pessoal de defesa de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente, tendo, portanto, de ser invocado por quem dela se pretende aproveitar -art. 303.º do CC - e porque, tratando-se de dívida solidária, tem aplicação o disposto nos arts. 514.º e 521.º do mesmo diploma; IV - Quando se entenda que tal não é uma situação de nulidade, violou a sentença recorrida o art. 303.º do CC - e porque, tratando-se de dívida solidária, tem aplicação o disposto nos arts. 514.º e 521.º do mesmo diploma ao absolver os demais RR do pedido; IV – A responsabilidade dos RR sobre os quais pendia o dever de segurar, mesmo que pudesse ser subsidiária em relação ao FGA não deixa de ser também em relação ao A., sendo a intervenção do FGA a de mero garante da responsabilidade dos demais RR, pelo que extinguindo-se a garantia, a obrigação de indemnização garantida pelo FGA mantém-se e é autónoma da dos demais sujeitos. (…)”
Não foi apresentada qualquer resposta. Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * II – Fundamentação de Facto 4. Em 24/01/2000 foi citado o aí Réu Fundo de Garantia Automóvel para o referido processo n.º 187/1999. 14. A presente acção (Proc. n.º 1288/14.5TBCLD) foi intentada em 23/06/2014. 15. Tendo apresentado contestações o Fundo de Garantia Automóvel e as RR. F (…) e B (…); não tendo os restantes RR. contestado. *
III – Fundamentação de Direito A sentença recorrida, como resulta do relatório, considerou verificada a total prescrição do direito/crédito indemnizatório peticionado pelo A. e, em consequência, absolveu todos os RR. do pedido; decisão/absolvição esta com que o A. se conforma em parte, uma vez que aceita o decidido (ou seja, a verificação da prescrição) quanto aos RR. contestantes (Fundo de Garantia Automóvel e RR. F (…) e B (…)), divergindo tão só quanto à declaração da prescrição quanto aos RR. não contestantes (2.º e 5.º RR.) e, em consequência, quanto à absolvição destes. Muito concretamente, a divergência recursiva dirige-se aos raciocínios jurídicos constantes do segmento final da sentença recorrida, em que se expendeu: (…) afigura-se-nos que a prescrição invocada pelo FGA aproveita os responsáveis civis, mesmo não contestantes, atenta a natureza da responsabilidade, porque, ao nível substantivo, está em causa uma responsabilidade subsidiária e não solidária, a que nada obsta a exigência de litisconsórcio legal, ao nível processual. Neste sentido, para melhor desenvolvimento, pode ser consultado o Ac. STJ de 27/05/2004 (relatado por Ferreira Girão, processo n.º 04B1328, www.dgsi.pt), numa situação onde os responsáveis civis até contestaram mas não invocaram a prescrição, onde se sumariou o seguinte: «Ainda que o responsável civil a não tenha invocado na respectiva contestação, o Fundo de Garantia Automóvel pode invocar contra o lesado a prescrição do direito à indemnização, aproveitando àquele (responsável civil) esta invocação.». Em síntese, os direitos invocados pelo Autor mostram-se prescritos, não só porque a prescrição foi invocada pelos Réus FGA, F (…) e B (…), bem como, ainda, porque a prescrição invocada pelo FGA aproveita aos restantes na qualidade de responsáveis civis. (…)” Ou seja, muito em síntese, o objecto do recurso restringe-se à questão[1] de saber em que medida a invocação da prescrição por um responsável civil (no caso, o FGA) aproveita aos responsáveis cíveis que não a hajam invocado. Questão em que, com todo o respeito, não acompanhamos o transcrito raciocínio da sentença recorrida. Pelo seguinte: Um devedor – como é o caso dum responsável civil – pode defender-se por todos os meios que pessoalmente lhe dizem respeito, assim como por todos os meios que são comuns a todos os condevedores (responsáveis civis). No caso dos autos, é/seria claramente um meio comum o que qualquer um dos RR. invocasse para imputar ao A. a culpa na produção do acidente, uma vez que se trataria duma defesa respeitante à fonte/existência/constituição da obrigação, duma defesa que, a provar-se (a culpa do A.), aproveitaria a todos os aqui RR. e responsáveis civis. Mas já é claramente um meio de defesa pessoal, a invocação que cada um dos devedores faça da prescrição que lhe aproveita; efectivamente, pode até suceder que a obrigação prescreva em relação a um ou alguns dos devedores e não esteja em condições de prescrever quanto a outros. E que é assim, que a prescrição corre autonomamente no caso de condevedores solidários e/ou nas relações entre o devedor principal e o fiador, di-lo a lei nos art 521.º e 636.º do C. Civil. Fazendo-se inclusivamente, no art. 521.º do C. Civil, uma distinção que acentua a ideia da necessidade/imprescindibilidade que cada devedor tem de invocar a prescrição que lhe aproveita e de que possa beneficiar: - por um lado, diz-se que a invocação da prescrição por um dos condevedores não aproveita a quem não a invocou mas também não o prejudica, um vez que libera o devedor (que invocou a prescrição) perante o credor, mas não em face dos outros condevedores, quando estes contra ele exerçam o direito de regresso (isto é, o devedor que haja invocado a prescrição não fica liberado da obrigação de regresso perante os condevedores que não gozavam de prescrição e que hajam pago a totalidade da dívida ao credor); mas, - por outro lado, se o condevedor que pagou não tiver invocado a prescrição que lhe aproveitava, não tem direito de regresso contra os devedores cujas obrigações tenham prescrito, desde que estes aleguem a prescrição (ou seja, se, num mesmo processo, todas os condevedores solidários puderem invocar a prescrição, mas se um não o fizer e pagar ao credor não goza do direito de regresso). O que, a nosso ver, realça a necessidade/imprescindibilidade da prescrição ser pessoalmente invocada por quem dela pode aproveitar, não podendo considerar-se que a invocação da prescrição por um devedor pode valer e significar a invocação da prescrição por outro devedor/condevedor[2]. Aliás, voltando ao caso dos autos/recurso e ao raciocínio exposto na sentença recorrida, impõe-se fazer a seguinte distinção: uma coisa é a prescrição (do crédito indemnizatório contra o FGA) poder aproveitar (ou não) aos restantes obrigados civis; e outra, diversa, é a invocação da prescrição por parte do FGA poder valer como invocação da prescrição que aproveita (ou não) aos restantes obrigados civis. E o raciocínio da sentença situa-se e corresponde à primeira hipótese: considerou-se que a verificação da existência da prescrição em relação ao FGA aproveitava aos 2.º e 5.º RR., o que, com todo o respeito, não pode ser, uma vez que a prescrição corre autonomamente para cada um dos condevedores, como, aliás, a sentença recorrida explicitamente admitiu ao fazer contagens autónomas para os 1.º e 3.ª e 4.ª RR. (concluindo que, quanto ao FGA, a prescrição ocorreu em 24/01/2005 e que, quanto às 3.ª e 4.ª RR. ocorreu em 03/12/2013)[3]. Caso se entendesse – e, como já referimos, não é o nosso caso – que a invocação da prescrição por parte do FGA era “utilizável” pelos restantes obrigados civis (2.ª hipótese colocada), seria apenas para ultrapassar o obstáculo do art. 303.º do C. Civil, impondo-se, no caso, fazer contagens autónomas em relação aos RR. que não contestaram (2.º e 5.º RR.) e estabelecer as datas em que a prescrição ocorreu (ou não) em relação a eles; ou seja, repete-se, “saltar” da prescrição estabelecida em relação a uns RR. para a considerar verificada em relação aos outros e restantes RR., é que não parece em caso algum correcto. Se fosse ao contrário – isto é, se, por ex., estivesse invocada e estabelecida a prescrição em relação ao 2.º R. e o FGA não tivesse invocado a prescrição – é que, a nosso ver, faria sentido invocar a natureza da obrigação de garantia do FGA e, por identidade de razão com o disposto no art. 651.º do C. Civil, dizer que, extinta a obrigação principal, também ficava extinta a obrigação do FGA (mas, aqui, não seria exactamente a prescrição verificada a favor do 2.º R. que operava a prescrição da obrigação do FGA; seria, isso sim, a consequência daquela prescrição – extinção da obrigação principal – que se repercutiria na obrigação acessória e de garantia do FGA[4]). Identicamente, quanto ao argumento (esgrimido no douto Ac. do STJ citado) retirável do art. 305.º/1 do C. Civil, preceito em que o que está em causa é um credor ou terceiro poder invocar a prescrição que aproveita a outrem/devedor, ou seja, em que esse credor ou terceiro não invoca uma prescrição que aproveite directamente a ele próprio; o que não é o caso dos autos/recurso, em que o FGA e as 3.ª e 4.ª RR. se limitaram a invocar prescrições que lhes aproveitavam directamente e não as que porventura aproveitariam aos 2.º e 5.º RR.[5]. Em conclusão, sendo a prescrição um meio de defesa pessoal que não é sequer de conhecimento oficioso, a invocação da prescrição por parte dum devedor civil (FGA) não poder valer como invocação da prescrição que porventura possa aproveitar aos restantes devedores civis; e, muito menos, a prescrição do crédito indemnizatório dum devedor civil como o FGA pode significar a prescrição do crédito indemnizatório também deduzido contra os restantes (e principais) devedores civis. Procede pois a apelação: a sentença recorrida não padece de qualquer nulidade – não houve qualquer excesso de pronúncia e muito menos falta de fundamentação de direito (como resulta do trecho transcrito da mesma) – mas a solução jurídica dada à questão discutida não é, a nosso ver e com todo respeito por opinião diversa, a correcta. * IV - Decisão Nos termos expostos, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se parcialmente a sentença, mantendo-se a parte (não recorrida) em que julgou verificada a prescrição do direito do A. em relação aos RR. contestantes (Fundo de Garantia Automóvel e F (…) e B (…)) e em que, em consequência, se absolveu tais RR. do pedido formulado, ordenando-se o prosseguimento da acção contra os 2.º e 5 RR. (que não invocaram e em relação aos quais não pode ser conhecida e declarada a prescrição). Sem custas. * Coimbra, 13/11/2019
Barateiro Martins ( Relator) Arlindo Oliveira Emídio Santos [1] A uma única questão, embora o A/apelante a configure – sempre a mesma e única questão – de 3 modos, invocando a nulidade por excesso de pronúncia, a nulidade por falta de fundamentação de direito e o erro de julgamento (o que se compreende, uma vez que as nulidades de sentença não são de conhecimento oficioso, pelo que, à cautela, o A/apelante invocou as várias possíveis configurações jurídico-processuais da questão). [2] É sabido que a prescrição não é de conhecimento oficioso (cfr. art. 303.º do C. Civil), mas, se se entendesse que a invocação por um devedor pode valer e significar a invocação da prescrição por outro devedor/condevedor, dir-se-ia que não haveria o obstáculo do art. 303.º do C. Civil. [3] Não é seguramente o caso dos autos/recurso, mas, assim como a prescrição ocorreu em datas bem diferentes, segundo a sentença recorrida, para os 1.º R. e 3.ª e 4.ª RR., podia não ter sequer transcorrido em relação a outros devedores/RR.. [4] Fala-se comummente na subsidiariedade da obrigação do FGA, mas, nas relações externas (com os lesados), tal característica (assim como nas fianças em que o fiador renuncia ao benefício da excussão) não existe, respondendo o FGA solidariamente com os responsáveis civis e obrigados principais (embora depois nas relações internas não haja um direito de regresso como o do art. 524.º do C. Civil), contra os quais, satisfeita a indemnização, pode exercer a sua sub-rogação nos direitos do lesado; pelo que é da acessoriedade (e não da subsidiariedade) da sua obrigação de garantia que decorrerá, assim como na fiança, que a extinção da obrigação do devedor principal (responsável civil) acarreta a extinção da sua (do FGA) obrigação de garantia. [5] Isto é – e não é de afastar que até possa ser a hipótese do citado Ac. do STJ – aproveitando a prescrição ao obrigado principal (e não se verificando a prescrição em relação ao FGA), é de admitir que o FGA, como garante e obrigado “subsidiário” (que paga na vez do principal), possa invocar, ao abrigo de tal 305.º/1 do C. Civil, a prescrição que aproveita ao obrigado principal; para, depois, aplicando-se o que se referiu na nota anterior, se afirmar que a extinção da obrigação do devedor principal (responsável civil) acarreta a extinção da obrigação de garantia do FGA. |