Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
922/11.3TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: CONTRATO ATÍPICO
PREÇO
FALTA DE ACORDO
DETERMINAÇÃO DO PREÇO
PREÇO RAZOÁVEL E EQUITATIVO
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIG. DA FOZ – 1.º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 883.º E 939.º DO C. CIVIL
Sumário: 1 – É completamente atípico – e não um contrato de prestação de serviço atípico – o contrato em que uma parte cede os seus trabalhadores para trabalharem em obras da contraparte, ficando esta de pagar as horas “dadas” pelos mesmos.

2 – Contrato a que é aplicável, quanto ao preço/retribuição, elemento essencial do contrato, o art. 883.º do C. Civil (ex vi art. 939.º do C. Civil).

3 – Preço, enquanto elemento essencial de tal contrato, que não exige, para a validade do contrato, que as partes contratantes o hajam computado num “quantum” definido, numa cifra ou soma fixada com inteira precisão; bastando, para estar preenchido tal elemento essencial (e para o contrato não ser nulo por indeterminação do objecto), que ele seja ulteriormente determinável, que as partes convencionem, ainda que tacitamente, o meio de o tornar certo (o critério a adoptar ou a pessoa que o determinará) e que ele (o preço) não seja relegado ao mero capricho de alguma das partes.

4 – Ou seja, nada sendo convencionado (nem ao menos quanto ao meio/critério de determinar o preço), há-de valer como preço o que for razoável e equitativo; do que o preço corrente/normal e o preço de mercado/bolsa (a que se refere o art. 883.º/1/2.ª parte) representam concretizações, antecipadas pela lei, de tal regra de razoabilidade e de equidade, regra esta sempre sujeita ao controlo e correcção judiciais.

5 – Assim, em tal hipótese, será exagerado fixar como preço da hora de trabalhadores da construção civil € 15,00/hora; sendo razoável e equitativo fixar tal preço tão só em € 11,00/hora.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., Ld.ª, com sede na Rua (...), Figueira da Foz, intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B..., Ld.ª, com sede na Rua (...), Figueira da Foz, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 49.599,53 (sendo € 34.025,20 de capital e € 15.324,43 de juros vencidos), acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal até integral pagamento.

Alegou para tal, em síntese, que a Ré lhe deu de empreitada a realização das infra-estruturas da Urbanização K..., Figueira da Foz, cujos trabalhos se consubstanciavam na construção de rede de abastecimento de gás, movimento de terras, tubagem e acessórios, rede de abastecimento de águas pluviais, arruamentos, sinalização, arranjos exteriores, lancis, zonas verdes e mobiliário urbano; obra/trabalhos que a A. executou nas quantidades e preços que constam das facturas (juntas ao presente processo) que enviou à R. e que esta não pagou, razão porque, além do valor das facturas, pede juros desde a data de vencimento das mesmas.

Contestou a R., começando por aceitar a empreitada, a sua execução e os preços/facturas invocados pela A., alegando em sua defesa – para não estar em dívida para com a A. – que, conforme foi acordado entre A. e R., houve trabalhadores da R. que trabalharam em obras da A., prestando serviços (horas de trabalho) no valor de € 54.795,00, conforme factura, datada de 31/12/2008, enviada à A., que esta devolveu (argumentando que o preço do trabalho seria de € 7,50 à hora e não os €15,00 constantes da factura), e que a R. lhe reenviou recusando a correcção; e pedindo, em reconvenção, a declaração do seu crédito de € 65.709,79[1] (€ 54.795,00 de capital e € 10.709,79 de juros) sobre a A. e a condenação desta, efectuada a devida compensação, na “quantia de € 16.110,26, acrescida de juros vincendos desde a data da reconvenção, sobre o montante de € 54.795.00”.

A A. replicou, mantendo a posição assumida na PI e negando rotundamente o invocado, sobre o contra-crédito e a compensação, na contestação/reconvenção.

Foi admitida a reconvenção, proferido despacho saneador – em que se julgou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa.

Instruído o processo e realizada a audiência, o Exmo. Juiz proferiu sentença em que concluiu do seguinte modo:

“ (…) julgo não provada e improcedente a presente acção proposta por A..., Ld.ª, absolvendo do pedido a Ré B..., Ld.ª, mas provada e procedente a reconvenção e, consequentemente, condeno a Autora/reconvinda A..., Ld.ª a pagar à Ré/reconvinte B..., Ld.ª, em virtude da compensação de créditos entre as partes, a quantia peticionada pela Ré/reconvinte de € 16.110,26 acrescida de juros de mora à taxa legal para as empresas comerciais, desde a notificação da reconvenção até real embolso (…) “

Inconformada, interpôs a A. recurso de apelação, visando a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

3) Resulta dos factos assentes constantes no Despacho Saneador, nomeadamente nas alíneas B), C), D), E) e F), que a Autora prestou os trabalhos constantes nas faturas referidas em C, no valor total de 34.025,20 €;

(…)

5) Não pode o Meritíssimo juiz julgar improcedente a presente ação;

6) Resulta dos autos que a Recorrente efetivamente prestou os trabalhos à Recorrida, bem como ficou provado que o montante referente aos referidos trabalhos era de 34.025,20 €;

7) Deve ser a Sentença recorrida revogada, com todas as consequências legais daí resultantes;

8) Quanto ao pedido reconvencional, não se fez prova nos autos do mesmo;

9) A Recorrente admitiu os trabalhos prestados pela recorrida, mas não admitiu o montante peticionado;

10) Conforme resultou provado nos autos, a Recorrente devolveu a fatura à Recorrida, por não concordar com os valores nela constantes;

11) Sendo que a fatura em discussão no pedido reconvencional nunca foi lançada na contabilidade da Recorrente, uma vez que não correspondia ao valor em dívida;

12) O TOC da Recorrida não tinha um conhecimento direto dos factos, mas apenas do que o legal representante desta lhe dizia – vide declarações da testemunha no sistema digital de gravação na aplicação “Citius Plus Média Studio”;

13) Pelo que, não foi feita qualquer prova quanto ao pedido reconvencional;

14) Nunca foi estipulado entre a Recorrente e a Recorrida que o valor por hora a ser pago pela Recorrente era de 15€;

15) Não pode a Recorrente ser obrigada a pagar à Recorrida o valor de 15€ por hora;

16) Quando muito, o montante que deve ser calculado é de 7,50€ e nunca de 15€ por hora;

17) Sendo certo que nos autos não se fez qualquer prova sobre o valor acordado quanto ao preço/hora, nem esse valor foi pedido;

18) Também não podemos aceitar a decisão dos 15€/hora, com base no fundamento “quem pagou ao pessoal foi a Ré; não faz sentido uma empresa pagar assim e a outra um outro valor (aceitando-se assim que o valor seja de €15,00 à hora) -Pois, não foi esse o valor acordado entre Recorrente e Recorrida;

19) A fatura aquando da sua devolução pela Recorrente, deveria ter sido anulada pela Ré;

20) Não se poderá concluir, como de facto se concluiu na sentença recorrida, que o legal representante da Ré presumiu que o preço do trabalho desenvolvido pelos seus trabalhadores seria de € 15,00/hora;

21) O preço de hora nunca é presumido, tem sempre a haver, com o acordado, o valor efetivamente pago, o trabalho desenvolvido, etc. , e não por presunção;

22) Se analisarmos o valor de 15,00 € hora seria um vencimento mensal superior a 2.500,00 € mensal – o que seria incomportável para cada empresa;

23) E a Ré nem sequer pagava aos seus empregados o valor de 540,00 € mensais;

24) Tem assim de ser alterada a matéria dada como provada nos artigos 5º e 6º da base instrutória, no sentido de não provado;

25) Se analisarmos o depoimento de parte do legal representante da Autora -este admitiu que devolveu a fatura que enviou recebeu da Ré, e junta aos autos pela Ré; E que o valor acordado era de 7,5 € hora e não 15,00 € hora, e daí ter devolvido a fatura – vide sistema digital de gravação na aplicação “Citius Plus Média Studio”;

26) O contabilista da Ré, inquirido em audiência de julgamento – vide sistema digital de gravação na aplicação “Citius Plus Média Studio”, disse: que nada sabia sobre a questão e que elaborou a fatura com o valor que lhe foi indicado pelo gerente da Ré; E que embora fosse o responsável da escrita de empresas também pertencentes ao legal representante da Autora, nunca ouviu dizer por nenhum, que o valor seria de 15,00 € a hora; Disse também que não retirou a fatura da contabilidade, porque o legal representante da Ré não aceitou;

27) No entanto, nunca viu nada, nomeadamente documentos contabilísticos, em que se baseasse para elaborar as faturas com o valor de 15,00 € hora;

28) Nunca se poderia ter decidido como de facto se decidiu, o que leva que obrigatoriamente sejam alteradas as respostas dadas aos quesitos 5º e 6º da base instrutória, no sentido de não provado, e a consequente Revogação da sentença recorrida;

29) Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto suscetível de revelar, informar,e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão da Recorrente;

30) Neste caso em concreto, o Meritíssimo Juiz não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;

31) A Lei proíbe tal comportamento;

32) O Meritíssimo Juiz “a quo” na decisão sob recurso, viola o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 668º e artigo 158º do Código do Processo Civil, uma vez que não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por esse facto nula;

33) O Meritíssimo Juiz limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: A prova produzida em julgamento; Os elementos constantes no processo; as regras de experiência comum, etc.;

34) A Sentença recorrida viola:

a) Artigos 158º, alíneas b) e c), do artigo 668º, do CPC;

b) Artigos 13º, 20º, 202º, 204º, 205º da C. R. P.

A R. respondeu, terminando as suas contra-alegações sustentando, em síntese, que a sentença recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II - Quanto à impugnação da decisão de facto:

É este o momento – antes de se proceder ao alinhamento dos factos provados – para a apreciação e decisão da impugnação da decisão de facto.

Sucede, porém, que nem a impugnação da decisão de facto foi completa e devidamente colocada nem, real e autenticamente, a A/apelante manifesta qualquer discordância efectiva e substantiva em relação ao que foi dado como provado.

Vejamos:

Quanto ao 1.º aspecto:

Foram, no caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, gravados, constando, assim, do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto.

Assim, para modificar a decisão da 1.ª instância, por enfermar de erro de julgamento, é necessário, sob pena de rejeição, que se especifiquem os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa – cfr. art. 685.º-B/2 do CPC, em que se dispõe expressamente que “quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados (…), incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso (…), indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.”

Significa isto, como é evidente, que para impugnar a decisão da matéria de facto – proferida com base em depoimentos prestados – não é suficiente indicar quais os quesitos/pontos que, segundo a recorrente, foram incorrectamente julgados.

Além de tal indicação, é absolutamente indispensável, sob pena de rejeição do recurso, que se enumerem e identifiquem os concretos meios probatórios, constantes de registo ou gravação realizada – por referência às passagens da gravação em que se funda, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 522.º.C – que impõem decisão diversa sobre os quesitos/pontos em causa.

Foi o que se acaba de referir que a A/apelante não fez.

Como o corpo da sua peça recursiva e as respectivas conclusões – que demarcam o objecto do recurso – supra transcritas o espelham, a A/apelante limita-se a dizer que tem que “ser alterada a matéria dada como provada nos artigos 5º e 6º da base instrutória, no sentido de não provado”; que, no seu depoimento de parte, o do legal representante da A. “admitiu que devolveu a fatura que recebeu da Ré (…) e que o valor acordado era de 7,5 € hora e não 15,00 € hora, e daí ter devolvido a fatura – vide sistema digital de gravação na aplicação “Citius Plus Média Studio”; e que “o contabilista da Ré, inquirido em audiência de julgamento – vide sistema digital de gravação na aplicação “Citius Plus Média Studio”, disse: que nada sabia sobre a questão e que elaborou a fatura com o valor que lhe foi indicado pelo gerente da Ré (…)”.

Ou seja, indica os quesitos/pontos que, a seu ver, foram incorrectamente julgados, porém, percorrendo toda a alegação – todo o seu corpo e as respectivas conclusões – não encontramos em momento algum, a indicação dos trechos dos concretos depoimentos que impõem decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto em causa; e muito menos, como é evidente, a sua indicação por referência a passagens da gravação.

Tudo é feito e dito, é totalmente indiscutível, duma forma completamente vaga e genérica; do que foi exactamente dito (ou não dito) pelas testemunhas e partes não há qualquer referência ou alusão específica e referenciada a passagens da gravação.

Enfim, a A/recorrente parece pensar que bastarão considerações globais e genéricas para meter a Relação a reapreciar a prova – porventura até toda a prova – produzida em 1.ª Instância.

Não é, porém, assim.

Os referidos art. 712.º e 685.º-B impõem à recorrente que pretenda a reapreciação da prova por parte da Relação que fundamente a sua discordância em relação ao decidido na 1.ª Instância, que identifique os concretos erros de julgamento da 1.ª Instância, que indique com exactidão (as passagens da gravação) os concretos meios probatórios que devem conduzir a decisão diversa da proferida na 1.ª Instância.

Foi justamente tal ónus de alegação/fundamentação que a A/apelante não curou de cumprir, razão bastante para o recurso, quanto à matéria de facto, ser aqui e agora formalmente rejeitado.

Razão esta que não é a única – e muito menos a mais ponderosa e consistente – para o recurso, quanto à matéria de facto, ser aqui e agora formalmente rejeitado.

Quanto ao 2.º aspecto:

Como já antecipámos, a A/apelante não manifesta, verdadeiramente, uma real discordância em relação ao que foi dado como provado.

Quanto ao quesito 6.º, desde logo, dar-lhe agora uma resposta de “não provado”, não é/seria alterar-lhe a resposta, mas sim manter-lhe a resposta “não provado” que já teve; razão porque, como é evidente, quanto a tal quesito, não há da parte da A/apelante a menor discordância em relação ao que (não) foi dado como provado.

Por outro lado, quanto à resposta dada ao quesito 5.º – em que se deu como provado que “apesar de não ter sido previamente fixado entre A. e R., o legal representante desta presumiu que o preço pelo trabalho desenvolvido pelos seus trabalhadores seria de €15,00/hora, por ter sido o preço debitado pela primeira à C (...) por serviços idênticos dos seus trabalhadores na obra do Edifício (...)” – o seu conteúdo não é, agora, na alegação recursiva, verdadeiramente colocado em crise pela A/apelante.

O que a A/apelante repetidamente (e de várias maneiras) sustenta é que não se fez prova do valor acordado quanto ao preço da hora dos trabalhadores, porém, é o ponto, também não foi isto que foi dado como provado (como resulta duma leitura atenta da resposta dada ao quesito 5.º).

Mais, em rigor processual, nunca se poderá/ia dar como provado um qualquer acordo sobre o preço da hora dos trabalhadores; uma vez que tal resposta não respeitaria (como devia) o que as partes haviam alegado nos articulados: a R/reconvinte, cfr. art. 12.º da contestação, em que explicitamente diz “não ter sido previamente fixado entre ambas a retribuição devida pelo serviço prestado pelos trabalhadores da R. (…)”; a A/reconvinda, cfr. artigos 2.º a 23.º da réplica, em que repele em cada um dos referidos artigos, com epítetos de “falso”, tudo o que a R/reconvinte havia alegado.

Enfim, em boa verdade, do que a A/apelante discorda é da relevância e configuração jurídicas que a sentença recorrida, explicita ou implicitamente, concedeu ao facto constante da resposta dada ao quesito 5.º.

Mas – é o ponto – o lugar/sede própria para exprimir tal discordância não é a impugnação da decisão de facto; uma vez que, repete-se e sintetiza-se, não representa uma efectiva e real divergência com a decisão de facto, mas, antes, uma divergência com a decisão de direito que, a partir e com base no facto dado como provado, foi proferida.

Portanto, também por esta razão – não havendo, “em substância”, pontos de facto considerados incorrectamente julgados (mas apenas uma indicação meramente formal de tal incorrecção) – o recurso, quanto à matéria de facto, é aqui e agora formalmente rejeitado.

Em conclusão, não há qualquer alteração à matéria de facto fixada pela 1.ª Instância.


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III – Fundamentação de Facto

Os factos, dados como provados, são os seguintes:

A) No âmbito da sua actividade comercial, A..., e B..., acordaram a adjudicação da segunda à primeira da obra de realização das infra-estruturas da urbanização, sita na Urbanização K..., freguesia de (...), concelho da Figueira da Foz.

B) No âmbito do acordo referido em A), os trabalhos realizados pela Autora consubstanciaram-se na construção de rede de abastecimento de gás, nomeadamente, movimento de terras, tubagem e acessórios, rede de abastecimento de águas pluviais, arruamentos, sinalização, arranjos exteriores, lancis, zonas verdes e mobiliário urbano.

C) Os trabalhos referidos em B) foram efectuados nas quantidades e preços descritos nas seguintes facturas[2]:

-Factura n.º 90, emitida em 17.7.2006, vencida em 16.8.2006, no valor de € 3.628,89[3];

-Factura n.º 95, emitida em 24.7.2006, vencida em 23.8.2006[4], no valor de € 3.988,69;

-Factura n.º 124, emitida em 28.9.2006, vencida em 28.10.2006, no valor de € 7.455,75;

-Factura n.º 87, emitida em 29.6.2007, vencida em 29.7.2007, no valor de € 18.951,88.

D) A Autora interpelou a Ré para pagar as facturas referidas em C).

E) Na sequência da adjudicação, pela R. à A., da obra de (...), Figueira da Foz, o legal representante da R. solicitou ao seu homólogo da A. a colocação naquela obra dos dois únicos trabalhadores da R.

H) Tendo também proposto que a R. pagaria as retribuições aos seus trabalhadores, enquanto a A. pagaria à R. as horas despendidas pelos mesmos ao seu serviço, fazendo-se, no final, o acerto de contas entre o preço da obra e a carga horária despendida por aqueles.

I) O que o legal representante da A. aceitou.

J) Tal acordo foi realizado não só para a obra referida em E), mas também para a obra referida em A) e para a obra do Edifício (...) adjudicada à A. pela C (...).

L) Apesar de não ter sido previamente fixado entre A. e R., o legal representante desta presumiu que o preço pelo trabalho desenvolvido pelos seus trabalhadores seria de €15,00/hora, por ter sido o preço debitado pela primeira à C... por serviços idênticos dos seus trabalhadores na obra do Edifício (...).

M) Após a interpelação referida em D), a R. apresentou a pagamento à A. os valores relativos aos trabalhos realizados pelos seus trabalhadores, a fim de serem levados em conta no abatimento do preço da obra, mas a A. não concordou com os preços que a R. apresentou.

N) A Ré emitiu uma factura datada de 31 de Dezembro de 2008, no montante total de € 54.795,00, com vencimento a trinta dias face à data nela aposta, respeitante aos trabalhos realizados pelos seus trabalhadores nas 3 obras referidas em E).

O) De tal factura resulta que os trabalhos realizados pelos trabalhadores da Ré totalizaram 3.653 horas, ao preço unitário de €15,00, das quais 668 relativas à obra da Urbanização (...), 639 à da Urbanização (...) e 2.346 à do Edifício (...).

P) Tal factura foi enviada por via postal pela R. à A..

Q) Por duas vezes, a A. devolveu tal factura, argumentando que o preço horário seria € 7,50/hora e não € 15,00 e pedindo a anulação da mesma e a emissão de uma outra.

R) Entre o legal representante da Autora e o legal representante da Ré existem há pelo menos vinte anos relações pessoais e profissionais.


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IV – Fundamentação de Direito

Podemos dizer, sem qualquer prejuízo para o rigor, que “em substância” todo o litígio – agora e sempre – se circunscreve (e gira à volta) ao preço da hora dos trabalhadores da R/reconvinte.

É aqui – foi sempre aqui – que residiu e reside a real e autêntica controvérsia entre as partes.

Pelo seguinte:

A R., como se referiu no relatório, aceitou, sem quaisquer tergiversações, o conteúdo contratual invocado pela A., as obras que esta alegou ter-lhe realizado e os preços que são devidos por tais obras; acrescentou, porém, que não tem que pagar tais preços, uma vez que tem sobre a A. um contra-crédito de montante superior (resultante da colocação de trabalhadores seus em obras da A.) e, evidentemente, tendo em vista tal “superioridade”, o preço da hora dos trabalhadores assume papel decisivo.

A A. – não obstante haja reputado (cfr. 2.º a 23.º da réplica) de falso, de inverídico, de “mentiroso”, tudo o que a R. alegou a propósito da constituição do contra-crédito invocado – quando o seu representante legal foi ouvido em depoimento de parte, “confessou” tudo[5] o que a R. antes havia alegado, com excepção, naturalmente, da referida vexata quaestio dos autos, ou seja, com excepção do preço da hora dos trabalhadores da R/reconvinte.

Está assim justificado porque começámos por afirmar, perscrutando a sua “essência”, que todo o litígio – agora e sempre – se circunscreve ao preço da hora dos trabalhadores da R/reconvinte.

E, sendo assim, é esta a questão que, naturalmente, domina o objecto da apelação.

Vejamo-lo, então:

Em relação à acção, não se discute – nunca se discutiu – que as partes celebraram um contrato de empreitada, que, por definição legal (art. 1207º C. Civil), é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço; pelo que, em face do que consta das 4 primeiras alíneas dos factos provados, tem a A. constituído sobre a R. um crédito (emergente do cumprimento/execução do contrato de empreitada) correspondente à soma das 5 facturas referidas em C) e que globalmente (sem os devidos juros de mora) atinge o montante de € 34.025,00.

Constituído tal crédito da A. – que é uma obrigação para a R. – surge, então, com a compensação invocada na contestação/reconvenção, a questão da extinção da obrigação da R.; questão que nos situa e remete para a apreciação da contestação/reconvenção, cujo âmago está no preço da hora dos trabalhadores da R/reconvinte.

Debrucemo-nos pois sobre a contestação/reconvenção:

E, começando por caracterizar juridicamente a relação contratual que os factos E), H), I) e J) retratam, diremos que o havido entre R./reconvinte e A/reconvinda – a colocação dos 2 trabalhadores da R. em 3 obras da A., ficando esta de pagar à R. as horas “dadas” pelos mesmos – configura um contrato completamente atípico[6]; querendo-se com isto dizer que não estamos perante um contrato de prestação serviço atípico.

Efectivamente, resulta (implicitamente, mas com suficiente concludência) dos factos alegados/provados que os 2 trabalhadores da R. colocados em 3 obras da A. terão ido trabalhar sob a organização e orientação da A., passando a exercer uma actividade às ordens da A., não estando/ficando a R. vinculada à execução duma qualquer obra ou sequer à prestação dum qualquer serviço/resultado (não correndo os inerentes riscos de execução quer da obra quer do serviço/resultado); o que significa que tal “colocação” de trabalhadores não pode configurar nem uma relação de empreitada, nem uma relação de subempreitada, nem sequer um qualquer contrato de prestação de serviço (indiferenciado) atípico.

Sendo assim – é, no caso, o relevo jurídico de tal configuração[7] – à determinação do preço/retribuição de tal relação contratual não são aplicáveis nem o art. 1211.º do C. C., nem o art. 1158.º/2 do C. Civil; mas sim o art. 883.º do C. Civil (ex vi art. 939.º do C. Civil).

Em todo o caso, seja como for – seja qual for o exacto recorte jurídico da concreta relação contratual sub judice – o preço/retribuição é um elemento essencial da mesma.

Ora, é sabido, compete às partes alegar os elementos essenciais quando apresentam um litígio emergente dum contrato, ou seja, devem alegar um “regulamento contratual” em que não falte este (o preço) e os demais elementos essenciais[8], uma vez que, caso assim não procedam, podem estar a impedir “ab initio” a validade da operação económica estabelecida, o mesmo é dizer, do contrato.

Mas, ao dizer-se que o preço é um elemento essencial da compra e venda – ou dos contratos onerosos a que as normas da compra e venda se aplicam (cfr. 939.º do C. Civil) – não se está a querer dizer que as partes contratantes o têm que computar desde logo num “quantum” definido, numa cifra ou soma fixada com inteira precisão; basta, para estar preenchido tal elemento essencial (e para o contrato não ser nulo por indeterminação do objecto), que ele seja ulteriormente determinável, que as partes convencionem, ainda que tacitamente, o meio de o tornar certo (o critério a adoptar ou a pessoa que o determinará) e que ele (o preço) não seja relegado ao mero capricho de alguma das partes.

Como há 60 anos (ainda na vigência do C. de Seabra) escreveu o Prof. Manuel de Andrade[9]todos os dias se fazem vendas de mercadorias ou artigos de vária natureza sem cláusula explícita indicando o preço ou qualquer meio para a sua computação ulterior. E sempre se admitiu e praticou que o comprador pagará a soma que for facultada pelo vendedor, segundo os preços correntes ou os usuais no seu estabelecimento ou giro comercial ou, em todo o caso, quando não sejam possíveis esses critérios, segundo aquilo que deva considerar-se razoável. Sempre se admitiu e praticou, portanto, que tais vendas se entendem feitas pelo preço que for fixado pelo vendedor nesses termos ou dentro desses limites. Não pode deixar de ser assim.

Identicamente, deu o Prof. Vaz Serra informação do seguinte[10]:

na hipótese de contrato bilateral, sucede por vezes que só uma das prestações se determina, nada se dispondo quanto à outra.(…). Prevendo esta hipótese, o § 316 do C. Alemão dispõe que, se a extensão da contraprestação prometida não é determinada, pertence a determinação, na dúvida, à parte que tem direito à contraprestação. Mas os autores distinguem: a) deve ver-se, em 1.º lugar, se apesar disso, não existe uma tácita determinação do preço por referência a uma base objectiva; por exemplo, ao preço corrente (notório corrente). b) se assim não acontece, na dúvida supõe-se que há-de determinar a contraprestação aquele a quem caiba exigi-la; assim, na compra e venda, o vendedor. Mas a determinação há-de fazer-se segundo arbítrio de equidade (§ 315). Se se exige o que não é equitativo, tem lugar a fixação por sentença judicial. c) quanto ao contrato de serviços, ao contrato de obra e ao contrato de corretagem, decide, em 1.º lugar, a taxa ou tarifa, se existir; em 2.º lugar, a retribuição corrente no lugar e, só quando não existam esses critérios ou deixem uma certa margem, a parte com o direito de exigir haverá de determinar segundo arbítrio de equidade. Com as reservas aqui feitas, parece não haver inconveniente em admitir a solução do referido § 316. Quando, por exemplo, se vende alguma coisa, sem se determinar o preço, ou se presta um serviço, sem se fixar a remuneração, não havendo uma base a que as partes se tenham tacitamente reportado, corresponderá ao uso e à prometida vontade das partes que o preço ou a remuneração sejam determinadas pelo vendedor ou pelo prestador do serviço, de harmonia com um critério equitativo, por serem eles quem, em regra, está em melhores condições para conhecer o valor equitativo dessa prestação. Na falta de uma equitativa determinação por eles, decidiria o juiz, salvo se a iniquidade não for imputável ao autor da determinação e for de admitir que, em nova determinação, ela se não dará.

(…) Quando se deixe ao puro arbítrio (arbitrium merum), e não já ao arbitrium boni viri, de uma das partes a determinação do objecto da prestação, o negócio será muitas vezes nulo, pois, se se trata de arbítrio do credor, poderia este fazer uma determinação excessiva, que restringisse incomparavelmente a liberdade do devedor, e, se se trata de arbítrio do devedor, poderia ele fazer uma determinação irrisória, não estando, portanto, verdadeiramente, vinculado. Mas o negócio não é sempre nulo. Não é fácil dizer, numa fórmula concreta, quando é que o negócio é de considerar como nulo ou como válido.

(…) Se a determinação da prestação deduzida no contrato é deferida a um terceiro e não resulta que as partes quiseram remeter-se ao seu mero arbítrio, o terceiro deve proceder com equitativa apreciação. Se falta a determinação do terceiro ou se esta é manifestamente iníqua ou errónea, a determinação é feita pelo juiz.”[11]

O que, intermediado pelo Projecto do Professor Galvão Telles (cfr. art. 9.º, ver BMJ 88, pág. 187), deu origem ao actual artigo 883.º do C. Civil, em que se dispõe:

1. Se o preço não estiver fixado por entidade pública, e as partes o não determinarem nem convencionarem o modo de ele ser determinado, vale como preço contratual o que o vendedor normalmente praticar à data da conclusão do contrato ou, na falta dele, o do mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir; na insuficiência destas regras, o preço é determinado pelo tribunal, segundo juízos de equidade.

2. Quando as partes se tenham reportado ao justo preço, é aplicável o disposto no número anterior.

Preceito que, tendo presente o pensamento legislativo que esteve na sua génese, não aceita a nulidade do contrato pelo facto de as partes não terem determinado o preço nem indicado a maneira de o determinar.

Preceito cujo dispositivo pode ser sintetizado nas duas seguintes asserções:

 - quanto ao preço, vale, em 1.ª linha, naturalmente, num domínio (contratos) em que o princípio da autonomia privada se manifesta em toda a sua plenitude (art. 405.º do C. Civil), o preço convencionado/acordado pelas partes; e

 - nada sendo convencionado – nem ao menos quanto ao meio/critério de o determinar – vale, em 2.ª linha, o que for razoável e equitativo; razoabilidade e equitatividade que, havendo-os, há-de começar por corresponder aos preços correntes/usuais/normais e aos preços de mercado/bolsa.

É este, em essência, o sentido do pensamento legislativo contido na 2.ª parte do art. 883.º/2 do C. Civil; exprimindo, quer o “sub-critério” dos preços correntes/usuais/normais à data da conclusão do contrato, quer o “sub-critério” do preço do mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir, concretizações, antecipadas pela lei, da referida regra de razoabilidade e de equidade que, dum modo ou de outro, sempre preside – sempre acaba por ser o critério escrutinador – em tal hipótese à determinação do preço.

Tudo isto para considerar, um pouco diferentemente do que já sustentámos noutras ocasiões, que, não havendo acordo sobre o preço (e invocando-se que não houve tal acordo), nos movemos numa mesma e única causa de pedir[12] quando o determinamos percorrendo toda a 2.ª parte do art. 883.º/2 do C. Civil, isto é, ou a partir dos preços correntes/usuais/normais, ou a partir dos preços do mercado/bolsa, ou directa e unicamente pela equidade[13]

Assim, isto dito, revertendo ao caso dos autos/reconvenção, podemos afirmar que o alegado no art. 12.º da contestação (a que corresponde a alínea L dos factos deste acórdão, isto é, que “apesar de não ter sido previamente fixado entre A. e R., o legal representante desta presumiu que o preço pelo trabalho desenvolvido pelos seus trabalhadores seria de €15,00/hora, por ter sido o preço debitado pela primeira à C (...) por serviços idênticos dos seus trabalhadores na obra do Edifício (...)”) significa e equivale à “confissão” da R/reconvinte de não haver sido convencionado/acordado quer o preço contratual quer o meio/critério de o determinar, o que nos remete para a 2.ª parte do art. 883.º/2 do C. Civil, o mesmo é dizer, para o critério do preço razoável e equitativo, aqui se incluindo as duas referidas concretizações antecipadas pela lei; não existindo qualquer obstáculo substantivo ou processual à aplicação de toda a 2.ª parte do art. 883.º/2 do C. Civil.

Ou seja, quer se considere que o alegado no referido art. 12.º da contestação corresponde à invocação do 1.º dos sub-critérios (dos preços correntes/usuais/normais), quer se considere que se trata tão só de fornecer um elemento/contributo factual para aplicação directa do juízo de equidade, a verdade é que o alegado e depois provado remete sempre para algo que não pode ser irrazoável e inequitativo e que, na determinação, é sempre passível de controlo e correcção judicial[14].

Enfim, encurtando razões, efectuando tal controlo e correcção, quer-nos parecer que, em termos de razoabilidade, de juízo equitativo, o preço da hora dos trabalhadores da R/reconvinte – determinado pela R/reconvinte a € 15,00 à hora – é algo exagerado; tal preço, a nosso ver, não pode/deve ultrapassar os €11,00 à hora; mais do que isto, será/ia um preço irrazoável e algo arbitrário[15].

Neste ponto – do preço da hora dos trabalhadores da R/reconvinte – são aliás bastante pertinentes as observações da A/apelante constantes das conclusões 22 e 23; ao preço de € 15,00/hora chegamos mensalmente a mais de 2.500,00 €, montante este nada congruente com os custos dum trabalhador da construção civil para a sua entidade patronal (mesmo tendo presente que a um efectivo trabalho de 11 meses corresponde o pagamento de 14 “vencimentos” e que a estes acrescem outras despesas, como a TSU, o seguro, etc.).

Por outro lado, a presunção alegada no art. 12.º da contestação – ter a R/reconvinte presumido que o preço pelo trabalho desenvolvido pelos seus trabalhadores seria de € 15,00/hora, por ter sido o preço debitado pela A. à C (...) por serviços idênticos dos seus trabalhadores – não corresponde sequer, em bom rigor, à invocação dum preço normal/usual e, muito menos, à invocação do preço normal/usual da R/reconvinte[16]; e, ainda assim, mesmo que fosse esse o caso, não estaríamos impedidos de fazer um controlo de razoabilidade sobre o mesmo.

Concluindo pois sobre a questão que domina o objecto dos autos/apelação – sobre o preço da hora dos trabalhadores da R/reconvinte – temos que vale como preço o de € 11,00 à hora, o que significa que o contra-crédito (decorrente da referido contrato atípico de cedência de trabalhadores) da R/reconvinte ascende a € 40.183,00 (em face do que consta da alínea O) dos factos provados – 3.653 X € 11,00 à hora).

Contra-crédito este (da R/reconvinte) de € 40.183,00 que se “defronta”, em termos compensatórios (art. 847.º do C. Civil), com o supra citado crédito da A. do montante de € 34.025,20 (sem a inclusão dos juros devidos).

Compensação que, importa referir, não foi efectivada apenas com a contestação/reconvenção, mas sim, como se refere em M) dos factos provados, “após a interpelação referida em D)”, momento em que “a R. apresentou a pagamento à A. os valores relativos aos trabalhos realizados pelos seus trabalhadores, a fim de serem levados em conta no abatimento do preço da obra”, não concordando a A. com os preços que a R. apresentou e devolvendo a factura, “argumentando que o preço horário seria € 7,50/hora e não € 15,00 e pedindo a anulação da mesma e a emissão de uma outra” (alínea Q) dos factos).

Assim, não obstando à compensação a iliquidez da dívida (cfr. art. 847.º/3 do C. Civil) e considerando-se “os créditos extintos desde o momento em que se tornaram compensáveis” (art. 854.º do C. Civil), reconhecemos a compensação como efectivada, ignorando-se a exacta data da interpelação referida em D), pelo menos desde o dia 31/12/2008 (data da emissão da factura – alínea N).

Pelo que, em termos de cálculos, tendo em vista saber quem é credor ou devedor, o contra-crédito da R/reconvinte de € 40.183,00 se “defronta”, em termos compensatórios, com o crédito da A. de € 34.025,00, este acrescido dos juros que forem devidos até 31/12/2008.

E, efectuadas as contas, até 31/12/2008, sobre o crédito da A. de € 34.025,20 (detalhado em C)) venceram-se juros comerciais no montante global de € 6.567,45[17].

Pelo que, tudo visto e ponderado, é a A. que é credora da R. e no montante de € 409,65, quantia sobre a qual se venceram e vencem juros a partir e desde 01/01/2009; sendo justamente este o desfecho da presente apelação (e dos autos, aqui se incluindo acção e reconvenção) que, em tais termos e com tais fundamentos, será assim julgada parcialmente procedente.


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Antes ainda de concluir, as duas seguintes notas e observações:

Uma 1.ª, a propósito da invocação de várias nulidades de sentença e da invocação da violação de preceitos constitucionais respeitantes ao acesso ao direito e ao dever de fundamentação das decisões judiciais.

É de todo evidente que a recorrente não tem qualquer razão em tais invocações.

Mas, mais do que a falta de razão, o que sobressai – para quem estiver atento – é o despropósito de tais invocações, que nada têm a ver com o caso dos autos e que não são mais que uma fórmula gasta, que se repete, oca e acriticamente.

Assim, repetindo a resposta[18]:

“A alegação da Apelante termina com esta a suscitar a nulidade da sentença por violação das alíneas b), c) e d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC, sem que, todavia, explique, ainda que sucintamente, onde vislumbra tais causas de nulidade.

Segundo a referida alínea b), constitui causa de nulidade da sentença a falta de fundamentação, porém, quando se fala, a tal propósito, em “falta de fundamentação”, está-se a aludir à falta absoluta e não às situações em que a fundamentação é deficiente, incompleta ou não convincente.

Segundo a referida alínea c), constitui causa de nulidade da sentença os fundamentos estarem em oposição com a decisão, porém, quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão; está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto.

Segundo a referida alínea d), constitui causa de nulidade da sentença o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, porém, quando se fala, a tal propósito, em “omissão de conhecimento” ou de “conhecimento indevido”, está-se a aludir e remeter para as questões a resolver a que alude o art. 660.º do CPC.

Explicado o sentido de tais causas de nulidade de sentença, é de todo evidente que só por manifesto lapso se pode invocar o vício de nulidade em relação a uma sentença em que os fundamentos, de facto e de direito, se encontram expostos, em que se conclui em harmonia com o exposto e em que se conheceu, sem excesso ou omissão, das questões devidas.

Improcedem pois as nulidades de sentença invocadas; sentença que cumpre os incisos constitucionais respeitantes à fundamentação das decisões judiciais e que foi produzida no termo dum processo leal e fair, em que a R/apelante exerceu, de forma efectiva, os seus direitos, podendo invocar todos os que entendia assistir-lhe e contraditando todos os exercidos pela parte contrária.”
Uma 2.ª, a propósito da litigância de má-fé:

Como já se referiu, a A/recorrente, na réplica, negou, rotunda e repetidamente, “tudo” o que a R/reconvinte havia invocado sobre o seu contra-crédito sobre a A..

Veio a provar-se não só “tudo” – a questão da preço da hora é/era basicamente uma questão de direito – o que a R/reconvinte havia alegado/invocado como, inclusivamente, tal “tudo” foi confessado pelo representante legal da A/recorrente (quando foi ouvido em depoimento de parte).

Sendo assim, o comportamento da A/recorrente é, objectivamente, revelador duma clara má-fé processual, uma vez que alterou, na réplica, a verdade de factos relevantes para a decisão da causa/reconvenção (cfr. art. 456.º/2/b) do CPC e 542.º/2/b) do NCPC).
Por conseguinte, para o exercício do seu direito de defesa em tal questão, será a A/recorrente notificada (cfr. art. 3.º/ 3 do CPC) para se pronunciar, querendo, sobre a mesma.


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V - Decisão

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação e, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, substitui-se o seu conteúdo decisório por decisão com o seguinte teor:

Declara-se, quanto à acção, que a A. é credora da R. no montante de € 34.025,20, a que acrescem juros comerciais, os quais, em 31/12/2008, já ascendiam ao montante global de € 6.567,45.

Declara-se, quanto à reconvenção, que a R. é credora da A. no montante de € 40.183,00.

Assim, operando a compensação, condena-se a R. a pagar à A. a quantia de € 409,65, acrescida de juros (às taxas dos juros comerciais) vencidos e vincendos, desde 01/01/2009 até integral pagamento; e absolvem-se R. e A. em tudo o mais que foi peticionado quer na acção quer na reconvenção, respectivamente.

Custas da apelação em partes iguais.

Quanto à 1.ª instância: da acção, 99/100 pela A.; e 1/100 pela R.; da reconvenção, integralmente a cargo da R.


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Notifique-se a A/apelante para, querendo, em 10 dias, se pronunciar (cfr. art. 3.º/3 do CPC), atenta a razão supra exposta, sobre a sua consideração/condenação como litigante de má-fé.

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Coimbra, 12/11/2013

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)



[1] Não diz exactamente isto, mas está implícito.

[2] Retira-se de tal alínea a Factura n.º 98, pretensamente emitida em 26.7.2006, vencida em 25.8.2006 e no valor de €12.313,50; uma vez que, como se vê do Aviso de Conta Corrente de fls. 17, tal factura como que “anula” a nota de crédito de 2 dias antes; dando-se o caso, bem relevante, do montante peticionado, em termos de valores de facturas (os € 34.025,20) não incluírem o valor de tal factura, que, aliás, não foi sequer junta.
[3] É este o montante que consta da factura (junta a fls. 13) e do Aviso de Conta Corrente de fls. 17 e não o que foi alegado e, em função disso, não sendo contestado, foi considerado como provado; e, naturalmente, é este montante que permite, tudo somado, dizer que o montante peticionado, em termos de valores de facturas, ascende aos € 34.025,20.
[4] É o que consta do Aviso de Conta Corrente de fls. 17 e o que está em harmonia com o vencimento de todas as facturas a 30 dias da data da sua emissão.
[5] Incluindo o episódio do envio e devolução da factura da R/reconvinte.
[6] Cfr. Pedro Romano Martinez, Contrato de Empreitada, 1994, pág. 120.
[7] Mais jurídico que prático, uma vez que não há diferenças muito sensíveis entre os art. 1211.º, 1158.º/2 e 883.º, todos do C. Civil; aliás, o art. 1211.º até remete para o art. 883.º.
[8] Efectivamente, sobre os elementos essenciais do regulamento contratual, a lei, em regra, não intervém com previsões substitutivas que tomem o lugar da vontade ausente dos sujeitos privados; e compreende-se que assim seja, uma vez que tratando-se dos elementos essenciais, dos elementos que definem a própria lógica da operação, a sua substância e o seu racional económico, é óbvio que a respectiva determinação deve competir, por regra, aos interessados.
Assim, em matéria de contratos, domínio em que o princípio da autonomia privada se manifesta em toda a sua plenitude (cfr. art. 405.º do C. Civil), não podem as partes deixar de estabelecer/alegar os seus elementos essenciais (sob pena de, v. g., não individualizando a coisa a transferir, o preço a pagar por ela, o montante do empréstimo a conceder, a obra a realizar, não se chegar a formar um contrato válido de venda, de mútuo ou de empreitada - cfr. art. 280.º do C. Civil, segundo o qual o objecto do contrato deve ser, além de possível e lícito, “determinado” ou pelo menos “determinável”). Como refere Menezes Cordeiro, Tratado, Parte Geral, Tomo I, 1999, pág. 414, “do conteúdo deve distinguir-se o objecto; este tem não a ver com a regulação em si, mas com o quid sobre que irá recair a relação negocial propriamente dita. (…) a doutrina troca, muitas vezes, o conteúdo pelo objecto, utilizando esta última expressão de modo informe. O próprio C. Civil, no seu art. 280.º, menciona o objecto negocial com o fito de referenciar o conteúdo e o objecto propriamente dito”.
[9] In Revista dos Tribunais, 71, pág. 131.

[10] In Estudos (que conduziram ao nosso actual C. Civil) – Objecto da obrigação – BMJ 74 – pág. 215 e ss.

[11] Dando nota ainda (pág. 217 a 219) que, no projecto de Lei Uniforme (Haia, 1956) sobre a venda internacional de objectos mobiliários corpóreos, se declara que, quando a venda é concluída sem que o preço tenha sido fixado pelo contrato, o comprador é obrigado a pagar o preço habitualmente praticado pelo vendedor quando da conclusão do contrato ou, na falta deste preço, um preço razoável calculado, se possível, segundo os preços geralmente praticados quando da conclusão do contrato. Dizendo-se antes (no projecto de Roma da mesma lei) que, não havendo fixação do preço, o comprador é obrigado a pagar o que o devedor exija, salvo se este preço for contrário à equidade. Tendo-se censurado nesta regra – tendo em vista a alteração de Haia – o permitir-se que o vendedor dite o seu preço ao comprador e o obrigar-se que o comprador demonstre que o preço reclamado é exagerado. Parecendo ter-se em conta, na nova redacção do texto, as seguintes considerações: se o preço da venda não foi fixado no contrato, o comprador é obrigado apenas a pagar o preço habitualmente praticado pelo vendedor quando da conclusão do contrato ou, na falta dele, um preço razoável.
[12] Entendeu-se diferentemente, para a situação semelhante (no contrato de empreitada) do art. 1211.º do C. Civil, no Ac. Relação do Porto de 17-05-1984, in, CJ 1984, Tomo III, p. 265; considerando-se que a cada uma das medidas de retribuição/preço corresponde uma causa de pedir diferente.

[13] Assim como corresponderá à mesma causa de pedir, no caso do contrato de prestação de serviços, determinar a retribuição quer pelas tarifas profissionais e, na falta destas, pelos usos e, na falta de umas e outras, por juízos de equidade (cfr. 1158.º, n.º 1, do C. C.).

[14] Numa situação algo semelhante, a propósito do art. 400.º/2 do C. Civil, escreveu o Prof. Baptista Machado, in RLJ, ano 119, pág. 164: “Cremos que o pensamento que está subjacente ao n.º 2 do art. 400.º é o seguinte: sempre que falhem as pessoas ou os órgãos cujo julgamento, em termos de razoabilidade (na pessoa de terceiro imparcial, portanto), se torne indispensável para dar concretização aos compromissos assumidos no contrato, o tribunal deve suprir esse juízo. Trata-se, aliás, de um juízo que, quando emitido pela entidade designada no contrato, estaria sujeito a controlo e a correcção judicial”.

[15] Para ser válido um negócio, em que o preço não foi determinado, não se pode deixar a sua determinação ao “puro arbítrio” de uma das partes; e a invalidade do negócio, estamos certos, não foi a “ideia” das partes.
[16] Uma vez que tal preço, afinal, havia sido praticado – não se sabe sequer se usualmente (isto é, para outros clientes, para além da C (...) – mas pela A..

[17] Calculando os juros comerciais, nos seguintes termos e taxas:

Portaria 7.706/2006 – de 28/06/2006 – 9,83% (2.º Semestre de 2006)

Portaria 191/2007 – de 28/12/2006 – 10,58% (1.º Semestre de 2007)

Portaria 13.665/2007 – de 30/07/2007 – de 28/06/2007 – 11,07% (2.º Semestre de 2007)

Portaria 2.152/2008 – de 8/01/2008 –  – 11,20% (1.º Semestre de 2008)

Portaria 19.995/2008 – de 02/07/2008 – – 11,07% (2.º Semestre de 2008)

O que significa:

Que a factura 90, no 2.º semestre de 2006 (137 dias), venceu juros de € 133,89;

Que a factura 95, no 2.º semestre de 2006 (130 dias), venceu juros de € 139,65;

Que a factura 124, no 2.º semestre de 2006 (64 dias), venceu juros de € 128,51;

Que a factura 87, no 2.º semestre de 2007 (155 dias), venceu juros de € 810,44;

Que as facturas 90, 95 e 124, no 1.º semestre de 2007 (181 dias), venceram juros de € 790,82;

Que as facturas 90, 95 e 124, no 2.º semestre de 2007 (184 dias), venceram juros de € 765,18;

Que as 4 facturas, no 1.º semestre de 2008 (182 dias), venceram juros de € 1.900,19;

Que as 4 facturas, no 2.º semestre de 2008 (184 dias), venceram juros de € 1.898,77.
[18] Dada noutros e diversos recursos em que, no fim, se diz sempre e exactamente o mesmo.