Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1574/13.1TBFIG.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: DOAÇÃO
CLÁUSULA MODAL
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 289, 433, 435, 963, 966 CC
Sumário: 1.- A resolução da doação modal, fundada no não cumprimento de encargos, conferida pelo contrato, nos termos do art. 966º do CC, não opera ope legis os seus efeitos, mas sim via judicial.

2.- A resolução não prejudica os direitos adquiridos por terceiros (art. 435º, nº 1, do CC), salvo no caso (nº 2 de tal dispositivo) se a acção de resolução for registada anteriormente ao registo do direito de terceiro sobre bens imóveis.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. M (…) residente na (...) demandou J (…) e P (…), ambos residentes na (...) , pedindo - além do mais, já objecto de sentença de parcial extinção da instância:

a) a declaração de resolução, por não cumprimento de encargo, da doação feita pela A. ao primeiro R. na escritura de partilha e doações outorgada em 9 de Fevereiro de 1989 e lavrada a fls. 39 v. a 42 v., do livro 12-F, na Secretaria Notarial de (...) , relativa aos prédios inscritos na matriz sob os artigos 3 (...) e 3 2 (...) , descritos na Conservatória do Registo Predial de (...) sob os números 9 (...) e 8 (...) , respectivamente, da freguesia de (...) , e decretado o cancelamento dos registos e inscrições relativos àqueles prédios efectuados a partir daquela escritura; e,

b) a condenação do primeiro R. a indemnizar a autora, na quantia de 1.000 €; e,

c) a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de compra e venda outorgada em 28 de Março de 2006 e lavrada a fls. 12, 12 v., 13, 13 v. e 14, do livro 25-A, no Cartório Notarial de (…), nesta comarca, e decretado o cancelamento de todos os registos e inscrições efectuados a partir daquela escritura e relativos aos prédios inscritos na matriz sob os artigos 3 (...) e 3 2 (...) , descritos na Conservatória do Registo Predial da (...) sob os números 9 (...) e 8 (...) , respectivamente, da freguesia de (...) ; e,

d) a condenação dos réus a restituir-lhe, livres de ónus ou encargos, os prédios inscritos na matriz sob os artigos 3 (.....) e 3 2 (...) , descritos na Conservatória do Registo Predial de (...) sob os números 9 (...) e 8 (...) , respectivamente, da freguesia de (...) , bem como em sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento;

E subsidiariamente:

g) anulada, por existência de uma condição resolutiva a favor da autora, a compra e venda dos prédios inscritos na matriz sob os artigos 3 (...) ..) e 3 2 (...) , descritos na Conservatória do Registo Predial de (...) sob os números 9 (...) e 8 (...) , respectivamente, da freguesia de (...) , efectuada através de escritura de compra e venda outorgada em 28 de Março de 2006 e lavrada a fls. 12, 12 v., 13, 13 v. e 14, do livro 25-A, no Cartório Notarial de (…), nesta comarca, e decretado o cancelamento de todos os registos e inscrições efectuados a partir daquela escritura e relativos àqueles prédios, e ordenada a sua restituição à A.

Alegou para tanto que: em Fevereiro de 1989, na sequência do óbito do marido J (…) e da respectiva habilitação de herdeiros foi outorgada escritura de partilha e doações nos termos da qual a autora doou ao primeiro réu, seu filho, duas verbas, que lhe tinham sido previamente adjudicadas, correspondentes aos dois identificados imóveis; que tal doação foi feita com a condição de o donatário cuidar da doadora na saúde e na doença, com todos os cuidados próprios à sua idade, designadamente no que disser respeito à sua alimentação, vestuário, tratamentos médicos, farmacêuticos e hospitalares, reservando a faculdade de considerar resolvida a doação feita ao donatário faltoso; o donatário aceitou aquela doação sujeita àquele encargo e com aquela faculdade de resolução; o primeiro réu não cumpriu o seu dever de prestar, pois não cuida da doadora nem quando esta está de boa saúde nem quando está doente, nem lhe presta os cuidados próprios da sua idade, não lhe fornece nem a auxilia na alimentação, e não acompanha nem financia os tratamentos médicos, farmacêuticos e hospitalares de que a autora vai tendo necessidade; o donatário foi instado pela doadora a cumprir, sabendo que se se mantivesse em tal situação de incumprimento, a autora lançaria mão da faculdade de resolução da doação; aqueles cuidados tem sido assegurados por terceiros, e que, sem eles, a autora há muito teria perecido, pelo que perdeu o interesse que tinha na prestação; entretanto, aqueles imóveis foram registados a favor do segundo réu, porque o primeiro réu foi responsável por um acidente de viação e a I (...) propôs contra o mesmo uma acção para exercitar o seu direito de regresso a que se seguiu o respectivo processo executivo, para o pagamento coercivo da quantia exequenda de cerca de 36.000 €, e o primeiro réu com o intuito de evitar a efectivação daquela responsabilidade, acordou com o segundo a transferência daqueles prédios para este, apesar de na realidade nenhum negócio terem querido realizar, tratando-se de uma simulação, continuando o primeiro, de facto, a ser proprietário e possuidor daqueles seus bens; com aqueles negócios pretendia também o primeiro réu obstar a que o seu património fosse afectado pelos efeitos da resolução da doação que a autora muito provavelmente iria peticionar, dado o incumprimento em que vinha incorrendo; o segundo réu teve perfeita consciência do prejuízo que causaria à autora com aqueles negócios simulados; pelo facto de o primeiro réu não cumprir o encargo em que ficou constituído, a autora teve que se socorrer da ajuda de terceiros para se alimentar, vestir e assegurar os tratamentos médicos de que foi necessitando, o que, além do mais, provocou nela tristeza e angústia.

O 2º réu contestou, tendo, além do mais, impugnado toda a factualidade e afirmado que a venda foi real; assiste-lhe a tutela de terceiro de boa-fé, pois sendo adquirente oneroso, no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável, sendo que a declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico não prejudica os direitos adquiridos, sendo o registo da aquisição anterior ao registo da acção de nulidade.

A A. replicou, mantendo a sua posição

Houve intervenção principal provocada de terceiros – J (…) e E (…) residentes na (...) -, como credores hipotecários, na veste de associados dos réus, tendo aqueles feito seus os articulados do 2º R.

Foi, depois, Z (…), filha da autora, nomeada sua curadora provisória, nos termos e ao abrigo do art. 17º do NCPC.

*

A final foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a causa, e absolveu os RR do pedido.

*

2. A A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. Os RR contra-alegaram, concluindo que: 

(…)

*

Falecida a A. (na pendência do processo neste tribunal da Relação) foi entretanto proferida decisão a julgar habilitadas para na lide ocuparem a sua posição, as suas filhas R (…) e Z (…).

*

II - Factos Provados

A) Em 9 de Fevereiro de 1989, na sequência do óbito de J (…) e da respectiva habilitação de herdeiros foi outorgada escritura de partilha e doações nos termos da qual, nomeadamente, a autora doou ao aqui primeiro réu as verbas seis e onze correspondentes a dois imóveis [sendo DOIS -Terra de cultura, sita em (...) , correspondente ao artigo 3 (...) e descrito sob a ficha n.º 9 (...) e QUATRO - Terra de cultura, sita em (...) , correspondente ao artigo 3 2 (...) e descrito sob a ficha n.º 8 (...) ] que tinham sido previamente adjudicadas à autora através do mesmo instrumento, por partilha dos bens pertencentes ao casal da mesma, dissolvido por morte do seu marido, sendo a tal doação atribuído o valor tributável das respectivas verbas, à data “dezassete mil duzentos e doze escudos”;

B) tal doação foi feita pela autora com a condição (cláusula modal) de o donatário, aqui primeiro réu, cuidar da doadora “na saúde e na doença, com todos os cuidados próprios à sua idade, designadamente no que disser respeito à sua alimentação, vestuário, tratamentos médicos, farmacêuticos e hospitalares” e se reservava-se a faculdade de considerar resolvida a doação feita ao donatário faltoso- condição esta que não foi levada a registo;

C) o donatário, aqui primeiro réu,- aceitou aquela doação sujeita àquele encargo e com aquela faculdade de resolução- condição essa que igualmente vigora relativamente às liberalidades feitas às duas filhas da autora, Z (…) e R (…)

D) A mulher do 1º réu, casada sob o regime de comunhão de bens adquiridos com o mesmo, prestou ao cônjuge o consentimento para a inteira validade daquela doação, nos termos exarados;

E) em 17 de Agosto de 2004, a seguradora I (…) dirigiu ao primeiro réu um pedido de reembolso do valor de 44.467,82 €, a título de direito de regresso, porquanto este tinha conduzido sob o efeito do álcool veículo seguro interveniente em acidente de 21 de Janeiro de 2003; em 23 de Dezembro de 2004, e porque o primeiro réu não procedeu ao pagamento do valor do reembolso pedido por aquela companhia de seguros, foi-lhe remetida uma nova missiva, desta feita por parte de um advogado da I (…), insistindo pelo cumprimento voluntário do pedido, sob pena de ser intentada a competente acção judicial; e perante o não pagamento, a I (…) propôs contra o primeiro réu acção declarativa de condenação, que correu trâmites sob o n.º 858/06.0TBFIG no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da (...) , a que se seguiu o respectivo processo executivo, sob o n.º 858/06.0TBFIG-A, para o pagamento coercivo da quantia exequenda de 35785,44€;

F) por escritura pública outorgada em 28 de Março de 2006, o primeiro réu declarou vender ao segundo, que declarou aceitar, pelo preço global de 57.630,00€ os seguintes prédios, sitos na freguesia de (...) e descritos na Segunda Conservatória do Registo Predial da (...) : UM - Casa de habitação, dependências e quintal, sitos em (...) , correspondente ao artigo 358 e descrito sob a ficha n.º 4 (...) ; DOIS -Terra de cultura, sita em (...) , correspondente ao artigo 3 (...) e descrito sob a ficha n.º 9 (...) ; TRÊS - Terra de cultura, sita em (...) , correspondente ao artigo 7 (...) e descrito sob a ficha n.º 6 (...) ; QUATRO - Terra de cultura, sita em (...) , correspondente ao artigo 3 2 (...) e descrito sob a ficha n.º 8 (...) ; CINCO - Vinha e terra de cultura, sita em Perneta, correspondente ao artigo 1(...) e descrito sob a ficha n.º 4147;

G) entre os mesmos réus uma outra escritura pública foi outorgada, em 20 de Abril de 2006, lavrada no Cartório Notarial de (…), nesta comarca, na qual o primeiro declarou vender ao segundo, que declarou aceitar, pelo preço de 3.000,00€, metade indivisa de uma terra de cultura com uma fruteira, sita em (...) , freguesia de (...) , correspondente ao artigo 3697 e descrita sob a ficha n.º 4148 da Segunda Conservatória do Registo Predial da (...) - terra que corresponde ao quintal da casa de morada do primeiro;

H) todos estes imóveis advieram ao património do primeiro através da escritura de partilha e doações, referida - da seguinte forma: por partilha subsequente ao óbito do pai do primeiro R., foram adjudicados a este os imóveis identificados em UM, TRÊS e CINCO e ainda a metade indivisa referida; por doação da cônjuge sobreviva, mãe do primeiro R., foram doados a este, que aceitou, os imóveis identificados em DOIS e QUATRO;

I) o primeiro réu continua a morar na sua casa de habitação, referida em UM supra, onde nasceu e sempre viveu, e também vive, em plena comunhão, a sua mulher desde a data do casamento entre ambos, não pagando qualquer valor ao segundo, seja a que título for, nomeadamente de renda; o primeiro continua, bem assim, a titular o contrato de fornecimento de energia eléctrica àquela habitação e a pagar as respectivas facturas; a água que abastece a casa é proveniente de um poço e o gás utilizado é comprado em botijas,- pelo que não há outros contratos de fornecimento de serviços essenciais relativos àquela habitação;

J) e continua a ser a morada daquela habitação a mesma que corresponde ao domicílio fiscal do primeiro réu;

K) relativamente aos restantes imóveis, o primeiro réu continuou a usufruir o prédio constituído por metade indivisa (quintal), e continua a cultiva-lo e a colher os respectivos frutos, a extrair o mato e a proceder à sua limpeza, por si e por intermédio de outrem, tal como fazia antes daquelas escrituras;

L) de igual modo, também a propriedade do veículo automóvel do primeiro réu - de matrícula (...) , por si adquirido em 22 de Junho de 2002 - foi transmitida para o segundo réu em 8 de Maio de 2006;

M) o primeiro réu continua na posse de todos os documentos do referido veículo e foi também na titularidade do primeiro réu que continuou o respectivo seguro automóvel, tendo sido sempre ele a pagar as respectivas facturas; assim como foi o primeiro réu que continuou a liquidar os respectivos impostos (cfr. doc. 63 a 67); a levar o veículo às inspecções técnicas periódicas, liquidando os respectivos valores (cfr. doc. 68 a 75), o mesmo acontecendo com os episódios de manutenção (cfr. doc. 76 a 78);

N) mantendo o primeiro réu em sua posse os originais de todos aqueles documentos, e não o segundo réu,

O) O 2º réu pagou os impostos dos imóveis objecto das escrituras de compra e venda, conforme documentos de liquidação de IMI respeitante aos anos de 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012.

P) Uma parcela do imóvel inscrito na matriz sob o artigo n.º 4766 (o qual não foi objecto de venda ao 2º réu) estava em posse administrativa pela B (…), S.A., posse administrativa aquela efectuada o âmbito de um processo de expropriação por utilidade pública que acabou por culminar num contrato-promessa entre a B(…) e o primeiro réu em 15-01-2007 e na subsequente expropriação amigável em 07-08-2008, resultando de declaração de utilidade pública urgente de 22 de Abril de 2008.

Q) À data da audiência de julgamento, a autora encontra-se completamente dependente de terceiros para satisfazer todas as suas necessidades básicas; sozinha não consegue higienizar-se e vestir-se; para se alimentar, precisa da ajuda de terceiros; não consegue efectuar as mais elementares lides domésticas, como sejam limpar, tratar das roupas e cozinhar; não consegue administrar a si própria a medicação diária que lhe tem vindo a ser receitada pelos médicos; nem consegue, pelos seus próprios meios, deslocar-se ao centro de saúde, ao hospital ou à mercearia; não se aguenta muito tempo em pé, caminhando com muita dificuldade; perdeu totalmente a visão de um dos olhos, vendo mal do outro, reconhecendo as pessoas pela respectiva voz.

R) A autora é uma octogenária viúva que, além da debilidade própria da sua idade, sofre de doenças relacionadas com ansiedade, situação clínica que irá agravar-se progressivamente.

S) Se os medicamentos para a ansiedade não forem tomados pela autora da forma prescrita, a mesma fica desorientada, chegando a perder noção do sítio onde se encontra;

T) A situação de saúde da autora, já octogenária, agravou-se cerca de um ano antes da propositura, altura que a irmã do primeiro réu, Z (…), filha da autora, a acolheu em sua casa, situada na mesma localidade da casa daquele.

U) Para poder prestar os devidos cuidados à sua mãe, aqui autora, a sua filha Z (…) optou por trabalhar somente três horas por dia, entre a hora do almoço e a hora do lanche, pois a autora não reúne os requisitos mínimos de autonomia para poder frequentar o centro de dia da área da sua residência.

V) É a filha Z (…), coadjuvada pelo seu marido, e apoiada pela irmã R(…) - que cuida da autora, provendo à satisfação de todas as suas necessidades básicas.

W) De facto, é aquela filha da autora que lhe dá banho, lhe trata das roupas, a veste e despe, confecciona as refeições e a auxilia na sua ingestão, a deita na cama e lhe coloca a fralda para dormir, a leva aos médicos e lhe administra os medicamentos e trata de toda a lide doméstica para que a mesma viva com limpeza e conforto.

X) Apesar de viver muito perto, o primeiro réu não presta qualquer cuidado à autora nem lhe entrega qualquer quantia monetária para a ajudar nas despesas.

Y) A autora recebe uma reforma mensal de 420,00€, onde se incluem já os duodécimos, rendimento que se esgota mensalmente com o pagamento dos medicamentos, das fraldas, dos resguardos de cama e dos cremes hidratantes para prevenir feridas, todos para a autora.

Z) Todas as outras despesas – alimentação e vestuário – da autora têm sido suportadas exclusivamente pela filha Z (…) e outra irmã.

AA) Desde há cerca de um ano à data da propositura- cerca de 2012/13 que o primeiro réu não cuida da doadora, aqui autora, nem lhe presta os cuidados próprios da sua idade- não lhe fornece nem a auxilia na alimentação, não acompanha nem financia os tratamentos médicos, farmacêuticos e hospitalares de que a autora vai tendo necessidade;

BB) não assegurou a prestação daquela assistência, nem por si nem através de terceiro - o réu também nunca delegou tal assistência noutrem, nomeadamente na sua mulher, a qual também nunca prestou nenhum daqueles cuidados;

CC) alienou-se da autora, não a auxiliando nas deslocações aos médicos, apesar de dispor de um carro, nem entregando qualquer quantia monetária para que vg. se pudesse contratar uma pessoa para cuidar da autora em casa ou então se internar a autora numa lar de terceira idade.

DD) O facto de o 1º réu haver alienado os bens doados, provocou na autora alguma perturbação, no contexto de um quadro mental de deterioração senil.

*

Factos não provados:

1) As referidas vendas ao 2º réu foram feitas com o intuito de evitar a efectivação da responsabilidade da actuação de regresso da seguradora,- o que importaria a quase total delapidação do seu património, o primeiro réu acordou com o segundo a transferência de todo o património daquele para este- em “venda fantástica”, pois apesar de formalmente todo o património passar a ser titulado pelo segundo na realidade nenhum negócio queriam realizar, continuando o primeiro, de facto, a ser proprietário e possuidor daqueles seus bens; e assim, a seguradora exequente não lograria obter o pagamento do seu crédito por inexistência de bens penhoráveis;

2) foi em execução de tal acordo simulatório que foram outorgadas as escrituras públicas de 28 de Março de 2006 e 20 de Abril de 2006; e apesar do que foi declarado naquelas escrituras, o comprador, aqui segundo réu, nada pagou ao vendedor, aqui primeiro réu, o qual nada recebeu, tendo a escritura sido outorgada em execução do mencionado acordo simulatório entre ambos;

(…)

5) O 1º réu sabia que se se mantivesse em tal situação de incumprimento, a autora lançaria mão da faculdade de resolução da doação, pois esta só lhe tinha sido feita em vista unicamente do cumprimento daquele encargo,

6) sendo aqueles cuidados assegurados por terceiros, sendo que, sem eles, a autora há muito teria perecido;

(…)

9) Relativamente aos rústicos objecto da doação - o primeiro ré continuou a deles usufruir, com a consciência de ser seu proprietário e legítimo possuidor- sendo prédios rústicos, continua a cultiva-los e a colher os respectivos frutos, a extrair o mato e a proceder à sua limpeza, por si e por intermédio de outrem, tal como fazia antes daquelas escrituras;

(…) 

15) Com aqueles negócios pretendia também o primeiro réu obstar a que o seu património fosse afetado pelos efeitos da resolução da doação que a autora muito provavelmente iria peticionar, dado o incumprimento em que vinha incorrendo, sabendo o 1º réu que ao transmitir o seu património para terceiro, a autora não conseguiria obter a satisfação integral do seu crédito,

16) sendo também do conhecimento do segundo réu, que tinha perfeita consciência do prejuízo que causaria à A. com aqueles negócios simulados.

*

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da sentença.

- Alteração da matéria de facto.  

- Da resolução, por não cumprimento do encargo, da doação feita ao 1º R. e cancelamento dos registos e inscrições relativos àqueles prédios.

- Da declaração de nulidade por simulação, dos prédios objecto da doação e cancelamento dos registos e inscrições relativos àqueles prédios.

- Da obrigação de restituição dos imóveis à A. pelos RR.

 

2. Defende a recorrente que a sentença é nula, nos termos do art. 615º, nº 1, d), do NCPC, por omissão de pronúncia relativamente à questão da resolução da doação (cfr. conclusão de recurso 6.).

O preceito referido assim determina. No entanto, inexiste a apontada omissão, pois o tribunal na sua fundamentação jurídica pronunciou-se sobre tal questão, conforme resulta do texto que vamos extractar de tal motivação jurídica:

“No caso, a doação foi realizada, através de escritura pública e resulta a referência, no texto do documento, a tal possibilidade, estando expressamente previsto (cf. art. 966.º), donde, no presente caso, a violação do encargo modal confere o direito à resolução do contrato de doação.

(…)

De todo o modo, trata-se de uma resolução convencional prevista na lei.

Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade, o que importa a destruição do negócio e consequente restituição de tudo o que as partes houverem recebido – cfr. artigos 433º e 289º do referido Código Civil. Nisto consiste a eficácia retroactiva da nulidade ou resolução, expressa naquele artigo e no artigo 434º. Neste determina-se que “a resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução”.

Inexistindo disposição especial que regule a resolução de uma doação fundada no não cumprimento dos encargos, os seus efeitos são retroactivos.

É que a retroactividade da resolução presume-se querida pelos contraentes – nestes sentido, Pires de Lima e Antunes Varela "in" Código Civil Anotado, em anotação ao citado artigo 434º. A autora pretende que fosse declarada sem efeito a doação e por via disso a propriedade plena dos prédios doado voltasse à sua titularidade. Ora, daquela destruição retroactiva decorre precisamente esse efeito.

No caso concreto, tal não será possível, e desde logo pela circunstância de tal encargo não se encontrar registado em conjugação com a ausência de prova da simulação dos negócios (desde logo veja-se a factualidade não provada constante como nº 15 e 16 e bem assim sob nº 1 a 3) -: tal circunstancialismo é impeditivo da resolução pretendida.

No que concerne ao 2º réu, não constando o referido ónus ou encargo registado, nem resultando demonstrado o seu conhecimento do referido ónus, à data das transmissões, nem resultando da factualidade demonstrada uma intencionalidade de causar prejuízo à autora - não estando demonstrados os pressupostos das simulações arguida, - aquela resolução não lhe é oponível.

Na verdade, as alienações tiveram lugar em 2006, a presente acção deu entrada em juízo em 2013: não resulta demonstrada a sua má fé, antes se presume a boa fé do 2º réu relativamente aos imóveis doados- aquisição titulada que prontamente registou- (cf. art. 1260º, nº 2), e que se encontra a coberto do regime do art. 291º do dito Código Civil. Na verdade, a declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico (e analogicamente, a resolução, com efeitos retroactivos) que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis objecto do registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação [ou resolução com efeitos retroactivos] ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio (artº 291º, nº 1 do Código Civil). Os direitos de terceiro não são, porém, reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (artº 291º, nº 2 do Código Civil).”.

Se o tribunal errou de direito é outra questão. Que infra, em 4. e 6., analisaremos. Falta de pronúncia é que não se verifica, não existindo, pois, a acusada nulidade. 

3. A A. impugna a decisão da matéria de facto, pretendendo que seja dado por provado o art. 23º da p.i., que seja retirada a parte final do facto provado B) e que o facto não provado 5) passe a provado (cfr. conclusões de recurso 1., 2., 4., 5., 16. a 19.).

3.1. Em tal artigo da p.i. a A. considera resolvida a doação, por incumprimento do dever de prestar do 1º R., faculdade prevista na escritura de doação, com referência à data de propositura da acção, ocorrida em 1.7.2013, e comunicada tal resolução ao donatário, 1º R., à data da sua citação, ocorrida em 11.7.2017. Esta pretensão não pode ser validada porque tal circunstância acaba por ser irrelevante.

Na verdade, a resolução da doação modal, fundada no não cumprimento de encargos, conferida pelo contrato, é pedida pelo doador, como determina o art. 966º do CC. Havendo lugar à resolução, esta, ao contrário do que sucede nos casos normais de condição resolutiva, não opera ipso iure ou ope legis os seus efeitos. A lei fala em poder o doador (ou seus herdeiros) pedir a resolução da doação, o que pressupõe a necessidade de eles a requererem, quando quiserem inutilizar a liberalidade. A resolução é feita, pois, via auctoritate judicis. É esta a interpretação legal que impera na doutrina (vide A. Varela, CC Anotado, Vol. II, 2ª Ed., nota 6. ao artigo indicado, pág. 262, Vaz Serra, RLJ, Ano 112º, pág. 85, L. T. Menezes Leitão, D. Obrigações, Vol. III, 5ª Ed., pág. 203 e Maria do Rosário P. Ramalho, Sobre a Doação Modal, O Direito, Nº 122 (1990), pág. 703).

Tendo a resolução de ser pedida pelo titular do direito e de ser decretada pelo tribunal, sendo a resolução da doação judicial, e uma vez que foi pedida pela A. é, por isso, irrelevante, fazer inscrever nos factos provados aquela declaração de resolução, com as datas referidas. Pelo que se indefere a impugnação deduzida pela A.     

3.2. A parte final do facto provado B) não tem de ser retirada, mas tem de ter uma resposta restritiva, por uma razão simples. É que compulsadas as cópias das certidões prediais atinentes aos dois aludidos prédios (arts. 3 (...) º e 3 2 (...) º) objecto da doação ao 1º R – que estão juntas a fls. 296/304, 541, 550/551 e 554/555 – constata-se que efectivamente a mencionada cláusula modal foi levada a registo, em 17.3.2006, o que aconteceu relativamente ao prédio com o art. 3 (...) º, descrito sob o nº 9 (...) , o mesmo não acontecendo quanto ao prédio com o art. 3 2 (...) º, descrito sob o nº 8 (...) .

Importa, pois, alterar a redacção de tal facto provado, com o respectivo acrescento, nos seguintes termos (a negrito, ficando a anterior redacção em letra minúscula):

B) tal doação foi feita pela autora com a condição (cláusula modal) de o donatário, aqui primeiro réu, cuidar da doadora “na saúde e na doença, com todos os cuidados próprios à sua idade, designadamente no que disser respeito à sua alimentação, vestuário, tratamentos médicos, farmacêuticos e hospitalares” e se reservava-se a faculdade de considerar resolvida a doação feita ao donatário faltoso- condição esta que não foi levada a registo em relação ao prédio correspondente ao art. 3 2 (...) º, descrito sob o nº 8 (...) .

3.3. Relativamente ao desiderato da A. do facto não provado 5) passar a provado, estriba-se a recorrente nas declarações de parte do 1º R., no teor da escritura, de 28.3.2006, de compra e venda dos aludidos 2 prédios, nas certidões de teor e inscrições em vigor de registo predial de 20.2.2006 e 22.3.2006, alusivas a tais prédios, no facto de o 2º R. ter conhecimento da inscrição registral da cláusula modal, referente ao prédio com o art. 3 (...) º (descrito sob o nº 9 (...) ), datada de 17.3.2006, pelo que teria que ter conhecimento da mesma cláusula quanto ao prédio com o art. 3 2 (...) º (descrito sob o nº 8 (...) ), de acordo com as regras da experiência, pois foi ele que tratou da papelada da compra e venda.

Esta pretensão não pode ser concedida, por manifestamente desapropriada. Importa notar que o 1º R. não prestou declarações de parte, mas sim depoimento de parte. Depois o pequeno trecho que a recorrente transcreve do depoimento de tal 1º R. visa demonstrar que toda a papelada para a escritura de compra e venda foi entregue ao 2º R., para demonstrar que o mesmo conhecia a cláusula modal impressa à doação dos dois prédios vendidos. O mesmo objectivo tem a referência às certidões de teor e inscrições de registo predial (embora a de 22.3.2016 não esteja junta aos autos) e sua articulação com o teor da escritura. Tudo para demonstrar que o 2º R. tinha conhecimento da cláusula modal relativa aos identificados prédios.

Chegou, porém, o momento de perguntar o que é esse eventual conhecimento tem a ver com o conteúdo do dito facto não provado 5) ?. Nada, é o que respondemos, pois esse facto respeita unicamente ao 1º R e relaciona-se com o seu incumprimento da cláusula modal e da eventual resolução da doação pela doadora, matéria completamente estranha àquela que a A. agora se propunha provar, referente ao 2º R. e sue eventual conhecimento de tal cláusula modal.

A impugnação deduzida por patentemente desfasada do que consta em tal facto não provado é, por isso, completamente inútil.       

4. No referente à questão da resolução da doação feita ao 1º R. (conclusões de recurso 1., 2. e 4.).

Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Conforme exposto e resulta dos factos provados, a autora celebrou com o co-réu J (…) seu filho, contrato de doação, sequente a acto de partilha, em que dispôs dos dois imóveis rústicos referidos …, tudo nos termos das escrituras juntas. Tal doação foi no entanto sujeita a condição modal ou encargo: a de o donatário, aqui primeiro réu, cuidar da doadora “na saúde e na doença, com todos os cuidados próprios à sua idade, designadamente no que disser respeito à sua alimentação, vestuário, tratamentos médicos, farmacêuticos e hospitalares” e se reservava a faculdade de considerar resolvida a doação feita ao donatário faltoso- condição esta que não foi levada a registo.

(…)

No entanto, o art. 963º dispõe que “as doações podem ser oneradas com encargos”. Significa isso que, na doação, tal como noutros negócios jurídicos que constituem liberalidades, cf. art. 2244º, as partes podem apôr uma cláusula modal – ou modo, ou encargo – constituindo uma cláusula acessória típica dos negócios que envolvam liberalidades, em que o doador (ou disponente) impõe ao donatário (ou beneficiário da liberalidade) a obrigação de adoptar um certo comportamento, no interesse do doador, de terceiro ou do próprio donatário, cfr. Mota Pinto, na obra citada, pág 454.

A doação modal ou com cláusula modal caracteriza-se por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações. Enquanto nas outras espécies de doações o beneficiário se limita a receber, sendo o seu património gratuitamente enriquecido com a coisa ou o direito transmitido ou com o crédito nele constituído sobre a parte liberal, artº 940º, na doação modal ele fica vinculado ao cumprimento de um dever.

(…) 

O donatário fica obrigado a um determinado comportamento, que pode ser no interesse do doador, ou de terceiro, ou do próprio beneficiário.- in casu, a favor da própria doadora.

(…)

Em caso de incumprimento do encargo pelo donatário, quer o doador, quer os seus herdeiros poderão resolver a doação. Porém, nos termos do artº 966, a resolução só tem lugar se esse direito tiver sido conferido pelo contrato. Trata-se de uma norma especial que afasta o regime geral previsto no artigo 801º do CC e por força da qual a violação da cláusula acessória, que impõe o dever acessório do donatário de cumprir um encargo, só permite a resolução do contrato pelo doador se as partes lhe atribuíram esse efeito no contrato. Ou seja, se houver incumprimento desta cláusula acessória do contrato, só é possível ao doador resolver o contrato, se esse direito estiver previsto no mesmo, caso contrário, a única faculdade de que o doador dispõe é o de exigir o cumprimento do encargo, não podendo operar a resolução e não sendo aplicável o regime do artº 801, - cf. Mota Pinto, in obra citada, pág. 458 e acórdãos da RC de 24.05.2005, da RL de 17.12.2009, da RP de 23.02.2006, 08.09.2009 e 08.07.2010, da RG de 23.03.2011 e 12.07.2011 e do STJ de 07.10.2010, todos disponíveis no sitio electrónico do IGFEJ.

(…)

No caso, a doação foi realizada, através de escritura pública e resulta a referência, no texto do documento, a tal possibilidade, estando expressamente previsto (cf. art. 966.º), donde, no presente caso, a violação do encargo modal confere o direito à resolução do contrato de doação.

*

(…)

De todo o modo, vistos os autos, a factualidade apurada permite configurar a não prestação de cuidados e desinteresse relativamente à pessoa da autora, desde aproximadamente 2013, altura em que a autora, por força de tal falta de acompanhamento, passou a residir junto da filha Z (…) – cessando o 1º réu totalmente os cuidados e atenção mínimos devidos à autora sua mãe, em clara violação da condição resolutiva aposta.

(…)

De todo o modo, trata-se de uma resolução convencional prevista na lei.

Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade, o que importa a destruição do negócio e consequente restituição de tudo o que as partes houverem recebido – cfr. artigos 433º e 289º do referido Código Civil. Nisto consiste a eficácia retroactiva da nulidade ou resolução, expressa naquele artigo e no artigo 434º. Neste determina-se que “a resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução”.

Inexistindo disposição especial que regule a resolução de uma doação fundada no não cumprimento dos encargos, os seus efeitos são retroactivos.

É que a retroactividade da resolução presume-se querida pelos contraentes – nestes sentido, Pires de Lima e Antunes Varela "in" Código Civil Anotado, em anotação ao citado artigo 434º. A autora pretende que fosse declarada sem efeito a doação e por via disso a propriedade plena dos prédios doado voltasse à sua titularidade. Ora, daquela destruição retroactiva decorre precisamente esse efeito.

No caso concreto, tal não será possível, e desde logo pela circunstância de tal encargo não se encontrar registado em conjugação com a ausência de prova da simulação dos negócios (desde logo veja-se a factualidade não provada constante como nº 15 e 16 e bem assim sob nº 1 a 3) -: tal circunstancialismo é impeditivo da resolução pretendida.”.

Concorda-se com a fundamentação jurídica apresentada, que se mostra acertada face aos textos legais e pertinente quanto à doutrina invocada, com excepção do último parágrafo transcrito que leva a um resultado incorrecto.

Efectivamente, face aos factos provados está cabalmente demonstrado que o 1º R. não cumpriu o encargo que presidiu às aludidas doações dos 2 prédios, como a julgadora de direito reconhece expressamente e resulta amplamente demonstrado dos factos provados Q) a CC), em especial dos X) e AA) a CC). E é isso e só isso que importa.

Como a A. tinha o direito de resolução legal, de base convencional, da dita doação, nos termos do citado art. 966º do CC, pode a mesma resolver a doação, por aquela falta de cumprimento. Sendo completamente alheio a tal falta de cumprimento que o dito encargo não se encontre registado em conjugação com a ausência de prova da simulação dos negócios !

Consequentemente importa decretar a resolução da doação dos dois prédios ao 1º R, o que se fará no segmento decisório, e ordenar o cancelamento dos registos de inscrição de aquisição da propriedade sobre tais prédios a favor do 1º R.       

5. Relativamente à questão da simulação (conclusões de recurso 24. a 28.).

Nesta parte, tendo em conta a factualidade não provada constante de 1), 2), 9), 15) e 16) não logrou a recorrente demonstrar a existência de qualquer simulação, pelo que a decisão recorrida nesta parte mostra-se isenta de crítica.

Como tal, a apelação nesta parte improcede.    

6. No que respeita à questão da restituição dos imóveis à A. pelos RR (conclusões de recurso 7. a 12., 20. a 23.).

Para se decidir adequadamente há que acrescentar 2 factos provados à factualidade apurada, nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo código, ambos os factos emergindo de certidões de registo predial juntas aos autos, a cópia acima referida a fls. a fls. 296/304, de onde se constata que relativamente aos prédios em litígio, identificados no facto provado A), o 2º R. registou a sua aquisição em 2.6.2006 e os terceiros intervenientes, credores hipotecários, registaram a hipoteca em 24.4.2008, bem como a certidão de fls.327/332, de onde se retira que a presente acção foi registada a 16.7.2015.

Assim, acrescentam-se dois novos factos sob as letras EE) e FF) com a seguinte redacção (a negrito):

EE) Relativamente aos prédios identificados em A), o 2º R. registou a sua aquisição em 2.6.2006 e os terceiros intervenientes, credores hipotecários, registaram a hipoteca em 24.4.2008.

FF) A presente acção foi registada em 16.7.2015.

Analisando, agora, importa saber se a resolução da doação operada em relação ao 1º R. afecta o 2º R.

A regra é a de que a resolução não prejudica os direitos adquiridos por terceiros (art. 435º, nº 1, do CC).

Efectivamente, como explica A. Varela (no CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 1. ao mencionado artigo, pág. 386), a eficácia retroactiva da resolução do contrato, admitida no artigo anterior, não atinge terceiros que tenham, entretanto, constituído direitos opostos aos efeitos da resolução. E quer se trate de direitos adquiridos a título oneroso, quer a título gratuito. E não distingue também a lei, ao contrário do que sucede em matéria de nulidade e anulabilidade (art. 291º), entre terceiros de boa e má fé. É que não há, rigorosamente, na resolução má fé de terceiros. Estes, embora, conheçam a possibilidade legal ou contratual do exercício do direito de resolver o negócio, não têm de agir em harmonia com o exercício ou não exercício de tal direito.

Todavia, no caso do nº 2 de tal dispositivo já não é assim. Se a acção de resolução for registada anteriormente ao registo do direito de terceiro sobre bens imóveis, o direito de resolução já é oponível a este terceiro.

No caso, tratando-se de bens imóveis isso não sucedeu, pois o registo da acção é posterior à aquisição pelo 2º R. dos dois referidos imóveis, como da inscrição hipotecária a favor dos terceiros intervenientes principais. Inclusive a data da própria propositura da acção (1.7.2013), data a que a apelante atribuía advenientes efeitos resolutórios da doação, é posterior a tais registos.

Como assim, os direitos do 2º R. e dos intervenientes principais não são afectados.

Não procede, por isso, o recurso nesta parte.    

7. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A resolução da doação modal, fundada no não cumprimento de encargos, conferida pelo contrato, nos termos do art. 966º do CC, não opera ope legis os seus efeitos, mas sim via judicial;

ii) A resolução não prejudica os direitos adquiridos por terceiros (art. 435º, nº 1, do CC), salvo no caso (nº 2 de tal dispositivo) se a acção de resolução for registada anteriormente ao registo do direito de terceiro sobre bens imóveis.

IV - Decisão 

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, assim se revogando parcialmente a sentença recorrida, e, em consequência:

a) decreta-se a resolução da doação dos dois prédios ao 1º R, e ordena-se o cancelamento dos registos de inscrição de aquisição da propriedade sobre tais prédios a favor do 1º R.;       

b) no demais se mantendo a sentença apelada.

*

Custas pela A. e 1º R. na proporção de 2/3 e 1/3.  

*

  Coimbra, 2.4.2019

Moreira do Carmo

Fonte Ramos

Maria João Areias ( com voto de vencido)

Apelação nº 1574/13.1TBFIG.C2

Voto de vencido:

Concordando com o Acórdão na parte em que se aí se assume que o facto de o encargo não se encontrar registado não é impeditivo da resolução por parte da donatária, dele me afasto relativamente ao decretamento da resolução da doação por falta de cumprimento do encargo, bem como relativamente ao reconhecimento de que tal resolução acarrete o cancelamento do respetivo registo de aquisição por parte do 1º Réu, quando se reconhece se o negócio de compra e venda posterior não é afetado por tal resolução.

Quanto à questão da resolução da doação por incumprimento dos encargos, a faculdade resolutória só poderá ser exercida se o não cumprimento dos encargos se ficar a dever à culpa do donatário devedor[1].

No caso em apreço, tal como é afirmado na sentença recorrida, “não decorre que da banda da autora - ou até das demais obrigadas a idêntica condição, - tenha havido anterior “interpelação para o cumprimento” concretizado de tal encargo assumido de forma genérica, de molde a fazer operar a referida condição modal.!”

Embora dos factos provados resulte que o 1º Réu não terá prestado auxílio à sua mãe no ano anterior à propositura da ação, não se encontra provado que a autora alguma vez lhe tenha solicitado qualquer assistência ou apoio económico e nem sequer foi alegado que o 1º Réu tivesse condições para prestar tal auxílio e que se tivesse recusado a prestá-lo. Apenas se encontra provado que a autora era octogenária e que devido à sua debilidade foi viver para casa de uma das suas filhas e que é esta apoiada pelo seu marido e por uma outra filha da autora (também beneficiadas com bens doados e obrigadas a igual condição) na prestação dos cuidados à autora.

Com efeito, a sentença recorrida deu como “não provados” os seguintes factos:

4) O 1º réu foi instado pela doadora a cumprir.

5) O 1º réu sabia que se se mantivesse em tal situação de incumprimento, a autora lançaria mão da faculdade de resolução da doação, pois esta só lhe tinha sido feita em vista unicamente do cumprimento daquele encargo,

6) sendo aqueles cuidados assegurados por terceiros, sendo que, sem eles, a autora há muito teria perecido.

E a motivação da decisão quanto a tal matéria de facto, exposta na decisão recorrida (fls. 22 a 24), é elucidativa quanto às razões de tal “não prova”, referindo o juiz a quo, que, se objetivamente o réu deixou de assistir a mãe, tal falta de assistência se encontrará justificada pelas dificuldades por este atravessadas e que a pensão auferida pela autora e a ajuda prestada pelas filhas será suficiente para prover às suas necessidades, “nunca tendo a filha Z (…) ou a própria autora pedido ao 1º Réu qualquer valor – e se o réu o não fazia espontaneamente, natural era que assim sucedesse”.

Ou seja, entendemos que, no caso em apreço, não se verificam os pressupostos da resolução por incumprimento dos encargos.

Por outro lado, e ainda que fosse de reconhecer à autora o direito à resolução da doação, a circunstância de tal resolução não poder prejudicar os direitos adquiridos por terceiros, levará, em meu entender, a que não seja de determinar o cancelamento do registo da aquisição a favor do 1º Réu, sob pena de se criar um hiato no registo uma interrupção na cadeira de transmissão dos imóveis desde a donatária até ao atual adquirente, 2º Réu.

Em matéria de resolução, a lei elege, como princípio geral, a não produção de efeitos em relação a terceiros, estipulando a retroatividade apenas no plano da relação entre as partes (artigo 435º, nº1, CC) e constituindo a resolução relativamente a terceiros, res inter alios acta[2].

A declaração de resolução tem a eficácia de extinguir a relação contratual, gerando uma relação de “liquidação” complexa relativamente ao contrato obrigacional, pelo que a retroatividade da resolução do contrato será meramente obrigacional, respeitando somente à relação entre as partes, respeitando os direitos de terceiros adquirentes[3]. A eficácia retroativa da declaração de resolução é relativa e parcial, pelo que a restauração da situação anterior, se envolve, em princípio, uma restituição natural das coisas prestadas, pode ter de se traduzir numa mera restituição do valor correspondente[4].

Assim sendo, e ainda que se reconhecesse à autora o direito à resolução da doação por incumprimento dos encargos, tal não obstava a que se mantivessem de pé os respetivos efeitos reais, nomeadamente o da transmissão da propriedade da doadora para o donatário e, posteriormente, deste para o 2º Réu, com a venda que lhe é feita, assim como a hipoteca que sobre tais imóveis veio a incidir.

Não será assim de decretar o cancelamento do registo de inscrição da aquisição da propriedade efetuado a favor do 1º Réu, sob pena de interrupção da cadeia de transmissões entre a donatária e o atual proprietário, 2º Réu, em violação do princípio do trato sucessivo, previsto no artigo 34º do CRegistoPredial.

Concluindo, não reconheceria o direito da autora à resolução da doação, assim como, a decretar-se a resolução não determinaria o cancelamento do registo da inscrição de aquisição da propriedade a favor do 1º Réu, confirmando a decisão recorrida, que apenas se não acompanha na parte em que considera a circunstância de tal encargo não se encontrar registado como impeditiva da resolução da doação).

                                                                      

Maria João Areias


[1] Rute Teixeira Pedro, Código Civil Anotado, Coord., Ana Prata, Volume I, Almedina, p. 1196. Também Manuel Batista Lopes, sustenta que em caso de incumprimento do modo, se o não cumprimento não for imputável ao donatário a obrigação extinguir-se-á se a impossibilidade de cumprimento do encargo for definitiva, ou não terão lugar os efeitos da mora se a impossibilidade for temporária (arts. 970º e 972º, CC) – “Das Doações”, Almedina, p. 120. Em sentido semelhante, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., p. 293.
[2] Maria Clara Sottomayor, “Invalidade e Registo, A proteção do terceiro adquirente de boa-fé”, Teses, Almedina, pp. 306 e 804.
[3] Adriano Vaz Serra, “Resolução do Contrato”, BMJ nº 68, Julho 1957, pp. 198- 201, onde salienta que mal se perceberia que, resolvendo-se o contrato por inexecução de uma das partes, pudesse daí resultar prejuízos para terceiros, isto é, que os direitos destes ficassem à mercê do procedimento dos contraentes (p.199).
[4] José Carlos Brandão Proença, “A Resolução do Contrato No Direito Civil”, Coimbra Editora, pp.166-168 e 179.