Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/11.8PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: PECULATO
Data do Acordão: 01/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 3º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 375º, N.º 1, DO C. PENAL
Sumário: O segmento “acessível em razão das suas funções” referido no n.º 1, do art.º 375º, do C. Penal, que se reporta ao tipo legal de crime de “Peculato”, exige uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções, ao apropriar-se, para si ou para terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 214/11.PCCBR, do 3º Juízo Criminal Coimbra, foi submetido a julgamento o arguido A... (melhor identificado nos autos), que vinha acusado pelo Ministério Público da prática, como autor material e em concurso efectivo de um crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375º, n.º 1 do Código Penal, com referência aos arts 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do mesmo código, e de um crime de violação de segredo de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 384º a) do Código Penal, com referência aos arts 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do mesmo código.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida a sentença (constante de fls. 163 a 172vº) onde se decidiu (transcrição):
Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, decido:
a) Absolver o arguido da prática do crime de peculato na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º e 375º n.º 1 do C. Penal
b) Absolver o arguido da prática de um crime de violação de segredo de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do CP.
c) convolar o crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375, n.º 1 do C. Penal em crime de furto, p. e p. pelo art.º 203º n.º 1 do Código Penal e, considerando as disposições conjugadas dos artigos 116º/2 e do 51º do Cód. Proc. Penal, julgar válida e plenamente eficaz a desistência da queixa formulada, homologando-a por sentença e em consequência, por falta de legitimidade do Ministério Público para o fazer prosseguir, declarar extinto, o procedimento criminal contra o arguido pela prática de um crime de furto p. e p. pelo art.º 203º n.º 1 do CP.
d) convolar o crime continuado peculato, p. e p. pelo art.º 30º e 375, n.º 1 do C. Penal em crime continuado de furto, p. e p. pelo art.º 30º e 203º n.º 1 do CP e, por falta de queixa crime, absolver o arguido da instância.
e) por convolação jurídica do imputado crime de violação de segredo de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do CP., condenar o arguido A... pela prática de um crime continuado de violação de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 26º, 30º e 194º n.º 1 do CP, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €:6,00, o que perfaz €:540,00, fixando a prisão subsidiária em 60 dias.
e) Condenar o mesmo arguido nas custas criminais do processo (art.º 513º do CPP), fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (cfr. Tabela II Anexa ao RCP).
(…)

Inconformado quanto ao assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso (constante de fls. 177 a 188), retirando da correspondente motivação as conclusões seguintes (transcrição):
“CONCLUSÕES
1 - A sentença padece do vício da contradicão insanável da fundamentação a que alude a al. b) do nº 2 do art. 410º do CPPenal.
2 - Pois existe incompatibilidade dos factos provados descritos sob os nºs 2), 3), 4), 5), 6), 8), 15), 16) e 17) com o facto não provado mencionado sob a aI. g).
3 - A explicação dada na motivação e os factos assentes atrás referidos importam dar como provada a factualidade indicada na apontada al. g), ou seja, que «a correspondência que o arguido retirou apenas lhe era acessível em razão das suas funções de Carteiro, no exercício das quais lhe incumbia especialmente zelar pelo bom funcionamento dos serviços postais e pela garantia do segredo daquela correspondência».
4 - O Tribunal ao absolver o arguido da prática do crime de peculato não fez uma correcta e justa aplicação da lei, violou a norma comida no nº 1 do art. 375º do Código Penal.
5 -Ao considerar que a expressão «que lhe seja acessível em razão das suas funções», contida naquela norma, exige que o agente do crime tenha o objecto de que se apropria na sua posse, no sentido de que pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções, o Tribunal não interpretou correctamente essa norma.
6 - O art. 375º nº 1 do Código Penal, na parte respeitante à apropriação pelo funcionário de dinheiro ou coisa móvel que lhe seja acessível em razão das suas funções, diz respeito à apropriação do bem que, por força das suas funções, lhe está próximo e lhe pode aceder com facilidade, não se exigindo que lhe tenha sido entregue ou o detenha directa ou indirectamente.
7 - A conduta do arguido integra a prática de um crime de peculato, p. e p. pela conjugação dos arts. 375º nºs 1 e 2 e 202º, al. c), do Código Penal, pelo qual deverá ser condenado.
Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, dando provimento ao presente recurso, farão JUSTIÇA”

O arguido, a fls. 190 a 193, respondeu ao recurso, negando que a sentença recorrida tenha incorrido em qualquer contradição insanável de fundamentação e defendendo que o tribunal a quo fez uma correcta interpretação do artigo 375º do Código Penal. Termina concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.

Nesta Relação, a Exma Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer, constante de fls. 201 a 203, concluindo “no sentido da improcedência do interposto recurso e, consequente manutenção do decidido.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, o arguido não respondeu.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO:
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (arts 403º e 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso, as questões suscitadas são as seguintes:
A) - Saber se a sentença recorrida enferma de contradição insanável da fundamentação;
B) - Saber se o tribunal “ a quo” fez ou não uma incorrecta interpretação do artigo 375º nº 1 do Código Penal e, nesta segunda hipótese, se o arguido deverá ser condenado pelo crime de peculato.
*
Vejamos então a decisão recorrida (na parte que tem relevo para as questões em análise e que, de seguida, transcreveremos):
1. 1 Factos Provados:
1) Os Correios de Portugal, SA (CTT) são uma empresa pública com capitais exclusivamente públicos, com sede na Rua de São José, nº20, em Lisboa.
2) O arguido A... iniciou o seu percurso profissional nos CTT como assalariado, em 1983, e a partir de Maio de 1984, foi admitido como funcionário, com a categoria profissional de Carteiro (CTR), trabalhando sob as ordens, direcção e fiscalização desta entidade.
3) Desde 1996 e até 15 de Abril de 2011, exerceu as suas funções no Centro de Distribuição Postal 3020 Coimbra, situado na Estrada Municipal nº537, em Eiras, área desta comarca de Coimbra, data esta em que foi suspenso preventivamente na pendência de um processo disciplinar que lhe foi instaurado, no termo do qual lhe foi aplicada a pena de despedimento.
4) No âmbito das suas funções de Carteiro, cabia ao arguido a distribuição de correspondência no Giro UC002, que compreende a localidade da Pedrulha e a Zona Industrial da Pedrulha, bem como ocasionalmente a distribuição de correspondência noutros giros.
5) Entre Dezembro de 2010 e o dia 14 de Abril de 2011, no Centro de Distribuição Postal 3020 Coimbra, o arguido, aproveitando-se da circunstância de, em razão das suas funções de Carteiro, ter livre acesso aos objectos postais, retirou dos circuitos postais correspondência destinada a clientes, residentes noutras áreas de distribuição, que abriu e fez sua.
6) Assim, no dia 16/12/2010, o arguido retirou do móvel de expedição de correio uma correspondência prioritária da categoria publicação periódica, que continha no interior uma revista Visão, com o valor aproximado de 3€ (três euros), cuja morada do destinatário era insuficiente, que assim fez sua, e posteriormente abriu a correspondência e inteirou-se do seu conteúdo.
7) No dia 17 de Janeiro de 2011, o arguido retirou do móvel de grossos uma correspondência da categoria pacote postal procedente de … , da Suécia, e destinada a … , contendo dois pares de óculos de sol com o valor global concretamente não apurado mas certamente não superior a €:20,00 e ainda 400€ (quatrocentos euros) em notas do BCE, que assim fez sua, sendo que posteriormente abriu esta correspondência, inteirando-se do respectivo conteúdo, à excepção dos valores, que nunca conseguiu descobrir por estarem escondidos sob o forro de uma das caixas de óculos.
8) No dia 14 de Abril de 2011, o arguido retirou do móvel de expedição de correio a correspondência prioritária da categoria publicação periódica que continha no interior a revista Sábado, edição nº363, com o valor aproximado de 3€ (três euros), destinada ao cliente … e que seguia em devolução ao remetente.
9) Seguidamente, o arguido retirou do circuito de distribuição do giro UC006 a correspondência da categoria pacote postal, remetida por … e destinada a … .
10) Levando consigo a publicação periódica e o pacote postal, que assim fez seus, o arguido acondicionou-os na bagageira da sua viatura, para posteriormente os abrir e se inteirar do seu conteúdo.
11) Porém, tal não veio a suceder por motivos alheios à vontade do arguido.
12) Com efeito, na sequência de diversas reclamações relacionadas com extravio de correspondência, os Serviços de Auditoria e Inspecção dos CTT realizaram em 13 e 14 de Abril de 2011 um teste ao circuito postal interno do Centro de Distribuição Postal 3020 Coimbra.
13) Para tanto, no dia 14 de Abril de 2011, pelas 06:30 horas, foi introduzida uma correspondência teste no circuito postal, e cerca das 15:00 horas, quando o arguido acabou a jornada de trabalho e se preparava para abandonar o Centro de Distribuição Postal, foi abordado pelos inspectores …….., na presença da testemunha … .
14) O arguido, ao ser abordado e constatando que havia sido descoberto, devolveu de imediato a correspondência destinada a … e a … e, no dia seguinte, procedeu à devolução do conteúdo do pacote postal remetido a … .
15) O arguido, ao agir da forma descrita, actuou com o propósito conseguido de fazer seus e utilizar em proveito próprio os objectos e valores contidos em correspondência, apesar de bem saber que os mesmos não lhe pertenciam.
16) O arguido, ao agir da forma descrita, actuou com o propósito de abrir a correspondência e de se inteirar do seu conteúdo, apesar de bem saber que esta não lhe era dirigida.
17) O arguido actuou sempre de forma idêntica, aproveitando-se da circunstância de, em virtude das suas funções de Carteiro, ter livre acesso aos objectos postais e de até então ter gozado de impunidade, factores estes que diminuem consideravelmente a sua culpa.
18) Bem sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
19) A encomenda postal com os óculos e o dinheiro foi devolvida pelo arguido e entregue à ofendida .
20) O arguido não tem antecedentes criminais.
21) O arguido trabalha como taxista e ganha cerca de €:500,00 por mês.
A mulher é empregada de refeitório e ganha o ordenado mínimo nacional.
Têm duas filhas com 17 e 20 anos, que estudam respectivamente no Liceu e na Universidade.
Vive com a mulher e com as filhas em casa emprestada.
Tem o 9º ano de escolaridade.
Sempre foi tido como um carteiro cumpridor e brioso no cumprimento das suas funções.
Ficou muito arrependido e deprimido e martiriza-se com o sucedido e isola-se.
1.2. Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos que, nessa qualidade, se descreveram.
Em especial não se provou que:
a- o arguido retirou correspondência das áreas de distribuição do giro que executava.
b- o arguido era executante do giro 006.
c-os óculos tinham o valor aproximado de 200€ (duzentos euros);
d- No dia 24 de Março de 2011, o arguido retirou do móvel de expedição de correio a correspondência prioritária da categoria publicação periódica que continha no interior a revista Sábado, edição nº360, com o valor aproximado de 3€ (três euros), destinada ao cliente … e que seguia em devolução ao remetente, que assim fez sua, e posteriormente abriu a correspondência e inteirou-se do seu conteúdo. (cfr. fls. 9 17, 18, 64 e 68 do Apenso nº1)
e- No dia 31 de Março de 2011, o arguido retirou do móvel de expedição de correio a correspondência prioritária da categoria publicação periódica que continha no interior a revista Sábado, edição nº361, com o valor aproximado de 3€ (três euros), destinada ao cliente … e que seguia em devolução ao remetente, que assim fez sua, e posteriormente abriu a correspondência e inteirou-se do seu conteúdo. (cfr. fls. 11 a 23, 64 e 68 do Apenso nº1)
f- No dia 7 de Abril de 2011, o arguido retirou do móvel de expedição de correio a correspondência prioritária da categoria publicação periódica que continha no interior a revista Sábado, edição nº362, com o valor aproximado de 3€ (três euros), destinada ao cliente … e que seguia em devolução ao remetente, que assim fez sua, e posteriormente abriu a correspondência e inteirou-se do seu conteúdo. (cfr. fls. 24 a 30 e 36 a 39, 64 e 68 do Apenso nº1)
g- a correspondência que o arguido retirou apenas lhe era acessível em razão das suas funções de Carteiro, no exercício das quais lhe incumbia especialmente zelar pelo bom funcionamento dos serviços postais e pela garantia do segredo daquela correspondência.

1. 3. Motivação
O Tribunal deu como provada a matéria de facto supra descrita com fundamento em diversos elementos probatórios, entre si conjugados e apreciados, à luz das regras da experiência e do normal acontecer.
Assim, foi desde logo valorado o depoimento do arguido, que reconheceu ter retirado e levado consigo o pacote postal dirigido a … , o pacote postal remetido pela … e duas revistas: uma Sábado, no dia 14 de Abril e uma Visão, noutro dia que não conseguiu precisar. Não retirou, segundo disse, qualquer outra revista. Contou que não se apercebeu de que o pacote postal dirigido a … continha também dinheiro, tendo visto apenas os óculos. Retirou a encomenda por curiosidade, por ela vir do estrangeiro, mas nunca utilizou os óculos. Quanto às revistas, elas iam ser devolvidas e iam ser destruídas, razão pela qual se sentiu tentado a retirá-las. Explica todo o sucedido como um mau momento na sua vida, com consequências dramáticas, uma vez que foi despedido e que desde então que está deprimido.
Valorado foi ainda o depoimento da testemunha … , que é carteiro e que contou credivelmente que notaram o desaparecimento de dois pacotes postais e ainda da revista Visão e da Sábado, que era devolvida sempre do mesmo destinatário, por endereço insuficiente.
A testemunha … , também ele carteiro, apenas relatou a circunstância de ter reparado que a encomenda destinada à … tinha desaparecido do local onde estava, na estação de correios: colocou-a no local próprio e quando a foi buscar, para a entregar no seu giro, reparou que tinha desaparecido. Nessa altura, reportou o desaparecimento ao chefe. Tratou-se de um depoimento credível e isento.
A testemunha … , carteiro também ele, relatou por sua vez que tratava da devolução de correspondência e que deu pela falta da revista Sábado que se destinava ao cliente … e que vinha devolvida por a morada ser insuficiente.
A testemunha … , por sua vez, contou que numa determinada data, a revista Visão foi deixada no local do remetente, para ser devolvida e que cerca de uma hora mais tarde reparou que tinha desaparecido. Ele e o colega … conversaram sobre o desaparecimento e nessa altura só se encontravam nos Correios ele, o colega … e o arguido.
As testemunhas … (mulher do arguido), ………. apenas abonaram do carácter do arguido, dizendo que ele é bom trabalhador, o que foi confirmado pelas testemunhas …………...
Ora, conjugando todos estes depoimentos, o Tribunal não teve dúvidas em dar como provada a factualidade que acima nessa qualidade se descreveu.
Mais se valorou, quanto às condições económicas do arguido, as declarações por este prestadas e, quanto aos antecedentes criminais, o CRC junto aos autos.
Quanto ao valor dos óculos, note-se, este ficou por esclarecer, até mesmo porque não foi possível inquirir a testemunha …, a quem eles se destinavam. Assim, apenas se sabe, acerca dos óculos, que estes não tinham qualquer marca conhecida, conforme resulta da fotografia de fls. 78 e do depoimento da testemunha … , que lhe disse que a … lhe contou que os óculos não tinham valor e que o seu envio se destinava apenas a camuflar o dinheiro. Daí que, com fundamento nas regras da experiência e do normal acontecer, se tenha dado como provados que não valiam certamente mais do que €:10,00 cada um.
Deu-se como não provado que o arguido tivesse retirado do local as restantes revistas descritas na acusação por não se ter feito prova de tal facto acima de todas as dúvidas às quais possam ser dadas razões.
Efectivamente, o arguido negou-o perentoriamente, confessando contudo ter retirado os demais objectos.
E, na verdade, o local onde as revistas se encontravam era um local acessível a todas as pessoas que ali trabalhavam, podendo por isso ter sido uma qualquer outra pessoa a retirar as referidas revistas.
Assim, na ausência de qualquer outro elemento probatório, fica certamente por esclarecer, com a necessária certeza, quem retirou do local as revistas. Daí que se tenha chamado a intervir o propalado princípio in dúbio pro reo e se tenha dado como não provados os factos que desfavoreciam o arguido.

2. De Direito.
2.1. Enquadramento jurídico-penal:
a) O arguido vem acusado da prática de um crime de peculato, p. e. p. pelo art.º 375º n.º 1 do CP, com referência aos arts. 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do CP.
Prevê o art.º 375º n.º 1 do CP que “- O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Através da incriminação da descrita conduta procurou o legislador tutelar, por um lado, bens jurídicos patrimoniais (um direito patrimonial do Estado, ainda que a propriedade não seja do Estado) e, por outro lado, e predominantemente, a probidade e a fidelidade dos funcionários, para garantir o bom andamento, a legalidade e a imparcialidade da administração (neste sentido, Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, pág. 688 a 691).
Conforme decorre claramente da leitura do normativo transcrito, o crime de peculato é um crime específico impróprio, ou seja, na definição de Figueiredo Dias, um crime em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar, uma vez que só o agente com essa característica subjectiva relacional o pode cometer (vide Parte Geral do Direito Penal, Almedina).
Efectivamente, o agente do crime terá de ser um funcionário, tal como ele é definido no art.º 386º do CP, funcionário esse que, por força das suas funções, tem a posse do bem objecto do crime.
E é essa qualidade de funcionário que distingue o crime de peculato do crime de furto ou do crime de abuso de confiança e é ela que torna a ilicitude da conduta do agente mais grave.
No que à conduta típica concerne, o crime de peculato consiste na apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, de uma coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda, em razão das suas funções.
Como bem nota Conceição Ferreira, na anotação a este artigo, o conceito de posse deve ser “entendido em sentido lato, englobando quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções”.
A acessibilidade ao bem deve contudo derivar das funções do agente, pelo que deverá existir uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não bastando a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação.
Assim, o agente deve ter a posse ou detenção do objecto “em razão das suas funções”.
Acompanhamos, pois, à análise de Cristina Cunha no sentido da interpretação restrita desta expressão constante do tipo: é necessário, para que uma determinada conduta seja subsumida ao tipo legal em análise, que a posse esteja na dependência funcional do exercício da função, pois a razão de ser desta punição agravada reside precisamente na violação, por parte do funcionário-agente, da confiança funcional que nele foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem, entendendo-se esta posse, como já supra se referiu, por detenção material, guarda do bem ou disponibilidade jurídica, ou seja, a possibilidade de dispor do bem, não como proprietário, mas como fiel depositário e zelador dos bens, não se desviando dos fins legais. O funcionário é punido desta forma agravada porque abusou das suas funções ou foi infiel às suas funções, traindo a confiança que lhe foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem.
É esta relação causal entre a posse (que facilita a apropriação) e a função, de modo a que a apropriação viole a relação de fidelidade pré-existente que, no caso dos autos, inexiste.
Senão, vejamos.
Provou-se que o arguido é funcionário dos CTT e, por conseguinte, funcionário para efeitos penais.
Provou-se também que o arguido, aproveitando-se de circunstância de, enquanto carteiro, ter acesso aos objectos postais, em 3 momentos distintos retirou dos circuitos postais correspondência que se destinava a áreas de distribuição distintas do giro que executava e levou-a consigo, fazendo-a sua.
Trata-se, pois, de correspondência que não lhe tinha sido confiada, que ele não possuía nem à qual acedeu por força das suas funções: o que sucedeu foi que, em virtude das suas funções, pôde com facilidade acercar-se da correspondência em causa nos autos e, aproveitando-se disso, fê-la coisa sua (neste sentido e num caso similar, vide o Ac. RC de 14-04-2010, in www.dgsi.pt).
Daí que o arguido não tenha violado qualquer relação de fidelidade pré-existente e que não possa, pois, a sua conduta ser reconduzida ao tipo legal em análise.
Mas trata-se de uma conduta que já é subsumível ao crime de furto previsto no art.º 203º do CP.
Efectivamente, de acordo com o disposto neste normativo, comete o crime de furto “quem, com ilegítima intenção de apropriação, para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia”.
Tal como decorre da leitura desta norma, para que a conduta do agente possa ser subsumida à materialidade objectiva do tipo incriminador, é necessário que se tenha traduzido na subtracção de uma coisa móvel alheia, contra ou sem a vontade de quem estava em condições de poder retirar utilidades dela.
Questão debatida, que tem dado origem, ao longo dos tempos, a múltiplas divergências doutrinais e jurisprudenciais, que ainda hoje persistem, é a da dilucidação do conceito de subtracção (que o legislador não esclarece, remetendo, ao invés, o seu preenchimento para a doutrina e para a jurisprudência).
Actualmente, é maioritariamente aceite que a subtracção consiste na violação do poder de facto exercido pelo lesado e na integração da coisa na esfera patrimonial do agente ou de terceiro – vide Simas Santos e Leal Henriques, CP Anotado, vol. II, 2ª edição, anotação ao art.º 203º. Então, na esteira desta última corrente, e seguindo o raciocínio traçado por Faria Costa (Apontamentos ao 5º ano, Faculdade de Direito de Coimbra), defendemos que por subtracção se deve entender a retirada da coisa da esfera real ou potencial de utilidade por quem dela usufruía e a sua entrada subsequente, mesmo que de modo precário e passageiro, na esfera de utilidade ou de disponibilidade do próprio agente ou de terceiro, não tendo essa passagem de uma esfera de disponibilidade para a outra de ser levada a cabo através da aprehensio rei (contra, Ac. RC de 23/11/83, BMJ n.º 332, p. 517).
E, nesta perspectiva, para que a subtracção se consume não se exige que o agente retire da coisa real e efectivo proveito, nem é necessário que a detenha pacificamente, em pleno sossego.
Para que a conduta em causa possa ser reconduzida à previsão típica da norma incriminadora é necessário, por último, que o agente tenha actuado com uma ilegítima intenção de apropriação. O agente sabe que a coisa pertence a outrem, tem consciência de que não detém qualquer direito ou título para a possuir e, não obstante, actua com intenção de a vir integrar no seu património, ainda que sem qualquer propósito lucrativo.
Da construção do tipo legal e da conjugação com o art.º 13º do CP conclui-se, por outro lado, ser este um crime cuja realização passa pela existência de dolo da parte do agente.
Assim, para que a conduta em causa seja subsumível à previsão típica da norma em análise é necessário que o agente tenha actuado com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito objectivo (tipo-de-ilícito subjectivo), ou seja, de um lado com conhecimento e representação dos elementos que integram o crime (elemento intelectual do dolo) - incluindo nesses elementos, claro está, as circunstâncias modificativas agravantes- indispensáveis para que a sua consciência ética se colocasse e resolvesse correctamente o problema da ilicitude e, de outro, com o propósito directo ou indirecto de o realizar (elemento volitivo do dolo - cfr. art.º 14º do Cód. Penal).
E o preenchimento do elemento subjectivo do tipo do supra referido normativo exige ainda uma particular direcção de vontade do agente, isto é, que à sua actuação tenha presidido um fim determinado: uma ilegítima intenção de apropriação (que se “manifesta, precisamente, no animus sibi habendi sobre a coisa efectivamente apropriada”- Faria Costa, op. cit., loc. cit.).
Ora, no caso sub iudice deu-se como provado que o arguido por diversas vezes se acercou da correspondência em causa nos autos, que estava nos móveis de expedição e a retirou do local, levando-a consigo e fazendo-a sua, tendo actuado com essa intenção, bem sabendo que não lhe pertencia e de que agia sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo proprietário, conhecendo a proibição legal.
A sua conduta nos vários dias que constam dos factos provados é, pois, subsumível ao tipo em análise.
Contudo, tal como decorre do disposto no n.º 3 do referido art.º 203º do CP, o crime de furto é um crime semi-público, ou seja, um crime relativamente ao qual o procedimento criminal depende de queixa.
E, compulsados os autos constatamos que a ofendida ... deduziu queixa crime mas que, posteriormente, declarou não desejar prosseguir com o processo (cfr. fls. 28).
Uma vez que o crime de furto simples reveste natureza semipública, é admissível a desistência de queixa formulada, desistência esta que o arguido aceitou (cfr. fls. 75 dos autos).
Quanto às revistas Visão e Sábado e à corespondência da … , os respectivos ofendidos não deduziram queixa crime,
Por conseguinte, e nos termos do disposto no art.º207º al. a) do Código Penal, carece o Ministério Público de legitimidade para promover o procedimento criminal pela prática destes crimes.
A consequência é, pois, a absolvição do arguido da instância, por falta de legitimidade do M.º P.º para deduzir a acusação pelo crime em causa.
(…)”
*
A) Invoca o recorrente, em primeiro lugar, que existe contradição insanável da fundamentação por, na sua perspectiva, existir incompatibilidade dos factos provados descritos sob os nºs 2), 3), 4), 5), 6), 8), 15), 16) e 17) com o facto não provado mencionado sob a aI. g).
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão é um vício da própria sentença, cujo conhecimento é oficioso, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, publicado no Diário da República I Série - A, de 28/12/1995).
Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (a que alude a alínea b) do nº 2 do artigo 410º) - tal como o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (a que alude a alínea a) de tal nº 2, e tal como o vício do erro notório na apreciação da prova (a que alude se reporta a alínea c) do nº 2 do artigo 410º) – reporta-se a vício que tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
No ensinamento de Simas Santos e Leal-Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6.ª Edição, Editora Reis dos Livros, página 71), a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão verifica-se quando se detecta “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.
Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal-Henriques (in Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, 2010, pag 509) ”por contradição insanável da fundamentação entende-se a situação em que, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada, ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados.”
Ora, lendo e relendo a matéria de facto dada como provada nos aludidos factos 2), 3) 4), 5), 6), 8), 15), 16) e 17) e o facto não provado constante da alínea g), não descortinamos qualquer contradição ou incompatibilidade, e muito menos insanável, entre aqueles e este.
Salvo o muito devido respeito por opinião contaria, ao dar-se como não provado que a correspondência que o arguido retirou apenas lhe era acessível em razão das suas funções de Carteiro não é incompatível com o facto do arguido ter retirado correspondência aproveitando-se das suas funções de carteiro e de ter acesso aos objectos postais. Segundo as regras da experiência comum, é perfeitamente possível ou plausível que uma qualquer pessoa (ex: mulher da limpeza, funcionário de manutenção de equipamento ou das instalações, um qualquer funcionário administrativo – e não necessariamente um carteiro) - por um qualquer motivo (laboral ou outro) - tenha acesso às instalações do Centro de Distribuição Postal e venha a retirar correspondência de um dos móveis de expedição de correio. Ou seja, essa (apesar de indevida) retirada de correspondência, pode ser realizada por quem tenha acesso ao local onde a mesma se encontre, e não apenas por uma pessoa com a categoria profissional de carteiro. De referir ainda que correspondência retirada, tal como decorre da factualidade apurada, dizia respeito a outros giros, que não o giro do arguido.
Daí que não descortinamos qualquer contradição de fundamentação, muito menos insanável, entre o não provado facto g) e os demais factos provados (designadamente os apontados pelo Ministério Público recorrente), pelo que se de deverão manter os factos provados e não provados tal como haviam sido fixados na decisão recorrida.
Por tal razão, improcede esta primeira pretensão do recorrente.

B) – Em segundo lugar, considera o recorrente que o tribunal “ a quo” fez uma incorrecta interpretação do artigo 375º nº 1 do Código Penal, pelo que deverá o arguido ser condenado pelo crime de peculato.
Dispõe o art. 375° nº 1 do Código Penal que "O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de um a oito anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
A propósito do crime de peculato p. e p pelo artigo 375º nº 1 do Código Penal, aquando da prolação da sentença no âmbito do Processo Comum nº 1876/07.6PEAVR, do então 2º Juízo Criminal de Aveiro (sentença essa da qual foi interposto recurso que veio a ser decidido pelo Acórdão da Relação de Coimbra, de 14/04/2010, citado na decisão recorrida), já tivemos oportunidade de dizer o que, de seguida, passaremos a transcrever:
“São elementos constitutivos de tal crime:
1. a nível objectivo:
a) que o agente seja um funcionário;
b) que o mesmo se aproprie (subtraia), em proveito próprio ou de outra pessoa;
c) de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular;
d) que lhe tenha sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções; e
e) Que essa apropriação seja ilegítima.
2. a nível subjectivo exige-se que o agente actue com intenção de apropriação desses bens, sabendo que tal actuação é proibida e punida por lei.
O peculato, na sua configuração central, não é mais que a apropriação indébita praticada por funcionário público ratione officii.
É a apropriação indébita qualificada pelo facto de ser o agente funcionário público, procedendo com abuso do cargo ou infidelidade a este.
O peculato pressupõe assim no agente a preexistência da legítima posse precária, ou em confiança, da res mobilis de que se apropria, ou desvia do fim a que era destinada (Simas Santos, in C.P. Anotado vol.4, pág. 566).
Trata-se de um crime específico impróprio: por um lado o agente terá que ser um funcionário (cujo conceito está mencionado no art. 386º), funcionário esse que, em razão das suas funções, tenha a posse do bem objecto do crime; é esta qualidade do agente (e esta relação do agente com o objecto) que torna a ilicitude do crime de peculato mais grave do que a do furto (…); por um lado, também é a qualidade de funcionário no exercício das suas funções – crime praticado no exercício de funções públicas – que distingue o crime previsto no art. 205º nº 5 (abuso de confiança qualificado) – cfr. (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo III, Coimbra Editora, pag. 692).”
Tecidas estas pequenas considerações apenas em complemento do que na parte respeitante ao enquadramento jurídico foi dito na sentença recorrida em relação ao crime de peculato, analisando a matéria de facto apurada, e salvo o muito devido respeito por opinião contrária, consideramos que tal factualidade (tal como foi explanado pelo tribunal a quo e também é defendido pela Exma Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer) não é susceptível de preencher, desde logo a nível objectivo, todos os requisitos de tal crime.
Com efeito, não havendo dúvidas que o arguido era funcionário para efeitos da previsão deste crime (cfr. art. 386º nº 1 a) do Código Penal) e de se mostrarem verificadas as demais situações previstas nas atrás explanadas alíneas b), c) e e), somos de entendimento que não está verificada qualquer situação susceptível de integrar a previsão do mencionado na alínea d).
Com efeito, não ficou provado que os objectos e valores contidos em correspondência de que o arguido se apropriou lhe tivessem sido entregues ou que, previamente a tal apropriação, estivessem na posse do mesmo.
E será que tal correspondência (que continha tais objectos e valores) era acessível ao arguido em razão das suas funções?
Entendemos que não, tal como foi evidenciado na decisão recorrida e no parecer elaborado pela Exma Procuradora Geral-Adjunta.
Importa ter presente que as funções de carteiro do arguido estavam delimitadas pela distribuição de correspondência do giro UC002 e não se provou que o arguido tivesse retirado correspondência das áreas de distribuição do giro que executava.
Ou seja, apesar de se ter apropriado de objectos e valores contidos em correspondência que retirou de móveis de expedição e do circuito de distribuição do giro UC006, essa apropriação decorre da situação - que poderemos considerar fortuita – de se encontrar nas imediações ou próximo de tal correspondência. O acesso a tal correspondência, de cujos bens nela contidos se vem a apropriar, deriva da proximidade física ou de contexto espacial em relação à mesma, e não, propriamente ou rigorosamente, em razão das suas específicas funções de carteiro (e como atrás tivemos oportunidade de mencionar a propósito da primeira questão colocada no recurso, essa acessibilidade física tanto poderia ocorrer, por exemplo, com a empregada da limpeza ou com qualquer outro funcionário de manutenção do equipamento ou das instalações, e não necessariamente por força ou em razão das funções de carteiro que o arguido detinha). Consideramos que o “acessível em razão das suas funções” a que se reporta o tipo legal de crime em causa exigirá uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções ao apropriar-se, para si ou par terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria.
É que tal como é referido em anotação ao art. 375º, para afastar a acessibilidade em sentido lato “tendo em conta que a acessibilidade deve derivar das funções do agente, parece que deverá haver uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não sendo suficiente, segundo cremos, a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo III, Coimbra Editora, pag. 695).
Por isso mesmo é que a apropriação da coisa a que o agente tem acesso (ou lhe é acessível) em razão das suas funções (ratione officii) é mais severamente punida através deste tipo legal de crime do que através do “simples” tipo legal de crime do abuso de confiança ou do furto.
No caso em apreciação, tendo em conta a matéria de facto dada como assente, a situação apurada e descrita na decisão recorrida não configura a prática de um crime de peculato.
Na realidade, o arguido, em razão das suas funções, não tinha a guarda ou a posse dos objectos e/ou valores contidos naquela correspondência nem, propriamente, o acesso a tal correspondência - não obstante poder materialmente aceder à mesma correspondência em circunstâncias fortuitas.
Tal como a dado passo é dito na sentença recorrida (a propósito da verificação do crime de peculato) “é necessário, para que uma determinada conduta seja subsumida ao tipo legal em análise, que a posse esteja na dependência funcional do exercício da função, pois a razão de ser desta punição agravada reside precisamente na violação, por parte do funcionário-agente, da confiança funcional que nele foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem, entendendo-se esta posse, como já supra se referiu, como detenção material, guarda do bem ou disponibilidade jurídica, ou seja, a possibilidade de dispor do bem, não como proprietário, mas como fiel depositário e zelador de bens, não se desviando dos fins legais. O funcionário é punido desta forma agravada porque abusou das suas funções ou foi infiel às suas funções, traindo a confiança que lhe foi depositada ao lhe ser conferida a posse dos bens. É esta a relação causal entre a posse (que facilita a apropriação) e a função, de modo a que a apropriação viole a relação de fidelidade pré-existente que, no caso dos autos inexiste”
Daí que, e concordando com a acabado de citar, não vemos motivos para censurar a sentença recorrida que considerou inverificado o crime de peculato de que o arguido vinha acusado.
Assim, também por aqui, deverá improceder a pretensão do recorrente.
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III. DECISÃO
Nos termos expostos, decide-se em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Sem custas (artigo 522º do Código de Processo Penal).
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(Elaborado e revisto pelo relator, 1º signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Coimbra, de Janeiro de 2013
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(Luís Coimbra)
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(Cacilda Sena)